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NÃO APENAS EM NOME DE DEUS: DISCURSOS RELIGIOSOS SOBRE HOMOSSEXUALIDADE

NO SOLO EN EL NOMBRE DE DIOS: DISCURSOS RELIGIOSOS SOBRE LA HOMOSEXUALIDAD

NOT JUST IN THE NAME OF GOD: RELIGIOUS DISCOURSES ON HOMOSEXUALITY

Resumo

A homossexualidade tem sido pauta de diversos discursos religiosos nos últimos anos, sobretudo cristãos, transpondo as arenas religiosas e penetrando em espaços políticos e do direito. O presente artigo pretende, por meio da análise de vídeos de indivíduos que ocupam posições de porta-vozes das religiões católica e evangélica pentecostal e neopentecostal, analisar e problematizar as concepções de homossexualidade dos/as cristãos/ãs, utilizando para tal a Análise do Discurso Foucaultiana como referencial metodológico. Foi verificado um difuso arsenal de discursos acerca da homossexualidade, englobando saberes religiosos, "científicos", entre outros.

Palavras-chave:
católicos; evangélicos; homossexualidade; discursos

Resumen

La homosexualidad ha sido la agenda de varios discursos religiosos en los últimos años, especialmente en los discursos cristianos, a través de espacios religiosos y ingresando en los espacios políticos y de la ley. Este artículo pretende, mediante el análisis de videos de personas que se presentan como portavoces de las religiones católica y evangélica pentecostal y neo pentecostal, analizar y discutir los conceptos de homosexualidad presentes en estos discursos, mediante el análisis del discurso desde la perspectiva de Michel Foucault.

Palabras chave:
católicos; evangélicos; homosexualidad; discursos

Abstract

Homosexuality has been the agenda of several religious discourses in recent years, especially Christians, crossing beyond religious arenas and penetrating political and law field. This article aims, through the analysis of videos of individuals in positions of spokesmen of religions Catholic and Evangelical pentecostal and neo-pentecostal, to analyse and discuss the concepts of homosexuality made by Christians, using Foucault Discourse Analysis as a methodological framework. A diffuse arsenal of discourses about homosexuality was verified, covering "scientific" and religious knowledge, among others.

Keywords:
catholics; evangelicals; homosexuality; discourses

Introdução

Este artigo é um relato de pesquisa cujo objetivo foi identificar, por meio da análise de vídeos disponíveis na internet, as concepções acerca da homossexualidade enunciadas por religiões cristãs predominantes no Brasil, a saber, o catolicismo e a religião evangélica (pentecostal e neopentecostal). O material analisado constitui-se de vídeos disponibilizados para consulta pública em um site de compartilhamento de vídeos, em que os/as protagonistas eram assumidamente lideranças/representantes religiosos nacionalmente conhecidos, falando em nome de uma destas religiões ou dizendo-se representantes oficiais delas.

A homossexualidade é tratada conceitualmente neste artigo como uma definição para o desejo e as relações afetivo-sexuais entre pessoas do mesmo sexo/gênero, sendo considerada como uma construção moderna, visto que a terminologia não possui o mesmo sentido nos diferentes períodos da história. Para fins de análise, utilizamos o termo homossexualidade, entretanto, é sabido que existem diversos conceitos dentro deste campo, como homoerotismo (Costa, 1992Costa, F. J. (1992). A inocência e o vício: estudos sobre o homoerotismo. Rio de Janeiro: Relume-Dumará.) e homoafetividade (Chaves, 2011Chaves, M. (2011). Homoafetividade e direito: proteção constitucional, uniões, casamento e parentalidade - um panorama luso-brasileiro. Curitiba: Juruá.), por exemplo. O primeiro apresenta "uma noção mais flexível e descritiva das pluralidades das práticas direcionadas à orientação ao mesmo sexo, a fim de desconstruir a ideia de essência ou estrutura humana homossexual, doença ou anormalidade" (Lomando & Wagner, 2009Lomando, E. & Wagner, A. (2009). Reflexões sobre termos e conceitos das relações entre pessoas do mesmo sexo. Revista Sociais e Humanas, 22(2), 01-18., p. 11). De acordo com os mesmos autores, a homoafetividade surge como termo alternativo à homossexualidade, com o objetivo de designar o afeto das relações entre pessoas do mesmo sexo/gênero, embasando-se na constatação dos relacionamentos duradouros, dos bens compartilhados, elos afetivos e parentalidade ; substitui-se o sufixo sexual para afetividade como dispositivo possibilitador de reflexão psicossocial.

Segundo Foucault (2004aFoucault, M. (2004a). Michel Foucault, uma entrevista: sexo, poder e a política da identidade. Verve, 5, 240-259. ), apesar de os comportamentos homoeróticos serem punidos de forma severa, antes do século XIX eram vistos como excesso, libertinagem, um instinto difícil de ser controlado. Foi somente no século XIX que eles passaram a ser considerados como elementos constituintes da subjetividade, sendo a partir de então que os indivíduos começaram a ser definidos conforme suas condutas e seus desejos sexuais. Assim, as relações entre pessoas do mesmo sexo/gênero assumiram diversas conotações, ocupando lugares diferentes no decorrer dos séculos, evidenciando graus distintos de sanções e repressões. Se, na Grécia Antiga, as relações sexuais entre homens possuíam uma função social, ligada aos aspectos pedagógicos de formação da cidadania e de elevação dos sentidos (Foucault, 1988Foucault, M. (1988). História da Sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal.), na Idade Média, por meio da disseminação do cristianismo pelo Ocidente, seguida do advento do domínio político e econômico da Igreja Católica Apostólica Romana, tais relações passaram a ser vistas como pecado e abominação, com base em interpretações literais de trechos da Bíblia (Teixeira, 2011Teixeira, F. S. (2011). Homofobia e sua relação com as práticas "psi". Psicologia e diversidade sexual11, 41-57.).

A partir do século XIX, teóricos importantes como Sigmund Freud, Karl Heinrich Ulrichs, Magnus Hirschfeld e Richard von Krafft-Ebing trazem o debate para o campo científico, o que acaba retirando o status de criminalidade designado para as relações homossexuais no Ocidente. Embora Freud e Hirschfeld tenham feito ponderações no sentido de destacar a função das forças pulsionais e inconscientes relacionadas à orientação do desejo sexual, e à possibilidade de considerar as relações homoeróticas como uma variedade das manifestações sexuais, foram as considerações de Krafft-Ebing que se destacaram no cenário científico, contribuindo para que a homossexualidade ocupasse um lugar junto às psicopatologias e perversões, constituindo-se como um desvio, uma doença e, portanto, passível de tratamento (Sposito, 2012Sposito, S. E. (2012). Psicologia, sexualidade e religião: ligações perigosas. Revista de Psicologia da UNESP, 11(1), 100-104.; Teixeira, 2011Teixeira, F. S. (2011). Homofobia e sua relação com as práticas "psi". Psicologia e diversidade sexual11, 41-57.). Hoje em dia, as principais organizações e documentos nacionais e internacionais vinculados à saúde, como a American Psychology Association, a Organização Mundial de Saúde e o Conselho Federal de Psicologia, não veem a homossexualidade como uma psicopatologia, e sim como uma das possibilidades de vivência afetivo-sexual humanas. Tal posicionamento, aliado aos movimentos LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais) e feministas, tem contribuído para a diminuição do preconceito em alguns aspectos e para a conquista de direitos fundamentais no cenário político nacional e internacional.

Apesar dos avanços no campo dos direitos humanos, segundo Bomfim (2011Bomfim, S. A. (2011). Homossexualidade, direito e religião: da pena de morte à união estável. A criminalização da homofobia e seus reflexos na liberdade religiosa. Revista Brasileira de Direito Constitucional 18, 71-103.), cerca de 80 países ainda criminalizam o "sexo consensual homossexual", sendo que, destes, os países mulçumanos e islâmicos estão entre os que mais severamente punem a homossexualidade, através de prisão perpétua, condenação à morte, amputação de membros, apedrejamento, entre outros. Casos menos extremos e que recentemente têm obtido reconhecimento no meio midiático são a aprovação pelo parlamento russo de um projeto de lei que objetiva proibir a "propaganda da homossexualidade", limitando os atos públicos e manifestações de homossexuais; e, no contexto brasileiro, as diversas ações dos/as parlamentares que constituem as bancadas religiosas (católica e evangélica) no Congresso Nacional, dentre as quais se destacam o ataque ao PLC122/2006, que visa criminalizar a homofobia, o PDC 234/2011, que objetiva sustar artigos de uma resolução do Conselho Federal de Psicologia e o ataque ao "kit anti-homofobia", produzido pelo Ministério da Educação (Vital & Lopes, 2013Vital, C. & Lopes, P. V. (2013). Religião e política: uma análise da atuação de parlamentares evangélicos sobre direitos das mulheres e de LGBTs no Brasil Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Böll.). Outro aspecto importante que aconteceu no contexto brasileiro se refere ao debate em torno da posse do Deputado Marco Feliciano para a presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHMI) da Câmara Federal. O Fórum de Entidades Nacionais da Psicologia Brasileira (FENPB) acompanhou a falta de empenho político da Secretaria de Direitos Humanos, vinculada à Presidência da República (DH/PR), quanto ao fato de um deputado declaradamente racista e homofóbico estar ocupando a presidência da CDHMI, o que implica em uma ameaça da garantia dos direitos humanos. Além disso, o debate entre Conselho Federal de Psicologia e CDHMI problematizou outro aspecto, de que também não há "nenhuma manifestação ou ação tomada pela SDH/PR quanto às movimentações da Bancada Evangélica na Câmara, capitaneada pelo Partido Social Cristão (PSC), com o objetivo de monopolizar a Comissão com uma explícita agenda de retrocesso de direitos" (Conselho Federal de Psicologia - CFP, 2013Conselho Federal de Psicologia - CFP. (2013). Fórum de Entidades Nacionais da Psicologia Brasileira - FENPB assina nota da Plataforma Dhesca. Acesso em 22 de setembro, 2014, em Acesso em 22 de setembro, 2014, em http://site.cfp.org.br/preconceito-e-homofobia/.
http://site.cfp.org.br/preconceito-e-hom...
).

Ainda dentro do campo da psicologia, outro aspecto que merece destaque e que justifica a realização da presente pesquisa é a crescente investigação de temáticas ligadas à desigualdade e exclusão social, preconceito, estigmatização e jogos de poder (Nogueira, 2008Nogueira, C. (2008). Análise(s) do discurso: diferentes concepções na prática de pesquisa em Psicologia Social. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 24(2), 235-242.) efetuada por pesquisadores/as da Psicologia Social. Tal interesse teve seu surgimento amparado em movimentos como o pós-modernismo, pós-estruturalismo, emergência das teorias críticas e críticas sociais foucauldianas, que vem problematizando de forma constante as instituições existentes, como é o caso das igrejas, famílias e Estado, por exemplo. Outra preocupação deste campo se refere à desnaturalização daquilo que surge como natural e eterno (Nogueira, 2008), que pode ser observado, por exemplo, na postura das religiões, que justificam a homo-les-transfobia mediante discursos que pretendem naturalizar a hetorossexualidade e cisgeneridade, transformando-as em verdades incontestáveis.

Análise das concepções atuais de lideranças católicas e evangélicas sobre homossexualidade

Se, para Foucault (1998)Foucault, M. (1988). História da Sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal., nunca se falou tanto de sexo como no século XIX, há no século XXI uma explosão discursiva acerca da sexualidade no âmbito religioso cristão, seja nos templos, ou nas mídias, ou ainda, na literatura cristã e, mais recentemente, na política. De modo geral, as posturas das igrejas cristãs no Brasil em relação às uniões homoafetivas podem ser classificadas em três tipos: a rejeição à homossexualidade, concebendo-a como pecaminosa e antinatural. Assim, há o acolhimento dos/as homossexuais pela igreja, desde que eles/as reconheçam que precisam mudar seu comportamento. Outro tipo de postura encontrada no meio cristão é aquela que aceita a conduta homossexual, embora a considere inferior à heterossexual. Existem ainda os defensores da ideia de que a homossexualidade tem o mesmo nível de dignidade que a heterossexualidade (Jurkewicz, 2005Jurkewicz, R. S. (2005). Cristianismo e homossexualidade. In M. P. Grossi et al. (Orgs.), Movimentos sociais, educação e sexualidade (pp. 45-52). Rio de Janeiro: Garamond. ). Dentre os três posicionamentos, o mais presente e disseminado é o primeiro, segundo o qual a homossexualidade estaria em um nível inferior na hierarquia das sexualidades (Rubin, 2003Rubin, G. (2003). Pensando o sexo: notas para uma teoria radical da política da sexualidade. Cadernos Pagu, 21, 01-88.), o que justificaria o uso de dispositivos religiosos regulatórios e corretivos com os/as homossexuais. Esta postura é justificada muitas vezes por trechos da Bíblia, interpretados de forma literal pelos/as religiosos/as, de modo que não são consideradas a época histórica e a cultura em que os textos foram escritos originalmente. Dessa maneira, tanto o Antigo, quanto o Novo Testamento são reiterados para justificar a condenação aos homossexuais pelas igrejas. Trechos dos livros de Gênesis, Levítico e Coríntios são os mais citados, sendo que as narrativas de Sodoma e Gomorra e as cartas paulinas recebem destaque.

De acordo com Pereira e Santos (2009Pereira, D. R. S & Santos, J. B. (2009). O papel das religiões enquanto instâncias reguladoras das sexualidades alternativas: caso da homofobia e violência. Scientia Plena, 5(11), 1-8.), embora o catolicismo disponha de uma sede central no Vaticano, de lideranças específicas, como o Papa, e de documentos norteadores para a prática da religião, constatam-se basicamente dois campos antagônicos de entendimento da sexualidade. Um primeiro, mais tradicional, atrelado ao papado e à Igreja de Roma, e um outro campo, minoritário e disperso, composto em sua maioria por teólogos/as e intelectuais católicos/as que propõem uma nova hermenêutica bíblica, vide "As católicas pelo direito de decidir". Ainda no que se refere mais especificamente à homossexualidade, o discurso católico postula que indivíduos homossexuais podem ter uma vida em consonância com os preceitos da moralidade cristã, sem deixarem de "ser" homossexuais, desde que optem pelo exercício do celibato e da castidade. Assim, instaura-se uma distinção entre o que seriam "atos" e "tendências" homossexuais, sendo que os primeiros são vistos como a utilização desordenada do sexo, gerando consequências nocivas para a pessoa que os pratica. Já as "tendências" homossexuais são encaradas como inatas e em alguns casos podem ser tratadas, através de terapia administrada por profissionais especializados; quando do seu insucesso, é indicada a abstinência (Natividade & Oliveira, 2004Natividade, M. T. & Oliveira, L. (2004). Algumas tendências recentes nos discursos evangélico e católico sobre a homossexualidade. Sexualidade, Gênero e Sociedade, 11(22), 1-5.).

As religiões evangélicas no Brasil possuem diferentes vertentes, que podem ser caracterizadas basicamente em protestantismo histórico e protestantismo pentecostal e neopentecostal. A concepção de homossexualidade sustentada pelas igrejas evangélicas tradicionais gira em torno do pecado e são utilizadas explicações que buscam ser racionais e lógicas, a partir da teologia. A gênese da homossexualidade estaria atrelada a problemas psíquicos, devido à não aceitação da sexualidade biológica, entendida como dada por Deus e natural; tais conflitos resultariam em angústias e infelicidade para o indivíduo. A segunda vertente, composta por igrejas pentecostais e neopentecostais, teve sua origem nos Estados Unidos da América, no começo do século XX e se distancia do pensamento dos/as protestantes históricos no Brasil, principalmente porque "são expressões religiosas populares, no sentido de possuírem um discurso religioso mágico, pouco racional e incorporador de uma cosmologia que envolve, subordinando-as, as 'divindades' dos cultos afro-brasileiros. Em decorrência deste fato, tendem a demonizar a homossexualidade em si." (Pereira & Santos, 2009Pereira, D. R. S & Santos, J. B. (2009). O papel das religiões enquanto instâncias reguladoras das sexualidades alternativas: caso da homofobia e violência. Scientia Plena, 5(11), 1-8., p. 4). Dessa forma, a homossexualidade passa a ser vista como pecado e a pessoa homossexual como possuída ou influenciada pelo demônio, logo, a salvação estaria na conversão à religião, concebida como libertadora. Neste contexto, vale salientar que a presença de evangélicos pentecostais e neopentecostais na política e nas instâncias governamentais é cada vez maior e se processa como estratégia de disseminação dos valores da religião na arena governamental, em contraponto à perspectiva de laicidade do Estado.

Metodologia

O material analisado no presente artigo foi composto por vídeos - acessados entre abril e setembro de 2013 - de católicos/as tradicionais, ou seja, que vivem conforme os dogmas defendidos pelo Vaticano e de evangélicos/as pentecostais e neopentecostais. O arquivo foi composto por vídeos retirados da internet, de um site de compartilhamento de vídeo denominado "YouTube", que foram filtrados de acordo com o conteúdo, sendo utilizados os seguintes descritores nas buscas: líderes religiosos e homossexualidade/homossexualismo, religião e homossexualidade / homossexualismo, religião e homofobia, pastores e homofobia, padres e homofobia, vídeos de pregação sobre homossexualidade/homossexualismo. Os descritores foram escolhidos por vincular os constructos religião e homossexualidade. Também foram consultadas fontes audiovisuais que apareceram como "vídeos relacionados". O arquivo de busca a estas fontes teve como critério de inclusão três aspectos: (a) deveria se tratar de vídeos com conteúdos proferidos por líderes religiosos pública e nacionalmente reconhecidos enquanto tais. Neste aspecto, foram excluídas lideranças locais ou desconhecidas do grande público. (b) serem vídeos de domínio público com significativa quantidade de acesso e (c) serem vídeos de pronunciamentos em pelo menos um dos três contextos a seguir: programas televisivos e/ou midiáticos; pronunciamentos nas arenas governamentais do poder legislativo (Câmara Federal, Senado e Assembleia Legislativa); pregações em contextos explicitamente religiosos (cultos, missas etc).

O arquivo analisado compôs-se com doze vídeos, que atenderam minimamente aos critérios mencionados anteriormente. Para fins de publicação deste artigo, apresentar-se-ão as análises de seis vídeos (Quadro 1), que compuseram o material total da análise, sendo assim classificados: dois vídeos de pregações religiosas, dois de pronunciamentos políticos e dois vídeos de entrevistas em programas televisivos, sendo, respectivamente, um de cada religião, portanto, um vídeo católico e um vídeo evangélico para cada uma das três classificações do arquivo. Após acessadas e arquivadas, as referidas fontes foram transcritas e tratadas por meio dos procedimentos de produção de dados qualitativos visuais (Banks, 2009Banks, M. (2009). Dados visuais para pesquisa qualitativa. Porto Alegre: Artmed. ) e analisadas por meio das estratégias teórico-metodológicas da análise do discurso (Foucault, 2004bFoucault, M. (2004b). A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária.), das teorias pós-estruturalistas, feministas equeer. Os vídeos foram analisados a partir de alguns marcadores, a saber, o enredo que o filme documentava, durante quanto tempo, quem eram os/as protagonistas do filme, em qual cenário e contexto aconteceram as ações. As falas das/os protagonistas e áudios secundários foram integralmente transcritos. Juntamente com tal descrição de cada vídeo, estabeleceram-se procedimentos de marcação de itens léxicos com indicações de enunciados e sua distribuição com partes do texto transcrito, organizados em excertos das transcrições dos áudios (e dos recortes editados dos vídeos destes respectivos áudios) em arquivo de base de dados (Banks, 2009). A teoria do discurso de Michel Foucault aponta para possibilidades de análises de diversos tipos de textos, dentre eles, os fílmicos.

Quadro 1:
Informações acerca dos vídeos analisados

É válido enfatizar que nas buscas realizadas só foram encontrados vídeos nos quais se desaprovasse de algum modo a homossexualidade, embora seja sabido que existem lideranças cristãs e igrejas que não discriminam esta orientação sexual, como algumas correntes luteranas, anglicanas e as chamadas igrejas inclusivas (Furtado & Caldeira, 2010Furtado, M. C. S & Caldeira, A. C. G. (2010). Cristianismo e diversidade sexual: conflitos e mudanças [Trabalho completo]. In AnaisSeminário Internacional Fazendo Gênero 9 (pp. 1-10). Florianópolis: UFSC.).

Resultados e discussão

A partir da análise dos materiais, foi possível constatar a emergência de posições de sujeito investidas de autoridade para falar dos temas, tais como: (a) as de porta-vozes de alguma divindade, (b) a de representantes políticos do povo ou da população brasileira e (c) a de cidadão/ã de direitos, com poder e liberdade de expressão. Os excertos a seguir evidenciam esta produção de posições de sujeitos do discurso religioso: "um tema ... e com a graça de Deus e a sua misericórdia e a sua revelação, eu quero tratá-lo nessa manhã"; "Agora, valores de família, eu vim aqui pra isso, é essa a missão que Deus me deu, a missão que o Brasil me deu, a missão que o meu estado me deu"; "eu sou missionária católica, eu sou mãe de dois meninos, sou deputada representando o povo"; "eu sou servo de Deus, sou evangélico"; "mas eu sou cidadão desse país, estou num país livre e quero apresentar a minha visão". Através deste conjunto de enunciados, é emblemática a produção das posições ocupadas pelos líderes/representantes religiosos, que buscam ratificar sua autoridade ao anunciarem-se como receptáculos e transmissores de uma verdade transcendente.

Outra postura frequente por parte desses sujeitos do discurso religioso é a articulação dos enunciados com o de outras religiões de base cristã. Dito de outro modo, enunciados contrários e de repúdio à homossexualidade (e às leis que reivindicam os direitos das pessoas homossexuais) são associados ao que seria, portanto, uma proposição comum tanto para católicos como para evangélicos. Tais alianças religiosas, além de questionáveis quanto à sua veracidade e amplitude, mostram certas incoerências no discurso religioso, pois nem todas as igrejas cristãs compartilham da mesma interpretação bíblica, havendo diferenças fundamentais entre as doutrinas evangélica e católica. Este suposto consenso enunciado no material analisado traduz a noção especulativa de que se trata de uma maioria. O material analisado, de modo geral, parte do pressuposto de que a luta por direitos LGBT encontra-se em contraposição ao pensamento de toda a sociedade brasileira. Outra estratégia de generalização refere-se ao uso da estatística como dispositivo de saber/poder; segue um excerto explicitando: "Como que um grupo tão pequeno consegue fazer pressão num país com 90% de cristãos?!". Esta formação discursiva faz funcionar efeitos poderosos: de negação do fato que existem no Brasil pessoas heterossexuais e cisgêneros não cristãos que coadunam com a garantia de direitos LGBT e de que cristãos não podem aceitar a homossexualidade.

No que concerne mais especificamente às concepções e definições esboçadas a respeito da homossexualidade, nota-se uma vasta diversidade de proposições, que intercalam discursos religiosos e científicos na tentativa de desqualificar as relações homoafetivas e, logo, cercear os direitos desta população. Bastante frequente nas narrativas analisadas foi o entendimento da homossexualidade como uma prática antinatural à criação divina, pelo fato de não envolver os órgãos genitais responsáveis pela reprodução da espécie, como pode ser observado nos excertos a seguir: "Existe alguma coisa de profundamente errado numa sociedade que já não entende o sexo como sendo reprodução"; "nós estamos aqui diante de uma realidade que nega a finalidade dos órgãos reprodutores! Agora, eu não posso dizer que o ato sexual do qual todos nós nascemos tem a mesma dignidade de um ato sexual que nada produz"; "o sexo de Deus envolve tão somente pênis e vagina.". Este conjunto de enunciados tem incoerências explícitas. De acordo com esta lógica, se a função dos órgãos genitais é reproduzir, então as mulheres que entraram na menopausa, casais heterossexuais estéreis ou que não querem ter filhos e os próprios padres estariam negando a função de seus órgãos, já que não podem reproduzir, ou pela infertilidade ou pela abstinência. Outro problema se refere ao status de dignidade que é designado para a relação sexual heterossexual (pênis/vagina) em detrimento das demais (pênis/ânus, vagina/vagina), por exemplo, homossexuais, mas não apenas estas. Ou seja, conforme este pensamento, também o sexo oral, o sexo anal entre homem e mulher, a masturbação (solitária ou coletiva) e as práticas BDSM. Portanto, outras práticas que não unam exclusivamente pênis e vagina, incluindo as diversas variações das práticas sexuais entre pessoas heterossexuais que não tenham por finalidade a reprodução, possuem o mesmo status (inferior) atribuído à homossexualidade. Assim, outra constatação da análise é o recorrente reducionismo da prática sexual à esfera da procriação, o que tem sido fortemente criticado nas áreas da saúde e dos direitos humanos. Há tempos, estudos feministas têm desvinculado saúde sexual da saúde reprodutiva, tendo desdobramentos práticos no âmbito dos direitos das mulheres, do uso de anticoncepcionais para evitar gravidez não desejada e/ou planejada e do uso de preservativos frente às DST.

Em todo o material analisado é enunciado como inconcebível a aceitação ou o reconhecimento dos laços afetivos e sexuais entre pessoas do mesmo sexo/gênero por parte do Estado, uma vez que pessoas LGBT e suas respectivas uniões desafiam as estruturas normativas sobre as quais as crenças religiosas fundamentalistas se sustentam, como a repressão sexual e a heterossexualidade compulsória. É possível ver operar aqui o mecanismo de exclusão, sobre o qual versa Foucault (1999Foucault, M. (1999). A ordem do discurso. São Paulo: Loyola. ), à medida que algo só pode ser enunciado ou vir à tona enquanto acontecimento calcado na exclusão de outros enunciados. Desse modo, há uma separação, uma rejeição da vivência afetivo-sexual entre pessoas do mesmo sexo/gênero, alçada na concepção de casamento heterossexual, monogâmico para fins reprodutivos. Este mecanismo discursivo leva à consequência lógica de que não é possível ser homem, mulher, marido, esposa, mãe, pai e nem mesmo cristão/ã quando se é homossexual. A violação de direitos a pessoas LGBT e a deslegitimação de projetos antipreconceito, de conjugalidade ampliada, de identidade social, de direitos previdenciários, de adoção, entre outros, implicam no não reconhecimento desta população como gente. Trata-se efetivamente daquilo que o campo pós-estruturalista tem denominado como abjeção.

Outro enunciado recorrente foi a compreensão da homossexualidade como sendo uma prática, um comportamento, fruto da aprendizagem ou imposição, em contraposição à heterossexualidade, encarada como natural e dada biologicamente por Deus, como pode ser verificado através da seguinte definição de homossexualidade compartilhada por um pastor e parlamentar evangélico: "Um homem e uma mulher por determinação genética e homossexual por preferência aprendida ou imposta. Homossexualidade acima de tudo é uma questão comportamental!", e pelo pronunciamento de uma parlamentar e missionária católica: "Se um rapaz escolheu ser homossexual, o problema é dele". É notória a confusão entre sexo, identidade de gênero e orientação sexual, vistas a partir de uma relação causal. De acordo com a fala do pastor, sexo e gênero seriam a mesma coisa e a orientação do desejo uma consequência destes, portanto, pessoas que se sintam atraídas por outras do mesmo gênero não estariam em conformidade com seu sexo. Para Butler (2009Butler, J. (2009). Desdiagnosticando o gênero. Physis: Revista de Saúde Coletiva, 19(1), 95-126.), não se pode prever, com base no sexo biológico de uma pessoa, qual identidade de gênero ela terá, tampouco para quem será destinado o seu desejo, pois estes são constructos distintos e não mantêm relação causal. Além disso, tais enunciados evidenciam a desqualificação da homossexualidade como orientação sexual e sua alocação a uma posição de inferioridade no que tange à sexualidade, vinculando-a somente à prática, comportamento aprendido ou imposto. Definição altamente questionável, visto que o modelo de relações afetivas disseminado é o heterossexual e que grande parte das pessoas homossexuais é e foi criada por casais heterossexuais. A consequência lógica de encarar a homossexualidade como um comportamento é a sua reorientação, ou melhor, sua "correção", como pode ser notado na fala a seguir:"Porque a homossexualidade é uma questão de comportamento e se é uma questão de comportamento, homossexuais podem deixar de ser homossexuais e virarem heterossexuais!". Tais proposições que colocam a homossexualidade em uma posição de abjeção somente são possíveis se toda a sexualidade humana for analisada a partir da heterossexualidade como única possibilidade sexual. Assim, a heteronormatividade se (re)inventa nestes discursos religiosos pela reprodução de práticas e códigos heterossexuais, sustentada por valores culturais situados e fabricados, porém, enunciados como sendo universais e transcendentais. Dentre esses valores, destacam-se o casamento monogâmico, o amor romântico e a constituição de família nuclear tendo o pai como chefe-provedor, o que permite hierarquizar as demais vivências das sexualidades a partir deste modelo, produzindo sujeitos coerentes a um sistema que vincula inexoravelmente sexo/gênero/desejo (Butler, 2001; Perucchi, 2012Perucchi, J. (2012). Para uma análise sobre a incorporação de disposições normativas de prescrição dos corpos na contemporaneidade.Bagoas - Estudos gays: gêneros e sexualidades6(7), 81-97. ). Tal pressuposição da heterossexualidade como matriz norteadora das formas e vivências afetivas e sexuais nas sociedades ocidentais implica no que Rubin (2003Rubin, G. (2003). Pensando o sexo: notas para uma teoria radical da política da sexualidade. Cadernos Pagu, 21, 01-88.) postulou como hierarquia das sexualidades.

Dentro do campo estritamente teológico são propostos alguns entendimentos que vão desde a aceitação de uma "tendência homossexual", até a demonização das relações homoafetivas. Assim, há um reconhecimento, especialmente nos discursos católicos, de uma "tendência", algo da ordem do inato e, portanto, difícil de ser modificado, em contraposição ao evangélico, que não considera, em hipótese alguma, a experiência homossexual como orientação inata ou algo similar. Ambos os discursos concordam, entretanto, que a "solução" para estes indivíduos seria a castidade.

O pecado também é um enunciado com efeitos de poder relevantes na esfera religiosa, envolvendo diversos trechos da Bíblia para reforçar a ideia de homossexualidade como pecado, perversão, abominação, prática antinatural, aberração, dentre outros. A Bíblia é tida como "palavra de Deus" e utilizada como um importante dispositivo de saber/poder nos discursos religiosos cristãos. À medida que se configura como verdade que faz ver e faz falar os ordenamentos de uma divindade para os seres humanos, a Bíblia se torna efetivamente um dispositivo de poder na docilização dos corpos. Assim, um dispositivo é algo que tem "a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes" (Agamben, 2009Agamben, G. (2009). O que é um dispositivo? Outra travessia, 5, 9-16., p. 13). Todavia, é interessante observar como este livro é utilizado como guia da verdade somente em momentos pontuais e convenientes à funcionalidade discursiva que se põe a operar na ordem dos discursos religiosos analisados, uma vez que os versículos são citados sempre de forma isolada, sem qualquer contextualização ou hermenêutica. Dessa maneira, qualquer trecho que se retire da Bíblia pode ser utilizado como gatilho para efeitos de verdade, como aqueles que incitam o ódio contra as mulheres e sua submissão, que reforçam a escravidão e a segregação, etc. Pode-se conjecturar, portanto, em todo o material analisado, a evidência de um fundamentalismo seletivo, ou seja, de estratégias de fundamentação dogmática do texto bíblico, enunciando-o de forma descontextualizada e convenientemente, com as partes textuais enunciadas para os fins pretendidos.

Outra tendência do discurso religioso, principalmente o evangélico, é demonizar a homossexualidade. Para Natividade e Oliveira (2004Natividade, M. T. & Oliveira, L. (2004). Algumas tendências recentes nos discursos evangélico e católico sobre a homossexualidade. Sexualidade, Gênero e Sociedade, 11(22), 1-5.); Vital e Lopes (2013Vital, C. & Lopes, P. V. (2013). Religião e política: uma análise da atuação de parlamentares evangélicos sobre direitos das mulheres e de LGBTs no Brasil Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Böll.), o discurso das igrejas pentecostais traz uma visão das práticas homossexuais como resultantes de possessão ou influência demoníaca, caracterizando-se como um problema espiritual, como pode ser verificado por meio da fala de um pastor e parlamentar: "Foi Deus que criou a família e Satanás até hoje trabalha para destruir a família, ou seja, casando homens com ... mulheres com mulheres, não tem filho, tem?". As soluções encontradas tanto para o pecado, quanto para a possessão são a libertação espiritual por meio da confissão e reconhecimento do pecado e do aceite de Deus como salvador da alma. Para legitimar suas proposições negativas acerca da homossexualidade, os sujeitos dos discursos religiosos apresentam enunciados de pânico moral, asseverando que a legalização da união entre pessoas do mesmo sexo/gênero pode servir de subsídio para a legalização da cocaína, do crack, da poligamia, da pedofilia, etc. Também há o entendimento de que as uniões homoafetivas significariam o extermínio da humanidade e da família, como pode ser constatado nos seguintes enunciados: "O casamento gay, o casamento de homem com homem e mulher com mulher é o término da sociedade, é o término da família, é uma agressão à família criada por Deus";"isso, bacana, vamos todo mundo ser gay! Vamos fechar os nossos ventres, vamos acabar com a humanidade!". Esta lógica de pensamento somente é possível se considerarmos que o reconhecimento de pessoas homossexuais enquanto cidadãs de direito implica na transformação de heterossexuais em homossexuais, o que é bastante questionável. Pode-se notar que o avanço na conquista de direitos por pessoas LGBT está articulado a diversos enunciados de pânico moral, porque desestruturam normas hegemônicas societárias, subsidiadas por concepções cristãs de humanidade (Natividade & Oliveira, 2009Natividade, M. T. & Oliveira, L. (2009). Sexualidades ameaçadoras: religião e homofobia(s) em discursos evangélicos conservadores. Sexualidad, Salud y Sociedad, 2, 121-161.).

No tocante aos assuntos tratados nos locais e contextos de produção dos discursos, que englobam entrevistas, templos e arena política, não foram encontradas significativas diferenças de posicionamento entre as lideranças/representantes religiosas. Assim, embora os locais fossem diferentes, as posições de sujeito verificadas alternaram entre religiosas e políticas, independentemente do contexto. As pregações e missas foram perpassadas por concepções políticas, de forma a discutir a questão legal e de cidadania de LGBTs na esfera pública, sendo que os/as porta-vozes religiosos mantiveram uma preocupação com a participação política dos/as fiéis, incentivando-os/as a se posicionar contra a garantia de direitos daquela população com base em preceitos religiosos. Em todos os espaços de produção de discurso, foram utilizados trechos da Bíblia como dispositivos prescritivos de condutas, recriminando as práticas sexuais entre pessoas do mesmo sexo/gênero, incluindo os espaços políticos, o que acaba por desrespeitar a laicidade do Estado. Tal repetição dos trechos bíblicos pode ser compreendida a partir do que Butler (2001Butler, J. (2001). Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do "sexo". In G. L. Louro (Org.), O corpo educado: pedagogias da sexualidade (pp.151-172). Belo Horizonte: Autêntica. ) e as teorizaçõesqueer têm compreendido como performatividade, isto é, o fato de que as sociedades constroem normas para regular o sexo e que elas precisam ser constantemente repetidas e reiteradas para que se materializem como verdade. Este é o caso dos discursos contidos nos rituais religiosos, no casamento, na divisão binária dos gêneros, nas formas de estigmatização e preconceito, na misoginia, entre outros.

Considerações finais

A pesquisa constatou uma gama heterogênea de concepções acerca da homossexualidade, sempre enunciada de forma negativa e preconceituosa, ainda que tais enunciados estejam associados à tolerância. Saberes pseudocientíficos e fundamentalistas-religiosos se articulam em jogos de saber/poder com efeitos de poder de hierarquização das sexualidades e desqualificação da homossexualidade. Assim, argumentos biologicistas e comportamentalistas unem-se a dogmas religiosos para legitimar opiniões preconceituosas e de senso comum. Neste jogo que produz realidades, ora a ciência é utilizada como dispositivo de verdade, ora como enganadora, dependendo da funcionalidade em operação na ordem dos discursos analisados (Foucault, 1999Foucault, M. (1999). A ordem do discurso. São Paulo: Loyola. ).

Em âmbito nacional e internacional, diversos documentos e instituições têm se manifestado, colocando a homossexualidade e a bissexualidade no mesmo nível de dignidade humana que a heterossexualidade. No âmbito das ciências humanas. a sexualidade, concebida a partir do pensamento feminista pós-estruturalista, do interacionismo simbólico, dos estudos lésbico-gays, das teoriasqueer e da crítica anticolonialista, tem sido considerada como uma categoria multifacetada, concebida em suas dimensões históricas e culturais, marcada por questões de gênero, geração, etnia, de classe, filiação religiosa, entre outros (Mello, 2006Mello, L. (2006). Familismo (anti)homossexual e regulação da cidadania no Brasil. Estudos Feministas, 14(2), 497-508.). Mas tais proposições são ignoradas nos argumentos dos sujeitos dos discursos analisados.

Foi verificada também a difusão de discursos políticos e religiosos em contextos distintos, ou seja, houve muitas falas religiosas em ambientes políticos e falas políticas em templos, o que denota tentativas persistentes de união da religião com a política, ferindo a laicidade do Estado.

Constataram-se desinteresse e desconhecimento em relação à população LGBT, concebida de modo homogêneo e estereotipado. Os discursos confundem conceitos como identidade de gênero e orientação sexual. Outro aspecto importante se tange à diferença entre o discurso católico e o evangélico, sendo que o primeiro admite, em algum nível, um caráter inato para a homossexualidade, ao contrário do segundo. Porém, ambos encaram a homossexualidade como um pecado e como algo destrutivo, tanto no plano espiritual quanto societário. Assim, concluímos que os discursos proferidos nos templos, entrevistas e arena política, analisados neste texto, compõem um sofisticado jogo de saber/poder que faz da religião um dispositivo para promover e legitimar a violação de direitos e a restrição da cidadania de pessoas LGBT, desrespeitando a laicidade do Estado brasileiro. Jogos de poder que produzem e perpetuam a homofobia individual, social e institucionalmente.

Por fim, vale ressaltar a importância destas discussões para o campo psicológico, já que ao longo da história psicólogos e psicólogas foram (e são) chamados a ocupar posições de sujeito normatizadoras, normalizadoras e psicopatologizantes. Ao fazer investigações como esta e problematizações acerca de como os discursos atuam, produzem e são produzidos, são abertas possibilidades de transformação social, sugerindo um potencial emancipador para a Psicologia Social.

Referências

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  • 1
    Versículos da Bíblia que são utilizados em sua literalidade a fim de condenar a homossexualidade: Levítico, 18:22 e 20:13; Gênesis1:27; Romanos1:26-27; I Coríntios 6:10; e I Timóteo 1:10 (1980).
  • 2
    "Cisgênero é quem se apresenta em conformidade com a maioria das expectativas sociais relativas 'ao que é ser homem ou mulher', ou de acordo com os dispositivos de gênero que lhe foram atribuídos na gestação e/ou nascimento" (Maranhão, 2012, p. 28Maranhão, E. M. A. (2012). Apresentando conceitos nômades: entre-gêneros, entre-mobilidades, entre-sexos, entre-orientações. História Agora, 1(14), 17-54. ).
  • 3
    Hermenêutica bíblica se refere às possibilidades de interpretação dos textos sagrados, ou nas palavras de Dilthey (2010)Dilthey, W. (2010). O surgimento da hermenêutica (1900). Numen: Revista de Estudos e Pesquisa da Religião, 2(1), 11-32., hermenêutica "é o corpo de ensinamentos sobre a arte (Kunstlehre) da interpretação de monumentos literários" (p. 16).
  • 4
    Católicas pelo Direito de Decidir, fundada no Brasil em 08 de março de 1993, é uma organização não governamental feminista. Busca a justiça social, o diálogo inter-religioso e a mudança dos padrões culturais e religiosos que cerceiam a autonomia e a liberdade das mulheres, especialmente no exercício da sexualidade e da reprodução. Acessa-se em http://www.catolicasonline.org.br/
  • 5
    O YouTube é um site de compartilhamento de vídeos enviados pelos/as usuários/as através da internet, com visualizações gratuitas.
  • 6
    Vídeos que contêm pronunciamentos na arena política com os seguintes assuntos: PEC23/2007, PLC122/2006 e o "kit anti-homofobia", do programa Brasil sem Homofobia.
  • 7
    A sigla BDSM é traduzida geralmente por: BD= Bondage (Amarração / Imobilização com cordas, algemas, lenços, etc.) & Disciplina; DS= Dominação & Submissão; SM = Sadomasoquismo e a estas práticas somam-se algumas outras, tais como: fist fucking (Penetração com o punho, no ânus ou na vagina), fetichismo (uso de objetos e artefatos eróticos), inversão de papéis (Prática sexual em que homens são penetrados por mulheres que utilizam acessórios semelhantes ao pênis).
  • 8
    Abjeção significa literalmente excluir, jogar fora ou longe (Butler, 2001).
  • 9
    O sexo biológico se refere à genitália com a qual se nasce: vagina, pênis ou ambos, no caso de pessoas intersexuais. Na perspectiva pós-estruturalista aqui compartilhada, o gênero produz o sexo, estando ambos no âmbito do signo, não da natureza.
  • 10
    Identidade de gênero diz respeito à maneira como os indivíduos se reconhecem, como homens ou mulheres, tendo em vista os padrões que diferenciam comportamentos e práticas concebidos como masculinos e femininos, forjados histórico e sócio culturalmente.
  • 11
    Orientação sexual ou do desejo indica por quais sexos/gêneros os indivíduos sentem atr ação afetivo-sexual.
  • 12
    Pânico moral pode ser definido como o "mecanismo de resistência e controle da transformação societária ... aqueles que emergem a partir do medo social com relação às mudanças, especialmente as percebidas como repentinas e, talvez por isso mesmo, ameaçadoras" (Miskolci, 2007, p. 103Miskolci, R. (2007). Pânicos morais e controle social. Cadernos Pagu, 28, 101-128.).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2016

Histórico

  • Recebido
    28 Jul 2014
  • Revisado
    16 Set 2014
  • Aceito
    15 Nov 2014
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