Acessibilidade / Reportar erro

RELAÇÕES MACROPOLÍTICAS E MICROPOLÍTICAS NO COTIDIANO DO CRAS

RELACIONES MACRO-POLÍTICAS Y MICRO- POLÍTICA EN EL DÍA A DÍA DEL CRAS

THE MACROPOLITICS AND MICROPOLITICS RELATIONS IN THE DAILY LIFE AT CRAS

Resumo

Este artigo coloca em discussão as relações entre a macropolítica e a micropolítica no cotidiano de trabalho da equipe profissional que atua na Proteção Social Básica do Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Tal discussão se fundamenta nos resultados parciais da pesquisa financiada pelo CNPq/FAPEMIG que tem como objetivo analisar as relações no território de um Centro de Referência em Assistência Social (CRAS) em Belo Horizonte, enfatizando o modo de gestão do trabalho social entre a equipe e com as famílias. O presente estudo tem a pesquisa-intervenção como metodologia e as ideias de Deleuze e Guattari como marco teórico. A partir das assembleias, das entrevistas semiestruturadas e das restituições realizadas com a equipe, concluímos que a relação macropolítica e micropolítica é imanente e emerge em pontos como visão da política, sobrecarga do trabalho, intersetorialidade, relação com o território e importância do coletivo.

Palavras-chave:
assistência social; pesquisa intervenção; proteção social básica; intervenção social

Resumen

Este artículo objetiva poner en cuestión las relaciones macro-políticas y micro- políticas no día a día de trabajo del equipo de profesionales del CRAS con actividad en la Protección Social Básica del Sistema de Asistencia Social (SUAS). Tal discusión se basa en los resultados parciales de la investigación financiada por el CNPq / FAPEMIG que tiene como objetivo analizar las relaciones en el territorio de un Centro de Referencia para la Asistencia Social (CRAS) , en Belo Horizonte, con enfoque en el modo de gestión del trabajo social entre el equipo y con las familias. La metodología del estudio es la pesquisa intervención e su marco teórico es las ideas de Deleuze y Guattari. De las asambleas, de las entrevistas semiestructuradas y de las restituciones realizadas con el equipo, llegamos a la conclusión de que relación macro-política y micro- política es inmanente y aparece en puntos como la política, la sobrecarga de trabajo, la intersectorialidad, la relación con el territorio y la importancia de lo colectivo.

Palavras Clave:
asistencia social; pesquisa intervención; protección social básica; intervención social

Abstract

This article discusses the relationship between macropolitics and micropoliticsin the daily work of the professional team that acts in the basic social protection of the Unique Social Assistance System (SUAS).This discussion is based on the partial results of the research funded by CNPq / FAPEMIG. The research aims to analyze relationships in the territory of a Reference Center of Social Assistance (CRAS) in Belo Horizonte, emphasizing the management style of social work between staff and with families. This study has as methodology an intervention research and the ideas of Deleuze and Guattari as theoretical framework. From the semi-structured interviews, meetings and restitutions made with the team, we concluded that the relationship macropolitics and micropolitics is immanent and emerges in points such as political views, work overload, work overload, intersectoral approach, relationship with the territory and importance of collectivity.

Keywords:
social assistance; social policy; basic social protection; social intervention

Buscando saídas para a exclusão social

O presente texto trata de tensões e forças vividas nos encontros com a equipe de um Centro de Referência em Assistência Social (CRAS) de Belo Horizonte, experimentações de uma produção de conhecimento interventiva e implicada. Pretende, por tal viés, discutir as relações entre a macropolítica e a micropolítica nesse contexto. O campo dessas experimentações é o Sistema Único de Assistência Social (SUAS), criado com base em um padrão de proteção social igualitário e universalista, amparado na Constituição de 1988 e modificando a concepção vigente de assistência social no Brasil, muito usada para a troca de favores entre os políticos e os seus eleitores. Tradição que sustentava uma prática eleitoreira que privilegiava certa "clientela", não possuía parâmetros universalistas e nem transparência nas ações. A permuta de favores e votos reproduzia situações de sujeição que eram "tradicionalmente clientelistas e assistencialistas ... ações que transformam o direito de ajuda e doação, sendo que quem recebe fica devendo um favor e se vê obrigado a retribuir a doação com serviços e votos" (Cunha & Cunha, 2002Cunha, E. P. & Cunha, E. S. M. (2002). Políticas públicas sociais. In A. Carvalho et al. (Orgs.), Políticas Públicas (pp. 11-25) Belo Horizonte: UFMG/PROEX., p. 17).

Sendo tão visíveis os reflexos prejudiciais desse modelo para a nossa sociedade e tão evidente sua ineficácia no combate à exclusão social, era preciso criar uma política pública que, de fato, garantisse a todos que dela necessitassem, sem contribuição prévia, a proteção social em três eixos: as pessoas, as suas circunstâncias e a família, na tentativa de assegurar tais diretos e promover a cidadania em segmentos excluídos da nossa sociedade. A mudança dessa concepção operou uma "transformação da caridade, da benesse e ajuda para a noção de direito e cidadania da assistência social apontando para seu caráter de política pública de proteção social articulada a outras políticas voltadas à garantia de direitos e condições dignas de vida" (Cruz & Guareschi, 2009Cruz, L. R. & Guareschi, N. (2009). A constituição da assistência social como políticas públicas: interrogações à Psicologia. In Políticas Públicas e Assistência Social (pp. 1340) Petrópolis, RJ: Vozes., p. 27).

Contudo, abalar e transformar essa herança assistencialista e clientelista, deslocando a condição de necessitado ou carente para a condição de portador de direitos sociais, não se resume somente à alteração dos documentos que embasam as ações de combate à exclusão social, embora estas sejam essenciais nesse processo de mudança. Apesar das mudanças da nova constituição, nosso país ainda se encontrava em um momento de redefinição dos seus rumos políticos. Somente depois das primeiras eleições após a ditadura militar, em dezembro de 1993, que a Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS) foi aprovada, definindo claramente os objetivos e as diretrizes da assistência social, a sua forma de organização e a gestão das ações socioassistenciais. A referida lei reforça a assistência social como um sistema descentralizado, com participação popular e financiado pelo poder público e também a consolida como uma política pública. No entanto, apesar desses ganhos, a crise econômica pela qual o país passava nos anos noventa não tornou possível as reformas institucionais e o direito à seguridade social não teve garantias. As medidas adotadas ainda priorizavam os programas focalizados de cunho assistencialista (Yamamoto & Oliveira, 2010Yamamoto, O. H. & Oliveira, I. F. (2010). Política Social e Psicologia: uma trajetória de 25 anos. Psicologia: Teoria e Pesquisa26(n. spe.), 9-24. ).

No governo Lula, esse cenário se transforma e a proteção social passa a ocupar um dos lugares de destaque como alvo de investimento e de agregação de estratégias de combate à pobreza. Em 2004, há a aprovação da Política Nacional de Assistência Social (PNAS), que se estrutura como um conjunto de serviços e programas com ações em rede a partir dos níveis de complexidade do sistema, considerando-se a lógica da territorialidade e a centralidade da matricialidade sociofamiliar (Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome - MDS, 2004Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome - MDS. (2004). Política nacional de assistência socialBrasília, DF: Secretaria Nacional de Assistência Social.). A PNAS tem como base de referência a família e é executada nos territórios tendo como parâmetros as demandas, necessidades e potencialidades locais. Em 2005, quinze anos após a implantação do Sistema Único de Saúde (SUS), entra em vigor o SUAS, que unifica as ações da assistência social, em nível nacional, materializando as diretrizes da LOAS.

Tal sistema propõe um reordenamento da PNAS para promover uma maior efetividade de suas ações. Estabelece em suas diretrizes a descentralização político-administrativa, o atendimento a quem dela necessitar e a participação da comunidade (Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome - MDS, 2005Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome - MDS. (2005). Norma Operacional Básica NOB-SUAS. Brasília, DF: Secretaria Nacional de Assistência Social ). Dentre as formas de proteção social que o SUAS estabelece, está a Proteção Social Básica (PSB), que sustenta ações de vigilância social para prevenir situações de risco social através das potencialidades e do fortalecimento dos laços afetivos e familiares, possibilitando a inserção dos sujeitos na rede de atendimento, garantindo o acesso às seguranças básicas e aos direitos socioassistenciais. É na PSB que se localiza o CRAS, porta de entrada da assistência social e equipamento no qual desenvolvemos nossa pesquisa.

A equipe profissional mínima de nível superior do CRAS é composta pelo psicólogo e pelo assistente social. Como nesse equipamento realizam-se também atividades educativas, observa-se a presença de pedagogos e educadores físicos e outras categorias ocupacionais. O atendimento ao usuário no CRAS feito pela equipe profissional é organizado em duas dimensões articuladas que se associam ao território: a socioassistencial (apoio efetivo ao usuário e potencialização da rede de serviços para garantia do acesso aos direitos) e a socioeducativa (visão do usuário como sujeito sociocultural, visando à sua inserção na rede de serviços e a sua inclusão social). O trabalho se inicia com a elaboração de um perfil da comunidade, a partir da vigilância social e da territorialização (Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome - MDS, 2004Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome - MDS. (2004). Política nacional de assistência socialBrasília, DF: Secretaria Nacional de Assistência Social.). A vigilância social consiste na produção e sistematização de informações para a construção de indicadores e índices territorializados das situações de vulnerabilidade e risco. Junto com a busca ativa, permite planejar ações de prevenção e promoção social com as famílias mapeadas. A territorialização corresponde ao reconhecimento dos riscos sociais e ao mapeamento das instituições de proteção que existem na comunidade, dentre elas, escolas, serviços de saúde, conselhos tutelares, conselhos comunitários, organizações não governamentais.

Vivemos no Brasil um processo de implementação desse sistema e, na prática das equipes, essas ações enfrentam uma série de desafios, na complexidade e na indeterminação do exercício das mudanças que elas acarretam consigo. Afinal, a PNAS e o SUAS garantem conquistas, mas por si só não garantem diretos e tampouco asseguram a promoção social. Na verdade, esses direitos são construídos na experiência concreta dos coletivos que integram as conexões das equipes com os usuários e entre os profissionais, agenciamento sempre em movimento. Nesse sentido, entendemos que a busca pela promoção social ocorre na trama da macropolítica, com suas representações e modelos estabelecidos, e da micropolítica, com as forças e tensões sustentadas por tais conexões. No CRAS, a execução das ações dos programas é de responsabilidade dos profissionais de nível superior que compõem a sua equipe técnica. Angústias, indagações, desestabilizações, endurecimentos, invenções, precarizações acometem as equipes em suas atuações, desvelando fissuras entre o que existe formalmente na PNAS instituída pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) e o que ocorre na prática profissional das equipes do CRAS.

Apontamentos metodológicos

Ao analisar o momento no qual a ciência se encontra, Morin (1996Morin, E. (1996). Epistemologia da complexidade. In D. Schnitman (Org.), Novos paradigmas, cultura e subjetividade (pp. 274-286)Porto Alegre: Artes Médicas.) ressalta que já há algum tempo esta efetua um esforço relacional e interativo para compreender a ordem social, afirmando o heterogêneo e o plural, acreditando na produção de conhecimento como uma prática social, imersa em uma realidade histórica com forte preocupação política. Segundo o autor, sustentar esses pressupostos é colocar-se contra um conhecimento que se impõe como verdade, generalizante e simplificado, herdeiro do paradigma moderno, em busca da previsibilidade a partir de um espaço inteligível de certezas, sabendo que as respostas encontradas pelas nossas pesquisas são provisórias e circunstanciais. Assim, emergem novas metodologias para o trabalho coletivo e ações institucionais, afirmando outros parâmetros que permitem conhecer o que se passa nos diversos campos de investigação. Metodologias atentas à complexidade da realidade e às demandas sociais de contribuição efetiva da academia aos seus impasses.

Nessa perspectiva, o presente estudo se insere na linha de pesquisa-intervenção que se contrapõe às pesquisas cientificistas tradicionais, objetivando romper com as dicotomias teoria-prática, sujeitoobjeto, pesquisador-pesquisado. Conforme Rocha e Aguiar (2003Rocha, M. L. & Aguiar, K. F. (2003). Pesquisa-intervenção e a produção de novas análises. Psicologia: Ciência e Profissão 23(4), 64-73.), essa metodologia articula análises macropolíticas e micropolíticas, visando à geração de conhecimento e a ação transformadora da realidade. Utiliza uma metodologia participativa, cuja ação é processual e se dá por intervenções de ordem micropolítica nas situações cotidianas, que são em si complexas e determinadas por uma heterogeneidade de fatores e de relações. Ao examinar a pesquisaintervenção, Kastrup (2008Kastrup, V. (2008). O método da cartografia e os quatro níveis da pesquisa-intervenção In L. R. Castro & V. L. Besset (Orgs.), Pesquisa-intervenção na infância e juventude (pp. 465-489). Rio de Janeiro: Trarepa/FAPERJ.) enfatiza que seu campo de investigação também constitui o espaço concreto de intervenção, em uma produção coletiva de conhecimento na qual não há um conjunto de regras prontas, mas sim a exigência de uma construção que necessita da habitação do campo de pesquisa e da implicação do pesquisador. ParaLourau (1993Lourau, R. (1993). Análise institucional e práticas de pesquisa. Rio de Janeiro: UERJ.), não há possibilidade de se efetuar uma análise neutra e apolítica de qualquer instituição. Nesse sentido, o autor defende a importância da implicação, que rompe com a ciência instituída fundamentada no paradigma moderno. A implicação denuncia que aquilo que a instituição deflagra em nós é sempre efeito de uma produção coletiva, de valores, interesses, expectativas, desejos, crenças que estão imbricados nessa relação. Assim, é a análise da implicação que permite acessar a instituição, produzir conhecimento de forma processual e singular, tendo o pesquisador como vetor para o mapeamento das forças presentes, dos efeitos dos encontros, como destaca Romagnoli (2014Romagnoli, R. C. (2014). O conceito de implicação e a pesquisaintervenção institucionalista. Psicologia & Sociedade26(1), 44-52. ).

Fazer uma pesquisa intervenção é considerar a complexidade, colocar problemas, examinar o que o campo produz em nós e rastrear o plano de forças que compõe a realidade ora operando em prol do que já está estabelecido, ora operando a favor de agenciamentos produtivos. Mas sempre tentanto desarticular as práticas e os discursos instituídos, elucidar os processos complexos e as relações despotencializadoras que impedem a invenção, sendo que é nesse jogo que se dá a construção do conhecimento. Desse modo, ao mesmo tempo que se pesquisa também se realizam intervenções, e o pesquisador tenta contribuir efetivamente com os problemas trazidos pelo campo.

Nessa vertente metodológica, este texto apresenta parte dos resultados da pesquisa intervenção iniciada no segundo semestre de 2012 e ainda em andamento, que tem como objetivo analisar as relações no território de um CRAS de Belo Horizonte, enfatizando o modo de gestão do trabalho social entre a equipe e com as famílias e buscando favorecer novas formas de expressão nesses grupos. A pesquisa se faz a partir de dois eixos concomitantes de ação desenvolvidos em conjunto com a população pesquisada, compreendendo a formulação de um campo de análise e um campo de intervenção. O campo de análise se constitui por discussões permanentes da literatura sobre as ideias de Deleuze e Guattari e autores nacionais que trabalham nessa vertente. Estudamos ainda as questões do campo da assistência social e das famílias em vulnerabilidade social. Para tal, efetuamos encontros quinzenais da equipe de pesquisa. O campo de intervenção sustentase em um projeto de trabalho coletivo com a equipe do CRAS acolhendo as demandas e dificuldades locais e envolvendo discussões acerca da dimensão políticoinstitucional (organização do trabalho, relações da equipe, espaço para a participação da família, poder frente aos procedimentos) e da dimensão socioassistencial. Em um segundo momento, esse campo também será composto pelas famílias cadastradas no equipamento. Usamos os seguintes dispositivos de intervenção para a análise das demandas e das implicações: contatos informais, acompanhamento das atividades do serviço, assembleias gerais e entrevistas semiestruturadas com roteiro previamente estabelecido.

As assembleias gerais são realizadas mensalmente ou de acordo com a disponibilidade e a demanda do equipamento. Fazem parte das referidas assembleias tanto a equipe de pesquisa, quanto a equipe dos profissionais do serviço. A equipe de pesquisa é composta pela coordenadora, 01 mestranda e 02 estudantes de psicologia que são bolsistas de iniciação científica. Por outro lado, a equipe do CRAS é composta pela coordenadora, 04 técnicos, 03 assistentes sociais e 01 psicóloga, 05 estagiários de serviço social (04 voluntários e 01 contratado), 01 recepcionista, 01 assistente administrativo. As suas ações se desenvolvem garantindo serviços básicos continuados para famílias em situação de vulnerabilidade social.

Atualmente esse CRAS, implantado há cinco anos, possui 1200 famílias cadastradas, embora tenha como estimativa cadastrar 5000 famílias.

Além das assembleias gerais, acompanhamos as seguintes atividades do CRAS: grupo de convivências, grupos de mulheres, palestras informativas, reuniões do Programa Bolsa Família e visitas domiciliares. Realizamos ainda 06 entrevistas semiestruturadas com a equipe profissional do CRAS, 04 delas efetuadas com a equipe antiga, 03 assistentes sociais e 01 psicóloga, e 02 delas com parte da equipe nova, 01 assistente social e 01 psicóloga. Esse material foi analisado através das restituições coletivas realizadas em parceria com a equipe do CRAS.

A pesquisa-intervenção se associa ao trabalho socioclínico desenvolvido na França, como pontua Monceau (2013Monceau, G. (2013). Effets d'une pratique clinique de recherche. In R. C. Kohn. (Org.), Pour une démarche clinique engagée91-104. Paris: L'Harmattan ), uma vez que ambas têm como objetivo associar pesquisa e intervenção produzindo deslocamentos no campo pesquisado efetuando análises em parceira com a população estudada. Tais modalidades de pesquisa são, de fato, dispositivos que produzem efeitos sobre os grupos, as pessoas e os serviços interferindo em seu cotidiano. O autor assinala que é mediante essas interferências que se produz a análise das práticas dos serviços. Nas assembleias escutamos, perguntamos, discutimos e restituímos nossas percepções e os sentidos dados às narrativas das entrevistas e às observações feitas, ao coletivo de trabalho, composto pelas duas equipes, para que as análises pudessem ser construídas em conjunto, pois a restituição é um elemento metodológico essencial para se conhecer os grupos que estudamos. De acordo com Monceau (2012)Monceau, G. (2012). Tecchiques socio-cliniques pour l'analyse institutionnelle des pratiques. In L'analyse institutionnelle des pratiques: une socio-clinique des tourments institutionnels (pp. 15-35)Paris: L'Harmattan., ela nos proporciona rever nossas interpretações, além de assegurar que o pacto do trabalho continue ativo entre todos os participantes. A restituição possibilita que os sujeitos expressem o que foi percebido no processo da pesquisa e que essa representação seja usada como um suporte para a reflexão coletiva.

Nesse processo, sentidos foram sendo produzidos coletivamente, também com base no conhecimento da equipe e do campo de análise apresentado anteriormente. Apresentar mais questionamentos que resultados definitivos propicia trabalhar o campo e se aproximar da dimensão institucional das implicações e das práticas, além de criar sentidos outros que não somente os dados pela equipe de pesquisa. Assim, o campo de análise e o campo de intervenção se interpenetram a todo instante nos encontros que fazemos. Colocar saberes acadêmicos e experiências em associação é produzir reflexões e críticas atuantes. Essa produção é inerente ao questionamento de pressupostos e intervenções através do coletivo, colocando em análise as instituições e os processos de subjetivação que constroem seu cotidiano, nesse caso, o dia a dia da assistência social na proteção social básica. Os resultados que se seguem foram elaborados por esse viés.

Colocando em relevo forças e tensões no cotidiano do cRas

Conhecer a atuação da equipe profissional do CRAS, a partir das relações entre macropolítica e micropolítica, é pensá-la por meio de planos de forças simultâneos que não se submetem um ao outro, mas que se diferenciam pelo seu funcionamento. Planos que reúnem vários elementos no dia a dia do serviço, engrenagens com efeitos distintos que estão presentes de forma conjunta e indissociável na realidade que estudamos, desvelados parcialmente nos resultados que encontramos. Dessa forma, aproximar-se do CRAS em sua complexidade e em seus movimentos é conhecê-lo na articulação imanente entre o seu plano de organização e o seu o plano de consistência. Conforme Deleuze e Guattari (1996Deleuze, G. & Guattari, F. (1996). Micropolítica e segmentaridade. In Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia (Vol. 3, pp. 83-115). Rio de Janeiro: Editora 34.), o plano de organização refere-se ao que está organizado de maneira dicotômica e dissociativa, formando as imagens sociais estabelecidas, as figuras existentes e visíveis, as ideias instituídas. Esse tipo de funcionamento ordena a heterogeneidade da vida, codificando-a, registrando-a em processos classificatórios, em modelos que homogeneízam a atuação dos profissionais do CRAS, modos sedentários de arranjos do cotidiano. O plano de consistência, por sua vez, é o plano invisível de expansão da vida, composto pelas forças moleculares e invisíveis. Possui um funcionamento heterogêneo que sustenta os encontros e os agenciamentos que vão gerar novos sentidos, novas formas de expressão, variação contínua intensiva das forças.

Formas e forças que estão dispostas conjuntamente, coexistindo lado a lado. Os fluxos da vida são a matéria dos dois planos, embora sua composição seja alterada em cada um: segmentar no plano de organização e fluida no plano de consistência. SegundoDeleuze e Guattari (1996Deleuze, G. & Guattari, F. (1996). Micropolítica e segmentaridade. In Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia (Vol. 3, pp. 83-115). Rio de Janeiro: Editora 34.), a forma segmentar estanca a circulação da vida e opera cortes e recortes que produzem o modo com o qual nos colocamos nas nossas inserções sociais com o objetivo de estabelecer ordens e hierarquias. Por outro lado, a forma fluida é mutante e criadora e corresponde à possibilidade de agenciar e de construir outros sentidos. O plano de organização sustenta o instituído que regula a atuação da equipe do CRAS, com suas diretrizes, normas e tipificações, ao passo que o plano de consistência sustenta suas linhas flexíveis, alterando as formas muitas vezes endurecidas do plano anterior, diluindo modelos que podem se transformar em algo novo e que burle a precariedade da vida que faz parte da exclusão social, ainda muito presente no campo da assistência social. Dessa maneira, o cotidiano das práticas profissionais do CRAS se localiza na interface entre o que se repete e é conhecido e o que pode vir a ser outra composição. O plano de organização sustenta a macropolítica e o plano de consistência, a micropolítica.

O cotidiano do CRAS se faz na transversalização da dimensão macropolítica e da dimensão micropolítica, constituindo-se entre o que se agencia em seu território por dispositivos de homogeneização baseados em normas operacionais, programas, cadastros e o que afeta nesse território e produz movimento, singularizando as relações, os regulamentos e planejamentos e deslocando as condições políticoinstitucionais. O funcionamento macropolítico se sustenta nas instituições de âmbito representacional e domestica o espaço e o tempo estabelecendo rotinas de trabalho, diferenças entre as profissões, ritmos e tarefas, formas de agir que dão contorno às práticas, ao que se espera das famílias cadastradas, ao que se considera problema na lida com o usuário. A dimensão micropolítica se constitui no modo como esses profissionais se tensionam entre assujeitamentos e entre conexões de expansão da vida nas suas diferentes ações. A macropolítica expressa o que ganha forma através de código, operando por meio do instituído, insistindo em sobrecodificar a vida. A micropolítica insiste no que escapa da sobrecodificação, podendo atuar tanto para oprimir, nos microfascismos, quanto para inventar nas conexões com forças que trazem o novo.

Em nosso estudo, a equipe percebe a importância dos elementos de cunho macropolítico que atravessam seu trabalho e avalia que as conquistas asseguradas pela oficialização da PNAS e do SUAS favorecem o deslocamento de uma atuação assistencialista instituída historicamente para a garantia dos direitos sociais e sua promoção, embora tenham pouco tempo de existência. Além disso, estruturam e ordenam as ações do serviço. Entretanto, a equipe ressalta também a presença de mecanismos despotencializadores, que muitas das vezes impedem modos de trabalhar mais ativos. Essa política, bem formulada nos documentos, encontra desafios e fragilidades na sua execução, o que dificulta o trabalho.

Apesar da sua oficialização, a PNAS, conforme Motta e Scarparo (2013Motta, R. F. & Scarparo, H. B. K. (2013). A psicologia na assistência social: transitar, travessia. Psicologia & Sociedade 25(1), 230-239.) pontuam e os profissionais do CRAS também, ainda não adquiriu, entre as outras políticas públicas e pelos próprios profissionais que a integram, efetivamente, o status de política pública. Eles reconhecem que essa é uma política recente e algumas vezes é desorganizada no que tange à sustentação do que se propõe, produzindo efeitos que os desmotivam. Tais fragilidades remetem também a questões mais amplas e complexas desse exercício macropolítico, ligadas às particularidades históricoculturais de nosso país, que possui um padrão de relação do Estado com a sociedade civil, marcada por processos decisórios sem a participação das classes envolvidas com precariedades na área da educação, saúde e assistência social, construídas ao longo dos anos, como nos lembram Yamamoto e Oliveira (2010Yamamoto, O. H. & Oliveira, I. F. (2010). Política Social e Psicologia: uma trajetória de 25 anos. Psicologia: Teoria e Pesquisa26(n. spe.), 9-24. ).

Em alguns casos, a equipe tem dificuldades de construir laços coparticipativos com o território e com as famílias, direcionados à autonomia desse grupo e ao favorecimento da cidadania. Um ponto evidenciado, que perturba tal construção, é a própria metodologia de trabalho, como destaca essa assistente social que trabalha há quase dois anos no CRAS:

método é muito bom, a metodologia é muito bacana, só que no processo de trabalho que a gente vai executando no dia a dia ela não é muito viável. essa inviabilidade pode ser pela falta de espaço físico para o trabalho com as famílias, pela falta de material e/ ou pelo processo de trabalho que é singular com cada comunidade, cada grupo familiar e que pode fugir ao que está prescrito na norma operacional.

Outro elemento desse impedimento é a sobrecarga de trabalho vivida pela equipe. "Eu acho que é muito trabalho, para pouca gente. O CRAS tem um acúmulo de trabalho e a cada dia chega mais coisa pra gente fazer, que é responsabilidade do CRAS, que o pessoal costuma fazer assim". A fala da coordenadora é ratificada pela fala da psicóloga: "Isso aqui é uma loucura... muito tumultuado, muito serviço, muita correria o dia inteiro". Essas falas exprimem um modo de enunciação que se ampara em um modelo a ser seguido, com metas a serem cumpridas, a partir do qual cada profissional se sente absorvido. Ao discutirmos essa sobrecarga que aparecia com constância nas assembleias, os profissionais refletiram acerca da precarização da equipe que atua em uma política pública para fortalecer as potencialidades dos usuários e garantir seus direitos, mas que esta mesma se sente debilitada. Ao analisar a inserção profissional no SUAS,Raichelis (2010Raichelis, R. (2010). Intervenção profissional do assistente social e as condições de trabalho no SUAS. Serviço Social e Sociedade104, 750-772.) afirma que ao mesmo tempo que este amplia o mercado do assistente social e do psicólogo, precariza as condições deste trabalho que se efetua subordinado a processos de alienação, restrição de sua autonomia técnica e intensificação de tarefas. As condições atuais do capitalismo contemporâneo, tais como a globalização e os sistemas de produção apoiados no desenvolvimento tecnológico, promovem mudanças nos processos de organização, gestão e nas relações e vínculos laborais, atingindo os profissionais do SUAS que se encontram fragilizados, pauperizados e desprovidos de direitos e de organização coletiva. Um exemplo disso é que boa parte das equipes no campo da assistência social são trabalhos terceirizados e temporários, inclusive a equipe do próprio CRAS em parte do período dessa pesquisa, como apresentaremos mais adiante. Nas atividades a serem desenvolvidas, os profissionais se queixam do excesso de prontuários para atualizar e do plano de ação da secretaria municipal de assistência social para preencher, que passou a ser semestral e não anual, como antes, e no qual todas as ações devem ser colocadas no computador. Como no CRAS se faz cadastro diariamente, aumenta-se todo o dia o número de usuários, todavia não se aumenta o número de funcionários, nem administrativos e nem da equipe técnica que deve exercer também funções burocráticas.

A equipe acredita que toda essa burocracia a desvitaliza, a atrela a trabalhos administrativos e tira o tempo das intervenções a serem feitas com as famílias. Aspectos como insegurança do emprego, precárias formas de contratação, intensificação do trabalho, baixos salários, pressão pelo aumento da produtividade e de resultados imediatos, ausência de horizontes profissionais de mais longo prazo, falta de perspectivas de progressão e ascensão na carreira, ausência de políticas de qualificação e capacitação profissional intervêm diretamente no trabalho e são vividos como questões individuais e não institucionais. Esse modo de enunciação se conjuga aos processos sociais presentes na sociedade brasileira que operam a favor da "individualização", mediante a "interiorização" de representação "psicologizada" da subjetividade e que muitas das vezes, nós, psicólogos, ajudamos a manter. Formas moldadas no individualismo, e não raro mantidas por saberes científicos, que ajudam a enlaçar as forças, as relações que emergem entre profissionais, processo de trabalho, famílias e cenários sociopolíticos, em queixas pessoais e despolitizadas. A vida, de novo aprisionada em adoecimentos solitários e em amarguras sedentárias. Pontos de discussão e desabafo em nossas assembleias.

As condições de trabalho examinadas por Raichelis (2010Raichelis, R. (2010). Intervenção profissional do assistente social e as condições de trabalho no SUAS. Serviço Social e Sociedade104, 750-772.) também são observadas por Macedo et al., (2011Macedo, J. P., Sousa, A. P., Carvalho, D. M., Magalhães, M. A., Sousa, F. M. S., & Dimenstein, M. (2011). O psicólogo brasileiro no SUAS: quantos somos e onde estamos? Psicologia em estudo16(3), 479-489. ) na inserção do psicólogo nesse campo, cuja marca histórica da desprofissionalização sustenta práticas eventuais e assistemáticas com ações inconsistentes. Yamamoto e Oliveira (2010Yamamoto, O. H. & Oliveira, I. F. (2010). Política Social e Psicologia: uma trajetória de 25 anos. Psicologia: Teoria e Pesquisa26(n. spe.), 9-24. ) concordam e atestam que, apesar de essa inserção do psicólogo não ser algo novo, há muito pouco avanço na consolidação de condições de trabalho para manter profissionais qualificados e capacitados. Ou seja, os psicólogos na assistência social usualmente têm relações empregatícias instáveis, com alta rotatividade e baseadas em vínculos de "confiança", ao invés de competência profissional. Esse pouco avanço traz a marca de uma política "pobre" voltada para os menos favorecidos, sobretudo se comparada à inserção dos psicólogos no campo da saúde. Nas relações de poder entre as políticas públicas, a PNAS ainda é considerada, por muitos, como menor em relação à política pública de saúde, da qual tirou a referência para seu sistema e seus equipamentos.

Muitas instabilidades no processo de trabalho foram colocadas pelos profissionais nas assembleias, e parte delas veio das alterações no cenário institucional de Belo Horizonte que, com certeza, atravessaram o nosso processo de pesquisa, pois as equipes de referência passaram por uma fase de transição. No final de 2012, foi feito, em Belo Horizonte, um concurso público para o cargo de analista de políticas públicas/ assistente social e psicólogo. Nesse concurso foram aprovados em torno de 500 psicólogos e assistentes sociais, para ocuparem as vagas que estavam já há um bom tempo sendo preenchidas provisoriamente, por técnicos contratados e não efetivos. O número de profissionais admitidos já diz de certo descaso histórico com os quadros permanentes no campo da assistência social no município. Embora a entrada de tais profissionais concursados tenha garantido benefícios na consolidação dessa política, a demissão dos membros da equipe para admissão do quadro permanente foi vivida como uma grande desestabilização para o grupo. Acompanhamos todo o fechamento da equipe de profissionais terceirizados, que sofreram com a falta de direitos e toda a montagem da nova equipe de profissionais concursados. Discutimos também a respeito da continuidade ou não do estudo, já que toda a metodologia era participativa. A pertinência e a continuidade do estudo foram acordadas com a nova equipe. Em todo esse processo, as equipes, tanto a que foi demitida, quando a que foi contratada, consideraram que houve pouco respeito por parte da secretaria e pouca consideração com os usuários, ao não ter nenhum planejamento das gestões superiores para a saída e entrada desses técnicos.

Toda a precarização do trabalho e dos direitos dos profissionais não era clara para os profissionais do CRAS. Alguns dos textos citados acima foram estudados e debatidos em conjunto com eles, que se queixavam constantemente de não ter tempo de estudar e refletir, nem mesmo os documentos enviados pelo MDS. O estudo atuou para esta equipe como um vetor micropolítico que trouxe reflexões e elaborações, favorecendo deslocamentos e convocando o coletivo, examinado mais adiante, como revela essa psicóloga:

olha, eu acho que, com o início da pesquisa, a equipe ficou mais próxima. Muitas coisas que nós discutimos depois do início da pesquisa, quando a gente ia discutir algum caso, a gente remetia à assembleia, ao grupo de estudo, e isso aproximou bastante o conhecimento, facilitou a articulação dos saberes ... e aí, foi depois da pesquisa que a coordenação propôs a gente, ela fez o relatório de avaliação, mas todos nós participamos, sabe, "gente, tá lá no computador, vai lá digitar o que vocês pensam e tal". aí a gente ia lá, formatava com ela aquele relatório, colocava a nossa opinião, o que a gente tinha de crítica na postura daquele profissional, e aí assim, eu acho que isso aproximou mais a gente, no sentido de trocar saberes, e de produção de conhecimento, que antes era mais no senso comum as coisas.

Ainda que refletir acerca do seu trabalho, para além das questões das relações pessoais entre os profissionais, como geralmente eram vistas as dificuldades entre a equipe ou com determinada tarefa, tenha fortalecido o grupo, este acredita, unanimemente, que um complicador para que a atuação seja mais efetiva é a falta de apoio das outras políticas:

a gente precisa é mesmo de apoio é das outras políticas e de empenho dos outros colegas, das outras políticas mesmo, o mesmo empenho que a equipe do cRas tem, porque eu acho que a população precisaria da saúde, da educação, da habitação, porque muitas vezes a gente recorre é a este serviço pra estar atendendo as demandas da vida da gente, que a gente sabe não é nossa, a gente não deixa a pessoa sair daqui sem uma resposta, então a gente sempre busca, e às vezes a gente não tem um retorno.

Sem dúvida, a intersetorialidade, para se efetivar, precisa de uma ação conjunta mantida por objetivos comuns ou resultados esperados entre as instituições e setores, como destaca Faria (2011Faria, C. A. P. (2011). Os desafios da intersetorialidade. In M. A. Mourão, A. D. Passos, A. D. B., & C.A. P. Faria (Orgs.), O programa BH cidadania: teoria e prática da intersetorialidade (pp. 45-53)Belo Horizonte: Únika.). Não é fácil conseguir unir organizações distintas, com suas especificidades e suas categorias profissionais, e, nesse caso, os profissionais do CRAS acreditam ter um excesso de demanda da atuação da assistência social com grande dificuldade de diálogo entre as equipes. Eles pontuam que, na experiência com a intersetorialidade, quando os outros profissionais dos outros serviços não sabem o que fazer para caminhar com um caso, acreditam que seja um problema da assistência social e que é esta que deve ser acionada, em uma tentativa de se livrar dos impedimentos. Isso ocorre principalmente na relação com a área da saúde. Ao estudar a atuação da psicologia em CRAS de Natal e Teresina, Leão, Oliveira e Carvalho (2014Leão, S. M., Oliveira, I. M. F. F., & Carvalho, D. B. (2014). O Psicólogo no campo do bem- estar social: atuação junto às famílias e indivíduos em situação de vulnerabilidade e risco social no Centro de Referência de Assistência Social (CRAS). Estudos e pesquisas em psicologia, 14(1), 264289. ) observam essa mesma dificuldade na intersetorialidade entre essas duas áreas.

Na relação com a saúde, mais especificamente no Programa Maior Cuidado, vários conflitos surgem na relação dos profissionais do CRAS com os profissionais do Posto de Saúde do território. Este programa consiste no atendimento domiciliar ao idoso que possui dependência, por "cuidadores de idosos" contratados, orientados e remunerados pelo município. Corresponde a uma ação intersetorial, com critérios para a inserção do idoso na assistência social (ser beneficiário de programa de transferência de renda, ter um único membro dispensando os cuidados, o cuidador familiar ser idoso, insuficiência familiar e avaliação socioeconômica) e na Saúde (avaliação funcional do idoso, incluindo atividades de vida diária, atividades instrumentais da vida diária, avaliação cognitiva, avaliação de equilíbrio e marcha, internação recorrente e recente e uso de variados tipos de remédios). Nesse programa, a intersetorialidade faz emergir uma série de desencontros e queixas, tais como: falta de apoio dos profissionais do posto, desqualificação dos serviços prestados pelo CRAS e responsabilização da assistência social por todos os cuidados.

O processo de institucionalização desse programa em Belo Horizonte foi estudado porRocha (2013Rocha, A. P. L. (2013). Cuidado com a velhice: interdisciplinaridade e intersetorialidade Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-graduação em Psicologia, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte. ), a partir da análise institucional de René Lourau, destacando os seguintes analisadores, que desvelam pontos de conflito entre forças instituídas e instituintes: o descompasso entre a formulação e a implementação do projeto nos territórios, a não escuta dos usuários antes da formulação do projeto, a cisão entre o discurso e a prática da intersetorialidade, a não capacitação dos cuidadores de idosos e a velhice e o cuidado para as família e técnicos. A autora evidencia que a ação intersetorial, com todas as mudanças e flexibilidade que esta exige, ameaça as forças instituídas, imbuídas na conservação do que já existe e muitas das vezes impedir as conexões entre os setores.

De acordo com Afonso, Vieira-Silva, Abade, Abrantes e Fadul (2012Afonso, M. L. M., Vieira-Silva, M., Abade, F. L., Abrantes, T. M., & Fadul, F. M. (2012). A psicologia no Sistema Único de Assistência Social. Pesquisa e Práticas Psicossociais7(2), 189-200.), a ausência de uma rede integrada e articulada de serviços aumenta os riscos da psicologização da questão social no acompanhamento das famílias, ao enfatizar o que as famílias deveriam mudar em sua dinâmica interna, em detrimento de leituras distintas acerca da multideterminação da sua problemática. Esse mesmo risco é examinado por Scheinvar (2006Scheinvar, E. (2006). A família como dispositivo de privatização do social. Arquivos Brasileiros de Psicologia58(1), 48-57. ), uma vez que este grupo pode atuar como um dispositivo de despolitização das relações sociais, em que a família é colocada como responsável, de forma privada, por todos os problemas sociais e políticos. Quando isso ocorre, os casos são particularizados em demasia, como se o grupo familiar fosse o único causador dos problemas apresentados. No entender da autora, tal conduta fundamenta-se na necessidade de controlar a família para reverter o quadro político-social. Contudo, cabe à área social colocar em análise as produções em torno desse grupo, na medida em que ela é um dispositivo político que tem favorecido a privatização do social.

Outro ponto que atrapalha as relações intersetoriais que a equipe vivencia é a falta de amparo da equipe central dentro da própria prefeitura. Acreditam que a hierarquia presente nos níveis de gestão complica os trabalhos na ponta geralmente desconhecidos pelos gestores que, por sua vez, se centram na formulação da política, como aparece na fala dessa assistente social:

de forma geral, né, eu encontro, assim, falta de suporte dos níveis, né, dos meus gestores maiores, a gente tá num local muito vulnerável, e que tem muitas demandas, e às vezes a intersetorialidade, quando ela não acontece, quando você aponta determinados fatos que impedem a efetividade do trabalho... eu não tenho suporte... eles acham que é uma queixa, que é uma falta de você conseguir ser mais maleável ... a assistência social é uma política que tem, assim, o seu valor, seu trabalho, então isso é um dificultador, sabe, da falta de suporte para você desempenhar as ações aqui.

Oliveira, Dantas, Solon e Amorim (2011Oliveira, I. F., Dantas, C. M. B., Solon, A. F. A. C., & Amorim, K. M. O. (2011). A prática psicológica na proteção social básica do SUAS. Psicologia & Sociedade 23(n. spe.), 140149. ) analisam que a falta de informação a respeito do território por parte dos profissionais que trabalham nesses equipamentos também interfere na articulação da rede socioassistencial e das ações intersetoriais, apesar desse conhecimento ser fundamental para a vinculação com os usuários. Nesse contexto, as autoras ressaltam que a maioria dos serviços age sem ter noção do público a quem suas atividades se destinam, o que inviabiliza ações conjuntas. Embora esse não seja o caso da equipe estudada, a relação com o território também promove efeitos, pois essa conexão aparece como detentora de planos de vida distintos.

Os moradores que residem no bairro onde o CRAS está inserido dizem de uma desvalorização da sua comunidade através de linhas históricas tecidas ao longo da trajetória da região, que, de alguma forma, se instauram como amarras em seu cotidiano, podendo fragilizar os usuários, a equipe e o trabalho do CRAS. A sua região é considerada inferior quando comparada a outras áreas vizinhas. Os moradores das áreas mais valorizadas habitualmente referem-se aos primeiros como "povo sem estrutura", "pés vermelhos", "pés de pombo". Isso porque antigamente havia muito mato e ruas sem calçamento com terra vermelha, nessa área, sujando os pés de quem lá morava, que geralmente não tinha dinheiro para comprar sapatos e andava descalço. Tais apelidos depreciativos indicam a pobreza e a desqualificação dessas pessoas. Formas comparativas que aprisionam as forças da comunidade na menosvalia e na inferioridade, compondo modos de exclusão e isolamento.

Nessa região, já desvalorizada, o local onde o CRAS está instalado é considerado a área mais pobre e violenta, inclusive seus habitantes dizem residir em bairros vizinhos quando têm que preencher uma ficha de emprego ou conseguir uma vaga para o filho na melhor escola da região. Fazem isso por acreditar que morar lá é algo que os estigmatiza, os deprecia. Historicamente foi um espaço de invasão, de assentamento e seus habitantes muitas das vezes eram perseguidos pela polícia. As famílias, que vinham do interior de Minas Gerais para trabalhar e não tinham onde morar, encontraram essa área vaga, acamparam e construíram suas casas. Na ocupação inicial da década de 1960, o exército tentou tirar a população dessa área, mas houve enfrentamentos e os habitantes permaneceram. Essa é uma marca negativa e, ao invés de valorizarem o enfrentamento e a conquista da área ocupada, as famílias têm vergonha de que suas casas tenham vindo de assentamentos.

Esse traço circula no território e ressoa nas relações. Nas conexões com o território, acreditamos que esse desvalor encontra ressonância em certas posturas da equipe, que se sente desmotivada e não consegue cumprir todas as suas metas. Tal acoplamento mantém a forma "inferioridade" e impede agenciamentos que escapem desse estrato, desse modelo de lidar consigo mesmo e com os outros. Além das capturas macropolíticas, a dimensão que também está em jogo aqui é a micropolítica, em seu modo de expressão subjugado por meio de microfascismos que submetem a nós mesmos e nos colocam na direção da repetição e da impotência.

Nesse contexto, podemos nos perguntar como nos livrar das formas e convocar as forças para que o território e a equipe se potencializem e para que, de fato, possa ocorrer a promoção social das famílias e a intercessão da equipe com a diferença. A linha dura do assistencialismo ainda é muito presente na lida diária com o usuário, mantendo uma lógica que coloca atenção na pobreza e na incapacidade, como um fragmento que dá suporte à exclusão social, como relata essa psicóloga:

o assistencialismo é uma coisa que atravessa a assistência social ainda. tem momentos que eu vejo possibilidade de fazer uma intervenção com o usuário de autonomia. Às vezes a própria equipe discordava do que eu havia proposto ali. então é, porque já está dado assim, dentro da assistência social, essa lógica assistencialista, apesar de tá caminhando pra mudar isso, mas é uma coisa muito, que faz parte da história da política, da história do país, sabe? e que não se rompe assim, do dia pra noite. É uma construção mesmo.

Enlaçados pelo assujeitamento e pela prática histórica, os profissionais tentam escapar de ações e práticas ainda paternalistas. E como se potencializar e potencializar os usuários? Quais vetores levariam a isso? Tais indagações fazem parte da prática da própria equipe, e apareceram muitas das vezes em nosso encontro. Acham que, em meio a essa forma de tratamento ainda dominante e geralmente esperada pelo próprio usuário, em certas circunstâncias podem acreditar que é possível ser um intercessor para que os direitos se exerçam:

É, e eu vejo que nosso trabalho aqui, ele potencializa os direitos, e assim, a gente algumas vezes garante esse direito e assim a gente potencializa também. essas possibilidades de atuação são vistas na força da equipe: de um ano para cá a equipe conseguiu ficar mais coesa. Isso facilitou mais o trabalho. Com a equipe mais fortalecida a gente conseguiu vencer muito ... a base do meu trabalho está na equipe.

Burlar a reprodução e a sensação de incompetência que, muitas das vezes o trabalho no CRAS deflagra nas subjetividades dos técnicos, se faz na micropolítica do cotidiano com o aflorar do coletivo. Para Deleuze e Guattari (1996Deleuze, G. & Guattari, F. (1996). Micropolítica e segmentaridade. In Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia (Vol. 3, pp. 83-115). Rio de Janeiro: Editora 34.), o coletivo é habitado por relações e processos moleculares, que trazem o intensivo, agenciando forças potentes. Forças que afetam e produzem efeitos, e dão passagem aos intercessores criados nesses encontros, que conduzem à invenção, a outros modos de expressão. Ou seja, o coletivo nos permite sair de nós mesmos, escapar da nossa interioridade, deslocar de nossas lamentações e agenciar e assim sustentar outras formas de vida: "Eu acho que a gente tem que fortalecer o coletivo, eu percebo muitas demandas sobrepondo mais as demandas individuais. O "eu" tá muito forte, eu acho que esse trabalho nosso tem que ser coletivo mesmo, senão fica muito difícil".

Para convocar o coletivo e sustentar essas intercessões com a diferença, com a alteridade, percebemos que certas prudências são indispensáveis. Quem decide trabalhar com promoção social não pode perder a capacidade de produzir outras composições, a capacidade de fazer a vida respirar, de gerar atmosferas. A atmosfera da vida é devir algo que não sabemos, localizar-se na passagem para algo, optando por encontros que potencializem, reinventando dispositivos de se colocar no mundo que escapem da exclusão social. Desse modo, a prática no CRAS pode favorecer processos de subjetivação inventivos, fora da subjetividade individual e debilitada. Essa é uma micropolítica de intensificação de subjetividades, dos profissionais e dos usuários, que cria dimensões em que uma linha de fuga pode ser traçada, um agenciamento pode se ramificar. Modificando os contornos das subjetividades envolvidas, diluídos para dar passagem a diversidades e fortes intensidades, expressando tanto a imprevisibilidade quanto a singularidade de cada conexão, escapando da dureza e da precariedade que a vulnerabilidade social fixa naquelas vidas.

Considerações finais

A política de assistência social é relativamente nova e ainda há grandes desafios nas relações das equipes entre seus profissionais e com os territórios e usuários. Apesar de o modelo do SUAS ser democrático e fecundo no papel, são os profissionais que trabalham no dia a dia que o viabilizam ou não. No percurso de nosso estudo feito em parceria com a equipe de profissionais do CRAS, observamos que algumas marcas reverberaram e afetaram esses profissionais, em sua lida cotidiana. A visão da política de assistência social, a sobrecarga de trabalho, a dificuldade com a intersetorialidade, a relação com o território e a importância do coletivo surgiram como pontos de discussão e de análise. E também como interferências da pesquisa, na tentativa de contribuir com o coletivo pesquisado, de dar sentido ao que se manifesta nos discursos e nas práticas e de colocar em análise os efeitos dessas práticas no cotidiano institucional. Processo no qual formas e forças estavam presentes, e nós tentamos rastreá-las.

Podemos dizer que o CRAS, para além da rotina desgastante e às vezes frustrante para seus técnicos, pode ser experimentado também como um sistema aberto ao devir que se inventa entre a macropolítica e a micropolítica, nos embates entre modos assistencialistas e posturas ativas. Ao invés de ficarmos presos aos modelos, absorvidos por lamúrias e impotências, essencial nos deslocarmos dos ideais e das representações de como lidar com a exclusão social, para os enfrentamentos cotidianos e efetivos que apostem nas mudanças em nós, entre nós, em nossa mentalidade assistencialista e individualista, deixando vir à tona micropolíticasdo desejo de uma sociedade com menos desigualdade.

Agradecimentos

Às agências de fomento, CNPq - Processo 300404/2012-3 - Bolsa produtividade; CNPq Processo CNPq -470350/2012-1 - Edital Universal e FAPEMIG - SHA APQ 00267-12.

Referências

  • Afonso, M. L. M., Vieira-Silva, M., Abade, F. L., Abrantes, T. M., & Fadul, F. M. (2012). A psicologia no Sistema Único de Assistência Social. Pesquisa e Práticas Psicossociais7(2), 189-200.
  • Cruz, L. R. & Guareschi, N. (2009). A constituição da assistência social como políticas públicas: interrogações à Psicologia. In Políticas Públicas e Assistência Social (pp. 1340) Petrópolis, RJ: Vozes.
  • Cunha, E. P. & Cunha, E. S. M. (2002). Políticas públicas sociais. In A. Carvalho et al. (Orgs.), Políticas Públicas (pp. 11-25) Belo Horizonte: UFMG/PROEX.
  • Deleuze, G. & Guattari, F. (1996). Micropolítica e segmentaridade. In Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia (Vol. 3, pp. 83-115). Rio de Janeiro: Editora 34.
  • Faria, C. A. P. (2011). Os desafios da intersetorialidade. In M. A. Mourão, A. D. Passos, A. D. B., & C.A. P. Faria (Orgs.), O programa BH cidadania: teoria e prática da intersetorialidade (pp. 45-53)Belo Horizonte: Únika.
  • Leão, S. M., Oliveira, I. M. F. F., & Carvalho, D. B. (2014). O Psicólogo no campo do bem- estar social: atuação junto às famílias e indivíduos em situação de vulnerabilidade e risco social no Centro de Referência de Assistência Social (CRAS). Estudos e pesquisas em psicologia, 14(1), 264289.
  • Lourau, R. (1993). Análise institucional e práticas de pesquisa. Rio de Janeiro: UERJ.
  • Kastrup, V. (2008). O método da cartografia e os quatro níveis da pesquisa-intervenção In L. R. Castro & V. L. Besset (Orgs.), Pesquisa-intervenção na infância e juventude (pp. 465-489). Rio de Janeiro: Trarepa/FAPERJ.
  • Macedo, J. P., Sousa, A. P., Carvalho, D. M., Magalhães, M. A., Sousa, F. M. S., & Dimenstein, M. (2011). O psicólogo brasileiro no SUAS: quantos somos e onde estamos? Psicologia em estudo16(3), 479-489.
  • Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome - MDS. (2004). Política nacional de assistência socialBrasília, DF: Secretaria Nacional de Assistência Social.
  • Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome - MDS. (2005). Norma Operacional Básica NOB-SUAS. Brasília, DF: Secretaria Nacional de Assistência Social
  • Monceau, G. (2012). Tecchiques socio-cliniques pour l'analyse institutionnelle des pratiques. In L'analyse institutionnelle des pratiques: une socio-clinique des tourments institutionnels (pp. 15-35)Paris: L'Harmattan.
  • Monceau, G. (2013). Effets d'une pratique clinique de recherche. In R. C. Kohn. (Org.), Pour une démarche clinique engagée91-104. Paris: L'Harmattan
  • Morin, E. (1996). Epistemologia da complexidade. In D. Schnitman (Org.), Novos paradigmas, cultura e subjetividade (pp. 274-286)Porto Alegre: Artes Médicas.
  • Motta, R. F. & Scarparo, H. B. K. (2013). A psicologia na assistência social: transitar, travessia. Psicologia & Sociedade 25(1), 230-239.
  • Raichelis, R. (2010). Intervenção profissional do assistente social e as condições de trabalho no SUAS. Serviço Social e Sociedade104, 750-772.
  • Rocha, A. P. L. (2013). Cuidado com a velhice: interdisciplinaridade e intersetorialidade Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-graduação em Psicologia, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte.
  • Rocha, M. L. & Aguiar, K. F. (2003). Pesquisa-intervenção e a produção de novas análises. Psicologia: Ciência e Profissão 23(4), 64-73.
  • Romagnoli, R. C. (2014). O conceito de implicação e a pesquisaintervenção institucionalista. Psicologia & Sociedade26(1), 44-52.
  • Scheinvar, E. (2006). A família como dispositivo de privatização do social. Arquivos Brasileiros de Psicologia58(1), 48-57.
  • Oliveira, I. F., Dantas, C. M. B., Solon, A. F. A. C., & Amorim, K. M. O. (2011). A prática psicológica na proteção social básica do SUAS. Psicologia & Sociedade 23(n. spe.), 140149.
  • Yamamoto, O. H. & Oliveira, I. F. (2010). Política Social e Psicologia: uma trajetória de 25 anos. Psicologia: Teoria e Pesquisa26(n. spe.), 9-24.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2016

Histórico

  • Recebido
    28 Nov 2014
  • Revisado
    10 Maio 2015
  • Aceito
    24 Jun 2015
Associação Brasileira de Psicologia Social Programa de Pós-graduação em Psicologia, Universidade Federal de Pernambuco, Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH), Av. da Arquitetura S/N - 7º Andar - Cidade Universitária, Recife - PE - CEP: 50740-550 - Belo Horizonte - MG - Brazil
E-mail: revistapsisoc@gmail.com