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O QUE ESCREVER NESSES TEMPOS?

"As pessoas sabem o que fazem; frequentemente sabem porque fazem o que fazem; mas o que elas não sabem é o que faz aquilo que fazem" (Dreyfus e Rabinow, citado por Foucault, 1983Dreyfus, H. L., & Rabinow, P.. (1983). Michel Foucault. Beyond Structuralism and Hermeneutics. 2nd ed. Chicago, IL: University of Chicago Press, 1983., p.187)1 1 Tradução livre do texto original, no qual se lê: "People know what they do; they frequently know why they do what they do; but what they don't know is what what they do does". Nossa tradução difere da proposta da edição brasileira de Michel Foucault: Beyond Strucuralism and Hermeneutics, que, a nosso ver, atenua o jogo de palavras do original. (Cf. p. 206 da edição brasileira).

Redigir um Editorial no dia 31 de março de 2016 torna-se uma tarefa árdua, diante do atual quadro político nacional, amplamente nomeado de "crise", que atravessa nossas vidas, nosso cotidiano, nosso trabalho, nossas produções. Há uma infinidade de palavras e afetos que circulam no pensamento e o provocam, mas também uma dificuldade de aproximá-las e convertê-las em texto, dada sua complexidade. A primeira sensação (não por acaso) é de esgotamento e incapacidade de expressão diante do que se passa, sobre o que nos tornamos e do que estamos em vias de deixar de ser. Mais do que isso, é uma perplexidade com o nosso presente. Pensar sobre o nosso presente, porque é disso que se trata neste momento, é fazer certa inflexão sobre se sabemos o que faz aquilo que fazemos. E saber o que faz aquilo que fazemos 52 anos após a legitimação do Golpe Militar no País é apontar uma relação inextrincável entre vida, política, pensamento e produção científica. Não como ficar "em cima do muro". É necessário marcar engajamento com o mundo em que vivemos e, especialmente, o mundo que desejamos. Escrever, neste momento, é compor um texto com potências, é compor um corpo pelos afetos que o fazem variar, é expressar-se politicamente. O texto vai se tornando um corpo, um corpo afetado por encontros que aumentam ou diminuem sua potência de variação, e é esta uma das questões que nos perguntamos: o que pode um corpo 52 anos após o início de um Golpe Militar e, além disso, qual o lugar político das nossas produções em Psicologia Social, ao longo desses anos, e em nossa atualidade?

Paixões tristes e paixões alegres agitam-se neste momento. Paixões que levam a nossa atualidade ao limite da linha, parafraseando palavras foucaultianas: um limite no qual nos encontramos com a loucura, a morte ou a criação. Há uma excedência neste momento que nos captura, ao mesmo tempo em que nos defronta com a vida-morte, loucura, criação. Há nesse limite e nessa excedência o encontro com a vida, com suas variações e sua capacidade de criar sempre novas normas. E não será isso que nesses 30 anos da revista Psicologia & Sociedade estamos tentando fazer e buscando pensar sobre o que fazemos? Nesses 30 anos, ou nesses 52 anos, nos encontramos com as circunstacialidades das formas de produção da vida.

Paixões tristes e paixões alegres que afetam os textos, editores/as, autores/as, leitores/as e interlocutores/as, marcando diferentes trajetórias e engajamentos que dão forma ao pensamento e marcam um exercício político da disciplina. Esse exercício político torna-se possível tanto por aquilo com o qual nos sentimos separados de nossa potência de agir, quanto por aquilo que aumenta nossa potência de agir. Nesses 30 anos nos encontramos com o mundo e como nos colocamos nesse mundo, um engajamento pático e poiético apoiado por circunstâncias práticas, por afirmação de excessos.

Nesses 30 anos, dentro dos 52 anos que nos separam do Golpe Militar, nossos textos em Psicologia Social assumem, de diferentes modos, uma capacidade ontológica de resistir, de recombinar forças e de afirmar criticamente uma política da vida. Portanto, textos que se fazem pelos encontros com a vida e com uma vida que já não nos parece autoevidente, uma vida que não se esgota no simples falar da vida, mas uma vida com a qual falamos, com a qual caminhamos e com a qual inventamos novas normas. E nesses 30 anos, temos sido convocados a pensar sobre o que faz o que fazemos, no que nos tornamos e o que está em vias de se desfazer. São narrativas de nossa atualidade, de um tempo que já não é mais (não estamos mais em 31 de março de 1964), de um tempo porvir (o que faremos de nós mesmos 52 anos após o Golpe Militar), de um presente que os atualiza.

Este momento torna-se uma superfície incontornável, assim como todas aquelas que são encenadas em nossos textos. As superfícies nas quais nos apoiamos ou as quais inventamos nos nossos textos também são incontornáveis, pois são incontornáveis os diferentes modos de expressão da vida com a qual nos encontramos. Isso torna nossos textos corpos afetados, afetados por paixões que nos engajam na insistência da vida. Reiterar, nesta escrita, a vida pode parecer uma perspectiva vitalista, mas mais que um vitalismo, trata-se de uma posição de afirmação da vida. E escrever com a vida é uma atitude, uma ascese de nosso presente, um inconformismo pático com o nosso presente que encontra nas palavras formas de uma expressão política.

A expressão política é em si mesma uma política, é uma forma de posicionamento frente aos transbordamentos ou aos borramentos de fronteiras entre relações agonísticas e relações de violência. Há no nosso presente uma insistência em estados de exceção e o exercício da política se faz nas ruas, nos textos mas também nas mortes (dos Marcos Vinícius, dos Amarildos, das Marias...). Vidas que se perdem nesses encontros, nesses estados de exceção: vidas que são levadas ou exterminadas, vidas que se afirmam no momento de suas mortes, vidas que existem sem existirem, vidas que insistem. A política da vida não tem como parâmetro a morte, não é uma vida para o evitamento da morte, mas uma vida que afirma a si mesma, uma potência de vida e mesmo na morte ela se faz potente, porque permite a variação de potências de agir. E, neste momento, nossos textos podem tornar-se potências de agir, potências ao mesmo tempo de denúncias contra as diferentes formas de extermínio da vida e ao mesmo tempo da incapturabilidade da vida, mesmo na morte.

Neste momento, o cansaço, a impaciência ou o pessimismo podem turvar nossas vistas, mas não impedirão a resistência, pois meio século nos fez, como brasileiros/as, aprender muito sobre formas criativas e éticas de resistir, de propor alternativas e de produzir conhecimento.

Referência

  • Dreyfus, H. L., & Rabinow, P.. (1983). Michel Foucault. Beyond Structuralism and Hermeneutics. 2nd ed. Chicago, IL: University of Chicago Press, 1983.
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    Tradução livre do texto original, no qual se lê: "People know what they do; they frequently know why they do what they do; but what they don't know is what what they do does". Nossa tradução difere da proposta da edição brasileira de Michel Foucault: Beyond Strucuralism and Hermeneutics, que, a nosso ver, atenua o jogo de palavras do original. (Cf. p. 206 da edição brasileira).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2016
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