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REPRESENTAÇÃO SOCIAL DA EDUCAÇÃO DO CAMPO PARA PROFESSORES EM FORMAÇÃO

LA REPRESENTACIÓN SOCIAL DE LA EDUCACIÓN RURAL DE LOS ESTUDIANTES DE FORMACIÓN DOCENTE

SOCIAL REPRESENTATION OF RURAL EDUCATION FOR TEACHERS IN TRAINING

Resumo

O presente trabalho analisa os processos e conteúdos representacionais de alunos em formação docente em uma instituição pública do Estado do Pará com relação à Educação do Campo. Para isso, foram realizadas 19 entrevistas com alunos de diversos campi dessa formação. Uma análise de conteúdo informatizada de tais entrevistas com o software ALCESTE(r) revelou quatro classes de discursos, uma delas especificamente ligada ao tema "Educação do Campo". A representação social da Educação do Campo para esse grupo de licenciados organiza-se em torno da dicotomia campo-cidade. Essa dicotomia se estende para todos os aspectos da formação, tanto em termos de conteúdo como em termos de didática. Foi possível ainda identificar os processos de objetivação e ancoragem que estão na gênese da representação social da Educação do Campo.

Palavras-chave:
representação social; educação do campo; professor

Resumen

Este trabajo analiza los procesos y contenidos de representación de los estudiantes de formación docente en una institución pública del Estado de Pará, Brasil, sobre la Educación Rural. Para ello, llevamos a cabo 19 entrevistas con estudiantes de diversos planteles de dicha formación. Un análisis de contenido informático de estas entrevistas con software ALCESTE(r) reveló cuatro clases de discursos, vinculadas a los temas: Contexto; Educación Rural; Aprendizaje; y Experiencia. La representación social de la Educación Rural para este grupo de graduados se organiza en torno a la dicotomía rural-urbana. Esta dicotomía se extiende a todos los aspectos de la formación, tanto en contenido como en cuanto a la enseñanza. También fue posible identificar los procesos de objetivación y de anclaje que son la génesis de la representación social de la educación rural.

Palabras clave:
representación social; educación rural; profesor

Abstract

This paper analyzes the representational processes and contents of students enrolled in a teacher education course in a public institution in Pará State, Brazil, regarding Rural Education. A set of 19 interviews were carried out with students from various campuses offering this course. A computerized content analysis of interviews made with the software ALCESTE(c) revealed four classes of discourse, one of them specifically linked to the theme "Rural Education". The social representation of Rural Education for this group of students is organized around the rural-urban dichotomy. This dichotomy extends to all aspects of training, both in terms of content and in terms of teaching. It was also possible to identify the processes of objectification and anchoring which are in the genesis of social representation of Rural Education.

Keywords:
social representation; rural education; teacher

Introdução

O reconhecimento do caráter específico de uma educação voltada para pessoas que vivem no campo é uma temática recente e em ascensão. O sistema capitalista hegemônico aponta para uma educação de caráter instrumental, com foco na exploração do campo e da natureza. Uma proposta contra-hegemônica de Educação do Campo deve apontar para o conhecimento e a transformação da natureza para o bem-estar do ser humano.

Os professores que atuam na Educação do Campo devem pensar uma educação a partir do campo e com a participação dos trabalhadores do campo, vinculada à cultura e às necessidades humanas e sociais da população do campo (Caldart, 2004Caldart, R. S. (2012). Pedagogia do Movimento Sem Terra. São Paulo: Expressão Popular.). Por outro lado, esses mesmos professores precisam construir uma educação que amplie o acesso à cultura construída historicamente.

Isso traz importantes desafios para a Educação do Campo e para a formação de docentes a ela associada. Como construir alternativas ao conhecimento científico - valioso e significativo, mas instrumentalizado pelo capital e excludente de outras formas de saber - que não excluam o já conhecido, mas que deixem espaço a outras formas de saber e conhecer, fruto da experiência e da vida dos povos do campo?

Aí se encontra, possivelmente, a grande contribuição que a Teoria das Representações Sociais (TRS) pode dar ao debate da Educação do Campo e da formação de seus professores. Ela se interessa pelo conhecimento de senso comum que circula na comunicação de um grupo; pelos valores, crenças e opiniões desse grupo; pela cultura e identidade desse grupo.

Mas as representações sociais (RS) não são apenas um instrumento teórico para pensar a Educação do Campo e a formação docente. Elas são também o palco daquilo que Moscovici (2003Moscovici, S. (2003). Representações sociais: investigações em psicologia social. (P. A. Guareschi, Trad.). Petrópolis, RJ: Vozes.) chamou de Kulturkampf - luta de ideias - que, na prática, são lutas de representação. Se as RS podem ser vistas como um conjunto de saberes, ideias, crenças, ideologias, aquele "conhecimento, socialmente elaborado e partilhado, tendo uma orientação prática e colaborando com a construção de uma realidade comum a um conjunto social" de que nos fala Jodelet (1989Jodelet, D. (1989). Représentations sociales : un domaine en expansion. In Les représentations sociales (pp. 31-61). Paris: Presses Universitaires de France ., p. 36), então elas também podem ser vistas como uma orientação para a inovação e a mudança.

De fato, a construção desse conhecimento socialmente elaborado sobre a Educação do Campo se dá no terreno do conflito entre dois discursos: um discurso liberal hegemônico de uma educação instrumental para o campo; e um discurso pensado a partir do campo para a produção da vida no campo, e que se quer contra-hegemônico para, opondo-se ao primeiro, tornar-se hegemônico a seu turno.

É dentro de tal conflito que serão construídas as RS dos professores que seguem uma formação para a Educação do Campo. E é essa construção que se pretende analisar no presente artigo, no escopo da formação de professores que ocorre na Amazônia brasileira, mais especificamente em uma licenciatura em Educação do Campo no Estado do Pará.

O objetivo proposto, portanto, é o estudo das representações sociais da Educação do Campo enquanto objeto social que é percebido/construído por um grupo e que contribui para a construção identitária do referido grupo. Mais precisamente, propõe-se aqui o estudo da gêneses e da organização das representações sociais da educação do campo pelos indivíduos inseridos em uma formação docente para a Educação do Campo.

Educação do campo

É comum o esterótipo do campo como uma região cultural, econômica e socialmente atrasada. Um local no qual habitam povos ainda em estágio primitivo de desenvolvimento, não apenas de baixa escolarização, mas sem necessidade de qualquer outra escolarização, em função do tipo de atividade (agrária) que exercem.

São essas imagens que expõem a ideia dominante do campo como um espaço territorial pouco desenvolvido, desprovido da maioria dos bens materiais e simbólicos de consumo, assim como dos recursos tecnológicos. Uma ideia que se contrapõe à de cidade, na qual a maioria desses bens estão disponíveis para um consumo imediato, isto é, um local onde o desenvolvimento proporcionou a superação do estado natural. Nessa concepção de espaço geográfico dividido dicotomicamente, as imagens representativas de cidade denotam aspectos de superioridade, como formas de organização social, econômica, política e cultural da vida humana mais avançada e que se estabelece como o modelo hegemônico de sociedade.

É justamente a partir de tal modelo de sociedade que se estabeleceram as políticas públicas educacionais que, uma vez colocadas em prática, consolidam um paradigma educacional baseado nesses mesmos pressupostos de superioridade da cidade sobre o campo. Essa imagem depreciativa faz do campo um lugar atrasado, com a visão de que seus habitantes possuem conhecimentos inferiores, desenvolvendo trabalhos que não necessitam de maior escolarização. Essa população ficou relegada a uma educação de nível elementar, precariamente oferecida pelas escolas situadas no campo, mas que seguem esse modelo educacional hegemônico, pensado pelo e para o habitante da cidade (Arroyo, Caldart, & Molina, 2011Molina, M. C. & Sá, L. M. (2011). Licenciaturas em Educação do Campo. Belo Horizonte: Autêntica.).

A partir dessa perspectiva da realidade, que a apreende sob um ponto de vista seletivamente urbano, acaba-se por excluir os conhecimentos, as necessidades, as ambições e, principalmente, o direito fundamental à educação que os habitantes do campo possuem. Direito historicamente esquecido ou, quando suprido, feito de maneira precária, seguindo-se a mesma lógica da relação hierárquica descendente entre a cidade e o campo.

Essa transposição para o campo de um modelo educacional urbanocêntrico passou a ser contestada por movimentos sociais emergentes após o processo de redemocratização do país. Com a promulgação da Constituição Federal de 1988 e da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional em 1996, ampliaram-se os direitos civis e, entre eles, os direitos à educação. Abriram-se os caminhos para que tais movimentos populares reivindicassem politicamente o direito a uma educação de qualidade.

Dentre os movimentos sociais que adquiriram expressão política nacional, encontra-se o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que, juntamente com os objetivos centrais de sua proposta reivindicatória por uma reforma agrária no país, reclamavam pelo direito legal de uma educação que realmente atendesse às demandas do povo do campo (MST, 2005Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST. (2005). Dossiê MST ESCOLA: documentos e estudos, 1990-2001. São Paulo: Expressão Popular ; Setor de Educação do MST/Iterra.).

Em meio às lutas políticas por melhores condições de sobrevivência e condições educacionais, aprofundam-se os debates teóricos sobre um modelo diferenciado de educação. Emerge, então, a proposta educacional denominada Educação do Campo que se constrói em oposição marcada à educação rural, esta última entendida como a transferência dos modelos urbanos para o campo, sem a contextualização do conhecimento a partir do campo e sem a participação do campo.

Após os intensos debates teóricos e políticos, essa proposta, gestada inicialmente pelos movimentos sociais, ganha força no âmbito das políticas públicas educacionais culminando com a implantação, por parte do governo federal, de diversos programas direcionados à população do campo, tais como: o Programa Saberes da Terra (integrado depois ao Programa Nacional de Inclusão de Jovens - PROJOVEM), o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA), e o Programa de Apoio à Formação Superior em Licenciatura em Educação do Campo (PROCAMPO), este último objeto do presente estudo.

Atualmente, esse programa está regido por resolução do Ministério da Educação, contando com o financiamento do governo federal e tendo como objetivo o apoio à implementação dos cursos regulares de Licenciatura em Educação do Campo em Instituições Públicas de Ensino Superior de todo o país. Trata-se de programa voltado especificamente à formação de educadores para a atuação docente na segunda fase do ensino fundamental (quatro anos finais) e ensino médio, nas escolas do campo (Resolução/CD/FNDE nº 06, 2009Resolução/CD/FNDE n. 06 de 17 de março de 2009. (2009). Estabelece as orientações e diretrizes para a operacionalização da assistência financeira suplementar aos projetos educacionais que promovam o acesso e a permanência na universidade de estudantes de baixa renda e grupos socialmente discriminados. Brasília, DF: Ministério da Educação. Acesso em 11 de julho, 2015, Acesso em 11 de julho, 2015, http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/res06_17032009.pdf
http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/res...
).

É para a formação docente em uma das implantações do PROCAMPO, notadamente a Licenciatura em Educação do Campo desenvolvida em uma Instituição Pública Federal de Ensino Superior do Estado do Pará, que este trabalho se volta, buscando descrever os processos representacionais sobre a formação em educação do campo, bem como o modo como eles interferem na construção identitária dos licenciandos.

A contribuição da Teoria das Representações Sociais

Desenvolvida nos anos 1960 na França por Serge Moscovici (1961/2012)Moscovici, S. (2012). A psicanálise, sua imagem e seu público. (S. Fuhrman, Trad.). Petrópolis, RJ: Vozes. (Original publicado em 1961), a TRS estuda como o conhecimento prático, ou de senso comum, se constrói, se estrutura e se difunde nos diferentes grupos humanos. As representações sociais são justamente

uma forma de conhecimento específico, o saber do senso comum, cujos conteúdos mostram a operação de processos generativos e funcionais socialmente marcados. De uma forma mais geral, ele [o conceito de representação social] designa uma forma de pensamento social.

As representações sociais são modalidades de pensamento prático orientadas para a comunicação, a compreensão e o domínio do meio ambiente social, material e ideal. Como tal, elas apresentam características específicas no plano da organização dos conteúdos, das operações mentais e da lógica.

A marcação social dos conteúdos ou dos processos de representação se refere às condições e aos contextos nos quais emergem as representações, às comunicações nas quais elas circulam, às funções que eles desempenham na interação com o mundo e os outros. (Jodelet, 1992Jodelet, D. (1992).Représentation sociale: phénomènes, concept et théorie. In S. Moscovici (Ed.). La psychologie sociale (357-389). Paris: Presses Universitaires de France ., pp. 361-362, tradução nossa)

As RS desempenham um papel importante na construção da identidade de um grupo, além de influenciarem na orientação a priori e na justificação a posteriori de tomadas de posição e comportamentos (Abric, 1994Abric, J. C. (1994). Pratiques sociales et représentations. Paris: Presses Universitaires de France.). Assim, elas estão intrinsecamente relacionadas às práticas sociais dos grupos.

Por essas características, elas são uma forma privilegiada de estudo das atividades de grupos nos quais circulam, por meio da comunicação, informações, crenças, opiniões e atitudes sobre um objeto dado.

Embora os trabalhos de RS na área de educação sejam numerosos (basta observar as publicações na Jornada Internacional e Conferência Brasileira sobre Representações Sociais - JIRS, evento bianual acerca da temática das RS), os estudos dedicados ao tema da Educação do Campo ainda são bastante reduzidos, destacando-se os trabalhos de Antunes-Rocha (2011Antunes-Rocha, M. I. (2011). A posse e o uso da terra como mediação da relação entre professores e alunos: um estudo na perspectiva das representações sociais. Em Aberto, 24(85), 65-80.; 2012Antunes-Rocha, M. I. (2012). Da cor de terra: representações sociais de professores sobre os alunos no contexto da luta pela terra Belo Horizonte: UFMG.).

O potencial de suas aplicações é significativo, pois permite considerar a Educação do Campo como atividade humana socialmente construída e dar voz aos grupos que trabalham na Educação do Campo - alunos, docentes, coletivos do campo.

O uso da TRS permite ainda responder a uma das críticas que frequentemente é dirigida aos trabalhos de caráter sociológico, que é a de não atentar para a diversidade do sistema de ensino, com "variações no modo de organização da escola, nos princípios pedagógicos adotados, nos critérios de avaliação" (Nogueira & Nogueira, 2002Nogueira, C. M. M. & Nogueira, M. A. (2002). A sociologia da educação de Pierre Bourdieu: limites e contribuições. Educação & Sociedade, 23(78), 15-36.). O estudo das RS possibilita adentrar nos grupos, nas famílias, nas salas de aula, levando em conta tal diversidade.

Método

Como enfatizam Doise, Clemence e Lorenzi-Cioldi (1992Doise, W., Clemence, A., & Lorenzi-Cioldi, F. (1992). Représentations sociales et analyse de donnéesGrenoble: Presses Universitaires de Grenoble.), o estudo das representações sociais repousa sobre o material oferecido pela linguagem. Assim, neste trabalho, adotou-se uma abordagem qualitativa do problema, tendo a entrevista como técnica básica para a pesquisa das representações sociais no grupo estudado.

Foi adotada a técnica de entrevistas semiestruturadas, na qual o entrevistado expõe livremente seus pensamentos e opiniões a respeito do tema abordado e que, além da pergunta central ou de abertura da entrevista, propõe um roteiro de temas a ser induzidos durante a entrevista, caso o entrevistado não aborde esses temas espontaneamente.

O roteiro da entrevista, que servia de guia para os entrevistados, versava sobre as experiências por eles vividas enquanto professores, suas concepções acerca do papel do professor e do aluno no processo ensino/aprendizagem e suas opiniões sobre a sua formação no curso de licenciatura em Educação do Campo.

As entrevistas tiveram uma duração aproximada de trinta minutos, sendo gravadas e posteriormente transcritas, obtendo-se o texto a ser analisado.

Para a análise das entrevistas, utilizou-se a análise de conteúdo, com o auxílio do software ALCESTE(r). O detalhamento dessa análise está descrito a seguir.

Análise de conteúdo

A análise de conteúdo é um instrumento de análise das comunicações. Ela busca guardar a riqueza do discurso do sujeito sem se perder na complexidade de tal discurso e sem se limitar apenas à intuição do pesquisador. Spink e Lima (2004Spink, M. J. P. & Lima, H. (2004). Rigor e visibilidade: a explicitação dos passos da interpretação. In M. J. P. Spink (Org.), Práticas discursivas e produção de sentidos no cotidiano: aproximações teóricas e metodológicas (pp. 93-122). São Paulo: Cortez .) sugerem que o rigor nas pesquisas em Ciências Sociais está relacionado à visibilidade que se dá à maneira como a análise e a interpretação foram construídas. A análise de conteúdo, buscando sistematizar, não a interpretação, mas os elementos de que ela se serve, é uma proposição nesse sentido.

Dentre as diversas formas que a análise de conteúdo pode assumir (Bardin, 2000Bardin, L. (2000). Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70.; Quivy &Van Campenhoudt, 1988Quivy, R. & Van Campenhoudt, L. (1988). Manuel de recherche en sciences sociales. Paris: Dunod.), adotamos aqui a análise por categorias, que é uma análise de classificação, associada à análise de ocorrências simultâneas ou coocorrências, que é uma análise de relações. A análise por categorias está entre as técnicas mais antigas e mais utilizadas. Ela funciona por meio de uma divisão do texto em unidades, seguida de uma classificação dessas unidades de acordo com categorias definidas a priori pelo quadro teórico ou induzidas pelo próprio texto. A classificação por temas evocados representa a variante mais comum na prática. A análise de ocorrências simultâneas procura estudar as presenças ou as ausências anormais de elementos em uma mesma unidade do texto. A frequência das ocorrências é indicativa da associação ou dissociação dos elementos no discurso do entrevistado.

O software ALCESTE(r)

O software ALCESTE(r) (Analyse Lexicale par Context d'un Ensemble de Segments de TExte - Análise lexical por contexto de um conjunto de segmentos de texto) é um programa de análise automática de textos.

O software busca fazer uma estatística das palavras e expressões do texto e verificar a coocorrência delas, isto é, a ocorrência da mesma palavra ou expressão em várias partes do texto analisado. Conjuntos de palavras que estão próximas entre si e que ocorrem em várias partes do texto indicam um "tema" ou uma "classe de discurso" que se repete e que deve ser colocada em evidência.

O programa foi desenvolvido na Universidade de Toulouse II, França, por Max Reinert (1990Reinert, M. (1990). ALCESTE - Une méthodologie d'analyse de données textuelles et une application: Aurélia de Gérard de Nerval. Bulletin de méthodologie sociologique, 26(1), 24-54.). A ideia básica consiste em construir, a partir da distribuição do vocabulário do texto, "mundos lexicais", que são conjuntos de proposições estatisticamente "próximas".

O programa procura dividir o conteúdo das entrevistas em unidades de contexto que correspondem, segundo Bardin (2000Bardin, L. (2000). Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70., p. 138), "ao segmento de mensagem cujo tamanho é ótimo para definir a significação exata da unidade de registro"; em nosso caso, essa unidade de contexto é o que Reinert (1990Reinert, M. (1990). ALCESTE - Une méthodologie d'analyse de données textuelles et une application: Aurélia de Gérard de Nerval. Bulletin de méthodologie sociologique, 26(1), 24-54.; 1993Reinert, M. (1993). Les "mondes lexicaux" et leur "logique" à travers l'analyse statistique d'un corpus de récits de cauchemars. Langage et Société, 66, 5-39.) chama de enunciado. Ele corresponderia a uma proposição sobre o mundo, do ponto de vista do sujeito que a enuncia. A operacionalização desse conceito (que é, como admite o próprio Reinert, de difícil apreensão) é feita mediante as chamadas unidades de contexto elementares (u.c.e.).

Para definir tais unidades, o programa utiliza certas estratégias baseadas em restrições gerais às quais elas devem obedecer. Duas restrições são exploradas: a pontuação e o tamanho da unidade. Sempre que possível, uma u.c.e. deve corresponder a um final de frase e seu comprimento não deve ultrapassar duas ou três linhas. Essa divisão é necessariamente arbitrária, mas ela pode ser variada de modo a se verificar a estabilidade dos resultados obtidos. Entende-se aqui estabilidade como independência dos resultados em relação às variações introduzidas na divisão do texto.

Na construção das análises, são eliminadas preposições, conjunções, artigos (as chamadas palavras-instrumento) e desinências de conjugações, guardando-se apenas os lexemas, isto é, as unidades mínimas com um significado autônomo das "palavras cheias" (verbos e nomes, essencialmente).

A partir dessas estratégias, o programa busca correlações entre as várias u.c.e. e as palavras-cheias que as compõem, chegando a uma divisão dos textos em classes de discurso segundo essas correlações. Camargo (2005Camargo, B. V. (2005). ALCESTE: um programa informático de análise quantitativa de dados textuais. In A. S. P. Moreira, B. V. Camargo, L. C. Jesuíno, & S. M. Nóbrega (Eds.), Perspectivas teórico-metodológicas em representações sociais (pp. 511-539). João Pessoa: UFPB.) oferece uma visão panorâmica sobre o funcionamento e as aplicações do software ALCESTE(r).

O grupo estudado

O presente estudo foi realizado em uma Instituição Pública Federal de Ensino Superior que oferece o curso de formação para professores do campo, por meio do Programa de Educação do Campo (Procampo), em diversos campi localizados na capital e no interior do Estado do Pará.

As entrevistas semiestruturadas contaram com a participação de 19 sujeitos voluntários, regularmente matriculados nos campi pertencentes aos municípios de Castanhal (região nordeste do Estado), Santarém (região oeste do Estado) e Tomé-Açu (região leste do Estado). Os referidos sujeitos, embora alunos de um curso de Licenciatura em Educação do Campo, tinham experiência como docentes em escolas do campo localizadas em assentamentos da reforma agrária, ou seja, traziam sua experiência prática para a formação e, ao mesmo tempo, avaliavam essa formação em função das necessidades que viam nas escolas onde trabalhavam.

Resultados e discussão

As 19 entrevistas, uma vez transcritas, produziram um corpus composto por aproximadamente 21.200 palavras, que formam o texto original analisado com o auxílio do software ALCESTE(r). O software identificou um conjunto de 509 unidades de contexto elementar (u.c.e) que, após a análise de estabilidade, foi reduzido a um total de 353 u.c.e. Essas unidades foram agrupadas a partir de uma medida de proximidade lexical, gerando quatro classes de discurso. Uma representação visual dessa distribuição consta na Figura 1, um dendograma, na qual se percebe a classificação hierárquica entre as classes.

Os percentuais mostrados na Figura 1 indicam, em porcentagem, a quantidade de u.c.e contida em cada classe. Nota-se, assim, que o software procedeu a uma primeira grande partição entre a classe 4 e o conjunto de classes 1, 2 e 3, e, então, prosseguiu a classificação descendente.

A análise dos conteúdos apresentados em cada uma das classes, a partir de uma retomada de leitura do texto original, permite "nomear" cada classe com base na especificidade do contexto de cada discurso.

Verifica-se, então, que a Classe 1 contém vocábulos relacionados aos diversos ambientes sociais aos quais os sujeitos estão conectados, transitando e participando de maneira ativa. Por meio de uma releitura do texto original, percebe-se que essas palavras estão relacionadas com a história de vida de tais sujeitos, uma história que vem se "desenrolando" ao longo de um tempo histórico, interconectada com os contextos familiares, comunitários e escolares. Ao desvelamento dessa rede intricada de elementos interdependentes, que caracteriza a Classe 1, atribui-se o rótulo "Contextos".

De maneira análoga, na Classe 2 estão agrupados os vocábulos relativos às expectativas dos sujeitos no tocante ao atendimento (ou não) das necessidades educacionais tanto dos professores, como dos alunos do campo. Tendo em vista que essa classe de discurso trata especificamente de um contexto educacional diferenciado, cujos sujeitos atuantes nesse espaço (professores e alunos) possuem necessidades também distintas, atribui-se à Classe 2 o nome de "Educação do Campo".

Na Classe 3 foram agrupados os vocábulos associados com as dificuldades enfrentadas pelos alunos em sala de aula, assim como com as estratégias que devem ser utilizadas pelo professor para que ocorra a aprendizagem. Com base nos significados que permeiam as palavras presentes nos discursos agrupados na Classe 3, optou-se por denominar essa classe como "Aprendizagem".

Finalmente, quando se observa, no texto original, o contexto em que as palavras agrupadas na Classe 4 foram utilizadas, constata-se que elas retratam parte das experiências vividas pelos sujeitos, tanto no ambiente familiar, como no ambiente escolar. Trata-se das lembranças de um período que antecede a opção pela docência, mas que também se estende para suas práticas cotidianas enquanto professores. Por conter os elementos mais fortemente relacionados com as experiências pessoais, acadêmicas e laborais dos sujeitos pesquisados, a Classe 4 foi denominada "Experiências".

Figura 1:
Dendograma das classes de discurso e respectivos conteúdos

Neste artigo, propomos a análise da Classe 2 - "Educação do Campo", que reúne as falas dos sujeitos que revelam suas crenças e opiniões sobre a Educação do Campo. Essa análise, que exibimos a seguir, permitirá apreender a representação social da Educação do Campo para o grupo estudado.

A representação social da educação do campo

Os conteúdos do discurso reunidos na Classe 2 fornecem informações sobre as representações sociais dos sujeitos pesquisados acerca do processo de formação do qual participam no programa Procampo. A análise do conteúdo desses discursos possibilitou verificar quais são as palavras mais recorrentes, bem como aquelas que estão mais fortemente correlacionadas com tal classe.

Assim, as palavras "campo", "formação", "educação", "atende", "realidade", "necessidade" e "recebe", respectivamente, foram as que apresentaram a maior correlação com a classe. Com a reinserção de cada uma dessas palavras no contexto discursivo em que foram inicialmente utilizadas, é possível efetuar um aprofundamento da análise inicial, identificando-se os sentidos que lhes foram atribuídos pelos sujeitos.

Nas análises a seguir, são indicadas as u.c.e's nas quais as falas dos sujeitos aparecem, exemplificando os significados atribuídos por eles e permitindo apreender a organização das representações sociais da Educação do Campo.

A análise permite constatar que os licenciandos pesquisados percebem a existência de descompassos entre as demandas educacionais da população do campo e aquela que lhe é hegemonicamente oferecida pelo poder público. Em um extrato de discurso se evidencia essa divergência entre necessidade e disponibilidade, quando se afirma que "educação no Campo não é aquilo que eles precisam. As necessidades são de baixo para cima e não essas políticas públicas de cima para baixo" (u.c.e 106). As discrepâncias entre os interesses do homem do campo e as políticas propostas pelo governo possuem raízes político-econômicas antigas, que foram se estabelecendo ao longo da formação da sociedade brasileira (Ghedin, 2012Ghedin, E. (Org.). (2012). Educação do Campo: epistemologia e práticas . São Paulo: Cortez .; Molina & Sá, 2011Molina, M. C. & Sá, L. M. (2011). Licenciaturas em Educação do Campo. Belo Horizonte: Autêntica.; Tranzilo, 2008Tranzilo, P. J. R. (2008). Contribuições teóricas para formação de professores do campo. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-graduação em Educação, Universidade Federal da Bahia, Salvador.).

Os movimentos sociais do campo surgem, justamente, com o propósito de romper com essa lógica excludente, formada a partir do estabelecimento de um modelo político e econômico que subjuga os interesses camponeses, deixando-os numa posição socialmente subordinada. Nesse sentido, o caráter reivindicatório desses movimentos abarca também o campo educacional, exigindo a formulação de políticas públicas educacionais conjugadas aos interesses camponeses. Para que sejam relevantes aos moradores do campo, tais políticas devem estar conectadas ao contexto social desses sujeitos, isto é, como afirmam Arroyo et al. (2011Arroyo, M. G., Caldart, R. S., & Molina, M. C. (Orgs.). (2011). Por uma educação do Campo. Petrópolis, RJ: Vozes.), necessita-se de uma educação que seja "do" campo, "no" campo e "para" o campo.

A simples extensão de um modelo educacional, pensado e organizado a partir das demandas da cidade, acaba por desconsiderar as particularidades que permeiam a organização social, econômica, política e cultural da vida no campo. Tais particularidades tornam a realidade no campo distinta daquela vivida pelos habitantes da cidade, pois, como se observa em outro extrato do discurso, "quem vai da cidade para trabalhar no interior não conhece a realidade, é totalmente diferente" (u.c.e 348). É considerando as peculiaridades da vida camponesa que os sujeitos afirmam: "A educação do campo é diferente da urbana" (u.c.e. 446).

Na concepção dos licenciandos pesquisados, diante dos inúmeros óbices que se apresentam como elementos dificultadores para a sua ação educativa, acentua-se a necessidade de o professor do campo desenvolver certas capacidades individuais, que possam ser usadas para facilitar o aprendizado do aluno. Uma das capacidades julgadas essenciais é o domínio dos métodos e das técnicas educativas, a qual, no discurso, é resumida como: "Para ser um professor do campo precisa ter bastante didática" (u.c.e 62).

O domínio didático, associado ao conhecimento a respeito da realidade vivida pelo camponês, auxiliaria o professor a superar as dificuldades encontradas por meio de uma integração entre teoria e prática, numa aula dinâmica e atrativa. É nesse sentido que o discurso se coloca: "Uma aula dinâmica, na prática, eu acredito que melhora muito o desempenho dos alunos" (u.c.e 348). Alinhado com essa mesma perspectiva, Costa (2012Costa, L. G. (2012). Educação do Campo em uma perspectiva da educação popular. In E. Ghedin (Org.), Educação do Campo: epistemologia e práticas (pp. 388-413). São Paulo: Cortez., p. 134) acrescenta que "os conteúdos curriculares trabalhados nos assentamentos devem buscar coerência entre a prática e a teoria, construindo ferramentas necessárias para uma visão de mundo, permitindo aos educandos construírem um ideário que os oriente para a vida".

O programa Procampo busca proporcionar um processo formativo que seja capaz de preparar os licenciandos em Educação do Campo, desenvolvendo uma prática educativa condizente com a realidade de vida no campo, de maneira a auxiliar os professores a enfrentar as dificuldades específicas desse contexto. No que concerne a tal aspecto, os sujeitos pesquisados se posicionam de maneira diversa quanto ao atendimento (ou não) de suas necessidades enquanto professores do campo, a partir da participação no processo de formação no programa Procampo.

A satisfação com os conhecimentos adquiridos, durante a formação no Procampo, evidencia-se no discurso dos sujeitos quando afirmam que "temos que ir buscar mais conhecimentos, nos aprimorarmos mais, e essa formação que recebo atende à necessidade dos meus alunos do campo, porque toda vez que venho do campo para cá, quando volto, tenho mais entusiasmo, mais conhecimento" (u.c.e. 137). Admitem que o atendimento de suas necessidades como professores é garantido por uma ampliação dos conhecimentos sobre a realidade camponesa, o que lhes permite agir com mais segurança durante o desenvolvimento dos conteúdos curriculares em sala de aula.

Acreditam que, ao participarem de um processo formativo que propicia um maior entendimento da realidade na qual intervêm, desenvolvem a aula com mais segurança, tendo um melhor rendimento quanto aos conteúdos ensinados. É o que se pode constatar nos extratos do discurso, nos quais se afirma que o conhecimento adquirido durante a formação em Educação do Campo "faz com que eu passe com mais tranquilidade e eficácia o conteúdo para os meus alunos, ela está surtindo efeito para mim" (u.c.e. 138).

Esses discursos revelam um fator proporcionador de maior segurança à prática educativa aos sujeitos, que não se configura como o simples acréscimo de conhecimentos, mas sim no desenvolvimento de saberes contextualizados na realidade do campo. É o que se depreende do discurso dos sujeitos: "Às vezes o que estudamos aqui é vivenciado lá, abordamos aqui na sala de aula, os conteúdos que os professores passam, é a realidade do morador do campo, dos alunos também" (u.c.e. 387). No intuito de proporcionar essa contextualização dos saberes durante o processo formativo, no Procampo se utiliza da proposta didático-pedagógica conhecida como "pedagogia da alternância".

Trata-se de um modelo pedagógico em que a aprendizagem ocorre através da alternância entre os tempos e os espaços de formação. A etapa destinada à aprendizagem dos saberes, que Tardif (2011Tardif, M. (2011). Saberes docentes e formação profissional. Petrópolis, RJ: Vozes.) denomina como disciplinares e curriculares, ocorre durante o tempo escola. Durante o tempo comunidade, o licenciando tem a oportunidade de colocar em prática tais saberes, no interior de sua própria comunidade e, deste modo, construir saberes experienciais, que, para Tardif (2011, p. 39), são "específicos, baseados em seu trabalho cotidiano e no conhecimento do seu meio". Com a proposta da alternância entre os espaços e tempos de formação, o Procampo busca efetuar uma ruptura da dicotomia formada entre a teoria e a prática, presente nos modelos pedagógicos tradicionais. Por meio da pedagogia da alternância, teoria e prática se intercalam a fim de que os conhecimentos sejam construídos com base em uma prática fundamentada teoricamente, criando condições para o sujeito agir de maneira crítica na sua realidade diária.

Durante o processo formativo, no qual teoria e prática se interconectam, os licenciandos têm a possibilidade de socializar seus conhecimentos e integrar os saberes adquiridos nesses diferentes espaços e tempos. No discurso, vê-se a ocorrência de troca de conhecimentos entre o campo e a academia, a partir do trânsito dos sujeitos por esses dois espaços de formação: "Muitas coisas boas nós estamos trazendo, outras estamos levando" (u.c.e. 348).

Como se pode perceber nesses discursos, a demanda por conhecimento assume um fator preponderante para os sujeitos pesquisados, que avaliam que "tem coisas que deixa a desejar, mas, com certeza, contribui para ampliar o conhecimento" (u.c.e. 291). Não se trata, entretanto, do interesse por um acréscimo de sabedoria generalizada, mas daquela especificamente relacionada ao contexto de vida objetivo dos povos do campo.

Dessa forma, de acordo com os licenciandos que se dizem insatisfeitos com a formação recebida no Procampo, é preciso que os saberes disciplinares e curriculares estejam plenamente contextualizados com a realidade camponesa, para que se atenda integralmente às necessidades dos professores e dos alunos do campo. Assim, em um trecho do discurso, assegura-se que a formação em Educação do Campo "me atende em parte, essa parte do aprendizado, das experiências, do vivido, da vivência que trazemos de lá, abordamos aqui na sala" (u.c.e. 386). Embora o curso proporcione essa integração entre os diferentes saberes, "o conteúdo não é totalmente voltado para o campo" (u.c.e. 62), ou seja, "não é ainda o que esperamos ou almejamos" (u.c.e. 387).

No entendimento desses sujeitos, uma formação descontextualizada seria o resultado de um planejamento realizado por pessoas que desconhecem o cotidiano em que vive o morador do campo e, sendo assim, os seus problemas e necessidades reais são ignorados. Como consequência, o planejamento executado por pessoas que desconhecem a realidade camponesa, a Educação do Campo acaba por se constituir em algo que "no papel é lindo, mas na realidade é bem diferente" (u.c.e. 208).

Para que tal quadro seja invertido e a Educação do Campo se transforme, são necessárias algumas estratégias, sendo que "o primeiro passo seria alguém que está lá no gabinete, olhar a educação no campo" (u.c.e. 203), isto é, "olhar e ver a realidade, sair de dentro do gabinete, ir para prática" (u.c.e. 205), ou ainda, "para fazer projetos em nome da Educação do Campo, eles têm que sair um pouco do gabinete e viver a realidade do campo" (u.c.e. 204).

Sobre a própria organização da licenciatura, os sujeitos acrescentam: "Para esse estudo tomar força, deveria ser feito, pela parte organizadora, um estudo mais aprofundado do que é a realidade lá, de onde o professor ou professora está trabalhando" (u.c.e. 291). Assim, a partir desse estudo, deveriam ser desenvolvidas "ações que poderiam melhorar o desempenho dos alunos, no sentido de criar novas formas de se aplicar um determinado conteúdo ou prática" (u.c.e. 138). Outros trechos do discurso apontam nesta mesma direção, enfatizando que "é preciso explorar mais as práticas, visitas, porque ainda não são 100%, ainda falta explorar mais essa parte do estudo do campo" (u.c.e. 387).

Para que a Educação do Campo ganhe força e atinja os objetivos a que se propõe, é necessário que se leve em consideração as necessidades objetivas dos sujeitos que habitam esse espaço. Que o planejamento didático-pedagógico seja realizado a partir de um olhar de dentro do próprio campo, desenvolvendo conteúdos que tenham uma aplicabilidade prática.

Outra estratégia de mudança está relacionada à solução dos problemas estruturais que afetam as escolas do campo, que dificultam a prática docente e que acabam por comprometer o aprendizado dos alunos. No discurso da Classe 2, pode-se ver que "o desempenho dos alunos poderia melhorar com um ambiente confortável, uma sala digna para uma criança receber uma educação, uma formação realmente qualificada" (u.c.e. 208). Quanto às dificuldades enfrentadas pelos professores, trechos do discurso testemunham que "eles fazem do que têm o possível e o impossível para sanar algumas necessidades" (u.c.e. 388).

A deficiência de uma estrutura física, curricular e de apoio pedagógico, que seja adequada ao desenvolvimento do processo ensino-aprendizagem, caracteriza-se como um fato muito presente na Educação do Campo. De acordo com Tranzilo (2008Tranzilo, P. J. R. (2008). Contribuições teóricas para formação de professores do campo. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-graduação em Educação, Universidade Federal da Bahia, Salvador.), a maioria das escolas rurais localizadas em assentamentos não possui biblioteca e/ou materiais didáticos suficientes, contam com salas de aula multisseriadas, banheiro inadequado (quando existente), merenda industrializada. Condições estruturais semelhantes foram encontradas no estudo de Paniago (2008Paniago, R. N. (2008). Professores do campo e a pesquisa no cotidiano escolar em Mato Grosso. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-graduação em Educação, Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá.), no qual a autora aponta que, na escola em que desenvolveu sua pesquisa, em uma única sala funcionava, concomitantemente, a diretoria, a secretaria, a sala de professores e o laboratório de informática.

Tais discursos apontam para a realidade distinta entre esses dois espaços geográficos, o campo e a cidade, como o elemento que estabelece a diferença entre as duas formas de educação. Para a os sujeitos pesquisados, os conteúdos curriculares da Educação do Campo devem ser diferenciados e estar voltados para essa realidade, atendendo às necessidades dos alunos, dos professores, enfim, da comunidade do campo. Nessa mesma direção devem estar voltadas as política públicas que, na visão dos sujeitos, são formuladas sem o conhecimento das reais necessidades do campo, tomando como base a visão urbanocêntrica de mundo, o que se traduz na imposição de um modelo educacional que, por ser descontextualizado, não cumpre plenamente sua finalidade.

Analisando o processo formativo do qual participam no programa Procampo, os licenciandos acreditam que o mesmo atende, pelo menos em parte, suas necessidades como professores do campo. Verifica-se que as necessidades do professor giram em torno de um conhecimento contextualizado, ligado à vida da comunidade, ou seja, constituído de saberes que tenham uma aplicação prática e que sirvam como ferramenta para a melhoria do cotidiano dessas pessoas.

Nos resultados obtidos para a Classe 2, relativa aos discursos sobre a Educação do Campo, pode-se notar que a representação social da Educação do Campo para esse grupo de licenciandos organiza-se em torno da dicotomia campo-cidade. Essa dicotomia se estende para todos os aspectos da formação, tanto em termos de conteúdo como em termos de didática. O conteúdo deve ser contextualizado para a realidade do campo. A didática deve articular teoria e prática, mas ambas devem estar voltadas para a realidade do campo.

Considerações finais

A Educação do Campo emerge nos discursos dos sujeitos pesquisados como negação do modelo hegemônico e homogeneizante de educação, que não leva em consideração as necessidades específicas do morador do campo. Há uma incorporação dos ideais reivindicatórios dos movimentos sociais do campo aos discursos dos licenciandos, ainda que matizados, mas que são evidenciados nas atitudes favoráveis à mudança. Uma mudança que, dentre outras coisas, exige um modelo pedagógico que se proponha a oferecer uma educação contextualizada à realidade do campo.

Diante dos diferentes registros disponíveis sobre a Educação do Campo, proporcionados pela complexidade de informações originadas em campos diversos - o político, o econômico e o social - e que preenchem funções variadas, instaura-se um estado de polifasia cognitiva nos sujeitos pesquisados. Para que este objeto se integre ao universo consensual dos licenciandos, é necessário que o excesso de informações que o permeiam seja reduzido, com a objetivação do objeto de representação social.

Verifica-se, assim, a ocorrência de supressões de certos registros oriundos do campo político, relacionados à libertação dos sujeitos por meio da educação, os quais oferecem uma sustentação teórica à proposta pedagógica da Educação do Campo.

A dicotomia campo-cidade, que organiza a representação social dos sujeitos sobre a Educação do Campo, tende a ser explicada pelo desconhecimento da realidade do campo pelos responsáveis pelas políticas de educação em geral e pela formação docente, mais especificamente. Não há um discurso explícito que toma a Educação do Campo como parte de um processo político contra-hegemônico. Tal dimensão parece suprimida do discurso e representa uma fonte potencial de estudos futuros.

Tomando essa dicotomia campo-cidade presente nos discursos e considerando a forma como ela aparece nos discursos, pode-se reconstruir os processos de objetivação e ancoragem que estão na gênese dessa representação. A simplificação operada no objeto "Educação do Campo", com a supressão de uma dimensão mais ideológica desse objeto, aponta para o processo de objetivação. Aspectos de conteúdo (conhecimentos) e de forma (didática) foram privilegiados na representação social desse objeto. Além disso, a ancoragem da Educação do Campo, na dicotomia campo-cidade, remete à inscrição dos conteúdos representacionais na maneira como os indivíduos se situam no campo das relações sociais relativas à formação, caracterizando uma ancoragem do tipo psicossociológico (Doise, 1992Doise, W. (1992). L'ancrage dans les études sur les représentations sociales. Bulletin de psychologie, 45(405), 189-195., p. 189).

Agradecimento

Os autores agradecem o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq na forma de auxílio financeiro (projeto Universal 475773/2012-8) e bolsa de pesquisa (projeto 307642/2014-3).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2016

Histórico

  • Recebido
    27 Jan 2015
  • Revisado
    23 Dez 2015
  • Aceito
    30 Jan 2016
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