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VIOLÊNCIA E PREVENÇÃO NA ESCOLA: AS POSSIBILIDADES DA PSICOLOGIA DA LIBERTAÇÃO

VIOLENCIA Y PREVENCIÓN EN LAS ESCUELAS: LAS POSIBILIDADES DE PSICOLOGÍA DE LA LIBERACIÓN

VIOLENCE AND PREVENTION IN SCHOOL: THE POSSIBILITIES OF LIBERATION PSYCHOLOGY

Resumo

O artigo reflete sobre a violência no contexto da escola pública brasileira a partir da concepção construída por Ignacio Martín-Baró. Tomamos o conceito de situação-limite, construído pelo autor com o objetivo de investigar qual a compreensão que professoras da educação básica têm a respeito do que sejam situações-limite para o desenvolvimento de seus alunos. Para tanto, construímos um questionário, composto por perguntas norteadoras que foram respondidas por duas professoras de uma escola pública de ensino fundamental de uma cidade no interior do Estado de São Paulo. O método está fundamentado no Materialismo Histórico Dialético e busca evidenciar, por meio das respostas ao questionário, o confronto entre um conceito teoricamente sistematizado e os sentidos que ele pode assumir na prática. A promoção da consciência sobre esses sentidos, bem como o papel do psicólogo escolar na escola e na comunidade, são necessidades apontadas pelos resultados, cujas implicações devem sustentar pesquisas futuras.

Palavras-chave:
violência; psicologia social da libertação; situação-limite; psicologia escolar

Resumen

El artículo reflexiona sobre la violencia en el contexto de la escuela pública brasileña desde el diseño construido por Ignacio Martín-Baró. Tomamos el concepto de situación extrema, construido por el autor con el fin de investigar el entendimiento de que los maestros de educación básica tienen acerca de cuáles son las situaciones extremas para el desarrollo de sus estudiantes. Por lo tanto, se construyó un cuestionario compuesto de preguntas guía que fueron contestadas por dos profesores de una escuela pública primaria en una ciudad en el estado de Sao Paulo. El método se basa en ló Materialismo Historico Dialectico y pretende mostrar, através de las respuestas al cuestionario, el enfrentamiento entre un concepto teóricamente sistematizado y los sentidos que puede tener en la práctica. Promover el conocimiento de estos sentidos, así como el papel del psicólogo escolar en las necesidades de la escuela y la comunidad están identificados por los resultados, las implicaciones de los que se basará la investigación futura.

Palabras clave:
violencia; psicología social de la liberación; situación extrema; psicología escolar

Abstract

It reflects about the issue of violence in the context of a Brazilian public school. Reviewing the literature on this topic we highlighted the design constructed by Ignacio Martín - Baró. We took the concept of limit-situation constructed by the author with the goal of investigate which are the teacher’s conception about limit-situations. A questionnaire was constructed consisting of guiding questions that were answered by two teachers of a public elementary school in a city in the state of São Paulo. The method is based on Historical Dialectical Materialism and seeks to show, through the responses to the questionnaire, the confrontation between a concept theoretically systematized and senses that it can take in practice. Promoting awareness of these senses and the role of the school psychologist in school and comunity are needs identified by the results whose implications should sustain future research.

Keywords:
violence; liberation social psychology; limit-situation; school psychology

Introdução: discutindo a violência como limite para o desenvolvimento

Há 15 anos o Grupo de Pesquisa Prevenção e Intervenção Psicossocial: Prevenção, Comunidade e Libertação tem dedicado parte de seus esforços ao desenvolvimento do “Voo da Águia” , um programa que prevê a inserção dos psicólogos nas escolas públicas brasileiras e visa à construção de fundamentos que sustentem sua ação como profissional capaz de se dedicar ao estudo e promoção dos processos de desenvolvimento das crianças, a partir do campo da Educação.

As bases para a materialização desse programa tomaram corpo e forma ao longo do processo de consolidação dos fundamentos e propostas expressos no projeto “Construindo as Bases para a Prevenção Primária no Brasil”, que foi criado com o objetivo de refletir sobre o conteúdo da relação entre Psicologia e Prevenção (Guzzo, 2000Guzzo, R. S. L. (2000). Construindo as bases para a prevenção primária no Brasil. Projeto de Pesquisa CNPq, PUC-Campinas, Campinas, SP.). Já no ano de 2004, um outro projeto, denominado “Risco e Proteção: Análise de Indicadores para uma Intervenção Preventiva”, aperfeiçoou essa reflexão e buscou elaborar subsídios que norteassem a intervenção preventiva para o trabalho do psicólogo que trabalha com a escola pública e com a família e a comunidade que a envolvem (Guzzo, 2004Guzzo, R. S. L. (2004). Risco e proteção: busca de indicadores para uma intervenção preventiva. Projeto de pesquisa CNPq, PUC-Campinas, Campinas, SP.). O “Voo da Águia” é, pois, o programa que deriva dessas iniciativas e se constitui como concretização de uma proposta de intervenção preventiva crítica.

Ao longo desse tempo, a questão da violência tem sido uma temática recorrente no cenário escolar e comunitário a partir de uma série de enfoques diferentes, seja ela referida como doméstica ou institucional. No entanto, a despeito da importância que assume para o campo da interface entre a Psicologia e a Educação, essa é ainda uma questão controversa.

Sabemos que abordar a temática da violência não é tarefa fácil, qualquer que seja o espaço em que ela se manifeste. As características que a definem ou explicam não são consensuais, especialmente quando envolvem o desenvolvimento de crianças e adolescentes. Para o campo da Psicologia, que se dedica aos processos de desenvolvimento nos contextos educativos, todavia, essa é uma questão fundamental, que deve ser foco de análise e intervenções adequadas, de modo a garantir a proteção e os direitos de crianças e adolescentes a um desenvolvimento pleno e saudável.

De forma geral, conforme explica Minayo (2005Minayo, M. C. S. (2005). Violência: um velho-novo desafio para a atenção à saúde. Revista Brasileira de Educação Médica, 29(1), 55-63.), as expressões de violência têm sido estudadas segundo suas manifestações domésticas ou institucionais. Assim, considerados segundo sua natureza, os atos violentos correspondem a quatro modalidades possíveis: física, psicológica, sexual e aquela que envolve qualquer tipo de abandono ou negligência. O abuso físico denota o uso da força para produzir danos ou injúrias ao outro, o abuso psicológico envolve agressões verbais ou gestuais, o abuso sexual refere-se à imposição de práticas sexuais por meio de aliciamento ou ameaças e o abandono diz respeito à ausência, recusa ou deserção de cuidados necessários a alguém que precise deles.

Internacionalmente, os modelos construídos especificamente para a compreensão da violência contra crianças e adolescentes revelam uma concepção sistêmica, respaldados, principalmente, nos trabalhos de Bronfenbrenner (1996Bronfenbrenner, U. (1996). A ecologia do desenvolvimento humano: experimentos naturais e planejados. Porto Alegre: Artes Médicas. ) e Bronfenbrenner e Morris (2006). Segundo o modelo ecológico, o ambiente familiar e o ambiente social, econômico e cultural funcionam como um todo organizado no interior do qual os subsistemas se articulam de modo inter-relacionado. Dessa forma, elementos como a dinâmica das relações familiares, as condições de emprego, moradia e acesso aos serviços de saúde e assistência, o uso de drogas lícitas e ilícitas e o envolvimento com o tráfico atuariam na constituição e manifestação de atos de violência.

A visão difundida pelo modelo ecológico, portanto, estabeleceu que o desenvolvimento humano se dava por meio de processos de interação recíproca da pessoa com o outro e com o meio. Segundo essa visão, por meio desses processos, chamados de proximais, é que a criança adquire características fundamentais para um desenvolvimento saudável. Quando, por alguma razão, interna ou externa, esses processos não acontecem, o desenvolvimento saudável fica prejudicado (Bronfenbrenner & Morris, 2006Bronfenbrenner, U. & Morris, P. A. (2006). The bioecological model of human development. In R. M. Lerner (Org.), Handbook of Child Psychology - Theoretical models of human development (pp. 793-828). New Jersey: John Wiley & Sons.).

Esta é, exatamente, a noção de risco na literatura oriunda das apropriações estadunidenses e europeias: a presença de fatores de natureza externa ou interna que, de alguma maneira, impactam o desenvolvimento. O impacto causado pode somar-se a predisposições físicas ou psicológicas do indivíduo ou do grupo e, assim, forjar condições de vulnerabilidade, ou seja, aumentar a probabilidade de ocorrência de resultados negativos na presença de fatores de risco (Garmezy, 2000Garmezy, N. (2000). Reflections and commentary on risk, resilience and development. In R. J. Haggerty, L. R. Sherrod, N. Garmezy, & M. Rutter. Stress, risk and resilience in children and adolescents - Process, mechanisms and interventions (pp. 1-18). New York: Cambridge University Press.; Masten & Powell, 2003Masten, A. S. & Powell, J. L. (2003). A resilience framework for research, policy and practice. In S. S. Luthar (Ed.), Resilience and vulnerability: Adaptations in the context of childhood adversities (pp. 1-10). New York: Cambridge University Press .).

No Brasil, um conjunto sólido de pesquisas também se desenvolveu a partir desse referencial. Esses estudos, originários de uma imersão na realidade brasileira, envolvidos com as suas especificidades econômicas e sociais, ofereceram um panorama notável sobre as circunstâncias de violência em que se desenvolveram a maioria das crianças e adolescentes brasileiros. Eles destacam os indicadores macroestruturais, investigam condições de vulnerabilidade social, discutem a proeminência de fatores de risco e proteção e descrevem os impactos possíveis para o processo de desenvolvimento que assim se desenrola (Guzzo & Machado, 2007Guzzo, R. S. L. & Machado, E. M. (2007). Risco e proteção: busca por uma compreensão não linear desses constructos. In R. S. L. Guzzo (Org.), Desenvolvimento infantil: família, proteção e risco (pp. 99-138). Campinas, SP: Alínea.; Morais, Neiva-Silva, & Koller, 2010Morais, N. A., Neiva-Silva, L., & Koller, S. H. (2010). Endereço desconhecido: crianças e adolescentes em situação de rua. São Paulo: Casa do Psicólogo.; Poletto & Koller, 2008Poletto, M. & Koller, S. H. (2008). Contextos ecológicos: promotores de resiliência, fatores de risco e de proteção. Estudos de Psicologia (Campinas) , 25(3), 405-416.; Trombeta & Guzzo, 2002Trombeta, L. H. A. P. & Guzzo, R. S. L. (2002). Enfrentando o cotidiano adverso: estudo sobre resiliência em adolescentes. Campinas, SP: Alínea.; Yunes & Szymanski, 2001Yunes, M. A. M. & Szymanski, H. (2001). Resiliência: noção, conceitos afins e considerações críticas. In J. Tavares (Org.), Resiliência e Educação (pp. 13-42) São Paulo: Cortez .).

Outros estudos brasileiros dedicam-se à compreensão da violência familiar contra crianças e adolescentes segundo a perspectiva da teoria crítica. Azevedo (2009Azevedo, M. A. (2009). Notas para uma teoria crítica da violência familiar contra crianças e adolescentes. In M. A. Azevedo & V. N. A. Guerra (Orgs.), Infância e violência doméstica: fronteiras do conhecimento (pp. 29-53). São Paulo: Cortez.) explica a construção da violência como um fenômeno histórico e, segundo essa compreensão, os atos violentos estariam intimamente relacionados às características de organização de sociedades específicas. Essa concepção revela elementos dos fundamentos materialistas para o entendimento das expressões de violência e, sobretudo, de suas consequências. Nesse caso, a compreensão decorrente da teoria crítica, cuja base está assentada nos teóricos da Escola de Frankfurt, agrega a conjunção de elementos oriundos da Psicanálise como proposta de considerar os aspectos subjetivos da constituição do sujeito em uma realidade material específica (Crochik, 2009Crochik, J. L. (2009). Teoria crítica e ideologia. In M. A. Azevedo & V. N. A. Guerra (Orgs.), Infância e violência doméstica: fronteiras do conhecimento (pp. 19-28). São Paulo: Cortez .).

Por outro lado, a epistemologia materialista histórica dialética constitui a base da Psicologia Histórico-Cultural. Para essa concepção teórica, reconhecer a materialidade das circunstâncias como parte do processo de desenvolvimento é reconhecer o seu caráter dinâmico e, portanto, subjetivo. Assim, para a Psicologia Histórico-Cultural, ou pelo menos para aquela que permanece como Psicologia Concreta, a dialética é o elemento que assegura a coexistência dos aspectos objetivos e subjetivos na constituição do sujeito. Aqui, todavia, o fundamento acentua os princípios marxistas e, assim, enfatiza a história no interior da luta de classes e a dialética no sentido da superação da desigualdade e da mudança social. Por isso, nesse caso, não existe a interface com fundamentos da Psicanálise. Na sociedade de classes, organizada pela expropriação do trabalho, a violência é fundante das relações humanas, então, exploradas e oprimidas (Souza, 2011Souza, T. M. S. (2011). A Psicologia Histórico-Cultural e a violência: para além do mal estar. In Anais do V Seminário NEPPEM - Psicologia Histórico-Cultural e Marxismo (pp. 39-40). Bauru, SP.).

Desta perspectiva, o materialismo histórico dialético é, pois, constitutivo das concepções teóricas que não rechaçam a história da psicologia como uma ciência burguesa e exigem que a prática determinada por ela seja dedicada à mudança social necessária. Nesse sentido, com este trabalho pretendemos destacar a Psicologia Social da Libertação como uma produção oriunda da América Latina, forjada na prática de Ignácio Martín-Baró no contexto da guerra civil em El Salvador e, portanto, imbricada com a marca da colonização, do avanço imperialista e da violência estrutural nos países latino-americanos (Martín-Baró, 1990aMartín-Baró, I. (1990a). La violencia política y la guerra como causas del trauma psicosocial en El Salvador. In I. Martín-Baró (Org.), Psicología social de la guerra: trauma y terapia (pp. 9-12). San Salvador: UCA Editores., 1990bMartín-Baró, I. (1990b). Guerra y trauma psicosocial del niño salvadoreño. In I. Martín-Baró (Org.), Psicología social de la guerra: trauma y terapia (pp. 35-39). San Salvador: UCA Editores ., 1996Martín-Baró, I. (1996). O papel do psicólogo. Estudos de Psicologia (Natal), 2(1), 7-27.).

A compreensão da violência por Ignácio Martín-Baró

A partir da experiência em El Salvador, Martín-Baró (2000Martín-Baró, I. (2000). Violencia y agresión social. In I. Martín-Baró (Org.), Acción y ideología: psicología social desde centroamérica (pp. 232-241). San Salvador: UCA Editores .) propõe a análise histórica e psicossocial das manifestações de violência. Segundo sua proposta, tais manifestações podem ser divididas em três tipos principais: a violência delinquencial, a violência de repressão política e a violência de guerra. A violência delinquencial diz respeito ao impacto da desigualdade econômica e social sobre o desenvolvimento dos sujeitos humanos, especialmente as crianças. Nesse caso, o sistema que exclui a maioria em detrimento de uma minoria está na raiz do processo de deterioração dos valores essencialmente humanos. Quando o processo de desenvolvimento humano é circunstanciado por elementos de desigualdade e subjugação, a violência se constitui como forma de relação entre os indivíduos, ao passo em que passa a operar nos processos seguintes de socialização. Essa, obviamente, não é uma relação de causa e efeito, mas um processo dinâmico e não linear.

Já as formas de violência de repressão e violência de guerra correspondem, mais intimamente, ao contexto da guerra civil vivenciado por Martín-Baró. Elas envolvem as experiências de tortura, agressão, crimes e vitimização e caracterizam um tipo de violência relacionada à luta pela conquista e/ou manutenção do poder. De todo modo, seja em experiências mais ou menos reconhecidos, nas guerras civis no interior dos países colonizados ou nas grandes guerras mundiais promovidas pelos colonizadores, a luta pelo poder e a violência dela decorrente estão, em muita medida, relacionadas com as expressões mais pontuais da violência do tipo delinquencial (Martín-Baró, 2000Martín-Baró, I. (2000). Violencia y agresión social. In I. Martín-Baró (Org.), Acción y ideología: psicología social desde centroamérica (pp. 232-241). San Salvador: UCA Editores .).

Nesse sentido, o marco da Psicologia Social da Libertação amplia e problematiza a temática da violência ao exigir que a reconheçamos como um fenômeno estrutural, cuja fonte está atrelada à ordem econômica, social e política. Por isso, Martín-Baró (1990aMartín-Baró, I. (1990a). La violencia política y la guerra como causas del trauma psicosocial en El Salvador. In I. Martín-Baró (Org.), Psicología social de la guerra: trauma y terapia (pp. 9-12). San Salvador: UCA Editores., 1990bMartín-Baró, I. (1990b). Guerra y trauma psicosocial del niño salvadoreño. In I. Martín-Baró (Org.), Psicología social de la guerra: trauma y terapia (pp. 35-39). San Salvador: UCA Editores ., 1996Martín-Baró, I. (1996). O papel do psicólogo. Estudos de Psicologia (Natal), 2(1), 7-27.) nos ensina a pensar sobre o quanto as relações instituídas por uma sociedade podem ser violentas ao se basearem em vínculos de opressão, submissão e exploração. A partir do seu ponto de vista, qualquer tipo de expressão de violência entre os sujeitos não pode ser concebida como questão individual, nem com vistas à sua explicação e nem com vistas à sua solução.

Assim, quando consideramos e lidamos com a violência dentro das escolas, partimos do materialismo histórico dialético, especialmente da práxis anunciada pela obra de Martín-Baró (1990aMartín-Baró, I. (1990a). La violencia política y la guerra como causas del trauma psicosocial en El Salvador. In I. Martín-Baró (Org.), Psicología social de la guerra: trauma y terapia (pp. 9-12). San Salvador: UCA Editores., 1990bMartín-Baró, I. (1990b). Guerra y trauma psicosocial del niño salvadoreño. In I. Martín-Baró (Org.), Psicología social de la guerra: trauma y terapia (pp. 35-39). San Salvador: UCA Editores ., 1996Martín-Baró, I. (1996). O papel do psicólogo. Estudos de Psicologia (Natal), 2(1), 7-27.). A partir das suas elaborações sobre a temática da violência, Martín-Baró constrói o conceito de situação-limite com o objetivo de investigar os eventos ou situações que significam a vivência singular de fenômenos violentos mediados pela estrutura social violenta. Essas situações circunstanciam o desenvolvimento infantil como um sistema integrado e dinâmico. O processo de síntese empreendido por pesquisas subsequentes às elaborações de Martím-Baró tem definido situações-limite como ações, eventos ou práticas que prejudicam, impedem ou dificultam o desenvolvimento da criança no cenário da escola (Moreira, 2015Moreira, A. P. G. (2015). Situação-limite e potência de ação: atuação preventiva crítica em psicologia escolar. Tese de Doutorado, Instituto de Psicologia, PUC Campinas, Campinas, SP.).

Com a elaboração deste estudo, anunciamos nosso objetivo de investigar qual a compreensão que professoras da educação básica têm a respeito do que sejam situações-limite para o desenvolvimento de seus alunos. Evidenciando essa compreensão, saberemos também como elas compreendem o processo de desenvolvimento, ou seja, quais são suas matrizes epistemológicas e metodológicas. Essas informações são essenciais para a discussão a respeito do papel da Psicologia Escolar na escola e para a promoção de intervenções que explicitem o processo de desenvolvimento nas suas relações com a escola e a comunidade.

Método

Para alcançar este objetivo, nosso estudo assume a forma de uma experiência piloto na medida em que se constitui a partir de um questionário respondido por duas professoras do terceiro ano do primeiro ciclo de uma escola municipal de educação fundamental, cenário do desenvolvimento do “Voo da Águia”. A escolha por esses sujeitos e esse desenho deve-se a duas razões específicas: a primeira diz respeito ao fundamento da literatura sobre prevenção e a sua indicação de que programas de prevenção devem desenvolver-se preferencialmente nos primeiros anos da educação básica; a segunda refere-se à estrutura de trabalho dessas professoras (uma da sala regular e outra de educação especial) que buscavam atuar juntas na organização de estratégias pedagógicas destinadas ao enfrentamento dos fenômenos de violência vividos por seus alunos.

Para tanto, nosso Grupo de Pesquisa construiu um questionário composto por perguntas norteadoras que visavam a investigar quais situações do cotidiano eram identificadas por essas professoras como limites para o desenvolvimento das crianças e como elas balizavam suas ações e encaminhamentos consequentes. O questionário foi respondido pelas professoras na companhia de uma psicóloga do “Voo da Águia”, em uma sala reservada na escola em dia e horário previamente combinados.

As perguntas contidas no questionário abordavam quatro itens: o primeiro referia-se à identificação pessoal e os outros três versavam sobre os seguintes aspectos: formação profissional, concepção de desenvolvimento que orienta sua prática cotidiana e reflexão sobre se existem e quais são os limites que poderiam ser apontados para o desenvolvimento das crianças. A opção por esse formato de investigação deve-se à intenção de permitir a livre expressão das professoras por meio da escrita. Assim, as respostas foram recolhidas e transcritas para um formulário criado para essa finalidade, conforme demonstra a tabela 1.

Esclarecida a estrutura que propomos para a consecução deste trabalho, anunciamos nossa vinculação à matriz teórico-metodológica do materialismo histórico dialético. Dessa forma, aproveitamos para esclarecer que, para além das controvérsias oriundas das epistemologias qualitativas que propõem a análise de documentos escritos, questionários ou entrevistas por meio das metodologias de “relações de significação” (González-Rey, 2002González-Rey, F. (2002). Pesquisa qualitativa em psicologia: caminhos e desafios. São Paulo: Pioneira Thompson.) ou “núcleos de significação” (Aguiar & Ozella, 2006Aguiar, W. M. J. & Ozella, S. (2006). Núcleos de significação como instrumento para apreensão da constituição dos sentidos. Psicologia Ciência e Profissão, 26(2), 222-245.), defendemos a importância do uso de documentos escritos no interior do materialismo histórico dialético como primeira aproximação da realidade caótica tomada como objeto de pesquisa.

Desta compreensão, acentuamos que podemos encontrar, em conteúdos escritos, a descrição de uma prática relacionada a conceitos teóricos sistematizados. Nesse caso, utilizamos o questionário para conhecer o que as professoras identificam como situações-limite e suas concepções sobre desenvolvimento humano. Essa compreensão está sustentada pela afirmação de Davydov (1982Davydov, V. (1982). Tipos de generalización en la enseñanza. Havana: Pueblo Y Educación.) de que a essência de uma situação diz respeito ao conjunto de relações sociais e históricas que determinam e estruturam o seu processo de surgimento e desenvolvimento. Logo, ao considerarmos, logicamente, uma situação, a sua essência pode ser captada sob a forma de um conceito. Um conceito é, pois, um meio de reconstruir mentalmente a essência de um objeto, e construir um conceito significa dominar o método geral para reconstruí-lo.

Assim, se as situações-limite são conceituadas como ações, eventos ou práticas que prejudicam, impedem ou dificultam o desenvolvimento da criança no cenário da escola, no interior de uma matriz teórica que defende a incorporação e superação desses limites no sentido das máximas possibilidades do desenvolvimento (Moreira, 2015Moreira, A. P. G. (2015). Situação-limite e potência de ação: atuação preventiva crítica em psicologia escolar. Tese de Doutorado, Instituto de Psicologia, PUC Campinas, Campinas, SP.), utilizamos o questionário para identificar o que as professoras compreendem como situações-limite para o desenvolvimento das crianças e pudemos começar a delinear as fontes e consequências dessas compreensões para a organização de suas práticas pedagógicas. Dessa forma, do conceito chegamos à prática que deve, por sua vez, retornar ao conceito para efetivar as mudanças e ajustes necessários esperados da relação teoria-prática.

Resultados e conclusões

As respostas das professoras ao questionário (ver quadro 1) revelam duas questões importantes e intimamente relacionadas: em primeiro lugar, acentuamos que elas identificam e reconhecem a presença dos fenômenos de violência na vida das crianças dentro e fora do cenário escolar e, em segundo lugar, elas anseiam por propostas que as ajudem a sistematizar e conduzir ações eficazes na superação do que identificam como limites para o desenvolvimento das crianças.

No entanto, as respostas indicam também que essa falta de subsídio para a organização das suas ações confundem os papéis da escola, da família, dos serviços de saúde e assistência e da comunidade. Assim, também são confundidos os sentidos de educação e cuidado e, consequentemente, as responsabilizações das diferentes instituições parecem esvaziar-se completamente.

Daí, a rotina do encaminhamento figura como a solução dos problemas aparentes, de modo que quase nenhuma ação referente aos limites identificados seja vista como centralidade da escola, ou seja, como parte integrante do processo de escolarização já amplamente defendido pelo movimento de crítica conduzido pela psicologia escolar (Patto, 1993Patto, M. H. S. (1993). Introdução à Psicologia Escolar. São Paulo: Queiroz.).

Essa configuração nos revela que a crítica à chamada remediação das questões da educação ainda não está acompanhada da efetividade de práticas que materializem a ação crítica ou, paradoxalmente, preventiva. Por isso, os resultados aqui expressos como as respostas das professoras imiscuídas da realidade escolar devem ser acompanhados das reflexões e conclusões que fazemos a respeito da prevenção e, mais, da delimitação das situações-limite como situações objetivas e orientadoras de ações pedagógicas e psicológicas na escola e na comunidade.

Podemos dizer que delimitar as possibilidades da prevenção para o campo da Psicologia Escolar é anunciar, já, uma modalidade de intervenção. Isso significa afirmar a possibilidade de partir da prevenção como paradigma da intervenção, segundo uma perspectiva crítica. Essa característica delimita os esforços que temos desenvolvido no interior do nosso Grupo de Pesquisa. E, certamente, a partir desse enfoque, a compreensão da violência ganha outros sentidos. No entanto, antes de buscar esses sentidos e explicitar o que é a prevenção crítica, é preciso conduzir uma breve retrospectiva histórica sobre o conceito de prevenção, confrontando-a com os resultados expressos nas respostas das professoras.

Especificamente, a ideia de prevenção surge do campo da saúde pública e assume relevância para a área da Psicologia, especialmente a partir dos trabalhos de Albee (1986Albee, G. W. (1986). Toward a just society. American Psychologist, 41(8), 891-898., 1996) e Cowen (1991Cowen, E. L. (1991). Prevention, young children and the schools. Estudos de Psicologia (Campinas), 8(2), 7-64.), desenvolvidos no bojo da Psicologia norte-americana. A despeito das divergências conceituais, os trabalhos desenvolvidos nesse sentido se dedicavam à diferenciação entre prevenção e tratamento e, por isso, debatiam as concepções de saúde e doença vigentes na área das ciências médicas.

Assim, se o tratamento deveria se dedicar ao manejo do problema (ou da doença) já instalado, a prevenção deveria se preocupar com a redução dos riscos para o seu desenvolvimento. Para o campo da epidemiologia esse era um raciocínio facilitado, mas, certamente, não o era para o campo da saúde mental. A Psicologia, por sua vez, não estava alheia a essa discussão e lançava questões sobre os aspectos sociais que circunstanciavam o desenvolvimento das doenças, e, consequentemente, a possibilidade da sua prevenção (Albee, 1996Albee, G. W. (1996). Revolutions and counterrevolutions in prevention. American Psychologist, 41(8), 891-898.).

A proeminência da questão social desvelava também as questões econômicas e trazia à baila a discussão sobre pobreza, condições de moradia, alimentação e violência. Essa nova configuração, obviamente, balançava o argumento prevalente até então de que a doença mental não era passível de prevenção a menos que a causa orgânica da doença fosse descoberta e entendida. Aqui, conforme sugeriu Albee (1986Albee, G. W. (1986). Toward a just society. American Psychologist, 41(8), 891-898.), estava o germe da oposição entre prevenção (tal como ela era concebida na aérea da saúde pública) e a mudança social. No entanto, não se pode negar que a emergência dessa oposição só se fundamenta na medida em que havia a tentativa de sobrepor, pura e simplesmente, a metodologia utilizada na epidemiologia para aquela que deveria ser utilizada na psicopatologia.

Mas, como ainda pontua Albee (1986Albee, G. W. (1986). Toward a just society. American Psychologist, 41(8), 891-898.), se algum indício de avanço se revelava a partir dessa discussão, outro perigo (menos evidente e tão relativista quanto) começava a surgir: a referida questão social seria então a causa das supostas doenças mentais? Assim, a pobreza ou a instabilidade econômica seriam, ao seu turno, fatores de risco para o desenvolvimento de doenças? O fator orgânico seria substituído pelo fator social?

Quando comparada aos resultados expressos no quadro 1, essa reflexão amplia os contornos da compreensão sobre o que sejam os limites exógenos e endógenos mencionados pela professora 1. Os limites exógenos seriam um atributo individual de doença orgânica ou seriam constituídos a partir de alguma espécie de carência social? E se ambos parecem compor um binômio estanque, qual seria a alternativa?

A presença dessa discussão já demonstrava sua intensidade nos anos de 1960, quando tomou forma o movimento da Antipsiquiatria, iniciado, principalmente, nos Estados Unidos e na Europa, para conduzir movimentos de denúncia, por meio da opinião pública, da situação da maioria das instituições psiquiátricas, das condições de vida e possibilidades de recuperação dos pacientes internados, das reivindicações dos trabalhadores da saúde mental e das consequentes atitudes repressivas oferecidas como resposta. Por isso, apesar de muitas vezes ter sido reduzido a um simples devaneio intelectual ou a uma proposta anarquista e doutrinária, ele encerra um conjunto de posicionamentos críticos, especialmente condizentes com o contexto em que surgiram (García, 2009García, V. G. (2009). Los acontecimientos de mayo del 68 y la lucha antipisiquiatríca. Historia Actual Online, 19, 177-179.).

Segundo o posicionamento revolucionário de Szasz (1979Szasz, T. S. (1979). O mito da doença mental. Rio de Janeiro: Zahar Editores.), a expressão doença mental denotaria uma teoria e não um fato e, por isso, ele acentuou que, ao encarcerar pessoas definidas como doentes mentais, os hospitais psiquiátricos violavam as premissas do relacionamento entre médico e paciente, elevando o médico a uma condição de poder capaz de oprimir e subjugar seu paciente.

Assim, Frayze-Pereira (1984Frayze-Pereira, J. A. (1984). O que é loucura? São Paulo: Brasiliense.), ao questionar o vínculo necessariamente estabelecido entre doença mental e patologia, anuncia a utilização de um enfoque psicossocial para a análise de fenômenos psíquicos no interior da Psicologia. Ele enfatiza que tanto as concepções organicistas (originárias da Psiquiatria) como as psicofuncionais (embasadas na Psicanálise) cometem o erro de “tratar como um fato em si aquilo que é essencialmente relacional” (p. 19), ainda que o sentido de doença mental seja distinto para cada uma das duas concepções.

De uma forma ou de outra, é possível perceber que o modo como se lidava com a crise, a doença ou o desvio, isto é, a prática, sempre alijava as explicações teóricas que, supostamente, a orientavam. O foco era, invariavelmente, a patologia e a sua remediação. Jacoby (1977Jacoby, R. (1977). Amnésia social. Rio de Janeiro: Zahar.), em um de seus trabalhos, chama a atenção para essa questão e afirma que “o abandono da teoria vinga-se estabelecendo a confusão entre a prática que fortalece esta sociedade com a prática que a rejeita” (p. 29).

Jacoby (1977Jacoby, R. (1977). Amnésia social. Rio de Janeiro: Zahar.) acentua ainda que a relação entre a teoria e a prática não pode ser negligenciada qualquer que seja a disciplina em questão. Desconsiderar esse ponto resulta em um revisionismo frouxo que destitui a crítica de qualquer disciplina. A saída apontada pelo autor estaria na incorporação dos princípios materialistas que assegurariam a relação entre teoria e prática e que Prilleltensky (1994Prilleltensky, I. (1994). The moral and politics of psychological discourse. Psychology and the status quo. New York: State University of NY Press.), por outro lado, chama de validade psicopolítica.

Nesse sentido, parece-nos legítima a preocupação anunciada pelas professoras com relação à necessidade de que escola, família e comunidade tenham papéis claros e bem definidos. É fundamental, como nos esclarece Duarte (2013Duarte, N. (2013). Vigotski e a pedagogia histórico-crítica: a questão do desenvolvimento psíquico. Nuances: estudos sobre educação, 24(1), 19-29.), que haja um critério a balizar a direção que o desenvolvimento humano deve seguir. Da mesma forma, é importante e significativamente elucidado pelas epistemologias histórico-culturais que o estabelecimento da unidade entre dimensões específicas requer a diferenciação dos seus limites. Assim, postulamos que o conteúdo da ação psicológica é condição para a execução da ação pedagógica e vice-versa. Ambas não se confundem, mas podem e devem complementar-se na organização da prática educativa.

Logo, anunciamos a Psicologia Social da Libertação como possibilidade balizadora dessa organização, especialmente relacionada aos fenômenos de violência na escola. Ela prioriza, antes de qualquer coisa, a libertação da própria psicologia, ou seja, o rechaço da falsa assepsia e da suposta neutralidade que deveriam defini-la como ciência imparcial e a construção de um corpo teórico que, vinculado à prática, contribua de forma significativa para o entendimento das demandas da realidade. A vida e a obra de Martín-Baró nos oferecem uma forma diferente de pensar a psicologia e suas práticas. E o fazem por meio de uma prática real, originalmente inscrita em um cotidiano de guerra, cujas consequências, por vezes, se assemelham às que observamos como decorrência da sociabilidade capitalista (Martín-Baró, 1990aMartín-Baró, I. (1990a). La violencia política y la guerra como causas del trauma psicosocial en El Salvador. In I. Martín-Baró (Org.), Psicología social de la guerra: trauma y terapia (pp. 9-12). San Salvador: UCA Editores., 1990bMartín-Baró, I. (1990b). Guerra y trauma psicosocial del niño salvadoreño. In I. Martín-Baró (Org.), Psicología social de la guerra: trauma y terapia (pp. 35-39). San Salvador: UCA Editores ., 1996Martín-Baró, I. (1996). O papel do psicólogo. Estudos de Psicologia (Natal), 2(1), 7-27., 2006Martín-Baró, I. (2006). Hacia uma psicologia de la liberación. Revista Electrónica de Intervención Psicosocial y Psicologia Comunitária, 1(2), 7-14.).

O conceito de situação-limite é construído por Martín-Baró (1990aMartín-Baró, I. (1990a). La violencia política y la guerra como causas del trauma psicosocial en El Salvador. In I. Martín-Baró (Org.), Psicología social de la guerra: trauma y terapia (pp. 9-12). San Salvador: UCA Editores., 1990bMartín-Baró, I. (1990b). Guerra y trauma psicosocial del niño salvadoreño. In I. Martín-Baró (Org.), Psicología social de la guerra: trauma y terapia (pp. 35-39). San Salvador: UCA Editores .) a partir das ideias de Freire (2005Freire, P. (2005). Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra.) para destacar que o desenvolvimento das crianças está circunscrito por limites concretos oriundos da clara e indiscutível distinção de classes no interior da sociedade que se funda sob a égide da exploração de serviços e recursos para sustentar a acumulação de capital. Coerente com sua opção de vida e com a força de quem não dissocia as propostas de atuação profissional da realidade em que ela toma forma, Martín-Baró bebeu na fonte da metodologia marxista que já iluminava o crescimento de uma outra proposta para a Psicologia e enfatizou que esses limites devem ser reconhecidos e considerados. Todavia, ele os concebeu como processos vivos e imersos nas relações que as crianças constroem com o mundo ou que o mundo constrói com as crianças, e não como fatores externos determinantes de um desenvolvimento adoecido e fadado ao insucesso. Assim, o conceito de situação-limite se configura como uma aposta de Martín-Baró (1990aMartín-Baró, I. (1990a). La violencia política y la guerra como causas del trauma psicosocial en El Salvador. In I. Martín-Baró (Org.), Psicología social de la guerra: trauma y terapia (pp. 9-12). San Salvador: UCA Editores., 1990bMartín-Baró, I. (1990b). Guerra y trauma psicosocial del niño salvadoreño. In I. Martín-Baró (Org.), Psicología social de la guerra: trauma y terapia (pp. 35-39). San Salvador: UCA Editores .) nos sujeitos e nos coletivos que os constituem.

A noção de situação-limite, tal como é apresentada por Martín-Baró (1990aMartín-Baró, I. (1990a). La violencia política y la guerra como causas del trauma psicosocial en El Salvador. In I. Martín-Baró (Org.), Psicología social de la guerra: trauma y terapia (pp. 9-12). San Salvador: UCA Editores., 1990bMartín-Baró, I. (1990b). Guerra y trauma psicosocial del niño salvadoreño. In I. Martín-Baró (Org.), Psicología social de la guerra: trauma y terapia (pp. 35-39). San Salvador: UCA Editores .), já anunciava a possibilidade de iluminar a compreensão dos processos de desenvolvimento a partir das condições objetivas que o envolvem e das potencialidades subjetivas que eles constituem. É uma tentativa de compreender importantes circunstâncias objetivas presentes nas situações de desenvolvimento do sujeito para além da ideia que as concebe como fatores.

Os resultados revelados a partir das respostas das professoras, somados a outros trabalhos já desenvolvidos, sugerem que a identificação das situações-limite estruturadas a partir de fenômenos de violência e, portanto, objetivadas como situações concretas, podem orientar o planejamento de ações que tomem a escola como centralidade da promoção do desenvolvimento (Moreira, 2015Moreira, A. P. G. (2015). Situação-limite e potência de ação: atuação preventiva crítica em psicologia escolar. Tese de Doutorado, Instituto de Psicologia, PUC Campinas, Campinas, SP.). Assim, aliadas aos espaços comunitários, as dimensões de violência vivenciadas pelos alunos deixam de ser concebidas como fatores orgânicos ou sociais e passam a ser concebidas como fonte de múltiplas determinações e, portanto, capazes de múltiplas possibilidades de resolução, emancipação, desenvolvimento.

O conceito de situação-limite, portanto, tem sido tomado como a unidade que permite a viabilização da prevenção como intervenção crítica no campo da Psicologia Escolar. Do ponto de vista teórico, o conceito de situação-limite anuncia os limites dos processos de desenvolvimento como dinâmicas relacionais, como situações objetivas que, por meio da ação dos profissionais da educação, devem ser incorporadas às situações cotidianas de desenvolvimento na escola e, assim, contribuir para o alcance de suas máximas possibilidades.

Por isso, é imprescindível saber se as professoras concebem as situações-limite como eventos estanques, individuais, ou se, ao contrário, conseguem enxergá-las no interior da dinâmica de desenvolvimento e, portanto, como imbricadas na sua responsabilização e na responsabilização da escola. Dessa forma, o presente estudo piloto cumpriu a função de confrontar um conceito científico com a práxis cotidiana e, assim, descortinou as possibilidades de que pesquisas futuras abordem a necessidade de que a Psicologia Escolar seja, efetivamente, incluída no cotidiano das escolas públicas e debata conceitos teóricos nesse contexto.

Historicamente, a Psicologia está afastada dessa vivência diária. Ao constituir-se, pretensamente, como fundamento para a Educação e a partir do fundamento da Medicina, coloca-se no lugar de quem oferece soluções mágicas do lado de fora. Assim, faz coro com a suposta compreensão de famílias ausentes e professores resistentes. Essa psicologia asséptica não consegue estabelecer o motivo e a característica da sua atuação na escola e na comunidade.

Para o combate efetivo dessa falácia, defendemos que o psicólogo deve estar dentro da escola, vivenciando sua dinâmica cotidianamente. Sabemos que essa posição está atrelada a um horizonte político e legal que o reconheça como profissional nesses espaços. Mas, por outro lado, ela exige que estabeleçamos a materialidade da ação psicológica por meio da condução de pesquisas e projetos de extensão que viabilizam nossa inserção nesse cenário.

A atividade pedagógica, como cerne da função da escola, requer condições cujo conteúdo pertence à Psicologia: as causas e efeitos subjetivos das práticas pedagógicas. A violência e a sua materialização nas situações-limite no cenário escolar constituem expressão fulcral da unidade que propomos entre Educação e Psicologia. As ações que envolvem as famílias e as entidades dos serviços de saúde e assistência requerem a participação de educadores e psicólogos. O conteúdo e as características dessas ações anunciam uma organização técnica variada e variável desde que a direção e compreensão teórica estejam alinhadas ontológica e epistemologicamente.

Essas questões têm-se constituído como o cerne das reflexões de nossos estudos e pesquisas e, certamente, não foram esgotadas neste artigo. Ele representa, sim, nosso compartilhar cotidiano e almeja somar reflexões futuras para confronto, incorporações e sínteses necessárias.

Quadro 1:
Transcrição das perguntas orientadoras respondidas pelas professoras

Agradecimento

Ao CNPq, pelo apoio (Processo número 141572/2011-6).

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    Para mais detalhes, ver Costa (2010)Costa, A. S. (2010). Desenvolvimento da criança na educação infantil: uma proposta de acompanhamento. Tese de Doutorado, Instituto de Psicologia, PUC-Campinas, Campinas, SP..

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2017

Histórico

  • Recebido
    14 Out 2014
  • Revisado
    25 Mar 2015
  • Aceito
    17 Abr 2015
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