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A RUA COMO PALCO: ARTE E (IN)VISIBILIDADE SOCIAL

LA CALLE COMO ESCENARIO: ARTE E (IN)VISIBILIDAD SOCIAL

THE STREET AS A STAGE: ART AND SOCIAL (IN)VISIBILITY

Resumo

O fenômeno da população em situação de rua e sua (in)visibilidade é uma construção social composta por processos que se cruzam e se intensificam mais ou menos em determinados momentos históricos. Este artigo objetiva apresentar a pesquisa de iniciação científica, fomentada pela FAPESP, que investigou os entrecruzamentos entre as artes e os regimes de visibilidade entre 2014 e 2015 na cidade de Santos (SP). Seguimos algumas pistas do método da cartografia em diversas frentes investigativas, sendo as principais a análise de experiências, a revisão bibliográfica, entrevistas com moradores de rua que participaram de oficinas teatrais e com atores de rua. Entendemos arte não somente como objeto de estudo, mas como instrumento de pesquisa e de aproximação entre pessoas, posto que ela pode auxiliar na apreensão e na produção de outras convivências na cidade, garantindo uma ressonância das vozes da rua para espaços pouco sensíveis a elas.

Palavras-chave:
sem-teto; artes; teatro; processos sociais

Resumen

El fenómeno de la población en situación de calle y su (in)visibilidad es una construcción social hecha de procesos que se entrecruzan y se intensifican más o menos en determinados momentos históricos. Este artículo pretende presentar la investigación de iniciación científica, impulsado por la FAPESP, que investigó los entrecruzamientos entre los artes y los regímenes de visibilidad entre 2014 y 2015 en Santos (SP). Seguimos algunas pistas del método de la cartografía en diversos frentes investigativos. Las principales son el análisis de experiencias, revisión bibliográfica, entrevistas con personas en situación de calle que participaron de talleres teatrales y con actores callejeros. Entendemos el arte no sólo como un objeto de estudio, sino como un instrumento de investigación y de aproximación entre las personas, ya que puede auxiliar en la aprehensión y en la producción de otras convivencias en la ciudad, garantizando también la resonancia de las voces de la calle.

Palabras clave:
sin techo; artes; teatro; procesos sociales

Abstract

The phenomenon of people living on the streets and their (in)visibility is a social construct composed of processes that cross and intensify more or less in certain historical moments. This article presents the scientific initiation research, promoted by FAPESP, which investigated the intersections between arts and the regimes of visibility between 2014 and 2015 in the city of Santos (SP). Some clues of the cartographic method were followed on some investigative fronts being the main ones: the analysis of field experiences, the bibliographical review, interviews with homeless people who participated in theater workshops, and with street actors. We understand art not only as an object of study, but as a tool of research and approach among people, since it can assist in the apprehension and production of other forms of cohabitation in the city, ensuring a resonance of the voices of the street for spaces little sensitive to them.

Keywords:
homeless; arts; theatre; social processes

Prelúdio

Este artigo é resultado de nossa pesquisa acerca dos processos de (in)visibilização social da população em situação de rua. Falamos de processos, pois entendemos que o fenômeno não se dá por si mesmo, mas é composto a partir de outros embates de forças. Nesse complexo novelo de produções sociais, é possível identificar e puxar algumas linhas, que podem nos conduzir a outras, tais quais: a humilhação social, a reificação, o silenciamento do sofrimento social, a produção midiática do discurso, a privatização dos espaços nas cidades e a repulsa ao diferente e à diferença. É principalmente com essas linhas que iremos buscar compor algumas compreensões sobre o tema. Adotamos o uso dos parênteses em “(in)visibilidade” por entendermos que na construção do fenômeno há um jogo de sombra e luz: um sujeito, um grupo, seu sofrimento, a violência contra ele e possíveis modos de resistência que só se tornam invisíveis à medida que outros elementos são visibilizados.

Ao tentarmos definir essa (in)visibilidade, observamos que ela não se manifesta somente no plano concreto, conforme descrito por Costa (2004Costa, F. B. (2004). Homens invisíveis: relatos de uma humilhação social. São Paulo: Globo.) quando esse realiza suas pesquisas junto aos garis da USP. Há outras invisibilidades mais sutis em curso, pelo menos no que concerne à população em situação de rua: a invisibilidade de suas singularidades, de suas vidas e de suas mortes. Entendendo que a invisibilização dessa população passa pelo campo do sensível, propomo-nos a investigar se e como as artes poderiam produzir outras sensibilidades para além das que estão postas atualmente, trabalhando aqui especialmente com o teatro.

É a partir de duas experiências paralelas que nos voltamos para o teatro. A primeira delas é o espetáculo Projeto Bispo, uma peça inspirada na história de Arthur Bispo do Rosário e em pesquisas sobre saúde mental, desenvolvida e apresentada pelo grupo teatral O Coletivo, estabelecido na cidade de Santos. O Bispo é uma produção sobre loucura, miséria e exclusão, que traz personagens característicos das áreas degradadas das grandes cidades: o mendigo, o louco de rua, a travesti prostituída, o jovem negro e outras figuras marginalizadas. Esta história sobre animalização e institucionalização do desprezível, pela qualidade da produção e das atuações, bastaria para suscitar intensa provocação entre seu público. No entanto, o destaque do espetáculo é que ele acontece nas ruas do Centro Histórico de Santos, uma área consideravelmente degradada. Há, portanto, harmonia entre conteúdo e forma, de modo que ficção se confunde com realidade e em determinado ponto não se sabe mais quais figuras fazem parte do elenco e quais estão apenas de passagem pelas ruas e praças do trajeto percorrido.

A segunda experiência são as oficinas de teatro para a população em situação de rua, que foram oferecidas ao longo do ano de 2014 pela Secretaria de Cultura de Santos. Sua proposta era trabalhar cenas de peças de Plínio Marcos, dramaturgo santista que viveu entre 1935 e 1999 e que dedicou parte considerável de sua obra a questões como a violência e marginalidade. Naquele ano, as atividades realizadas pela diretora teatral responsável, por sua equipe e pelos participantes das oficinas culminaram em três apresentações, sendo uma no saguão do Teatro Coliseu, uma no SESC Santos e a última em uma escola de teatro da cidade. As atividades e ensaios do grupo aconteceram em diversos locais, variando de acordo com suas disponibilidades: um abrigo municipal, o Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro POP) e em dois centros culturais da Prefeitura de Santos. Por questões político-orçamentárias, o projeto foi descontinuado em 2015.

É destas duas nascentes - o espetáculo no espaço público e as oficinas para a população em situação de rua - que deriva a pergunta que nos move: a arte poderia produzir outros regimes de visibilidade nas cidades?

No que se refere à relação entre arte e visibilidade social, é possível dialogar com experiências práticas que têm acontecido no Brasil. Há o caso de uma mulher acolhida na Seção de Acolhimento e Abrigo Provisório de Adultos, Idosos e Famílias em Situação de Rua (SeAcolhe-Aif) de Santos que ganhou o 2º lugar no Concurso Nacional de Haikai Masuda Goga (“Longe das ruas”, 2013). Em São Paulo, o homem que se apresenta como “O Condicionado” foi encontrado por sua família e saiu das ruas após ter seus poemas publicados em uma página de uma rede social (Carvalho, 2012Carvalho, H. (2012, 07 de agosto). Com novo visual, ex-morador de rua diz que não se adaptou à vida em GO. Acesso em 20 de novembro, 2015, em Acesso em 20 de novembro, 2015, em http://g1.globo.com/goias/noticia/2012/08/com-novo-visual-ex-morador-de-rua-diz-que-nao-se-adaptou-vida-em-go.html
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). Essas são duas ilustrações de como a arte abriu novas possibilidades para essas pessoas quando suas produções conquistaram espaços - culturais e virtuais - que vão além das ruas. Propomo-nos, neste artigo, a discutir a possibilidade de outros regimes de visibilidade que permitam a expressão não só dos talentos, mas também das singularidades das pessoas em situação de rua, ao mesmo tempo em que criem porosidades na sensibilidade social para a constituição de outras convivências nas cidades (Rancière, 2010Rancière, J. (2010). Política da arte (M. S. Costa Netto, Trad.). Urdimento - Revista de Estudos em Artes Cênicas, 1(15), 45-59.).

A literatura acerca da temática da (in)visibilidade social não tem se mostrado tão vasta quando se trata da população em situação de rua e de experiências dessa com a arte. Assim, fomos convidados a compor com perspectivas teóricas diversas, a fim de realizar aproximações ao tema de nossa pesquisa. Encontramos nesse percurso autores-aliados importantes à discussão da questão, como Gonçalves (1998Gonçalves, J. M. (1998). Humilhação social: um problema político em psicologia. Psicologia USP , 9(2), 11-67., 2004), Carreteiro (2003Carreteiro, T. C. (2003). Sofrimentos sociais em debate. Psicologia USP, 14(3), 57-72.) e Costa (2004Costa, F. B. (2004). Homens invisíveis: relatos de uma humilhação social. São Paulo: Globo.) para pensarmos sofrimentos sociais, humilhação social e invisibilidade pública. Outro elemento fundamental para discutirmos o tema é a cidade, espaço onde o fenômeno se dá e para a qual olhamos através das produções de Vainer (2013Vainer, C. (2013). Quando a cidade vai às ruas. In E. Maricato (Org.), Cidades rebeldes: passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil (pp. 35-40). São Paulo: Boitempo .) e Harvey (2014Harvey, D. (2014). Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana (J. Camargo, Trad.). São Paulo: Martins Fontes.), focando na privatização dos espaços e articulando-a com o conceito de narcisismo das pequenas diferenças, elaborado por Freud (1918/2013) e reatualizado quase um século depois por Fuks (2007Fuks, B. B. (2007). O pensamento freudiano sobre a intolerância. Psicologia Clínica, 19(1), 59-73.) e Dunker (2015Dunker, C. I. L. (2015). Mal-estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros. São Paulo: Boitempo.). Já Rancière (2010Rancière, J. (2010). Política da arte (M. S. Costa Netto, Trad.). Urdimento - Revista de Estudos em Artes Cênicas, 1(15), 45-59.) é um autor fundamental para pensarmos as relações entre arte, política e os regimes de visibilidade produzidos nesse entrecruzamento.

Diante dessa pluralidade de aproximações e tratando-se de uma pesquisa de caráter qualitativo, seguimos algumas pistas do método da cartografia em diversas frentes investigativas, sendo as principais a análise de experiências, a revisão bibliográfica, entrevistas com moradores de rua que participaram de oficinas teatrais e com atores de rua. Alguns fundamentos ético-políticos deste método merecem ser destacados aqui. Um deles é o pressuposto de que o conhecimento não está pronto, mas se produz no encontro entre os pesquisadores e os sujeitos da pesquisa - no caso, participantes de oficinas de teatro e artistas de rua. Sendo assim, a pesquisa científica nunca é neutra, como se supõe da perspectiva positivista. Tampouco haveria uma cisão entre experiência e produção de conhecimento: o ato de pesquisar é racional, mas também afetivo, sensível (Kastrup, 2007Kastrup, V. (2007). O funcionamento da atenção no trabalho do cartógrafo. Psicologia & Sociedade, 19(1), 15-22. ; Romagnoli, 2009Romagnoli, R. C. (2009). A cartografia e a relação pesquisa e vida. Psicologia & Sociedade , 21(2), 166-173.). Isso é especialmente importante, já que o campo experiencial e estético por vezes capta e comunica aquilo que o saber científico formal demorará ou não conseguirá plenamente traduzir (Rancière, 2010Rancière, J. (2010). Política da arte (M. S. Costa Netto, Trad.). Urdimento - Revista de Estudos em Artes Cênicas, 1(15), 45-59.).

Propomo-nos, assim, a entrevistar os participantes das oficinas de teatro, instigados a conhecer como se daria a vivência dos sujeitos nesses espaços e quais as reverberações possíveis do teatro em suas vidas. O questionário voltado para esses participantes buscou explorar suas trajetórias de vida, suas experiências nas ruas e abrigos, e as relações que estabelecem com as artes. A partir dos contatos obtidos junto à diretora responsável, contatamos tantas pessoas quanto possível, sendo que cinco sujeitos concordaram em participar da pesquisa. Apenas uma pessoa se recusou a participar, pois entendeu que se tratava de um convite para fazer parte de um grupo de teatro, e nossos esclarecimentos sobre o intuito da pesquisa não bastaram para que entendesse o real propósito de nosso contato. Ao mesmo tempo, buscamos apreender a relação que o espetáculo Projeto Bispo estabelece com a ocupação estética do espaço público e suas implicações políticas. O questionário voltado a esse grupo procurou investigar seus primeiros contatos com o teatro, bem como a experiência de realizar apresentações na rua. Entrevistamos os atores e membros da equipe de produção que se dispuseram a participar da pesquisa após uma de suas apresentações, totalizando sete pessoas em uma roda de conversa. Estes dois grupos de entrevistados são atravessados por três eixos: a sua relação com a arte, a questão da (in)visibilidade social e situações experienciadas nas ruas da cidade. Utilizaram-se dois questionários semiestruturados e todas as entrevistas foram registradas com gravador de voz, transcritas e posteriormente analisadas. As questões foram elaboradas tendo em vista as características bastante peculiares de se entrevistar artistas, pessoas para quem certas lógicas podem não produzir sentido ou mesmo impedir que alguns elementos venham à tona. Não se trataria (tanto) de explorar o know what - saber o que -, mas aventurar-se no know how - saber como fazer - do(a) entrevistado(a) (Hack, Raniere, & Maraschin, 2013Hack, L., Raniere, E., & Maraschin, C. (2013). Entrevistarte: experiência, arte e contemporaneidade. Revista Polis e Psique, 3(2), 113-131.).

Fora de cena: as (in)visibilidades da população em situação de rua

“imundo vaga entre veículos escultura de pano jornal suor fuligem talvez respire” (Melo, 2014Melo, T. (2014). Poemas: 1999-2014. São Paulo: Dobra Editorial., p. 29)

O I Censo e Pesquisa Nacional sobre a População em Situação de Rua, realizado pelo Governo Federal em 71 cidades (capitais de Estado e todas cidades com mais de 300 mil habitantes) entre 2007 e 2008, registrou 31.922 pessoas vivendo nessa situação (Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, 2010).

Em Santos, onde se desenvolveu nossa pesquisa, um censo encomendado pela Prefeitura Municipal em 2013 contabilizou 797 pessoas vivendo nas ruas e nos abrigos da cidade (Secretaria de Assistência Social/Santos, 2014). A Política Nacional para a População em Situação de rua traz a seguinte definição:

o grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória. (Decreto nº 7.053/2009, Art. 1º, parágrafo único)

Essa definição legal é bastante abrangente e busca incluir em “população em situação de rua” uma ampla variedade de sujeitos que, uma vez dentro desse grupo, teria direito a acessar benefícios e serviços públicos específicos. No entanto, se isto tem suas vantagens, também carrega um ônus. Sabe-se que muitas pessoas não se identificam com o termo “em situação de rua” e até buscam desvencilhar-se dele, não necessariamente por não quererem estar na rua, mas às vezes também pelo motivo contrário.

A própria Política Nacional destaca a heterogeneidade desse grupo. No entanto, cotidianamente essa população é tratada com homogeneidade: as pessoas são esvaziadas de singularidade e de história. Mais do que a naturalização do fenômeno das pessoas que moram nas ruas, talvez interesse aqui um tipo de relação que se estabelece com esta população, que raramente é encarada, mas evitada - física, visual e afetivamente -, humilhada e violentada.

É evidente que as relações entre um transeunte e um morador de rua estão estabelecidas desde muito antes do (des)encontro entre eles. Pode-se entender essas relações a partir do conceito de estigma, como um conjunto de características identificáveis nos corpos dos sujeitos que permitem que esses sejam categorizados antes de qualquer contato (Goffman, 1963/2008). A estigmatização, no caso da população em situação de rua, aparece articulada a esquemas tipificadores, “um conhecimento socialmente compartilhado do qual lançamos mão para apreender o outro nas interações sociais” (Mattos & Ferreira, 2004Mattos, R. M. & Ferreira, R. F. (2004). Quem vocês pensão que (elas) são? Representações sobre as pessoas em situação de rua. Psicologia & Sociedade , 16(2), 47-58., p. 48). Dessa forma, uma vez que se percebe alguém como morador de rua, imediatamente são projetadas sobre ele ou ela inúmeras expectativas de comportamento, bem como protocolos bastante específicos de interação. Essas expectativas e protocolos somente se sustentam porque compõem o campo do místico, do desconhecido. A produção e a perpetuação do imaginário social são compostas por um conjunto de representações, crenças, convicções e valores que distorcem uma realidade prévia. Esses processos atendem à manutenção dos instituídos organizados e, assim sendo, preservam as relações de exploração e de dominação (Baremblitt, 2002Baremblitt, G. F. (2002). Compêndio de análise institucional e outras correntes: teoria e prática (5ª ed.). Belo Horizonte: Instituto Felix Guattari.).

Essas representações sociais se perpetuam justamente porque evitam o contato entre sujeitos, que poderia colocá-las por terra. Não havendo encontro, apenas evitamento e reprodução de papéis sociais, essa relação permanece no nível das suposições. Em outras palavras, o que se mostra aqui é um grupo populacional que tem suas singularidades acachapadas, planadas. Para além de seu evitamento e da supressão de suas histórias e experiências, nota-se no dia a dia a tendência de invisibilização das pessoas em situação de rua através do ato de fingir não ver ou mesmo numa cegueira seletiva propriamente dita. A invisibilidade pública, expressada pelo esmaecimento dos corpos no cenário urbano, é fenômeno complexo, imbricado com tantos outros que atravessam e produzem nossa sociedade. Costa (2004Costa, F. B. (2004). Homens invisíveis: relatos de uma humilhação social. São Paulo: Globo.) o define como um cruzamento entre humilhação social e reificação.

A humilhação social se apresenta como uma angústia disparada por uma situação de desigualdade política e de exclusão intersubjetiva. O fenômeno é abrangente e remete a uma falta de poder sobre a própria vida, sobre a cidade, sobre o trabalho; falta de poder de iniciativa, porque acomete, em linhas gerais, aqueles a quem não se autoriza a palavra: os pobres, os serviçais, os empregados, os moradores de rua. Um golpe que se dá na cena pública, no plano político e material, mas que tem reverberações psíquicas, uma mensagem de rebaixamento que continua a ecoar indefinidamente (Costa, 2004Costa, F. B. (2004). Homens invisíveis: relatos de uma humilhação social. São Paulo: Globo.; Gonçalves, 1998Gonçalves, J. M. (1998). Humilhação social: um problema político em psicologia. Psicologia USP , 9(2), 11-67., 2004).

Já a reificação, ainda de acordo com Costa, é um processo que está diretamente relacionado à expansão do capitalismo, não só enquanto um modelo econômico, mas como um conjunto de valores e maneiras de se relacionar. A reificação diz da mercantilização e da atribuição de valor de troca aos objetos, às instituições, às pessoas e aos vínculos afetivos, num tempo em que o capital invade as subjetividades e modela estas relações a partir de seus vocábulos e de suas economias. Em um modelo de sociedade e de organização da cidade fundamentado por ocupações bem definidas e valoradas de acordo com sua utilidade e prestígio, quem - por seu estilo de vida ou papel social - coloca em xeque esta lógica é visto como inútil ou incapaz.

O fenômeno da (in)visibilidade pública se apresenta em duas faces: a daquele que é tornado invisível e a daquele que não enxerga. É fundamental manter isso em vista se quisermos incidir sobre esse quadro. Ora, se o fenômeno se manifesta nas duas partes, é preciso trabalhar ambas simultaneamente. Diz Gonçalves (2004Gonçalves, J. M. (2004). Prefácio: a invisibilidade pública. In F. B. Costa, Homens invisíveis: relatos de uma humilhação social (pp. 09-47). São Paulo: Globo ., p. 14): “Não é mais livre quem manda do que quem obedece: somos irmãos na mesma miséria, e uma saída pede que todos lamentem suas armaduras de classe e a tristeza de não vivermos numa comunidade de troca, conversa e mútuo enriquecimento”. Os processos que se atravessam compondo o fenômeno da invisibilidade pública recaem sobre todos, e não somente sobre a população em situação de rua. Não só invisibilizam sujeitos, mas também impedem encontros, enrijecem corpos, automatizam pessoas e perpetuam medo e violência.

Para além da invisibilidade pública, outro nível de esvanecimento intersubjetivo merece destaque. Acompanhamos desde novembro de 2014, através de uma ferramenta de busca que nos notifica cada vez que os portais jornalísticos publicam um termo específico - neste caso, “morador de rua” -, notícias sobre a população de nosso interesse. Esses artigos relatam, em sua grande maioria, agressões e assassinatos cometidos contra essas pessoas. Mais impressionante ainda são as características dessas matérias: são crimes violentos; as reportagens são extremamente breves e em muitas não consta sequer o nome da vítima (“Morador de rua é assassinado”, 2015; “Morador de rua é morto a pedradas”, 2015; “Morador de rua é queimado”, 2015). Tais notícias não ganham repercussão midiática e tampouco provocam comoção popular, evidenciando que algumas vidas têm mais valor do que outras e que algumas mortes chocam mais do que outras. Portanto, debruçamo-nos não somente sobre a invisibilidade dessas vidas, mas também sobre a invisibilidade dessas mortes.

Mas quando se discute (in)visibilidade social, a análise não deve se limitar ao esvanecimento material que apaga sujeitos e faz corpos se confundirem com o cenário urbano, ou ao silenciamento da violência contra essa população. Para Carreteiro (2003Carreteiro, T. C. (2003). Sofrimentos sociais em debate. Psicologia USP, 14(3), 57-72.), o sofrimento social também é silenciado e deslegitimado através de um duplo movimento. Primeiramente, dispõe-se de escassas vias de expressão para esse sofrimento. Ao mesmo tempo, ele é censurado pelos próprios sujeitos: os lugares onde são inscritos - pois eles próprios têm dificuldades de se inscrever em outras identidades - são os da inutilidade, da vagabundagem e da ameaça à ordem. Este discurso individualizante e segregador se sedimenta nas subjetividades até ganhar tons de realidade. O sujeito humilhado, portanto, tem poucos recursos para contestar as ofensas disparadas contra si e ainda poderá se culpabilizar pela situação em que se encontra. Amaral (2013Amaral, M. (2013). O rap, a revolução e a educação: do Bronx à Primavera Árabe. Ide, 36(56), 145-159.) e Cerruti (2014Cerruti, M. (2014). Movimento hip-hop: novas perspectivas para o processo de responsabilização do jovem em conflito com a lei. Revista Brasileira de Ciências Criminais, 14(119), 313-325.) consideram as produções artísticas e culturais como recursos criados pelos sujeitos para resistir a esse movimento que tenta impedir a manifestação e expressão dos sofrimentos sociais.

Amaral (2013Amaral, M. (2013). O rap, a revolução e a educação: do Bronx à Primavera Árabe. Ide, 36(56), 145-159.) pesquisa as relações dos jovens da periferia com as culturas contemporâneas, como o rap e o grafite, e propõe uma pedagogia da indignação que, por meio de oficinas de música, pode provocar: o estranhamento pela via sonora, histórica e poética; a sensibilização da escuta e da fala para o inenarrável; a produção de um novo jeito de estar no mundo. Cerruti (2014Cerruti, M. (2014). Movimento hip-hop: novas perspectivas para o processo de responsabilização do jovem em conflito com a lei. Revista Brasileira de Ciências Criminais, 14(119), 313-325.) desenvolve pesquisas sobre o movimento hip-hop e critica a proposta de redução das manifestações artísticas a meros modos de inserção social, pois considera que essas produções culturais são fenômenos orgânicos afirmativos que geram soluções criativas e autônomas para os impasses cotidianos. No entanto, pouco tem sido escrito sobre as relações possíveis entre a população em situação de rua e a arte.

As produções de discurso sobre grupos tratados como ameaça à ordem nunca são gratuitas, e as ideias de Foucault (1985Foucault, M. (1985). Microfisica do poder (5ª ed.). Rio de Janeiro: Graal.) são fundamentais para nos ajudar a refletir sobre a construção das figuras marginais no contemporâneo. À medida que o poder, antes centrado em um soberano, passa a se capilarizar e atuar nos corpos, ocorre a transição da figura da marginalidade para a do marginal. A consolidação dessa figura sustenta o discurso criminologista, facilitando a aceitação de cada vez mais controle social, seja ele na presença policial nas cidades, seja através de dispositivos eletrônicos, como as câmeras de vigilância. Na contemporaneidade, entretanto, o lugar social ocupado pelo marginal se expande e atinge loucos, pobres, toxicômanos, entre outros.

A sustentação dessas diferenças parece ganhar cada vez mais importância na criação e na perpetuação de identidades hegemônicas de classe, de cor, entre outras. Isso pode ser verificado na forma como os condomínios vêm se estabelecendo como espaços alternativos às classes mais abastadas enquanto demarcação da cidade. Demarcar é, fundamentalmente, estabelecer quem pode ou não habitar os lugares. A cidade se torna cada vez mais um conglomerado de espaços privados: o shopping no lugar do centro comercial, o condomínio no lugar do bairro, a rua como reles lugar de passagem entre um dentro e outro (Harvey, 2014Harvey, D. (2014). Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana (J. Camargo, Trad.). São Paulo: Martins Fontes.). Dessa maneira, a lógica privatista dos enclaves fortificados imprime convivências homogêneas: verdadeiros recortes de classe que possibilitam que os sujeitos se relacionem apenas com “semelhantes” (Dunker, 2015Dunker, C. I. L. (2015). Mal-estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros. São Paulo: Boitempo.). Nessa pasta homogênea, restringe-se o espaço para singularidades e para a manifestação das diferenças: o pobre, o preto e o bandido estão do lado de fora dos muros do condomínio, para lá das portas automáticas dos shoppings; se o diferente acessa o dentro, é quase sempre no papel de serviçal. É evidente que tais efeitos engendrados por uma certa perspectiva de urbanismo também provocam movimentos de resistência, como os “rolezinhos”, grandes encontros de jovens - em sua maioria, periféricos - que ganharam grande notoriedade entre 2013 e 2014.

Esta repulsa à diferença ou este desejo por familiarismo remete a um narcisismo das pequenas diferenças, que corresponde à intolerância direcionada àquilo que é mais íntimo, mas que só se é capaz de localizar em um agente externo. Não se trata de um grande estranhamento, mas de uma angústia suscitada mais pela semelhança do que pela diferença entre si e o outro (Dunker, 2015Dunker, C. I. L. (2015). Mal-estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros. São Paulo: Boitempo.; Freud, 1918/2013; Fuks, 2007Fuks, B. B. (2007). O pensamento freudiano sobre a intolerância. Psicologia Clínica, 19(1), 59-73.). Carreteiro (2003Carreteiro, T. C. (2003). Sofrimentos sociais em debate. Psicologia USP, 14(3), 57-72.) pondera que, na passagem da modernidade para uma dita pós-modernidade, a figura de classe social começa a entrar em decadência, abrindo espaço para a ideia de status social à medida que os processos individualizantes ganham força. Se o sistema capitalista convida o sujeito a ascender socialmente através de seu esforço e mérito individuais, a ideia de pertencimento a uma classe social consequentemente esmorece. Todavia, essa suposta autonomia socioeconômica também carrega um perigo: se é possível subir, também é possível descer. Assim, a população de rua representa a própria miséria encarnada, um dos subprodutos da máquina capitalista e um reflexo torto de uma condição possível a qualquer um.

O contraste socioeconômico e estético produzido pela presença de pessoas em situação de rua nas áreas nobres das cidades tende a acarretar intervenções higienistas. Essas costumam partir do Estado, do comércio ou de uma aliança entre ambos. É o que Vainer (2013Vainer, C. (2013). Quando a cidade vai às ruas. In E. Maricato (Org.), Cidades rebeldes: passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil (pp. 35-40). São Paulo: Boitempo .) chama de cidade de exceção ou democracia direta do capital: uma cidade cuja legislação pode ser suspensa em nome dos interesses financeiros. Na cidade de Santos isso não é diferente, e essas ações partem principalmente da Guarda Municipal, que possui um histórico de violência física e verbal contra a população em situação de rua (Andrade, Costa, & Marquetti, 2014Andrade, L. P., Costa, S. L., & Marquetti, F. C. (2014). A rua tem um ímã, acho que é a liberdade: potência, sofrimento e estratégias de vida entre moradores de rua na cidade de Santos, no litoral do Estado de São Paulo. Saúde e Sociedade, 23(4), 1248-1261.). Com o objetivo de preservar o aspecto dos cartões-postais da cidade, os moradores de rua são condicionados a permanecerem longe da orla e dos demais pontos turísticos da cidade, concentrando-se majoritariamente na região central da cidade ou em ruas menos movimentadas dos bairros costeiros. Embora os serviços voltados a essa população estejam localizados no centro, é na orla onde se pode mais facilmente utilizar sanitários públicos, conseguir “bicos” nos carrinhos ambulantes da praia, assim como angariar algum dinheiro por conta da alta circulação de moradores e turistas na região. Portanto, não se trata de um cenário estável, mas bastante transitório e condicionado pela oferta de pequenos trabalhos, pela circulação de pessoas e de dinheiro na orla, pela repressão policial, entre outros fatores. Ou seja, eles são expulsos da orla e de áreas elitizadas por agentes - tanto públicos quanto privados, respondendo aos interesses do comércio - sob uma perspectiva de higienização social, mas sempre retornam como estratégia de sobrevivência e resistência.

Abrem-se as cortinas: a rua no palco e o palco na rua

É nessa cidade e neste contexto social atravessado por múltiplas violências e segregações que enxergamos no teatro de rua e no teatro feito por moradores de rua a potência de produzir uma torção nas relações urbanas. A política da arte não se limita a seu conteúdo, mas acima de tudo à

maneira como configura um sensorium espaço-temporal que determina maneiras do estar junto ou separado, fora ou dentro, face a ou no meio de... Ela é política enquanto recorta um determinado espaço ou um determinado tempo, enquanto os objetos com os quais ela povoa este espaço ou o ritmo que ela confere a esse tempo determinam uma forma de experiência específica, em conformidade ou em ruptura com outras: uma forma específica de visibilidade, uma modificação das relações entre formas sensíveis e regimes de significação, velocidades específicas, mas também e antes de mais nada formas de reunião ou de solidão. (Rancière, 2010Rancière, J. (2010). Política da arte (M. S. Costa Netto, Trad.). Urdimento - Revista de Estudos em Artes Cênicas, 1(15), 45-59., p. 46)

Essa perspectiva política do fazer artístico emerge de maneira mais evidente entre o elenco do coletivo teatral, mas também figura discretamente nas falas dos participantes das oficinas de teatro.

Dos cinco sujeitos que participavam de oficinas de teatro e que foram entrevistados ao longo da pesquisa, nenhum poderia se enquadrar nas características que logo nos vêm à mente quando pensamos em população em situação de rua - roupas desgastadas, descuido estético e higiênico. Dos entrevistados, inclusive, duas eram adolescentes. Os demais eram homens adultos, mas que também se distanciavam dos estereótipos atribuídos aos moradores de rua, e que, inclusive, haviam passado pouco ou nenhum tempo na rua propriamente dita. Mesmo assim se enquadrariam como tais por definição legal. Eram sujeitos que se viram na necessidade de recorrer a abrigos municipais por questões relacionadas ao desemprego, à segurança pessoal e ao uso abusivo de drogas. Todos deixam explícito em suas falas que querem voltar a ter ou alcançar uma vida próxima da família, com emprego e um lar, e claramente não se identificam com o estilo de vida das ruas, como se demonstra nas falas a seguir. Os nomes utilizados aqui são fictícios para preservar a identidade dos entrevistados, tanto os artistas quanto as pessoas em situação de rua.

Leandro, 28 anos, é rapaz vivaz e cheio de sonhos. À época estava em um abrigo municipal e é taxativo ao se posicionar sobre a situação em que se encontra: “eu não gosto da rua, quem gosta, né?”. Conta-nos de quando foi atacado por um outro abrigado com uma faca, por ter esquecido de comprar o maço de cigarros que lhe foi pedido, enquanto mostra as cicatrizes no pescoço e na orelha. Quando perguntado sobre a vida no abrigo e na rua, Leandro faz referência à violência e aos furtos que sofria em instituições de assistência e em um dos abrigos pelo qual passou. Furto de um aparelho de som, de comida, de roupas.

Orlando, 56 anos, possuidor de grande conhecimento técnico em informática e multimídia, já fora outrora um profissional inserido no mercado de trabalho da capital paulista. Ele parece ter assimilado em si o universo do trabalho e suas regras quando diz “não compreendo as pessoas que gostam de morar na rua. Eu ando por elas, às vezes dez horas da manhã tão dormindo ainda, debaixo de lençóis, de cobertores... Meu, eu to acordado desde às cinco e meia da manhã!” A realidade que Orlando encontra ao precisar ir para o abrigo, por conta do uso abusivo de álcool e dos problemas financeiros e familiares decorrentes, parece se chocar com o mundo que ele conhecia até então, tão drástica é a diferença entre esses universos.

Em seguida, Orlando conta sobre um homem que conheceu em suas andanças pelas calçadas de Santos: “Chegaram pra ele e falaram ‘a rua está em você’... Então não importa se ele vai pra abrigo, se pega uma casa pra alugar ou qualquer coisa, ele é da rua. Ele gosta de dormir no chão frio da rua”. Essa fala, dita com um tom de surpresa e incredulidade, parece ilustrar um nível avançado de pertencimento à rua - a rua dentro do sujeito, e não só o sujeito na rua (Andrade, Costa, & Marquetti, 2014Andrade, L. P., Costa, S. L., & Marquetti, F. C. (2014). A rua tem um ímã, acho que é a liberdade: potência, sofrimento e estratégias de vida entre moradores de rua na cidade de Santos, no litoral do Estado de São Paulo. Saúde e Sociedade, 23(4), 1248-1261.). E, mais do que isso, aponta para o fato de Orlando nem de longe se identificar com esta inscrição social, que chega a espantá-lo. “Parece que... não faz parte do cotidiano”.

Ele deixa vazar no meio da entrevista uma forte inquietação pelo próprio fato de existirem pessoas mantendo esse tipo de relação com a rua, conforme o trecho abaixo:

Uma outra grande surpresa que eu tive na minha vida foi encontrar um moleque lá perto do Mercado [Municipal] daqui de Santos... Ele chutando latinha, amassando latinha, falei “ô rapaz, tá fazendo isso...” “Ah, eu sou filho da rua!” [pausa brusca]. Eu sou filho da rua... É diferente eu falar que sou filho da puta (...). É muito mais, em termos sociais, muito mais problemático do que ser filho da puta. Eu sou filho da rua. Eu durmo com cachorros, com ratos, com baratas, durmo nesse lixo, ganho minha vida fazendo isso. Eu sou filho da rua [batendo na mesa], um moleque de onze anos falando isso [continua batendo]. (Orlando)

A emoção no relato de Orlando transborda. Vai além das palavras, do tom de voz e da expressão facial: ganha seu corpo, transforma-se em ação e no gesto de bater repetidamente com a mão sobre a mesa à qual nos sentávamos. Em contraposição, ele afirma “o meu grande prazer é ficar numa mesa com meu computador, uma TV aqui do lado, com a cozinha aqui do lado, banheiro ali, esse é meu grande prazer, e não deitado na rua”. Para Orlando, a vida na rua é fantasia surreal, indesejável sob qualquer perspectiva.

Orlando e Leandro estão afinados em seus desejos de retornarem para um modo de vida tradicional - casa, comida, conforto. O discurso dos dois vai de encontro com outro bastante recorrente e um tanto romântico, sobre o morar na rua como ato de liberdade e de resistência. Se queremos apontar os perigos do enaltecimento do desejo individual - quase sempre acompanhado por um fundo de cinismo - e da romantização da vida na rua, isso não significa tampouco um elogio aos valores morais vinculados ao modo de vida burguês e à centralidade do trabalho. É preciso também entender que a população que teve acesso e que pôde aderir às oficinas de teatro não representa uma amostra neutra, mas é um recorte mais ou menos específico de sujeitos suficientemente organizados e que possuíam alguma vinculação aos equipamentos públicos voltados a esta população.

Podemos inferir a hipótese de os sujeitos que já têm enraizados em si os regimes da rua não conseguirem ou não desejarem manter vínculos com os serviços públicos de saúde e assistência social. Dessa forma, uma parte significativa dos que acessariam os equipamentos públicos seria composta de quem fica ou está na rua a contragosto, considerando que tais serviços representam portas de saída de várias condições às quais estão sujeitos: falta de alimento, de condições de higiene e de abrigo, entre outros.

As oficinas de teatro, para os sujeitos entrevistados, parecem preencher de sentido vidas fragilizadas por condições materiais e/ou sociais. Ao se referirem às oficinas, surgem falas como: “Eu queria fazer parte do grupo e interagir com o grupo” (Orlando); “A gente não só falava do teatro, falava de outras coisas, se preocupava com a gente quando tinha alguém mal e tudo, então virou uma família, a gente conheceu outras pessoas e novas pessoas” (Leandro); “Eu chegava lá e eu era a que mais ia, eu me dedicava, eu gostava mesmo. E poxa, eu nunca fiz isso por nada” (Suzana); “Tinha pessoas ao meu redor que realmente sabiam dos nossos problemas, mas não nos julgavam pelo o que a gente era, sabe? E eu vi eles acolherem a gente de uma forma tão carinhosa que é uma coisa que eu nunca vou esquecer” (Laís). Através de Orlando, Leandro, Suzana e Laís, evidencia-se o caráter de pertencimento propiciado pela participação no grupo, a criação de relações de confiança e respeito mútuo que aparentemente não são facilmente estabelecidas nas ruas ou nos abrigos. Relações que, para alguns, perduram até os dias de hoje.

Essas falas convergem com a de um dos integrantes d’O Coletivo, Vitor (34): “Você é o viado, você é o esquisito, você é o à margem. No teatro você não se sente assim, eu posso ser o que eu for. Acho que é a primeira coisa que me encanta”. Embora a questão do pertencimento surja de forma mais presente entre os participantes das oficinas, em níveis mais sutis também permeia algumas falas do elenco do Projeto Bispo. Não é, portanto, somente para as pessoas em situação de rua que o teatro desempenha esse papel de acolhimento e confiança, mas parece figurar de forma geral como oportunidade de pertencimento a um grupo e de significação coletiva de experiências comuns. Nesse caso, o ator relata o tanto que sofre preconceitos por sua orientação sexual nos espaços cotidianos, o que parece não acontecer no espaço do teatro.

Suzana e Laís, 16 e 15 anos, respectivamente, estavam à época acolhidas em um abrigo municipal por questões familiares. Para as adolescentes, o contato com o teatro teve significativa reverberação em questões emocionais. “Foi extremamente importante porque eu era muito fechada, não falava com quase ninguém, principalmente aqui [no abrigo] e o teatro me mostrou um outro lado meu que eu não conhecia (...) com isso eu fui tendo outras coisas na vida” (Suzana); “ela [a facilitadora das oficinas] veio trabalhando isso com a gente, ela veio sabendo cuidar das nossas feridas (...) ela foi como uma segunda mãe para mim” (Laís). Para as meninas, talvez pela idade e pelo momento no qual se encontravam, a participação nas oficinas de teatro lhes era benéfica pelo cuidado e pela atenção recebidos.

Jair, 45 anos, destaca que as oficinas teatrais também eram uma alternativa de ocupação do tempo entre alguma atividade de trabalho ou de educação e a entrada no abrigo para o pernoite:

Eu saía às cinco horas do trabalho, então tinha que ficar esperando até sete e meia da noite para poder entrar e, para não ficar esperando lá fora, que inclusive eu tinha até vergonha de ficar na porta, né? Aí me falaram de um teatro, que tinha às vezes o ensaio e tal, então para preencher esse tempo (...) resolvi entrar no teatro, (...) e no final gostei, e fui, e participei da semana do Plínio Marcos e depois da encenação da Vila de São Vicente e daí eu não parei mais.

As falas de alguns entrevistados vêm a desmistificar a arte e a figura do artista, no sentido de que a arte é usualmente entendida como transcendente e deslocada do cotidiano e do comum e o artista é tratado muitas vezes como “gênio” ou como um personagem abstrato da cidade. Assim como Jair começou a frequentar as aulas de teatro para não ficar na porta do abrigo esperando para entrar, parte do coletivo teatral também demonstra a casualidade de suas iniciações na arte. Roberta (33) brinca, rindo: “Eu tava andando e a arte veio, entrou em mim!”. Já Wagner, 28 anos, conta que nunca havia se interessado por teatro até uma amiga solicitar sua companhia para ir conhecer um curso, dez anos atrás. Ela deixou de ir. Ele continua até hoje, com pausas e retomadas. Assim, para parte dos integrantes do coletivo teatral e para alguns participantes das oficinas, a aproximação ao teatro ocorre despretensiosamente, mas acaba por se consolidar como um projeto de vida.

Quanto ao aspecto político do fazer artístico, esse se evidencia mais entre os atores d’O Coletivo, como quando denotam o processo de criação de seus personagens: o espetáculo não é somente apresentado na rua, mas também produzido nela. “A gente faz uma opção de vir fazer teatro e não esquecer do mundo lá fora (...) A gente faz teatro para gritar o mundo lá fora” (Vitor). O que parece estar em jogo aqui é uma ética na produção artística que oferece visibilidade e ressonância às vidas marginalizadas, mais do que meramente as representa. “Essa relação mercadológica a gente não vê em teatro. (...) Como a gente cobraria ingresso? As pessoas não olham pra cara de um mendigo quando passam na rua. Você finge que essa gente não existe” (Paulo, 31 anos). A política também constitui as oficinas de teatro para as pessoas em situação de rua, tanto no teor das apresentações quanto nos impactos das mesmas. Para Leandro, foi preciso estar no lugar de ator para poder adentrar pela primeira vez o Teatro Coliseu, local reservado à arte instituída, e referência para os espetáculos comerciais na cidade de Santos, onde apresentou e pôde partilhar do espaço com os colegas o resultado do trabalho.

Jair, que já trabalhou com animação de festas infantis, conta com alegria sobre quando era solicitado em novas festas por pessoas que conheceram seu trabalho. “A pessoa fazia questão que fosse o palhaço Atchim, mas não queria que fosse qualquer palhaço, queria que fosse eu”. O reconhecimento de seu trabalho e a alegria decorrente dele se manifesta no sorriso e na maneira que Jair conta de suas experiências profissionais. Este aspecto, do reconhecimento e de um reinvestimento afetivo pelo outro, recebido pelo sujeito, também se revela na fala de Orlando, quando esse diz que “o mais importante foi ter revigorado a sensação de estar em palco (...) Ver um palco com aquelas cadeiras vazias e possibilitando vê-las cheias de pessoas admirando seu trabalho, aplaudindo seu trabalho”. Se a humilhação social é fenômeno que ocorre no plano político e reverbera no psiquismo do humilhado, o reconhecimento e a admiração parecem operar de maneira semelhante. No entanto, ao invés de uma mensagem de rebaixamento, a mensagem recebida por quem se sente reconhecido pelo outro é a da possibilidade de produzir novas identidades - o ator, o palhaço, o profissional do entretenimento - para além daquelas cotidianamente atribuídas a si, que parecem se referir ao inútil e ao marginal.

Mesmo partindo de lugares distintos, as falas dos artistas do coletivo teatral e dos participantes das oficinas de teatro convergem em alguns pontos, principalmente no que diz respeito aos primeiros contatos que esses sujeitos estabeleceram com a arte, contrapondo uma perspectiva romântica do artista, enxergado muitas vezes como “gênio”. Percebemos que quando inquiridos sobre suas relações com a arte, os entrevistados trazem à tona elementos correlatos às suas inserções no mundo do teatro. Dentre os atores d’O Coletivo, evidencia-se a questão política do fomento ao pensamento crítico e do acesso da população a suas produções artísticas. Para os participantes das oficinas teatrais, o pertencimento a um grupo, o acolhimento afetivo, a ocupação de tempo ocioso e o reconhecimento foram os aspectos que mais se destacaram. Ou seja, para esses grupos, a relação com o teatro não é fim em si mesmo, mas sempre ponte para outras relações - com os colegas, com o público, com a cidade.

Último ato: considerações finais

O espetáculo Projeto Bispo, ao ocupar as ruas do centro de Santos, imprime sobre o público e sobre o território uma experiência bastante específica. O espaço físico do teatro, e em especial o palco, sinalizam aos espectadores que aquilo que será apresentado é uma peça teatral, uma ficção. Contudo, ao levar o teatro para a rua - e não qualquer teatro, mas um que grita a própria rua -, a oposição entre ficção e realidade deixa de fazer sentido. Trata-se aqui menos de “verdade” e mais de “verossimilhança”, já que os personagens e as falas são construídos no interstício dos atores e da loucura e miséria das ruas. Transpondo a ideia de Deleuze acerca da literatura para a arte de forma geral, trata-se de pensá-la como “enunciação coletiva de um povo menor, ou de todos os povos menores, que só encontram expressão no escritor e através dele” (Deleuze, 1997, p. 14).

Contudo, a experiência das oficinas de teatro com a população em situação de rua vem anunciar a possibilidade destes “povos menores” expressarem-se através das próprias vozes e dos próprios corpos. Essas duas vias de expressão e de sensibilização social não se anulam, mas são complementares e tendem a convergir em seus efeitos: a produção de outros regimes de visibilidade e o engendramento de novas formas de convivência nas cidades. A arte feita pelas pessoas em situação de rua, uma vez levada ao palco, à universidade, e principalmente às ruas e praças, opera como resistência ao progressivo desinvestimento no espaço público, acompanhado sempre por crescente evitamento à diferença. Nesse sentido, essa arte auxiliaria na produção de relações sociais que abarquem a pluralidade e a heterogeneidade indissociáveis da vida em sociedade.

Se esta arte da qual falamos garante alguma expressão para os sujeitos que se apropriam dela, consequentemente também dá visibilidade à população em situação de rua em geral, mesmo para os sujeitos que - por suas limitações ou vontades - não se envolvam na produção artística. Ressalta-se que a aposta na arte sobre, para e pela população em situação de rua não exclui outras políticas e direitos; fazem-se necessárias reformas no que concerne à distribuição de renda e às políticas habitacionais e de drogas. Caso se pretenda observar e mensurar os efeitos da sensibilização social pela arte, são necessárias também políticas culturais que propiciem à população em situação de rua espaços em que possam aprender e desenvolver habilidades artísticas a serem apresentadas ao público. Ao mesmo tempo, é imprescindível o fomento à arte pública e crítica como estratégia de transformação da tessitura socioafetiva da cidade.

A variação do perfil dos participantes das oficinas é um ponto que chama atenção. Mesmo o convite sendo direcionado a pessoas em situação de rua, comparecem adolescentes abrigadas e usuários do Centro de Atenção Psicossocial para Álcool e Drogas que não necessariamente viviam na rua ou em abrigos. Alguns participantes tinham emprego, outros não; alguns tinham casa, outros não; alguns viviam ou já viveram nas ruas, outros não. Tal pluralidade aponta para a fragilidade das delimitações legais dessa população, que não só se apresenta como heterogênea em suas experiências e histórias, mas também se borra com outros grupos populacionais. Na lida com a diferença - mais do que com o diferente - parece residir a potência de deslocar atores, público e demais habitantes da cidade de seus lugares preestabelecidos: permite que os sujeitos se confundam uns com os outros e ampliem suas maneiras de ser e de estar no mundo. Possibilita, enfim, novas relações com a alteridade no cotidiano urbano.

Agência de fomento

Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - bolsa de iniciação científica Processo n. 2014/17725-0.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2017

Histórico

  • Recebido
    15 Jan 2016
  • Aceito
    13 Maio 2016
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