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VADIAS, PUTAS E FEMINISTAS: DIÁLOGOS EM BELO HORIZONTE

ZORRAS, PUTAS Y FEMINISTAS: DIÁLOGOS EN BELO HORIZONTE

SLUTS, WHORES AND FEMINISTS: DIALOGUES AT BELO HORIZONTE

Resumo

O presente artigo tem como objetivo mostrar as formas como os debates feministas em torno da prostituição em Belo Horizonte se atualizam e adquirem novos contornos a partir da emergência da “Marcha das Vadias” e de sua relação com o movimento de prostitutas. O artigo apresenta parte dos dados da pesquisa de doutorado concluída por uma das autoras em 2015, incluindo métodos como observação participante, entrevistas em profundidade, coleta documental, dentre outros. No que toca à Marcha das Vadias de Belo Horizonte, realizamos etnografia das edições de 2012, 2014 e 2015, participando também das listas de discussão e grupos de organização e avaliação da mesma. Observamos que a Marcha das Vadias se mostra aberta ao diálogo com as prostitutas na cidade, mas que esse debate é frequentemente perpassado por concepções prévias e pouca margem para construções e ações efetivamente conjuntas.

Palavras-chave:
Marcha das Vadias; feminismos; movimentos de prostitutas

Resumen

Este artículo tiene como objetivo mostrar las formas en que se actualizan o reformulan los debates feministas acerca de la prostitución en Belo Horizonte con la aparición de “Slutwalk”. El artículo presenta parte de los datos de investigación de doctorado completados por una de las autoras en 2015, incluyendo métodos tales como la observación participante, entrevistas en profundidad, análisis documental, entre otros. En cuanto a la Slutwalk de Belo Horizonte, se realizó la etnografía de las ediciones de 2012, 2014 y 2015, participando también en la organización de listas de correo electrónico y grupos y la evaluación de la misma. Se observó que la Slutwalk se muestra abierta al diálogo con las prostitutas en la ciudad, pero este debate es a menudo impregnado de ideas preconcebidas y con poco espacio para las estructuras y acciones conjuntas eficaces.

Palabras clave:
slutwalk; feminismos; movimientos de trabajadoras sexuales

Abstract

This article aims to show the ways in which feminist debates on prostitution at Belo Horizonte are updated and acquire new characteristics from the emergence of the “Slutwalk” and its relation with the prostitutes movement. The article presents part of the doctoral research data completed by one of the authors in 2015, including methods such as participant observation, in-depth interviews, documents collection, among others. Regarding the Slutwalk of Belo Horizonte, we conducted ethnography of the editions of 2012, 2014 and 2015, also participating in the mailing lists and the Facebook group of the organization members. We observed that the Slutwalk showed open to dialogue with the prostitutes in the city, but this debate is often permeated by preconceptions and gives little room for effective joint structures and actions.

Keywords:
slutwalk; feminisms; sex workers movements

Introdução

A Marcha das Vadias (MdV) surgiu em janeiro de 2011, em Toronto, Canadá, fruto de uma afirmação de um policial durante uma onda de estupros que ocorriam na Universidade de Toronto. Em uma palestra sobre segurança pública, o mesmo declarou que, para que não ocorresse a violência, as mulheres deveriam evitar se vestir como vagabundas. Segundo Érica Hashimoto, um grupo de universitárias tomou então as ruas para protestar contra a violência e a opressão sexista sofrida (Hashimoto, 2014). A ação partiu de Heather Jarvis e Sonya Barnett e levou à rua cerca de 3 mil pessoas, principalmente mulheres brancas. Embora poucas tenham se vestido conforme o estereótipo da vadia, essas foram as mais destacadas pela mídia. Em Toronto, as profissionais do sexo foram convidadas a participar desde o início, dentre elas integrantes da Bad Date Line e Safer Stroll Project. Contudo, ao crescer, o movimento foi adquirindo características diversas e, em cidades como Londres e Pensilvânia, tinha um viés abolicionista frente à prostituição, buscando sua eliminação (Chateauvert, 2014Chateauvert, M. (2014). Sex workers unite: A history of the movement from Stonewall to Slutwalk. Boston: Beacon Press.).

O movimento se insere em um debate frequente no movimento feminista, a saber, a relação entre violência, prostituição e sexualidade. Se num primeiro momento, na década de 80, como explicita Adriana Piscitelli (2008Piscitelli, A. (2008). Entre as “máfias” e a “ajuda”: a construção do conhecimento sobre tráfico de pessoas. Cadernos Pagu , 31, 29-63.), os movimentos feministas no Brasil estiveram mais centrados na questão da violência, a guerra dos sexos chegou ao país com quase vinte anos de atraso, nos anos 2000, com forte destaque para sua relação com o tráfico de pessoas (Piscitelli, 2013). A prostituição ocupa um lugar central neste debate, operando como divisor de águas entre as formas de perceber a sexualidade (Piscitelli, 2005). A atividade é constantemente analisada de forma polarizada pelos movimentos feministas: de um lado, um polo que a vê como violência (abolicionista ou proibicionista); e, de outro, noções que, alinhadas a discursos de profissionais do sexo, avaliam a ocupação também como lócus de experiências de agência e de autodeterminação (laboral). Há ainda olhares que tentam fugir dessa dicotomia e propor formas de perceber a atividade como podendo incluir, a um só tempo, experiências de subordinação e agência, devendo ser reconhecida, mas com legislação específica (regulamentarista).

A Marcha das Vadias normalmente é mediada pela web e organizada por coletivos descentralizados e autônomos (Piscitelli, 2012Piscitelli, A. (2012). Feminismos e prostitução no Brasil: uma leitura a partir da antropologia feminista. Cuadernos de Antropología Social, 36, 11-31.). É um movimento novo e de grande visibilidade, que acaba por atrair interesse entre feministas e também entre mulheres em geral, levando um grande número de pessoas às ruas. Sem diretrizes claras ou uma organização formal, o movimento também congrega uma diversidade de atrizes e atores, que o procuram com diversos objetivos e perspectivas. Destarte, dentro do movimento encontramos divergências no que toca a diversas temáticas, como o protagonismo das mulheres, a presença dos homens, a opção pela palavra “vadias” e o debate sobre prostituição (Arraes, 2014Arraes, J. (2014). Marcha das vadias: as divergências estão em curso. Revista Forum Semanal. Recuperado de http://revistaforum.com.br/digital/149/marcha-das-vadias-divergencias-estao-em-curso/
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).

No Brasil, o movimento se iniciou no mesmo ano, em diversas cidades brasileiras, com um questionamento do que seria “ser vadia”, uma vez que, se implicar liberdade de vestir, ser e pensar, então todas as participantes seriam vadias, conforme indicam Mariane Junqueira e Verônica Gonçalves (2011Junqueira, M. O. & Gonçalves, V. K. (2011). A Marcha das Vadias: por que as mulheres gritam? In Anais do II Congresso Internacional de História da UFG/Jataí: História e Mídia. Recuperado de http://www.congressohistoriajatai.org/anais2011/link 78.pdf
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). Ademais, aponta, segundo Cynthia Semíramis, para o desejo feminino pelo controle da própria sexualidade, de forma que as mulheres não sejam discriminadas por suas roupas, idade, aparência, número de parceiras ou parceiros (Semíramis, 2012).

A chegada da Marcha das Vadias a BH se deu num contexto local bem específico. Sendo governada desde 2008 por Márcio Lacerda (PSB - Partido Socialista Brasileiro), que termina seu segundo mandato em 2016, a cidade tem vivenciado movimentos de recusa à sua forma de governar. O governante é acusado de realizar ações autoritárias como a expulsão de artesãs da Praça Sete de Setembro, ameaça de desocupação de comunidades (como Dandara, Camilo Torres e Irmã Dorothy1 1 A comunidade Camilo Torres existe desde 2008, no Barreiro, sendo formada por 142 famílias. A Dandara desde 2009, no Céu Azul, composta por 887 famílias. A Irmã Dorothy desde 2010, também no Barreiro, com 135 famílias. As três ocupações de territórios urbanos que estavam ociosos têm sido ameaçadas constantemente pelo poder público. ) e o impedimento de realização de eventos em locais públicos, como a Praça da Estação. Essas medidas levaram à organização de grupos de pessoas jovens e militantes de movimentos sociais diversos em torno de movimentos como o “Fora Lacerda”, a retomada do carnaval de rua da cidade e a realização das “Praias da Estação”, estas últimas em ato de resistência ao decreto assinado pelo prefeito que impede que sejam realizados eventos no local, salvo mediante pagamento (Louzada, 2011Louzada, M. (2011). Romântico ou revolucionário? Sobre a cidade que somos. Alegrar, 7, 1-10.). A Marcha das Vadias surge nesse ambiente, integrando-se aos movimentos de ocupação da cidade e de questionamento dos usos do espaço urbano, o que pode ser ressaltado inclusive pela escolha de trajeto da passeata, terminando na Praça da Estação.

Tendo em conta essas questões, o presente artigo tem como objetivo mostrar as formas como os debates feministas em torno da prostituição em Belo Horizonte se atualizam e adquirem novos contornos a partir da emergência da Marcha das Vadias e de sua relação com o movimento de prostitutas. Para tal, partiremos da apresentação de algumas cenas que indicam as formas como o debate tem se dado, tomando como base etnografia que incluiu registros realizados em diário de campo durante as marchas de 2012, 2014 e 2015.

O artigo se produz a partir de um duplo lugar, ocupado pelas autoras, de acadêmicas e ativistas, sendo marcado pelas possibilidades abertas pelo feminismo de conjugação da produção científica no feminino, em que as mulheres se colocam como protagonistas (Facchini & França, 2011Facchini, R. & França, I. L. (2011). Apresentação - Dossiê Feminismos Jovens. Cadernos Pagu, 36, 9-24.). Objetivando aproximar as leitoras e os leitores da experiência vivenciada, permeada por essa dualidade, serão apresentadas a seguir cenas que consideramos emblemáticas das relações entre prostituição e feminismos no contexto de Belo Horizonte que foram vivenciadas por uma das autoras durante a Marcha das Vadias de 2012 e que serão usadas como base de análise nos itens seguintes.

Cenas da Marcha das Vadias de 2012: notas de um diário de campo

Era dia de Marcha das Vadias e eu estava animada para ir para a rua ao lado de outras feministas. Desde quando surgiu a Marcha, no ano anterior, o movimento chamava muito minha atenção, especialmente por trazer à luz discussões que penso serem essenciais, mas que acabam sendo silenciadas ou distorcidas em outros movimentos feministas. Podia-se pensar num direito ao corpo mesmo na vadiagem, na “periguetagem”, na prostituição. Essas podiam ser vistas até mesmo como experiências mais autônomas do que outras. Não era mais apenas aquele olhar contra a objetificação das mulheres, mas, naquele momento, a autonomia sobre seu corpo me parecia ser construída de outra forma, o que me instigava e animava a ir para as ruas e a levar a todas as pessoas queridas comigo.

Na minha cabeça, apareciam flashes da Marcha de que participei em 2011, em Florianópolis. Dois dos principais organizadores eram meus amigos. Uma delas, Ana Paula, sempre foi olhada com olhar torto pelos alunos da Universidade, que pensavam que era puta ou vadia, a Geisy Arruda do Centro de Filosofia e Ciências Humanas, fazendo alusão ao caso da garota que foi humilhada na faculdade ao frequentar a aula com um famoso vestido rosa. Feminista de coração, atitudes e grandes decotes, aquele movimento parecia finalmente abraçar suas lutas e questões. O mesmo se repetia em conversa com outras mulheres, que não se consideravam feministas nem eram vistas como parte deste movimento. Era assim que eu via a marcha, um lugar onde as questões pelas quais vinha lutando há tanto tempo a partir do meu trabalho com as prostitutas pareciam ganhar força no debate feminista. Talvez aqui as prostitutas pudessem ter voz e ser efetivamente ouvidas.

Já morando em Belo Horizonte (BH), no ano de 2012, fui convidada por a participar de uma reunião com algumas pessoas da organização da Marcha e com prostitutas, no prédio da Secretaria Municipal de Políticas Sociais da Prefeitura de Belo Horizonte. Fui informada que a Associação de Prostitutas de Minas Gerais (APROSMIG) participou do evento em 2011 a convite da organização, mas algumas prostitutas se incomodaram com cartazes como “Nem santa nem puta”, embora a passeata passasse pela rua Guaicurus, principal ponto de prostituição no centro de BH.

A reunião tinha o objetivo de discutir as reivindicações, de forma a incluir as pautas e debates das prostitutas. Correu de forma bem tranquila e os representantes da marcha, Débora Vieira e Guilherme Tampieri, pareciam ouvir bem as reivindicações que partiam das prostitutas da Associação - Cida Vieira (presidenta), Aparecida Silva, Cleusy Miranda - e de seus apoiadores.

Ficou acordado que seria feito um manifesto a ser publicado na página do movimento e que também as prostitutas ajudariam a divulgar o evento em locais de prostituição, explicando do que se tratava e convidando todas a participar. O texto destacava o uso de palavras de ordem, enfatizando que o grupo das prostitutas é fundamental ao fortalecimento da marcha, devendo ser incluído de maneira orgânica na manifestação e organização (“Slutwalk BH”, 2012Slutwalk BH. (2012). Palavras de ordem + palavras de respeito: os cartazes para a marcha das vadias. Recuperado de http://marchadasvadiasdf.wordpress.com/2012/05/24/palavras-de-ordem-palavras-de-respeito-os-cartazes-para-a-marcha-das-vadias-texto-da-slutwalk-belo-horizonte/
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). Pouco antes da realização da marcha, a parceria foi ganhando forças também com a opção por realizar a oficina de cartazes da manhã da manifestação na sede da APROSMIG, na rua Guaicurus.

Com tudo isso na cabeça, minhas expectativas para a marcha só aumentavam. As prostitutas participariam? As pessoas levariam cartazes de apoio ou com palavras de ordem contrárias a seu movimento? As pessoas compareceriam à oficina? Como as feministas reagiriam à presença das prostitutas? Um sem fim de perguntas.

No dia 26 de maio de 2012, cheguei cedo à APROSMIG, por volta de 10. A sede da APROSMIG se encontrava fechada e algumas pessoas estavam na porta, como um casal que iria fazer um documentário sobre o evento, Maria Helena Lima (então estudante de letras da UFMG) e Almir Pepato (professor da UFMG, da área de biologia). O interesse deles me chamou a atenção, pois os mesmos diziam que não tinham experiência com produção de vídeos deste tipo, mas tinham se motivado pelo tema. Depois chegaram Débora Vieira e, aos poucos, outras participantes.

As pessoas iam ficando impacientes com o local fechado, e eu também. Ligamos para Cida, que pediu que chamássemos Laura Espírito Santo, vice-presidenta, no Hotel Nova América, onde trabalha até hoje como profissional do sexo. Fui ao hotel e escutei mulheres comentando “deve ser o pessoal da faculdade” e já fiquei pensando em como os trabalhos de universitários no local tinham ganhado força nos últimos anos.

Laura estava no seu quarto, usando uma camisola de algodão, deitada na cama e assistindo televisão, como de costume. Fez uma festa ao me ver e eu fiz o mesmo. Chamou-me para entrar, desculpou-se pela bagunça, como quem diz que devia ter arrumado o local para me receber. Com seu jeito engraçado, mas ao mesmo tempo muito questionador, nunca nos deixa esquecer que está ali a trabalho e que seu tempo é precioso. Reclamou de ter que deixar o trabalho para ir à Associação, mas se animou ao saber que estava sendo gravado um documentário. Disse que logo iria e chegou pouco depois à sede, vestindo uma elegante camisa de botões preta e florida, cumprimentando a todas as pessoas presentes, que naquele instante já tinham aumentado de número.

Levei as pessoas para a sala onde seriam confeccionados os cartazes, conquanto não tivéssemos cartazes ou tinta para começar o processo, o que aconteceu pouco depois. Chegou uma equipe da faculdade Dom Helder Câmara, que solicitou a Laura uma entrevista, assistimos atentos a tudo que disse, inclusive enquanto afirmava que sua filha já devia desconfiar da sua ocupação, pela quantidade de aparições na mídia, o que me fez refletir sobre como aquele é um lugar importante para a mesma. As representantes da Associação Lésbica de Minas (ALEM) chegaram levando seus cartazes e, em minutos, fizeram vários com frases que consideravam pertinentes, me impressionando sua organização. Uma das frases era exatamente “Nem santa, nem puta, sou livre”. Uma fotografia tirada durante o evento mostra Laura cedendo entrevista em frente a um cartaz com os dizeres “Somos todas vadias” [Figura 1].

Figura 1:
Laura cedendo entrevistas na sede da APROSMIG durante a Marcha das Vadias de BH de 2012

O clima era agradável, e várias pessoas iam se sentando ao chão para escrever suas frases, mas as prostitutas Cida, Laura e Aparecida não pareciam tão à vontade. Em determinado momento, sugeri que o fizessem e se animaram em escrever frases propostas por Roberto e que eu levei impressas (juntamente com frases que coletei na internet, criei ou trouxe de outras marchas), como “Sou prostituta e daí? Respeito é bom e a gente goza!”.

Algumas mulheres foram para a sala ao lado, trocar de roupa e pintar os corpos, apenas Cida se animou a fazer o mesmo, com frases que remetiam à valorização do trabalho das profissionais do sexo. Aparecida e Laura estavam entre as que tinham as roupas mais recatadas do local e, quando eu questionei, Cleusy respondeu “Está louca? Eu que não quero ir parar no jornalzinho de 25!”, fazendo referência a um jornal popular de grande circulação na cidade, cujo preço era 25 centavos, famoso por ser sanguinolento e sensacionalista.

Na hora da marcha, nos encaminhamos para a porta da APROSMIG e os homens, que circulavam pela Guaicurus, se aglomeraram ao nosso redor, com olhar lascivo e curioso em nossa direção. Uns afirmaram “Agora sim! Esse movimento eu gostei!”, deixando algumas das mulheres constrangidas. Seguimos para a Praça da Rodoviária, que também é uma área de prostituição, onde havia um grande número de pessoas (no total, estimamos que essa marcha contou com a participação de cerca de 2 ou 3 mil pessoas). Colocamos nossos cartazes espalhados pelo chão, e as participantes começaram a escolher aqueles que mais se adequavam a elas e suas reivindicações. Cida pegou um com os dizeres “Prostituição é trabalho, não é falta de vergonha” e, olhando feliz para mim, disse “Esse eu adorei! Foi você que fez?”, eu respondi que sim, o que pareceu deixá-la contente por ter alguém ao seu lado. Eu pensava que de alguma forma nossa participação interferia em como o debate era pautado e visibilizado.

Ao fundo, uma enorme faixa era carregada por outras pessoas da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), mais uma vez remetendo ao “Nem puta, nem santa”. Cleusy, que já tinha reclamado do cartaz da ALEM (Associação Lésbica de Minas), se dirigiu a eles dizendo “Eu sou puta e aí, qual o problema?”. As pessoas se constrangeram e fecharam a faixa, mas em poucos minutos a abriram novamente, parecia não haver interesse em dialogar e em saber o porquê do incomodo com os dizeres.

Vi algumas mulheres com camisetas e frases da Marcha Mundial das Mulheres (MMM), lembrei-me que, algumas semanas antes, havia ficado sabendo de uma troca de e-mails dentro do grupo da MMM em que participantes se diziam contrárias à realização da oficina de cartazes na APROSMIG (Associação de Prostitutas de Minas Gerais), por ser uma Associação vinculada a cafetões (a sede da associação funciona em salas de um imóvel de um dono de hotel de prostituição, que é também o presidente da Associação dos Amigos da Rua dos Guaicurus - AARG, formada por comerciantes e donos de hotéis). Fiquei irritada ao saber disso, pois, costumeiramente, prostitutas reclamam que aqueles que as consideram oprimidas visam a acabar com seu local de trabalho, o que as colocaria em situação ainda mais vulnerável. Pouco depois, recebi um panfleto da MMM, que tratava da mercantilização do corpo da mulher e seu tratamento como objeto, um argumento também comum entre abolicionistas.

A Marcha das Vadias teve início e foi um momento muito emocionante. Estar nas ruas, ao lado das prostitutas e de outras feministas, segurando cartazes que traziam em aquilo que acredito e por que luto, ver mulheres reivindicando o direito de serem “periguetes” ou “vadias”, foi muito interessante, parecia que alguma coisa estava mesmo mudando no feminismo. Cleusy cantava “Sou prostituta, quero respeito! Somos mulheres de qualquer jeito!” e algumas mulheres a acompanhavam. Todavia, em certos momentos vinham gritos de “A nossa luta é todo dia, somos mulheres e não mercadoria” e me parecia que ainda teríamos um longo caminho pela frente. As vozes se confundiam, se somando e se contrapondo ao longo de todo o dia.

Marcha das Vadias e o debate atual em torno da prostituição em BH

Como se pode observar na cena relatada, a Marcha das Vadias se coloca, nessa cidade, como uma possibilidade de diálogo direto entre prostitutas e movimentos feministas de camadas médias, seja pela realização do evento em uma área de prostituição, seja por suas pautas e gritos de guerra. Vejamos dois depoimentos de articulistas da Marcha das Vadias (MdV) de 2012 sobre a participação das prostitutas e da APROSMIG.

E uma coisa que eu achei extremamente interessante na marcha desse ano, que foi a adesão da associação das prostitutas, que deu uma força para a marcha, uma legitimidade maior para a marcha, por estar abraçando um novo universo, saindo daquela coisa de ficar também somente na questão do feminismo e tal, porque vai para um grupo que normalmente é invisível. (Adriana Torres, articuladora da MdV)

A APROSMIG ficou mais ainda pró-ativa na situação, quer dizer, o fato da oficina ser lá apresentou o questionamento deles inclusive sobre um dos lemas que a gente fala sem pensar muito que é “nem santa nem puta”, que foi um dos cartazes que eu carreguei na marcha de 2011 e a colocação da Cida foi “então nenhum dos dois é bom, está diminuindo a profissão de quem exerce a prostituição”. Então resolvemos também nos apropriar dessa questão. (Renata de Oliveira Lima, articuladora da MdV)

A exemplo do que acontece nos demais grupos e debates feministas, a MdV-BH, ao incorporar o debate sobre a prostituição, o faz a partir de vieses muito diferentes, apresentando discursos e ações que têm como pano de fundo propostas de eliminação da prostituição (abolicionistas e proibicionistas); o seu controle ou limpeza (regulamentaristas); ou ainda o seu reconhecimento como trabalho (laboral) (Barreto, 2015Barreto, L. C. (2015). Somos sujeitas políticas de nossa própria história: prostituição e feminismos em Belo Horizonte. Tese de Doutorado , Programa de Pós-graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC.). Como podemos ver pela cena, a Marcha das Vadias, em Belo Horizonte, congregou tanto pessoas com visões mais abolicionistas quanto mais laborais e também aquelas regulamentaristas.

Entre os grupos abolicionistas que dialogam com ou se integram à MdV-BH, podemos destacar a Marcha Mundial das Mulheres (MMM), que se fundamenta em noções marxistas para advogar em prol da libertação das mulheres da prostituição, associada à mercantilização e venda do corpo. Devemos enfatizar que é possível notar alguns deslocamentos dentro do movimento, que tem pensado sobre os efeitos nocivos da criminalização e a possibilidade de alguma regulamentação, que seria importante para a identidade do grupo e a colocação das prostitutas como profissionais. Contudo, Rafaela Rodrigues destaca que a regulamentação deve ser feita questionando “a causa da prostituição, o padrão de sexualidade imposto às mulheres, sejam prostitutas ou não, ... a valorização da profissão ou a divisão sexual do trabalho”. Para a autora, a libertação da prostituição depende da libertação das mulheres, que se efetua apenas pelo questionamento da opressão sofrida pelas mesmas, caso contrário, a prostituição seguirá como “profissão violenta, desprezada e não reconhecida” (Rodrigues, 2012).

Poucos dias depois da MdV, a MMM promoveria o evento “A prostituição e os desafios do feminismo” para debater sobre a MdV, ao qual uma das autoras esteve presente. Participaram da atividade cerca de 10 pessoas e as participantes da MMM se surpreenderam pela presença de pessoas não integrantes do grupo. A surpresa impediu que mantivessem a pauta proposta e optaram por ler um texto abolicionista sobre a prostituição, que havia sido publicado em um jornal da MMM. A leitura e a mudança de pauta geram um debate acalorado, em que as pessoas “de fora”, se mostram incomodadas tanto pelo cunho abolicionista como pela ausência de prostitutas num debate sobre elas. As pessoas “de dentro” destacavam que não era necessária a presença de prostitutas, já que conheciam bem sua realidade (mesmo sem contato nenhum com elas) e que podiam lutar assim pelo fim de sua opressão. O cartaz do evento pode ser visto na Figura 2.

Figura 2:
Cartaz do evento “A prostituição e os desafios do feminismo”

Apesar da abertura para a participação dos diversos grupos, essa não se dá sem conflitos, como percebemos na cena de 2012. De um lado, prostitutas reivindicam o não uso de expressões como “nem santa, nem puta”, de outro, integrantes da MMM conclamam que o movimento não se associe a cafetões e que lute contra a “mercantilização do corpo feminino”. Adriana Piscitelli observou também em São Paulo a presença de um debate sobre os lemas usados (“Nem santa nem puta”, “somos mulheres e não mercadoria”) e uma reivindicação por respeito às prostitutas, especialmente durante o trajeto pela Rua Augusta (Piscitelli, 2012). Uma fala de Bernadete Monteiro, militante da MMM, exemplifica essa questão.

Outra bandeira é a mercantilização do corpo das mulheres, a luta contra a mercantilização do corpo das mulheres, que pra nós tem representado uma campanha grande, de aderência muito com as jovens, e que tem grande força e grande expressão pra nós assim, e de forma geral a gente também se configura como movimento feminista anticapitalista assim, então essa é nossa orientação geral, né, de luta também e que nos coloca num contexto que pra nós é ... A gente entende a prostituição, porque assim, muitas vezes a interpretação da prostituição é feita apenas olhando os sujeitos que tão envolvidos nisso, assim. Pra nós a prostituição é um grande sistema que organiza a exploração de pessoas, assim. Então tem a ver muito também com a nossa leitura do capitalismo e da mercantilização da vida nesse sistema capitalista, e assim, então pra nós a prostituição aparece aí! Então essa forma de mercantilização da vida e exploração sexual das pessoas, né, em especial das mulheres. (Bernadete Monteiro, Militante da MMM)

Esse cenário se manteve na Marcha nos anos seguintes, trazendo novas questões ao debate feminista. Em 2014, a prostituição foi tomada como um dos enfoques principais de intervenção e debate, pelas principais articuladoras da Marcha (que diferem do grupo de 2012). Nesse movimento, podemos perceber ações que vão em sentidos bem variados, ora se aproximando mais de um discurso laboral, incluindo a aproximação com as mulheres prostitutas e a APROSMIG, ora ganhando tons mais abolicionistas.

Podemos destacar algumas dentre as ações de aproximação com o movimento de prostitutas. Foi realizado um grupo de estudos na Faculdade de Direito da UFMG, cujo tema principal, no segundo semestre de 2013, foi a prostituição. Um grupo de militantes da MdV-BH realizou visitas a áreas de prostituição em parceria com a ALEM. Outras militantes se tornaram voluntárias e parceiras da Associação de Prostitutas de Minas Gerais, oferecendo, por exemplo, assessoria jurídica através do Coletivo Margarida Alves. Esse contato mais direto com as prostitutas representa um avanço muito importante, considerando que diversas integrantes de movimentos feministas fazem análises sobre a prostituição sem ter tido um contato, por mais breve que seja, com as prostitutas.

No ano de 2013, foi organizada uma mesa-redonda para debater a prostituição, na Faculdade de Direito da UFMG, da qual participaram as militantes que integraram as atividades citadas acima, Vitor Costa, doutorando em Sociologia na UFMG, Letícia Barreto, então doutoranda em Ciências Humanas pela UFSC, e Anycky Lima, liderança das travestis e presidente do Centro de Luta Pela Livre Orientação Sexual (CELLOS). Durante este debate, foi surpreendente a presença constante de perguntas e respostas que tocaram a questão do tráfico de pessoas, sua presença nas regiões de prostituição e formas de enfrentá-lo, a possibilidade de que ocorresse com a realização da Copa do Mundo no Brasil, no ano subsequente. Algumas das participantes alegaram ter encontrado casos de tráfico de pessoas na região da Guaicurus, um dos principais pontos de prostituição, onde as autoras nunca indentificaram tal fenômeno.

Durante a mesa-redonda supracitada, integrantes indicaram a realização das Operações Copa do Mundo e Copa do Mundo II, realizadas pela Delegacia Especializada no Atendimento às Mulheres, como exemplo da ocorrência de tráfico de pessoas em locais de prostituição. Segundo reportagens de jornal, as operações incluíram prisão de diversas pessoas envolvidas na prostituição, entre proprietários, prostitutas e empregados dos locais, embora não haja relato de abuso, violência ou exploração da prostituição para além do que configura o próprio trabalho. Apesar disso, as reportagens indicam um interesse em evidenciar a presença de ações a fim de evitar que o tráfico pudesse vir a acontecer durante a Copa do Mundo (Mendes, 2014Mendes, A. (2014, 02 de Julho). Polícia reforça vigilância contra o tráfico de pessoas e de exploração sexual na Copa. Hoje Em Dia. Recuperado de http://www.hojeemdia.com.br/horizontes/policia-reforca-vigilancia-contra-o-trafico-de-pessoas-e-de-explorac-o-sexual-na-copa-1.251852
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). Além das operações policiais, foram feitas diversas ações pelo poder público estatal, incluindo seminários e capacitações, e houve um grande interesse da mídia pelo tráfico de pessoas na Copa.

Essas ações foram fundamentadas pelas expectativas de que a realização de grandes eventos pode acarretar em mais tráfico de pessoas. Contudo, devemos destacar que pesquisas realizadas durante grandes eventos nos evidenciam o contrário: apesar da expectativa e do grande investimento de governos para enfrentar o fenômeno, a existência de casos é baixíssima. Essa discrepância gera enormes gastos e também efeitos colaterais para populações vistas como mais vulneráveis, como é o caso das prostitutas, o que pode ser visto no relatório produzido pela Global Alliance Against Traffic in Women (GAATW) (Ham, 2011Ham, J. (2011). What’s the cost of a rumour? A guide to sorting out the myths and the facts about sporting events and trafficking. Bangkok. Recuperado de http://www.gaatw.org/publications/WhatstheCostofaRumour.11.15.2011.pdf
http://www.gaatw.org/publications/Whatst...
). Apesar das expectativas, durante a Copa do Mundo não foi identificado nenhum caso de tráfico de pessoas pela polícia ou pelo Programa de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas de Minas Gerais (PETP-MG) (Portal Brasil, 2014).

Se a ausência de casos de tráfico é surpreendente para muitos, que imaginariam a Copa como vinculada a um aumento desse e da prostituição, a questão da Copa estava presente nas conversas das prostitutas desde pelo menos 2006, embora o Brasil tenha sido escolhido oficialmente para sediar a competição de 2014 somente em 2007. Nesse período, comentavam que eram contra o evento e que a Copa traria prejuízo para elas, pois seus clientes iriam assistir aos jogos e o comércio seria fechado (Ávila & Lara, 2006Ávila, R. & Lara, M. (2006, 19 de Junho). Prostitutas mineiras torcem contra o Brasil: profissionais do sexo reclamam o sumiço dos clientes durante a Copa e nos dias de jogos da Seleção Brasileira. Diário Da Tarde, p. 9. ). Durante a Copa, pudemos observar a mesma questão, com aumento da procura por prostituição em áreas mais elitizadas da cidade, mas em outras havendo inclusive uma redução.

Outro dado interessante é uma publicação feita na página da Marcha das Vadias de BH, na qual podemos observar como há traços abolicionistas no discurso de algumas de suas militantes, embora saibamos que esse não é o único presente. Nessa publicação, há o uso de expressões como “somos moedas de troca” (ao citar uma reportagem sobre prostituição) e “mulheres prostituídas”. Ademais, a publicação afirma que a Copa poderia ter como efeitos o aumento do tráfico de pessoas e o “aliciamento das mulheres para a prostituição”, evidenciando que os números de mulheres nessa poderiam aumentar (Marcha das Vadias BH, 2014), sendo que esses dois pontos têm como fonte o site do Comitê pela Abolição da Prostituição (Comitê pela Abolição da Prostituição, 2014). Outro fato que indicou traços abolicionistas foi a organização pelo grupo de um evento sobre a exploração sexual na Copa do Mundo, embora não tenha tido adesão do público.

Reflexões sobre o debate

A Marcha das Vadias teve um papel essencial entre os movimentos feministas em Belo Horizonte, ao se abrir para o diálogo e a inclusão das prostitutas no debate. Contudo, essa inclusão foi feita de formas diversas e, por vezes, até mesmo contraditórias, o que diz tanto das divergências de percepções entre feministas quanto da ausência de uma posição única do movimento e da opção por uma organização horizontal e eclética. Se, por um lado, ganham muito ao se aproximar das prostitutas e conhecer sua realidade, por outro, acabam, em alguns momentos, comprando discursos abolicionistas que não refletem a situação. Assim, encontramos posições que não se encaixam estritamente em vieses laborais, regulamentaristas ou abolicionistas, mas que, por vezes, ou de acordo com as lideranças, ocupam um ou outro lugar.

Quando há a aproximação com as prostitutas, essa muitas vezes se dá sem efetivamente escutar suas reivindicações e questionamentos, adotando discursos prontos, como da vinculação da prostituição ao tráfico de pessoas (Kempadoo, 2005Kempadoo, K. (2005). Mudando o debate sobre o tráfico de mulheres. Cadernos Pagu , 25, 55-78.), não observado por nós ou por nenhuma de nossas interlocutoras prostitutas no campo. Por mais que as vadias sejam mais aceitas, o marcador simbólico “prostituta” segue sendo divisor entre decência e desrespeito, sendo que as primeiras se envolvem com sexo por vontade e as segundas são pagas, o que algumas feministas vão considerar que muda toda a relação (Chateauvert, 2014Chateauvert, M. (2014). Sex workers unite: A history of the movement from Stonewall to Slutwalk. Boston: Beacon Press.).

Uma questão que observamos na Marcha das Vadias de BH, como em outros debates feministas, e que exemplifica bem essa aproximação, com ressalvas, do movimento de prostitutas, é a discussão em torno do Projeto de Lei Gabriela Leite (Projeto de Lei 4211/2012), de autoria do deputado Jean Wyllys. Como o projeto foi em parceria com movimentos de prostitutas, muitas não o deslegitimam, mas questionam alguns de seus aspectos, o que já foi observado entre integrantes da Marcha das Vadias. Um exemplo de crítica é aquela que afirma que muitas das prostitutas são mulheres pobres e de poucos estudos, e que o projeto estaria direcionado para uma elite não representativa (Gomes, 2013Gomes, C. M. (2013). Nem toda prostituta é Gabriela Leite: prostituição, feminismo e leis. Recuperado de http://blogueirasfeministas.com/2013/12/nem-toda-prostituta-e-gabriela-leite-prostituicao-feminismo-e-leis/
http://blogueirasfeministas.com/2013/12/...
). Outra é que o projeto serve mais às grandes organizações, que visam ao lucro com o mercado do sexo (incluindo a Copa), do que às próprias mulheres. Um texto sobre o assunto, inclusive, termina com a seguinte frase “Nem santas, nem putas, buscamos que todas as mulheres sejam livres!”, argumentando contra a “mercantilização dos corpos” (Paradis, 2013Paradis, C. G. (2013). A “regulamentação” da prostituição e a vida das mulheres. Recuperado de http://marchamulheres.wordpress.com/2013/01/18/a-regulamentacao-da-prostituicao-e-a-vida-das-mulheres/
http://marchamulheres.wordpress.com/2013...
).

Trazemos o exemplo do projeto de lei para dizer de como os movimentos feministas têm, hoje em dia, realizado algumas aproximações dos movimentos de prostitutas, mas que essas se dão a partir de relações conflituosas e, por vezes, de pouca abertura. Ao questionar um PL elaborado em parceria com o movimento, ao utilizar expressões que contrariam as escolhidas pelo mesmo ou, ainda, ao trazer dados não corroborados pela realidade que elas apresentam, percebemos que o diálogo ainda é muito frágil e tem muito a avançar. Podemos observar que, muitas vezes, o debate tem ocupado posições abolicionistas, ainda que com deslocamentos. Pensa-se que há possibilidade de uma prostituta rica optar pela profissão, mas o mesmo não se poderia dizer da pobre, que por vezes pode ter sido “prostituída”. Vemos mais uma fala da integrante da MMM que entrevistamos:

Aí, na proposta de reforma do código penal, tá proposto descriminalizar isso, deixar de ser crime ter uma casa de prostituição e ser cafetão. E pra nós isso legitima a exploração assim, tipo isso assim, pra nós não contribui pra que as mulheres tenham mais acesso, mais direitos, não, pra nós reforça essa lógica de colocar a mulher nesse lugar de submissão assim, na verdade legitima isso agora dentro do sistema porque, apesar de não ter, de não ser legal, né, elas existem e a polícia, o Estado também, não fazem nada em relação a isso, né, na verdade pra nós esse foco de descriminalizar é só pra aumentar mais os lucros, né? Favorecer por exemplo agora na Copa das Federações, na Copa do Mundo e Olimpíada, né, que o turismo sexual seja ainda mais explorado que já é. (Bernadete, Militante da MMM)

Essas formas de aproximação nos remetem aos questionamentos de Gayatri Spivak (2003Spivak, G. (2003). ¿Puede hablar el subalterno? Revista Colombiana de Antropologia, 39, 297-364.), sobre a possibilidade das subalternas falarem, ou de Laura Agustín (1999Agustín, L. M. (1999). They Speak, But Who Listens? In W. Harcourt (Ed.), Women @ internet: creating cultures in Cyberspace (pp. 149-161). London: Zed Books.), que coloca que as prostitutas falam, mas não são escutadas. Podemos observar uma abertura para o convívio, que não necessariamente se reflete em uma troca efetiva, com mudança de opinião e construção coletiva de conceitos, ideias e ações. Em nossas incursões por este campo, temos observado os efeitos profundos da convivência de longo prazo com as prostitutas, que leva pesquisadoras e militantes a questionar inclusive suas próprias posições de sujeita e teorias. Contudo, temos visto aproximações muitas vezes breves e pouco compromissadas com o que é efetivamente visto e almejado pelas prostitutas. Um trecho do Manifesto da Marcha das Vadias de Belo Horizonte de 2015 ilustra bem a tentativa de aproximação e seus efeitos sobre a produção de conhecimento da coletiva, assumindo uma visão a favor da regulamentação, embora ressalte a objetificação e exploração da indústria do sexo:

Mulheres Prostitutas: reconhecemos as objetificações e explorações inerentes à indústria do sexo, exercidas na sua ampla maioria sobre mulheres, adolescentes e crianças. No entanto, a aproximação a mulheres prostitutas, organizadas coletivamente ou não, tem permitido à MdV reforçar as suas linhas de pensamento em relação ao tema. Ao lado das prostitutas, defendemos a regulamentação enquanto possibilidade de acessar direitos hoje negados, conscientes de que a regulamentação não põe termo às violências e explorações, que margeiam as mulheres prostitutas, mas que pode ser uma ferramenta que abra caminho nesse combate. Temos percebido que a experiência das mulheres revela realidades e posicionamentos distintos, que precisam ser sempre visibilizados e considerados. (Coletiva MdV, 2015)

Gostaríamos de destacar o avanço obtido pela Marcha das Vadias nessa questão e a necessidade de que os movimentos feministas sigam se abrindo para o diálogo com as prostitutas, mas que busquem, cada vez mais, um debate efetivo, de abertura real para as trocas e questões trazidas, que leve em consideração que o movimento organizado de prostitutas é também um movimento feminista (Barreto, 2015Barreto, L. C. (2015). Somos sujeitas políticas de nossa própria história: prostituição e feminismos em Belo Horizonte. Tese de Doutorado , Programa de Pós-graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC.). Acreditamos que, a partir da aproximação de longo prazo com as prostitutas, organizadas ou não em associações, é possível perceber que há uma necessidade eminente de descriminalização do entorno e do reconhecimento da atividade como um trabalho, com todos os aspectos negativos que este pode assumir.

Referências

  • 2
    Agência de fomento: CAPES- BolsaDS.
  • 1
    A comunidade Camilo Torres existe desde 2008, no Barreiro, sendo formada por 142 famílias. A Dandara desde 2009, no Céu Azul, composta por 887 famílias. A Irmã Dorothy desde 2010, também no Barreiro, com 135 famílias. As três ocupações de territórios urbanos que estavam ociosos têm sido ameaçadas constantemente pelo poder público.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2017

Histórico

  • Recebido
    05 Fev 2016
  • Revisado
    31 Jul 2016
  • Aceito
    03 Ago 2016
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