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PRODUÇÃO DA PRECARIEDADE LABORAL: REFLEXÕES PRELIMINARES SOBRE A CRIAÇÃO DE NOVAS FORMAS DE SUBJETIVAÇÃO

PRODUCCIÓN DE LA PRECARIEDAD LABORAL: REFLEXIONES PRELIMINARES SOBRE LA CREACIÓN DE NUEVAS FORMAS DE SUBJETIVIDADE

PRODUCTION OF LABOR PRECARIZATION: PRELIMINARY REFLECTIONS ON THE CREATION OF NEW FORMS OF SUBJECTIVITY

Resumo

A precarização laboral não se restringe à intensificação do ritmo de trabalho, à diversificação das tarefas, à adoção de novas formas de gestão, às terceirizações e às privatizações. Mais do que isso, cria novas formas de subjetivação. O objetivo deste estudo é problematizar a produção subjetiva da precarização laboral. Foi analisado o caso de uma mulher de 30 anos, que solicitou demissão de uma instituição financeira privada após desenvolver Síndrome do Pânico. Esta pesquisa caracteriza-se como um estudo de caso de caráter qualitativo, exploratório-descritivo e transversal. No caso apresentado, a participante opta por realizar um trabalho precário após deixar o seu antigo emprego. Entende-se que a escolha pelo trabalho precário não significou a vitória do desejo de desfrutar o seu próprio trabalho, mas a simples necessidade de manter a subsistência material. Concluiu-se que é necessário aprofundar a questão da produção subjetiva da precarização, buscando entender possíveis modos de resistência a essa.

Palavras-chave:
condições de trabalho; subjetividade; precarização

Resumen

Precarización del trabajo no sólo abarca la intensificación del ritmo de trabajo, la diversificación de las tareas, la adopción de nuevas formas de gestión, la externalización y privatizaciones. Más que eso, la precariedad laboral crea nuevas formas de subjetividad. El objetivo de este estudio es analizar la producción subjetiva de precariedad laboral. Se analizó el caso de una mujer de 30 años, quien pidió la dimisión de una institución financiera privada después de desarrollar trastorno de pánico. Esta investigación se caracteriza como un caso de estudio cualitativo, exploratorio, descriptivo y transversal. En nuestro caso, la participante opta por hacer un trabajo precário después de salir de su empleo anterior. La elección del trabajo precario no significó la victoria del deseo de disfrutar de su propio trabajo, pero la simple necesidad de mantener la subsistencia material. Se concluyó que es necesario profundizar la cuestión de la producción subjetiva de la precarización, buscando entender posibles modos de resistencia a esa.

Palabras-clave:
condiciones de trabajo; subjetividad; precariedad

Abstract

Labor precarization is not only about intensification of work rhythm, diversification of tasks, adoption of new forms of management, outsourcing and privatization. More than that, labor precarization creates new forms of subjectivity. This study aimed to discuss the subjective production of labor precarization. The case of a 30 year-old woman who requested resignation of a private financial institution after developing Panic Disorder was analyzed. This research is characterized as a qualitative, exploratory-descriptive and transversal case study. In the case, the participant chooses to make a precarious job after leaving her former job. The choice of precarious labor did not mean the achievement of a desire to enjoy the individual’s own work, but simply meant as a way of maintaining material subsistence. It was concluded that it is necessary to deepen the question of subjective production precarization, trying to understand possible forms of resistance to this.

Keywords:
working conditions; subjectivity; precarization

Introdução

O presente artigo busca apresentar um estudo de caso inserido na discussão da precarização das relações de trabalho. Mais especificamente, pretende-se tratar a produção da precarização na perspectiva subjetiva ao apresentar o percurso laboral como mediador das transformações e das reconfigurações precarizantes do mundo do trabalho. Assim, este texto propõe-se a problematizar a produção subjetiva da precarização laboral no neoliberalismo.

Anderson (1995Anderson, P. (1995). Balanço do neoliberalismo. In E. Sader & P. Gentili (Orgs.), Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático (pp. 09-23). Rio de Janeiro: Paz e Terra.) definiu o neoliberalismo como um fenômeno distinto do liberalismo clássico. A origem do pensamento neoliberal pode ser localizada no contexto do pós-guerra (1945), como uma reação de cunho teórico e político contra o Estado intervencionista de bem-estar social. Durante as décadas de 50 e 60 circulou a ideia de que a desigualdade social era um fator importante para o desenvolvimento da economia, pois a busca incansável do crescimento econômico possuía um aliado na competitividade. Em meados de 1973, a crise do modelo econômico pós-guerra atingiu seu grau máximo com baixas taxas de crescimento somadas a altas taxas de inflação, alterando o cenário econômico e social desse momento histórico. Friedrich Hayek (1976Hayek, F. A. (1976). Desestatização do dinheiro (H. G. Barbosa, Trad.). São Paulo: Instituto Ludwig Von Mises Brasil.) defende e propõe um modelo neoliberal que ataca o poder excessivo dos sindicatos e do movimento operário, culpando os trabalhadores pelos gastos do Estado com as bases sociais. Hayek afirmava que as empresas tinham prejuízos incalculáveis e os lucros eram prejudicados pelos direitos adquiridos pelos trabalhadores. É proposto o modelo neoliberal de economia de Estado: restrição do poder de sindicatos e dos operários, manutenção do Estado forte apenas para a regulamentação da moeda, pouca participação do Estado nos investimentos em políticas sociais, forte disciplina orçamentária e restauração das taxas de lucro das empresas, o que garantiria a riqueza social.

Ao trabalharmos em uma pesquisa sobre controle organizacional e sociedade de controle, um achado de caráter microssocial tornou-se explícito: ao não resistir à pressão e à produtividade das organizações, os sujeitos, em algum momento, sentiam alívio ao se perguntar quando finalmente agiriam de forma autônoma, quando seriam donos de sua própria vida. Para uns, essa é uma forma de devaneio que aliviava as pressões diárias do trabalho. Para outros, essa questão tomava forma de uma urgência subjetiva, cuja solução era a paradoxal escolha livre e autônoma da precarização. Entendemos que esse fenômeno pode ser mais uma etapa do novo sujeito neoliberal e seu sofrimento como resíduo descartável.

Cabe questionar se o movimento de uma carreira aparentemente organizada, que rapidamente sofre uma ruptura rumo ao trabalho precário, não significa uma continuidade que pode ser entendida como uma técnica de governo da sociedade neoliberal. O que se apresenta ao sujeito como soberania está implicado em um dispositivo de governo que toma a forma normalizada da autoescolha. Nesse contexto, a precarização não é um desvio, é um destino. A experiência da precarização do trabalho é um processo constitutivo do novo metabolismo social que se manifesta por meio da reestruturação produtiva do capital e da formação do Estado neoliberal no Brasil (Alves, 2009Alves, G. (2009). Trabalho e reestruturação produtiva no Brasil neoliberal - Precarização do trabalho e redundância salarial. Revista Katálysis, 12(2), 188-197. doi: 10.1590/S1414-49802009000200008
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).

O caminho da precarização laboral

Em poucas décadas, passamos da expectativa do pleno emprego, da promoção social e da estabilidade a taxas elevadas de desemprego e de incremento da precarização laboral (Standing, 2013Standing, G. (2013). O precariado: a nova classe perigosa. Belo Horizonte: Autêntica.). Essa pode ser entendida como “a intensificação (e a ampliação) da exploração (e a espoliação) da força de trabalho, pelo desmonte de coletivos de trabalho e de resistência sindical-corporativa e pela fragmentação social nas cidades em virtude do crescimento exacerbado do desemprego em massa” (Alves, 2009Alves, G. (2009). Trabalho e reestruturação produtiva no Brasil neoliberal - Precarização do trabalho e redundância salarial. Revista Katálysis, 12(2), 188-197. doi: 10.1590/S1414-49802009000200008
https://doi.org/10.1590/S1414-4980200900...
, p. 189). A centralidade e a hegemonia do trabalho industrial cedeu lugar à progressiva ampliação do setor de services, e a classe trabalhadora em processo de ascensão social, desarticulou-se. O próprio ethos do trabalho como valor identitário estruturante e o trabalhador como figura socialmente reconhecida foi questionado (Standing, 2013).

Essas foram algumas das transformações descritas por Deleuze (1992), que foram chamadas de “sociedade de controle”. O autor se pergunta qual sociedade seria melhor: aquela organizada ao redor de pesadas, burocráticas e rígidas disciplinas, que estaríamos deixando para trás, ou aquela em que imperam os fluídos e metaestáticos controles globais. Ele concluiu: trata-se de enfrentar as liberações e as servidões de cada regime. A partir dessa convocação, discutimos os sentidos da precariedade.

Algumas derivas da precarização laboral

A precariedade é uma dimensão ontológica da vida e dos corpos (Butler, 2011Butler, J. (2011). Vida precária. Contemporânea, 1(1), 13-33. Disponível em: http://www.contemporanea.ufscar.br/index.php/contemporanea/article/view/18/3
http://www.contemporanea.ufscar.br/index...
). Essa ideia é importante para entendermos a origem do problema da precarização. De modo sucinto, podemos dizer que a precarização é uma dimensão contemporânea de nossa dimensão precária. A “sociedade dos indivíduos” (Elias, 1994Elias, N. (1994). A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.) é autoconsciente da sua precariedade e vulnerabilidade. O projeto moderno desenvolveu estruturas complexas que visavam a limitar essas duas dimensões e garantir um mínimo de segurança diante do imponderável. Grande parte da insegurança social do mundo moderno esteve associada com a consciência de estar subjugado a acontecimentos que poderiam impedir a possibilidade de manter a vida com o próprio trabalho.

A precariedade foi enfrentada com a geração de níveis de igualdade social medianamente aceitáveis com a organização de diferentes compensações políticas, sociais e jurídicas que constituíram um novo tipo de propriedade: a propriedade social. A associação de proteção e direitos à condição de trabalhador incluiu garantias não mercantis ao trabalho, como direito ao salário mínimo, aposentadoria e férias. O enfrentamento da condição de precariedade garantiu defesas contratuais, mas apenas para trabalhadores que possuíam contratos de trabalho regulares com garantias diante das contingências do presente (Standing, 2013Standing, G. (2013). O precariado: a nova classe perigosa. Belo Horizonte: Autêntica.).

Lorey (2015Lorey, I. (2015). State of Insecurity: Government of the Precarious. London: Verso.) indicou outra dimensão do precário, a precarização governamental, presente nos modos de governar, ligada às condições mínimas de determinação estabelecidas pelo modo industrial capitalista. Essa dimensão implica a problematização das complexas interações entre os instrumentos de governo e as condições de exploração econômica e os modos de subjetivação, que operam entre a subjugação e a autonomia. Na perspectiva governamental, a precarização deve ser considerada não somente em ações repressivas, mas também nos seus movimentos produtivos, utilizando técnicas de autogoverno.

Neoliberalismo e governamentalidade biopolítica

Com o termo “governamentalidade”, Foucault (2013Foucault, M. (2013). A “Governamentalidade”. In Estratégia, poder-saber, pp. 281-305. Rio de Janeiro: Forense Universitária. (Coleção Ditos & Escritos IV)) definiu o entrelaçamento estrutural do governo de um Estado e as técnicas de autogoverno nas sociedades ocidentais. Em um contexto liberal burguês, uma política governamental orientada para esse objetivo está voltada para o estabelecimento e a produção de normalidade e sua modulação. Os métodos biopolíticos visam fabricar um padrão de saúde de uma população. Para maximizá-lo, dão apoio à vida bioprodutiva, o que requer a participação ativa de cada um, a criação e a manutenção do autogoverno (Perrone, Santos, & Sobrosa, 2013Perrone, C. M., Santos, A. S., & Sobrosa, G. M. R. (2013). Saúde e psicologia em tempos biopolíticos: novas questões. Mudanças: Psicologia da Saúde, 21(1), 1-7. doi: 10.15603/2176-1019.
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).

Foucault (2013Foucault, M. (2013). A “Governamentalidade”. In Estratégia, poder-saber, pp. 281-305. Rio de Janeiro: Forense Universitária. (Coleção Ditos & Escritos IV)), na sua pesquisa sobre a governamentalidade neoliberal, não tomou o termo neoliberalismo como uma teoria política, uma ideologia ou um ponto de vista da modernidade. Ele entendeu liberalismo e neoliberalismo como práticas, modos reflexivos de ação e, especialmente, modos de racionalização da governamentalidade diferentes do modo disciplinar. Em outras palavras, ele não estava pensando no nível da teoria política e econômica tão somente, mas em uma modificação do conhecimento, do governo e das subjetividades.

A sociedade disciplinar já havia criado com os trabalhadores uma autorrelação imaginária com o corpo, constituído como propriedade de si, um corpo “próprio” que deve se vender como força de trabalho. Além disso, esse corpo pertence a um indivíduo “livre” e compelido a coproduzir por meio de tal autorrelação, pois o único bem que pode vender é sua força de trabalho, a fim de viver uma vida de progresso contínuo, principalmente por meio da autodisciplina e do autocontrole. A propriedade do corpo articulava o trabalho e a construção de segurança associada a ele.

A passagem do liberalismo para o neoliberalismo é marcada pelo fato de que no neoliberalismo a troca é vista como uma característica natural do ser humano e a competição é uma estrutura artificial que deve ser ativamente protegida. O Estado deve ter uma intervenção constante não sobre o mercado, mas sobre as condições de possibilidade do mercado (Foucault, 2008Foucault, M. (2008). Nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes.). Essa é a característica do governo neoliberal: ele dá a impressão que não governa, ele garante regimes de liberdade. O sujeito neoliberal é um “consumidor de liberdade” (Foucault, 2008, p. 64), pois ele gere a sua liberdade.

A gestão da liberdade implica gestão de si, que, se bem sucedida, articula esse novo poder e dominação de modo quase imperceptível. É extremamente difícil refletir sobre eles exatamente porque o sujeito age para a sua produção. Naturaliza-se o modo como se relaciona consigo mesmo e com seu próprio corpo como uma tecnologia dirigida para a própria vida, visando a construir um conjunto de formas de conhecimento, tecnologias e instituições. Essa produção e normalização são vividas por meio de práticas cotidianas que são percebidas como autoevidentes e naturais.

O autogoverno da normalização é baseado em uma coerência imaginativa (Shore & Wright, 2000Shore, C. & Wright, S. (2000). Anthropology of Policy: Critical Perspectives on Governance and Power. London: Routledge.), na uniformidade e na totalidade, que podem ser rastreadas até a construção de um indivíduo com todas as habilidades e competências esperadas no mundo do trabalho, um dos pré-requisitos para a soberania moderna. O sujeito deve acreditar que é “dono de sua própria casa”. Se essa imaginação falhar, a pessoa em questão será um “anormal”, a partir de sua opinião.

O autogoverno neoliberal tem como um de seus efeitos sobre o sujeito a ideia de uma individualidade única, composta de forma autônoma, de acordo com suas próprias decisões. Tomam as seguintes formas de questões contemporâneas, as quais também surgiram nas entrevistas da pesquisa que originou este artigo: “Como posso realizar o meu potencial? Como posso me encontrar? Como desenvolver a essência do meu ser?”

O autogoverno ocorre em um aparente paradoxo. Governar, controlar, disciplinar e regular a si mesmo significa, ao mesmo tempo, ser formado e formar a si mesmo, autorizar a si mesmo, o que, nesse sentido, significa ser livre. Precisamente porque as técnicas de governar a si mesmo decorrentes da simultaneidade de subjugação e empoderamento, a simultaneidade de compulsão e liberdade, nesse movimento paradoxal, cria não somente um sujeito, mas um sujeito “livre”. Subjetivado desse modo, esse sujeito participa continuamente da (re)produção das condições de governabilidade (Foucault, 2008Foucault, M. (2008). Nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes.).

O paradoxo do neoliberalismo indicado por Foucault (2008Foucault, M. (2008). Nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes.) é que o sujeito é livre para ser livre. Nesse imperativo de liberdade, está claro que as condições para a liberdade já estão decididas e os sujeitos são, ao mesmo tempo, subjugados e agentes “livres”. Os parâmetros comuns para pensarmos esse sujeito livre são os seguintes: eles devem ser bem ou muito bem educados, entre vinte e cinco e quarenta anos de idade, sem filhos, e mais ou menos buscam intencionalmente uma situação de emprego precário. Perseguem empregos temporários, vivem de projetos e possuem vários clientes ao mesmo tempo, geralmente sem subsídio de doença, férias pagas e seguro-desemprego, sem qualquer segurança no emprego, com nenhuma ou apenas mínima proteção social. A semana de quarenta horas é uma ilusão. O tempo de trabalho e tempo livre não têm fronteiras claramente definidas. Trabalho e lazer já não podem ser separados. No tempo não remunerado, eles acumulam uma grande quantidade de conhecimento, utilizado no contexto do trabalho remunerado.

Essa dinâmica não é reconhecida como algo que vem de fora, como uma subjugação e com caráter totalizante. Em vez disso, são práticas conectadas com o desejo e com a adaptação. Para essas condições de existência, previstas e coproduzidas, é preciso uma obediência antecipada. Os sujeitos podem ser explorados muito facilmente, porque eles parecem suportar as suas condições de trabalho devido à crença na sua própria liberdade e autonomia, devido a fantasias de autorrealização e bem-estar.

A situação de autoprecarização está ligada a experiências de medo, de fracasso e de perda de sentimentos de segurança, de declínio social. Pensar em alternativas fora do padrão hegemônico é um exercício penoso, pois a negação desses afetos remete ao sujeito sua insuficência e sua falta. Se o sujeito ainda não chegou a ser quem ele é, é porque não realizou a gestão de seu potencial humano. O retorno do pensamento sobre si não promove nada mais que servidão. Trata-se da estranha forma da precarização reflexiva, (re)produzir a si mesmo a partir de si mesmo para a autorrealização rumo à redução dos desejos em função dos interesses do mundo do trabalho. Permanece a questão: existe alguma soberania nessa dinâmica, alguma parcela de decisão livre nessa autoprecarização?

Método

Esta pesquisa caracteriza-se como um estudo de caso (Yin, 2005Yin, R. K. (2005). Estudo de caso: planejamento e métodos. Porto Alegre: Bookman.) de caráter qualitativo, exploratório-descritivo e transversal. A fim de problematizar a precarização laboral subjetiva, foi escolhido um caso proveniente do projeto de pesquisa intitulado “O controle na sociedade de controle: a nova economia afetiva das organizações”.

Os participantes desse projeto eram 30 trabalhadores de diversas instituições financeiras públicas e privadas da região metropolitana de Porto Alegre e da região central do Estado do Rio Grande do Sul. Suas idades variaram de 20 a 55 anos. Eles exerciam diferentes cargos e funções.

Os participantes desse projeto foram selecionados por conveniência. Não foi realizado contato com nenhuma instituição financeira específica, uma vez que isso poderia enviesar os dados, os quais retratariam a realidade de apenas uma instituição. Os pesquisadores entraram em contato com pessoas que sabiam que trabalhavam em bancos. Nesse contato, explicaram-se os objetivos e procedimentos do estudo para os potenciais participantes, que foram convidados a integrar a amostra da pesquisa. Foi agendado o dia, o horário e o local de realização da entrevista com aqueles que se interessaram em participar do estudo.

Além disso, solicitou-se que os sujeitos que participaram da pesquisa fornecessem o contato de colegas de trabalho, se julgassem adequado. Portanto, também se utilizou a técnica da bola-de-neve (snowball technique), na qual um entrevistado indica outros potenciais participantes, os quais apresentam as características de interesse da pesquisa (Biernacki & Walford, 1981Biernacki, P. & Waldford, D. (1981). Snowball sampling: problems and techniques of chain referral sampling. Sociological Methods & Research, 10(2), 141-163. Disponível em: http://isites.harvard.edu/fs/docs/icb.topic536746.files/Biernacki_Waldorf_Snowball_Sampling.pdf
http://isites.harvard.edu/fs/docs/icb.to...
).

A técnica de coleta de dados utilizada foi uma entrevista semiestruturada (Costa, 2012Costa, M. A. F. (2012). Projeto de pesquisa: entenda e faça. Petrópolis, RJ: Vozes.) especialmente desenvolvida para o projeto mencionado. Todas as entrevistas foram gravadas e, posteriormente, transcritas na íntegra para serem submetidas à análise. Os funcionários foram questionados sobre sua rotina no banco e fora dele, bem como as mudanças que eles percebiam em suas vidas após começar a trabalhar em uma instituição financeira. Eles responderam questões sobre o relacionamento com os colegas, a estipulação de metas, as qualificações teóricas e técnicas exigidas pelo banco e as vantagens e as desvantagens desse tipo de trabalho. Todas as entrevistas foram iniciadas somente após o entendimento e a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) pelos participantes.

Apesar do estudo não ser focado na precarização, esse foi um tema frequentemente abordado pelos bancários. Isso porque as instituições financeiras foram precursoras no Brasil em adotar a automação e a informatização em seus procedimentos e, consequentemente, reestruturar sua produtividade. A reestruturação produtiva do setor bancário incluiu a utilização de novas tecnologias, a intensificação do ritmo de trabalho, a diversificação das tarefas, a adoção de novas formas de gestão, as terceirizações e as privatizações (Carrijo & Navarro, 2009Carrijo, D. C. M. & Navarro, V. L. (2009). LER e planos de demissão voluntária: trajetórias de dor e sofrimento entre bancários. Cadernos de Psicologia Social do Trabalho, 12(1), 157-171. doi: 10.11606/issn.1981-0490.v12i2p157-171
https://doi.org/10.11606/issn.1981-0490....
; Paiva & Borges, 2009Paiva, C. S. D. L. & Borges, L. O. (2009). O ambiente de trabalho no setor bancário e o bem-estar. Psicologia em Estudo, 14(1), 57-66. doi: 10.1590/S1413-73722009000100008
https://doi.org/10.1590/S1413-7372200900...
). Tais características acarretaram precarização laboral dos trabalhadores de bancos.

O caso escolhido para ser relatado neste artigo foi selecionado devido à precarização subjetiva que o trabalho bancário gerou na participante em questão, a qual será identificada como “P.” no decorrer deste estudo. Esse caso refere-se à entrevista de uma mulher de 30 anos, com formação universitária, que solicitou demissão de uma instituição privada há mais de um ano. Ela trabalhava na organização há seis anos.

Além das entrevistas, foram realizadas observações na unidade funcional e as informações foram registradas em diários de campo. Como fontes secundárias, foram utilizadosfolderse relatórios disponibilizados pelas empresas, publicações em mídia escrita e eletrônica e artigos. Segundo Yin (2005Yin, R. K. (2005). Estudo de caso: planejamento e métodos. Porto Alegre: Bookman.), o estudo de caso faz uso de várias técnicas, a saber, pesquisa em documentos primários e secundários, pesquisa em artefatos físicos e culturais, observação direta dos acontecimentos que estão sendo estudados e entrevistas com as pessoas neles envolvidas. Essas técnicas tendem a fornecer uma série de evidências que podem ser tanto qualitativas quanto quantitativas a fim de aprofundar o entendimento do caso.

As informações coletadas sobre o caso P. foram submetidas à análise qualitativa. Yin (2005Yin, R. K. (2005). Estudo de caso: planejamento e métodos. Porto Alegre: Bookman.) indica que a estratégia de análise dos dados em estudos de casos é baseada na análise das proposições teóricas, organizando o conjunto de dados com base nas mesmas e buscando evidências das relações propostas na teoria.

Destaca-se que a pesquisa foi submetida e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Santa Maria conforme o protocolo CAAE número 07406712.5.0000.5346 e o parecer 148.675, emitido no dia 13 de novembro de 2012. Além disso, foram observados todos os preceitos éticos previstos na Resolução n o 466/2012 para a realização de pesquisa com seres humanos na condução do projeto como um todo. Os participantes foram informados sobre o caráter voluntário da pesquisa, bem como sobre o sigilo em relação às informações coletadas e o anonimato da identidade dos participantes.

Caso P.: a “escolha” da precarização

Analisamos os dados fornecidos por P., a qual trabalhava em uma organização que sofreu a maior crise de sua história há quatro anos. A sua unidade no Brasil é considerada de importância estratégica. No entanto, o grupo sofreu um processo de desmembramento e venda de ativos para seguir operando. Nesse momento, a organização está menos voltada para a conquista do mercado e mais para a reconquista de seus clientes.

P. trabalhou durante quatro anos e meio como gerente de expansão. Ela ingressou na organização como gerente de atendimento no Serviço de Atendimento ao Cliente (SAC) da empresa, no qual ficou um ano e meio. Sentiu muita dificuldade nessa mudança, pois a sua atividade anterior “era mais previsível, todas as atividades eram previstas com certos protocolos”. A mudança ocorreu quando houve a reestruturação da organização e P. não entendeu qual foi a lógica de ser promovida para o novo cargo: “Eu quis saber, mas não ficou muito claro. Fico pensando se era claro para eles também. Recebi algumas explicações sobre o meu perfil, como me saí bem no cargo anterior. Todos querem subir, o salário seria melhor, por que não?”. Insistimos em perguntar se ela não via motivos para sua mudança. Ela refletiu: “Eu investi muito na minha formação. Tenho dois MBAs, em finanças e gestão de pessoas. Eu estava pronta para novas funções na empresa, eu assumia muito a empresa, mas não pensei que seria assim”.

Ela sentiu as mudanças rapidamente. A remuneração na nova função era variável e P. recebia os adicionais somente após três meses, se houvesse a consolidação da relação com o cliente. A cota era vinte novos negócios mensalmente, uma meta alta que exigia “trabalho intenso, nada como a previsibilidade da outra função”.

O mais difícil não foram as exigências iniciais. Era meio difícil de entender o que estava acontecendo. Eu achava que era, sei lá, uma adaptação. Eu achava que era um tempo, precisava de um tempo para me adaptar às mudanças e depois tudo ficaria normal. Acho que comecei a entender melhor a situação quando teve a troca do gestor. Falaram que receberíamos o líder, não era um cara qualquer. A situação estava complicada, unidades fechando, os negócios diminuindo. A ideia é que os que sobraram não eram qualquer um, eram os melhores. Foi isso que imaginei. Mas não foi assim. O meu gestor anterior era uma pessoa educada. A impressão que eu tinha era de que ele era uma pessoa do nosso lado, ele estava do nosso lado. Eu sei que não era assim, mas ele, sei lá... Entendia, entendia o que acontecia conosco e assim era melhor. Parece que fica mais humano. Porque era essa a primeira diferença. Pensei que encontraria o líder, o cara inspirador. A primeira coisa, na primeira reunião, foi que achei ele um grosso. O discurso era aquele, motivação, por que vocês acham que estou aqui? Sabe, e aí aquelas coisas: alguém aqui quer folga? Se quer folga pode sair, pode ir embora.

Nesse momento da entrevista, P. agita-se, não olha mais para a entrevistadora, mas para o chão.

Eu não entendi, sabe. Eu achava o cara muito grosso, com brincadeiras sem graça. Custei um pouco para me dar conta que ele agredia com isso, ele chegava perto demais, aquela história do espaço de cada um, ele invadia, dava tapinhas sem necessidade. Mas tudo era motivacional.

A situação da empresa estava pior, ou não, não sei. Mas os negócios estavam realmente diminuindo e tudo começou a ficar pior. Aconteceu outra mudança. Nós tínhamos um celular da empresa e cada um tinha também o seu celular particular. Quando esse cara chegou ele pediu os celulares particulares. Quando eu ia para a casa do meu namorado eu desligava o celular da empresa. Mas alguém poderia querer falar comigo, minha mãe. Então eu deixava o meu celular ligado. Sabe o que começou a acontecer? Começaram a chegar as mensagens e algumas lembranças no celular privado, às seis e vinte da manhã ou à meia-noite. Tenho aqui as mensagens, não apaguei [mostra para a entrevistadora]. Estou vendo aqui, olha [mostra no celular]. Essa é a que chegou mais cedo, cinco e cinquenta e cinco da manhã. Quer ver? Olha só o que ele escreveu: não se poupem.

Ao ser questionada sobre o motivo de não ter apagado as mensagens:

Não sei, não sei bem, talvez lembranças. Nosso horário também complicou. Não recebíamos hora extra. Todo mundo começou a trabalhar mais, a ficar mais na empresa. E o cara sempre gritando: alguém pensa que hoje é feriado? Era grosso isso e esse não é o nosso ambiente e nem o dos nossos clientes, era muito fora tudo aquilo. Mas eu comecei a não querer ficar mais tempo. Nossas viagens também aumentaram, visitas.

P. foi questionada sobre como lidou com essa situação:

Questionei, mas era a única. O cara me chamou de muito sensível, se eu não estava entendendo que isso era motivação. Estávamos no meio de uma guerra. Eu respondi: não é guerra nada e nem motivacional, é pé no saco mesmo. E sabe o pior? Tinha superiores ali, eles ouviram e eu sabia que eles não pensavam assim, mas não fizeram nada. Ou fizeram, uma conciliação, gestão de conflito.

Em relação a metas e clientes, ela relata:

Eu conhecia a realidade financeira dos clientes, sabia que para alguns era corda para se enforcar e me dei conta que meu cargo anterior era de proteção aos clientes. Eu comecei a ter um sofrimento, sei lá, acho que ético. O negócio que eu ia fechar, quando fechava porque era blefe, o cara não tinha clientes novos, ia ferrar com as pessoas. É mau negócio, bom para a empresa, mas ia ser o fim do caraTeve outra mudança também. Começamos a receber pela intranet um quadro atualizado diariamente com o desempenho de negócios de cada pessoa. No final do dia já dava aquele mal-estar para saber onde ficaríamos, bem ou mal na colocação. Mais os e-mails “motivacionais”: estamos na reta final. Eu pensava no outro gestor, a gente tinha controle sobre nós, mas era um controle saudável ... A minha meta era 400.000 reais por semana, com aqueles clientes. Eu me dava bem, apesar de tudo. Não era esse o problema. Era outra coisa, era essa coisa ética, eu tava ferrando, sabia que ia ferrar muitos clientes. Mas eu me dava bem, não foi por aí.

Ela também relata o momento de sua saída da instituição financeira.

Um momento eu pedi para sair. Não sei bem como foi. Eu me irritei muito também porque tinha isso do espaço, o cara invadia. Segunda-feira era cheio de piadinhas, sobre o que ele tinha visto no Face de cada um. As pessoas não acreditavam, mas comecei a falar. Olha, ele me perguntou sobre surf, eu tava na praia. Para outro veio com papo de pizzaria, tinha a ver com Face. Ele queria mostrar que sabia de tudo, controlava tudo. Comecei a perceber que eu não tinha mais assunto, eu só falava de trabalho. O meu namorado queria falar comigo sobre a vida dele, o que acontecia e eu não deixava, era só eu falando do meu trabalho, do que acontecia. Eu ficava muito irritada, cada vez mais irritada com tudo e por nada. Começamos a brigar mais, mas eu comecei a ficar ansiosa, não queria ficar sozinha. Isso foi ficando pior, pior. Fui ao médico e recebi o diagnóstico de Síndrome do Pânico. Mas aí me dei conta que eu não conseguia nem pedir demissão, não conseguia. A médica me disse que eu precisava de uma licença de saúde. Sabe para quê? Para conseguir pedir demissão, para chegar lá e fazer isso, para ficar forte para poder sair. Eu não percebi.

P. foi questionada sobre por que acha que não percebeu. “Acho que foi o dinheiro, ganhei muito dinheiro. Mas não adianta. Voltei, negociei minha saída”. Sobre a sua saída, ela acrescenta:

Não consigo ganhar tanto como ganhava lá, é difícil. Tenho muita ansiedade às vezes, parece que não vou dar mais conta. Do que eu fazia lá não dou mais conta mesmo. O que estou organizando e é isso que quero fazer é trabalhar como promotora [revendedora] da empresa X. Tenho muita experiência, trabalho quando quero, como quero, com pessoas conhecidas. Não vou ganhar mais tanto dinheiro, acho que nunca mais vou ganhar tanto dinheiro, mas não importa. Vou trabalhar por mim, para mim agora.

Quando P. foi questionada sobre a participação em processos seletivos de outras empresas, respondeu: ”Não consigo e não quero mais trabalhar em uma empresa, tem que ser por mim agora e vai ser melhor. Vou ser livre”.

Análise do Caso P.

Tomamos o relato de P. como exemplar em meio a outros relatos que se repetiram nas entrevistas do projeto que deu origem a este artigo. A empresa de P. sofreu um momento de mudança de valores organizacionais, com cobranças mais elevadas na gestão de si, pois a maior exigência sentida por P. era de sua forma de organização particular, sua responsabilidade e seu autocontrole. O resultado dessa estratégia da organização foi a intensificação dos esforços dedicados ao trabalho graças ao maior envolvimento, dedicação e produtividade obtidos sob formas de controle, obrigações e coerções, sentidos por P. como insuficiência.

P. não questiona as dinâmicas do mercado laboral nem as estratégias de exigências empresariais, como perfil de formação exigido elevado, tempo de trabalho indefinido, pois a separação tempo de vida e trabalho era borrada, contrato de trabalho com remuneração variável de acordo com o cumprimento das metas individuais e coletivas. Ela não coloca em questão o estreito meio no qual circula e busca assimilar a gestão que é proposta para a sua conduta como uma oportunidade que se abre.

Ela buscou adaptar-se à função de empregabilidade, segundo a qual a empresa não é mais responsável pela aprendizagem e desenvolvimento do trabalhador. Cada sujeito deve se responsabilizar pela aquisição de suas próprias competências, ser o empresário de si, cada um a se transformar em um capital que é preciso fazer render, uma busca pela excelência que almeja conquistar a boa performance para alcançar o sucesso. A busca da excelência é procurar ultrapassar-se, vencer a si próprio, uma conquista do indivíduo lutando contra si mesmo. O dispositivo motivacional acionado pelo gestor de P. coloca em tensão permanente sistemas de avaliação e de competição, dividindo o universo da organização e da vida em dois grupos antagônicos: os vencedores, os gestores do sucesso e os vencidos, que não têm mais lugar na organização.

A preocupação motivacional ou com a excelência é associada com a seleção permanente dos trabalhadores, o indivíduo vive em automonitoramento e avaliação constante. Ao ser interiorizada, a avaliação torna-se incessante, uma intimidação permanente em que todos estão em risco.

Um dos fatores de desgaste de P. foi o trabalho motivacional, aquele que daria suporte imaterial ao seu trabalho e que ocorria fora do seu horário de trabalho. A motivação era uma das garantias de mais desempenho, relacionada com seu salário, flexível e dependente do seu desempenho. Portanto, ela dispunha de uma renda flutuante.

Há também uma forte tensão entre a parte sedutora da empresa, o gestor anterior, mais humano, compreensivo, e o novo gestor hard, com o discurso motivacional que o sujeito tem que dar o máximo, disponível sempre, atento para a dureza do sistema, apontando para o desejo de êxito e o medo da exclusão, a ameaça de deixar de existir na empresa. Medo e frustração se fundem na derrocada de P. O sintoma de pânico, aprisionamento de P., foi revelador do seu verdadeiro espaço de liberdade. Ela era cativa da “gaiola de ferro invisível” (Weber, 1992Weber, M. (1992). The Protestant Ethic and the Spirit of Capitalism. London: Routledge .), pois não via sua prisão, apenas sentia que podia adaptar-se ou perecer. Essa é uma nova configuração da anatomia do poder, a reconfiguração dos espaços de poder e de liberdade. As novas práticas requerem capacidade de decisão, reconhecem liberdade de ação, mas gestionam essa liberdade e cabe ao sujeito a ela se ajustar.

O sujeito deve ser valorizado como potência de capacidade intelectual, como atividade individual e como produto da socialidade organizacional. O trabalhador tem valor como aquele que detém conhecimento, pois se a sociedade de controle abre para possibilidades reflexivas e criativas para a intervenção do sujeito na autogestão de suas opções durante o exercício do trabalho, nesse mesmo movimento se inaugura um novo regimento de assujeitamento, uma nova heteronomia, mais difícil de identificar. O enfrentamento entre o capital e o trabalho passa a se produzir no interior do sujeito, entre defender-se das exigências excessivas e trabalhar cada vez mais para melhorar a sua performance.

Os novos discursos da sociedade de controle apresentam-se como absolutamente pragmáticos, neutros de um ponto de vista valorativo, sem nenhum caráter excludente, voltados apenas para a eficiência e competitividade, no qual a dominação é muito difusa. Convivem nesse discurso uma racionalidade da sociedade de controle, que se expressa como alta performance, proatividade, participação com dispositivos disciplinares como sujeição ao poder hierárquico, práticas rígidas de controle e exclusão.

P. apresenta seu sofrimento como ameaça sentida diante de uma proximidade absoluta, o pânico, a instantaneidade total, a ameaça por coisas indefiníveis, a sensação de que não há defesa, não há nem a possibilidade da retirada, pois foi necessário uma licença de saúde e um período de distância para solicitar demissão. P. desenvolveu, após a sua demissão, um quadro clínico de síndrome do pânico. Isso faz pensar menos em um quadro psiquiátrico e mais em uma inscrição no corpo do que não pode ser nomeado: o terror diante do demasiado próximo, do que pode penetrar sem resistência, já que não há nenhum elo de proteção privada, nem seu próprio corpo pode protegê-la, ele está aberto a tudo. O privado deixou de ser regido pela sua lógica, não há mais privado e público, tal como foi a experiência do seu trabalho.

Para P., o novo trabalho “precário” criou uma nova identidade possível. É uma situação instável, sem garantias, mas a mantém ativa, com seus recursos pessoais autogeridos, com autonomia em algumas decisões, uma pequena garantia de certa liberdade. Nesse sentido, P. coloca a precarização como um fenômeno complexo, uma vez que, de um lado, há uma ressonância das lutas por condições de trabalho mais dignas, a aspiração de uma mudança no mundo do trabalho e do sistema econômico. Por outro lado, P. é apenas mais uma “colaboradora” intercambiável de vendas em rede, em uma empresa que não se compromete com a proteção social do trabalhador.

O sujeito sob a demanda de desempenho que visa a maximizar a produção oscila entre sentir-se fracassado e deprimido. O foco no rendimento individual positivo e na possibilidade infinita de aumento de produção é mais eficiente que a lógica disciplinar. P. não aponta tanto para o excesso de responsabilidade e iniciativa, mas para o imperativo do rendimento. O seu gestor é entendido como um sujeito que tem uma personalidade complicada, não como alguém que exerce uma política da própria organização, sendo que ele mesmo também estava implicado na mesma lógica que a faz sofrer, ele também explorava a si mesmo.

P. entende que há algo excessivo na sua positividade, nos estímulos, nos impulsos e nas informações, uma incitação à superação de um novo tipo: a superação na autoexploração, cujo ponto máximo de tensão produz um paradoxal desejo de liberdade e a escolha pela precarização como forma de livrar-se de mais autoexploração, o novo campo contemporâneo de trabalhos forçados. O seu exercício de liberdade foi a escolha da precarização.

Considerações finais

Neste artigo buscou-se problematizar a produção subjetiva de precarização. A precarização inicia a sua produção a partir de um sentimento de insegurança associado à capacidade de cada um de exercer sua função, pois o risco da insuficiência diante do desempenho está sempre presente de modo ameaçador. Ocorre a aparente escolha pelo fim de uma carreira linear organizacional a favor da liberdade e da qualidade de vida de um trabalho precário.

No caso estudado, a escolha por um trabalho precário apresenta-se como se fosse uma escolha livre e racional, ou seja, a melhor escolha dentro de uma racionalização possível, respondendo a uma nova realidade individual de ajuste entre a experiência de vida profissional de P. e sua nova condição de trabalho. Para P., trata-se de um exercício de soberania. Ela realizou uma prática de autoverificação e diagnosticou que essa é a melhor conduta diante de suas novas regras de sua vida e de sua possibilidade de trabalho, sem que em nenhum momento seja questionado o regime de poder que rege tais práticas da organização.

P. equacionou como insuficiente a escolha por um trabalho precário, racionalizado por um discurso de escolha a favor da qualidade de vida. A precarização é uma nova tecnologia de si, um novo modo de se transformar e controlar sua própria vida com “cuidado”, sendo esse seu valor de verdade.

A perspectiva de uma governamentalidade neoliberal, de uma racionalidade gerencial emergente que determina discursos, sistemas de pensamento e ação, estratégias, programas e táticas é totalmente opaca para P. Há uma discordância entre a sua personalidade e a do novo gestor, uma “psicologização” que bloqueia qualquer acesso a outra zona não só de inteligibilidade como de resistência e reflexão. Ainda que P. questione seu sofrimento ético, ela o faz como se fosse uma falha pessoal diante de uma nova configuração da organização. Portanto, marca a sua exclusão diante da nova estrutura da organização.

Acreditamos que este trabalho problematiza a precarização como uma escolha consciente relacionada com modos alternativos e resistentes de vida. No caso apresentado, a escolha pelo trabalho precário não significou a vitória do desejo de desfrutar o seu próprio trabalho, mas a simples necessidade de manter a subsistência material de modo altamente racionalizado.

A governabilidade neoliberal e seu modo de subjetivação estão presentes nesse processo de individualização, pois a produção e simples reprodução coincidem, as relações de governamentalização operam não somente no trabalho, mas na produção de si, nas relações consigo mesmo para a produção não de uma nova forma de vida, mas na garantia que a tarefa de reprodução do mesmo está a cargo de cada um. O trabalho não é criação, mas garantia de reprodução da responsabilidade de cada um por si mesmo. Essa é uma das razões que determina a dificuldade de reconhecer a precarização como fenômeno estrutural que não pode ser articulado como uma decisão livre.

Notamos que esse é um entendimento ainda incipiente sobre a precarização subjetiva e a sua escolha. Além disso, foi realizada a partir de estudo de caso único, que apesar de ser interessante, não apreende a complexidade do fenômeno. Assim, é necessário aprofundar e ampliar a questão da produção subjetiva de precarização, buscando entender possíveis modos de resistência e as possíveis produtividades e diferenciações subjetivas da vida precária.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2017

Histórico

  • Recebido
    18 Maio 2016
  • Revisado
    03 Nov 2016
  • Aceito
    20 Dez 2016
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