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O SINTAGMA IDENTIDADE-METAMORFOSE-EMANCIPAÇÃO E SUA RELAÇÃO COM O CONSTRUTO MUNDO DA VIDA

EL SINTAGMA IDENTIDAD-METAMORFOSIS-EMANCIPACIÓN Y SU RELACIÓN CON EL CONSTRUCTO MUNDO DE LA VIDA

THE SYNTAGMA IDENTITY-METAMORPHOSIS-EMANCIPATION AND ITS RELATIONSHIP WITH THE CONSTRUCT WORLD OF LIFE

Resumo

O presente artigo objetiva discorrer acerca das relações entre o sintagma Identidade-Metamorfose-Emancipação e o construto Mundo da Vida. Realizamos uma pesquisa bibliográfica dentro da perspectiva da Psicologia Social Crítica que discute o sintagma supracitado. Privilegiamos aqueles que ofereceram subsídios históricos e epistemológicos para a compreensão do pensamento de Antonio Ciampa e colaboradores e as relações com o pensamento habermasiano mediante o construto Mundo da Vida. Iniciamos as discussões apresentando a formação histórica do pensamento de Ciampa junto à Psicologia Social. Posteriormente, expusemos a consolidação do sintagma Identidade-Metamorfose-Emancipação devido à aproximação com a Teoria Crítica de Jürgen Habermas e as colaborações de Aluísio Lima e Juraci Almeida. Em seguida, discorremos acerca das dimensões do Mundo da Vida mediante sua vinculação com o pensamento filosófico e sociológico de Edmund Husserl, Alfred Schutz, Peter Berger e Thomas Luckmann. Por fim, apresentamos novos interesses de pesquisa como exemplos da própria metamorfose do sintagma.

Palavras-chave:
identidade-metamorfose-emancipação; mundo da vida; psicologia social crítica

Resumen

Este artículo tiene como objetivo discutir la relación entre el sintagma “Identidad-Metamorfosis-Emancipación” y el constructo Mundo de la Vida. Realizamos una investigación literaria desde la perspectiva de la Psicología Social Crítica que discute el sintagma expuesto. Privilegiamos los autores que ofrecían elementos históricos y epistemológicos para la comprensión del pensamiento de Antonio Ciampa y las relaciones con el pensamiento de Habermas a través del constructo Mundo de la Vida. Comenzamos las discusiones presentando la formación histórica del pensamiento de Ciampa con la Psicología Social. Más adelante, expusimos la consolidación del sintagma “Identidad-Metamorfosis-Emancipación” debido al enfoque de la teoría crítica de Jürgen Habermas y las colaboraciones de Aluísio Lima y Juraci Almeida. Hablamos de las dimensiones del mundo de la vida por su conexión con el pensamiento filosófico y sociológico de Edmund Husserl, Alfred Schutz, Peter Berger y Thomas Luckmann. Para finalizar, presentamos nuevas líneas de investigación como ejemplos de la propia metamorfosis del sintagma.

Palabras clave:
identidad-metamorfosis-emancipación; mundo de la vida; la psicología social crítica

Abstract

This article aims to discuss about the relationship between the syntagma Identity-Metamorphosis-Emancipation and construct World of Life. We conducted a literature search from the perspective of Critical Social Psychology discussing the above phrase. We favor those who offered historical and epistemological elements to comprehend the thought of Antonio Ciampa and employees and relations with Habermas thought through to construct the World of Life. We began discussions presenting the historical formation of the thought of Ciampa with the Social Psychology. Later we exposed the consolidation of the syntagma Identity-Metamorphosis-Emancipation due to the approach to the Critical Theory of Jürgen Habermas and collaborations Aluísio Lima and Juraci Almeida. Then we discus about the dimensions of the world of life by their connection with the philosophical and sociological thought of Edmund Husserl, Alfred Schutz, Peter Berger and Thomas Luckmann. Finally, we present new research interests as examples of their own metamorphosis of the words.

Keywords:
identity-metamorphosis-emancipation; world of life; critical social psychology

Introdução

Nos anos 70, Silvia Lane inaugura no âmbito da Psicologia Social do Brasil um importante movimento radical com uma proposta teórico-metodológica e ético-política alternativa à psicologia social, até então predominantemente de orientação positivista e pragmática, advinda da forte influência americana de massiva instrumentalização metodológica quantitativa. Inspirada por uma postura marxista, especificamente, uma orientação materialista, histórica e dialética, Silvia Lane inicia o projeto de construção de uma psicologia ancorada na visão de que o homem é produto e produtor da história. Em outras palavras, numa perspectiva ontológica, o homem é construído na sua implicação histórica na interação com o mundo, pela atividade humana, como o trabalho, e pela linguagem, como veículo de comunicação de símbolo, signos e sentidos (Lane, 2012Lane, S. T. M. (2012). A psicologia social e uma nova concepção do homem para a psicologia. In S. T. M. Lane & W. Codo (Orgs.), Psicologia Social: o homem em movimento (pp. 10-19). São Paulo: Brasiliense .).

Alguns de seus alunos tornaram-se grandes colaboradores na construção do que hoje se conhece como Psicologia Social Crítica (Lima, Ciampa, & Almeida, 2009Lima, A. F., Ciampa, A. C., & Almeida, J. A. M. (2009). Psicologia Social como Psicologia Política? Uma discussão acerca da relação entre teoria, prática e práxis. Revista Psicologia Política, 9(18), 223-236.; Sawaia, 2002Sawaia, B. B. (2002). Psicologia Social Laneana, conhecida fora do país como a “Escola de São Paulo”. In B. B. Sawaia & S. Lane (Orgs.), Pioneiros da Psicologia Brasileira (pp. 37-88). Rio de Janeiro: Imago.). Entre eles está Antônio da Costa Ciampa (2009), com sua tese de doutorado intitulada Estória de Severino e História de Severina: um ensaio de Psicologia Social. Esse autor inaugura uma nova perspectiva de identidade humana, que passou a ser vista enquanto metamorfose. Com a tese de que “identidade é metamorfose. E metamorfose é vida” (2009, p. 133), nasce, por um lado, um novo modo de estudar, pensar e investigar a identidade dentro da psicologia social, e, por outro lado, reivindica e apresenta os aspectos políticos no fazer científico, especialmente no que se refere à (des)construção e (des)articulação das ideologias vigentes. O homem constitui sua identidade em um processo de construção histórica, em uma relação dialética com o mundo, na qual a identidade emerge como a síntese mediante os diversos personagens que os sujeitos assumem e os significados e sentidos a eles atrelados.

Para tal empreitada, frente aos padrões metodológicos vigentes na época, Ciampa (2009Ciampa, A. C. (2009). A Estória do Severino e a História da Severina: um ensaio de Psicologia Social. (11ª ed.). São Paulo: Brasiliense . (Originalmente publicada em 1987).) revoluciona ao se utilizar de uma metodologia inaugural: a narrativa de história de vida. Superando a dicotomia social/individual, ele se vale de duas narrativas, mais especificamente, do poema Morte e Vida Severina de João Cabral de Melo Neto e das narrativas autobiográficas de Severina, as quais “são articuladas para demonstrar como o singular pode materializar o universal”, mediante a explicitação de “como os sujeitos sempre que convocados para fazerem suas apresentações perante outros assumem uma forma pressuposta e performativa de personagens em busca de algum tipo de interação” (Lima, 2014Lima, A. F. (2014). História oral e narrativas de história de vida: a vida dos outros como material de pesquisa. In A. F. Lima & N. Lara (Orgs.), Metodologias de pesquisa em Psicologia Social Crítica (1ª ed., pp. 13-34). Porto Alegre: Sulina. , p. 19). Ciampa costuma fazer referência a Canetti ao dizer que “só pela metamorfose (no sentido extremo em que essa palavra é usada aqui) seria possível sentir o que um homem é por trás de suas palavras: não haveria outra forma de apreender a verdadeira consistência daquilo que nele vive” (Canetti, 1990, p. 282Canetti, E. (1990). O ofício do poeta. In A consciência das palavras: ensaios (p. 282). São Paulo: Companhia das Letras.).

Essa metodologia possibilitou, portanto, que Ciampa observasse metamorfoses que ocorrem ao longo da vida através dessas narrativas. Nesse sentido, ele também se alinhou às discussões trazidas por Walter Benjamin, cujos trabalhos demonstram como temos nos utilizado de métodos simplificadores quando tratamos das condições de existência humana, por estarmos alienados do ideal de produção capitalista, “como se estivéssemos privados de uma faculdade que nos parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências” (Benjamin, 1994, p. 198Benjamin, W. (1994). Obras escolhidas: Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense.). Ciampa desejou resgatar o narrador, que segundo Benjamin (1994) está em vias extinção, há muito esquecido e sufocado, por trazer as contradições do sistema e por apontar o mal-estar cotidiano. O mesmo narrador que permite vislumbramos o feitiço libertador que vivenciamos pela primeira vez em nossa infância ao escutarmos um conto de fadas e que provoca aquela sensação de liberdade.

Outro autor que o influencia na adoção da narrativa de história de vida é Jean-Paul Sartre (1984Sartre, J. (1984). Questão de método. In O existencialismo é um humanismo, a imaginação e questão de método (pp. 155). São Paulo: Abril Cultural.), principalmente por sua explanação do método progressivo regressivo desenvolvido em seu trabalho intitulado “Questão de método”. Torna-se essencial para Ciampa a ideia que o homem se caracteriza, antes de tudo, por sua capacidade de superação das circunstâncias dadas e de seu projeto de vida. Apenas por meio de um confronto dialético, segundo Sartre, é que esses projetos humanos compreendem “que este resultado seja uma realidade nova e provida de significação própria, em lugar de ser muito simplesmente uma média” (Sartre, 1984, p. 155).

Quando Ciampa analisa as narrativas de história de vida, procura distinguir as personagens encarnadas pelo sujeito dentro da narrativa, tentando observar as articulações dessas personagens entre si, como realidade subjetiva, constituída a partir da internalização e da interiorização, e como realidade objetiva, que envolve a normatividade e a intersubjetividade. A ideia de projeto trazida por Sartre permitiu observar a articulação dessas personagens e desvelou como ocorrem as reposições, bem como as superações de personagens corporificadas pelo indivíduo.

Segundo a apreciação de Lane, os problemas científicos sobre as pesquisas de identidade agora passaram a ser, a partir daí, também problemas políticos. “Chega-se assim à identidade como metamorfose desvendando a ideologia da não transformação do ser humano na condição de não transformação da sociedade” (Lane, 2009, p. 12Lane, S. T. M. (2009). Prefácio. In A. C. Ciampa (Ed.), A Estoria do Severino e a História da Severina: um ensaio de Psicologia Social (11ª ed., pp. 11-13). São Paulo: Brasiliense . (Originalmente publicada em 1987)). Graças à perspectiva dialética adotada por Ciampa, os processos psicossociais são questionados mediante a problematização da identidade como resultado da atividade humana nas interações no mundo e, concomitantemente, pela (des)naturalização da consciência atravessada pelas ideologias vigentes. “A preocupação com a objetividade do empírico abre espaço para a subjetividade como processo histórico”. Todavia, a criatividade e a emoção, categorias originais de Ciampa, surgem “demonstrando que a ciência pode ser bela e produto de um ato de amor como próprio autor afirma” (Lane, 2009, pp. 12-13Lane, S. T. M. (2009). Prefácio. In A. C. Ciampa (Ed.), A Estoria do Severino e a História da Severina: um ensaio de Psicologia Social (11ª ed., pp. 11-13). São Paulo: Brasiliense . (Originalmente publicada em 1987)).

Na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Ciampa dirigiu o Grupo Interdisciplinar de Pesquisa sobre Identidade Humana - NEPIM/PUCSP, no qual desenvolve e orienta pesquisas no Programa de Estudos Pós-graduados em Psicologia Social. Ao longo desses mais de 30 anos, com mais de 125 orientações concluídas, foi possível constituir um projeto teórico-metodológico de investigação consolidado sobre identidade humana em busca de emancipação. Interessante frisar que houve uma metamorfose, uma mudança significativa nos trabalhos de Ciampa a partir de 1999.

Ao longo dos anos, ele começou a se dar conta que a concepção de identidade como metamorfose por si só já não conseguia mais responder às questões trazidas inicialmente. Ele foi compreendendo que não bastava mais pensar a identidade apenas como metamorfose, pois começou a se deparar com a cooptação da concepção de metamorfose pelo próprio sistema. Se antes a ideia proposta pelo sistema, e criticada por Ciampa, era de uma identidade cristalizada, foco de suas críticas, com o passar dos anos, ele percebeu que o próprio sistema impulsionava os indivíduos para uma transformação constante. Nesse sentido, a própria ideia de metamorfose passou a necessitar de uma leitura crítica que pudesse assinalar a diferenciação. Foi a partir dessas análises que, no Encontro Nacional da Associação Brasileira de Psicologia Social (ABRAPSO) em 1999, Ciampa propôs ampliar a concepção identidade-metamorfose para o sintagma Identidade-Metamorfose-Emancipação.

Desse modo, a partir de então, a identidade precisou ser entendida como metamorfose humana em busca de emancipação, que pode ser conquistada ou não, na medida em que está sujeita ao desenvolvimento de uma identidade pós-convencional. Ciampa endossou que a temática da emancipação nas pesquisas de identidade passou a ocupar posição importante, como norteadora de elucidação das vias alternativas de construção de formas vidas para além das impostas pela cultura capitalista (Lima & Ciampa, 2012Lima, A. F. & Ciampa, A. C. (2012). Metamorfose humana em busca de emancipação: a identidade na perspectiva da Psicologia Social Crítica. In A. F. Lima (Org.), Psicologia Social Crítica: paralaxes do contemporâneo (1ª ed., pp. 11-30). Porto Alegre: Sulina ., p. 20).

Almeida (2005Almeida, J. A. M. (2005). Sobre a Anamorfose: identidade e emancipação na velhice. Tese de Doutorado, Programa de Pós-graduação em Psicologia Social. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, SP.), com a tese sobre Anamorfoses das Metamorfoses e Lima (2010Lima, A. F. (2010). Metamorfose, anamorfose e reconhecimento perverso: a identidade na perspectiva da Psicologia Social Crítica (1ª ed.). São Paulo: FAPESP; EDUC. ), preocupado com os agenciamentos dos Reconhecimentos Perversos contemporâneos, colaboram com Ciampa no fortalecimento e avanço dos trabalhos sobre o Sintagma Identidade-Metamorfose-Emancipação (Lima, 2012Lima, A. F. (2012). A identidade como “problema” de pesquisa. ECOS - Estudos Contemporâneos da Subjetividade, 3(2), 215-229.). Para a consecução de seus trabalhos, ambos os autores se valem das contribuições de filósofos, sociólogos e psicólogos que, em uma perspectiva crítica, buscam denunciar as diversas formas de captura da vida humana pelas complexas e sutis estratégias do capitalismo contemporâneo.

Dentre os vários autores que influenciaram a ampliação da concepção do sintagma Identidade-Metamorfose-Emancipação está Jürgen Habermas, que aparece ainda de forma modesta no início dos trabalhos de Ciampa. As obras de Habermas foram incorporadas, desde a tese de Ciampa, nas discussões sobre os agenciamentos da racionalidade instrumental nos atravessamentos ideológicos e alienadores presentes em interações linguísticas. Por outro lado, também se vislumbrava, na alternativa habermasiana de racionalidade comunicativa, as vias de transformação social nos fragmentos de emancipação transformadores das vidas humanas. Atualmente, em colaboração com Almeida e Lima, o pensamento de Habermas é atualizado dentro do sintagma, concomitantemente, com os avanços na consolidação da sua Teoria da Ação Comunicativa (Lima, 2010).

Na Teoria da Ação Comunicativa, com as leituras de Habermas sobre as teorias fenomenológicas de Edmund Husserl, Alfred Schutz, Tomas Luckmann e Peter Berger, as discussões sobre o tema filosófico do Lebenswelt, traduzido para português como Mundo da Vida, apresentaram a fundação intersubjetiva necessária para a consubstancialização de uma teoria pragmático-linguística pautada em uma racionalidade comunicativa (Lima, 2010Lima, A. F. (2010). Metamorfose, anamorfose e reconhecimento perverso: a identidade na perspectiva da Psicologia Social Crítica (1ª ed.). São Paulo: FAPESP; EDUC. ; Oliveira, 1999aOliveira, N. F. (1999a). Mundo da vida: a apropriação habermasiana de Husserl e Wittgenstein. Veritas, 44(1), 133-146., 1999bOliveira, N. F. (1999b). Mundo da vida: Habermas, mundo da vida e a “terceira via” do moderno. In Tractatus Ethico-Politicus (1ª ed., pp. 189-210). Porto Alegre: Edipucrs.). O conceito habermasiano de mundo da vida é o espaço da ação comunicativa.

Para Lima (2015Lima, A. F. (2015). A Teoria Crítica de Jürgen Habermas: cinco ensaios sobre linguagem, identidade e Psicologia Social (1ª ed.). Porto Alegre: Sulina .), o Lebenswelt habermasiano se estrutura nas relações de socialização e individualização mediadas pela linguagem, em três esferas de organização da intersubjetividade: a cultura, reserva de conhecimento mantido pela linguagem, pelas tensões da modernidade com a tradição; a sociedade, formalizada pelas normas e instituições reguladoras das interações humanas; e a personalidade, nas motivações pessoais produtoras de identidades e que permite as apropriações particulares do mundo da vida (Habermas, 1987Habermas, J. (1987). Teoria de la accion comunicativa. Madrid: Taurus.).

Para além do sentido da fundamentação, o Mundo da Vida faz referência também às críticas habermasianas sobre as sutis e complexas formas de dominação capitalista contemporâneas, pela via de uma racionalidade instrumental-cognitiva, que deturpam os processos dialógicos da comunicação e socialização humana. Colonização do mundo da vida é como Habermas diagnosticou toda lógica desvirtuadora das interações comunicativas e compreensivas das interações linguísticas dos indivíduos (Lima, 2015Lima, A. F. (2015). A Teoria Crítica de Jürgen Habermas: cinco ensaios sobre linguagem, identidade e Psicologia Social (1ª ed.). Porto Alegre: Sulina .). O resultado se configura pela substituição dos processos democráticos comunicativos pelas particulares interpretações morais, cognitivistas, pressões de valores de organizações sociais e comunitárias. Todos conduzem a uma coisificação da vida humana, empobrecimento cultural e esquecimento das tradições.

O mundo da vida apresentado por Habermas é estruturado através das tradições, instituições, identidades surgidas a partir dos processos de socialização e individualização e mediadas pela linguagem.

Os componentes do mundo da vida resultam da continuidade do saber válido, da estabilização de solidariedades grupais, da formação de atores responsáveis e se mantém através deles. A rede da prática comunicativa cotidiana espalha-se sobre o campo semântico dos conteúdos simbólicos, sobre as dimensões do espaço social e sobre o tempo histórico, constituindo o meio através do qual se forma e se produz a cultura, a sociedade e as estruturas da personalidade. (Habermas, 1990Habermas, J. (1990). Pensamento pós-metafisico: estudos filosóficos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro., p. 96)

A riqueza conceitual de Lebenswelt oferece ao sintagma diferentes elementos epistemológicos e teóricos para a ampliação dos trabalhos de investigação e compreensão da construção da identidade humana enquanto metamorfose, na sua experiência no mundo da vida. Nessa esteira, os trabalhos se diversificam em temáticas sobre a identidade humana (Almeida, 2005Almeida, J. A. M. (2005). Sobre a Anamorfose: identidade e emancipação na velhice. Tese de Doutorado, Programa de Pós-graduação em Psicologia Social. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, SP.; Ciampa, 2009Ciampa, A. C. (2009). A Estória do Severino e a História da Severina: um ensaio de Psicologia Social. (11ª ed.). São Paulo: Brasiliense . (Originalmente publicada em 1987).; Lima, 2010Lima, A. F. (2010). Metamorfose, anamorfose e reconhecimento perverso: a identidade na perspectiva da Psicologia Social Crítica (1ª ed.). São Paulo: FAPESP; EDUC. ), a epistemologia, a metodologia de pesquisa (Lima, 2014, 2015) e grupos de pesquisa, como, além do NEPIM, o Grupo Interdisciplinar de Estudos, Pesquisas e Intervenções em Psicologia Social Crítica (Paralaxe), vinculado ao Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Ceará.

O Sintagma e Psicologia Social Crítica

Mas, afinal, qual a implicação psicossocial da inteligibilidade do construto Metamorfose Humana? Ou melhor, quais as implicações do construto Metamorfose em busca de Emancipação para a Psicologia Social Crítica?

Lima e Ciampa (2012Lima, A. F. & Ciampa, A. C. (2012). Metamorfose humana em busca de emancipação: a identidade na perspectiva da Psicologia Social Crítica. In A. F. Lima (Org.), Psicologia Social Crítica: paralaxes do contemporâneo (1ª ed., pp. 11-30). Porto Alegre: Sulina ., p. 24) argumentam acerca dessa problemática ao postularem a centralidade do referido sintagma para os trabalhos de uma ciência psi criticamente orientada, especialmente quando se tem por objetivo a compreensão da identidade enquanto expressão de uma luta pela humanização, “pelo reconhecimento frente ao sistema capitalista, sistema em que prevalece o interesse da desrazão - a ‘razão interesseira’ - em favor de um falso universal, que torna abstrata a noção de Humanidade como universal concreto”. Devemos, portanto, compreender o processo de socialização e individuação do sujeito concretizado pelas suas significações sobre o mundo mediante os jogos de reconhecimento que participa. “Isso nos leva a admitir que se a identidade manifesta-se a partir de uma pluralidade de personagens ou se ela torna-se reduzida a uma personagem fetichizada, ainda assim é pela relação de reconhecimento que ela se mantém estruturada” (Lima & Ciampa, 2012, p. 24).

Na Estória de Severino e História de Severina: um ensaio de Psicologia Social, Ciampa (2009Ciampa, A. C. (2009). A Estória do Severino e a História da Severina: um ensaio de Psicologia Social. (11ª ed.). São Paulo: Brasiliense . (Originalmente publicada em 1987).) discute as formulações da metamorfose a partir da produção das histórias da vida humana mediante o recurso dramatúrgico das personagens. “Por ora, queremos apenas apontar o fato de que uma identidade nos aparece como a articulação de várias personagens, articulação de igualdades e diferenças, constituindo - e constituídas por - uma história pessoal” (Ciampa, 2009, p. 161).

Ao longo de nossa vida, no processo de singularização por meio de nossa participação social, graças à nossa inserção no mundo da linguagem, construímos nossa individualidade através das mediações e dos significados postos que garantem as representações dos personagens; à medida que eles vão se constituindo, “vai se constituindo também um universo (imaginário no caso do poema), que ‘é um conjunto de significações constituídas em virtudes das relações inter e intraimagens’” (Ciampa, 2009Ciampa, A. C. (2009). A Estória do Severino e a História da Severina: um ensaio de Psicologia Social. (11ª ed.). São Paulo: Brasiliense . (Originalmente publicada em 1987)., p. 160). Todavia, atravessando todo esse processo de construção desse universo, existem dois importantes movimentos histórico-temporais que regulam a manutenção e/ou as transformações dessas personagens, chamados de mesmice e mesmidade.

A mesmice refere-se à reposição de atributos de uma personagem em uma permanente igualdade, transformando-a em mera abstração. Ela decorre da reposição da identidade, que pode se dar como consciente busca de estabilidade ou inconsciente compulsão à repetição. É pressuposta como dada permanentemente, e não como reposição de uma identidade que um dia foi posta, o que pode dar uma aparência de não metamorfose. As consequências dessa persistente reposição é o sufocamento da temporalidade e a anulação da diferença. Assim os momentos de identidade deixam de ser a articulação da diferença e da igualdade, pois a unidade dessa articulação é desmembrada com suposta independência da temporalização da vida da metamorfose (Ciampa, 2009Ciampa, A. C. (2009). A Estória do Severino e a História da Severina: um ensaio de Psicologia Social. (11ª ed.). São Paulo: Brasiliense . (Originalmente publicada em 1987)., p.206).

O que sustenta a mesmice é o impedimento da emancipação, ao passo que, na sua plena concretização, ocorre aquilo que Ciampa chama de fetichismo da personagem, que vai explicar “a quase impossibilidade de um indivíduo atingir a condição de ser-para-si, ocultando a verdadeira natureza da identidade como metamorfose e gerando o que será chamado identidade mito” (Ciampa, 2009, p. 140, grifo do autor), o mundo da mesmice (da não-mesmidade) e da má infinidade (a não superação das contradições), em que a própria atividade que serve de base para a personagem deixa de ser desempenhada: Severino “é lavrador, mas já “não lavra.

Contudo, o impedimento da emancipação e a manutenção da mesmice não se constituem como inevitáveis para o indivíduo. A impossibilidade de viver sem personagens e a ideia de ser-para-si possibilita a alterização da identidade, que se torna possível por meio da negação da negação. Ciampa explica dizendo que:

A negação da negação permite a expressão do outro outro que também sou eu: isso consiste na alterização da minha identidade, na eliminação de minha identidade pressuposta (que deixa de ser re-posta) e no desenvolvimento de uma identidade posta como metamorfose constante, em que toda a humanidade contida em mim se concretiza. Isso permite me representar (1o sentido) sempre como diferente de mim mesmo (deixar de presentificar uma representação de mim que foi cristalizada em momentos anteriores, deixar de repor a identidade pressuposta). (Ciampa, 2009Ciampa, A. C. (2009). A Estória do Severino e a História da Severina: um ensaio de Psicologia Social. (11ª ed.). São Paulo: Brasiliense . (Originalmente publicada em 1987)., p 181, grifo do autor)

A estreita relação entre tempo e história ganha materialidade pela alterização dos diversos personagens ao longo da história de vida de uma metamorfose. Esses movimentos de uma vida humana caracterizam-se pelo poder de negação das estruturas sociais e culturais, especialmente as estratégias de dominação capitalista, que negam o universo de possibilidade do mundo, restringindo o homem a viver com as alternativas tidas como possíveis, corretas e permissíveis aos sujeitos. Ciampa alude à negação pelo trocadilho negação da negação. Longe de peripécia linguística, trata da eliminação das pressuposições das identidades (que deixa de ser re-posta) para o desenvolvimento de uma identidade como metamorfose constante, posta pela concretude de uma humanização expressa por um outro Outro que também sou eu (Ciampa, 2009, p.189).

A mesmidade compreende a novidade de diferente apropriação histórica. Trata-se de salto qualitativo de abandono de pressupostos quantitativos de orientação no mundo para uma nova forma de interação com o mundo permeada de apropriação de novos sentidos e significados próprios da metamorfose, acumulados por ela na sua própria história de vida. A partir desse processo criativo de formulação e construção de novos projetos de vida, uma metamorfose humana se materializa na sua história pelas alterizações das formas vidas pelo abandono, pela criação e coexistência dos diversos personagens acumulados na história de uma vida. A alterização expressa mudança significativa pelos saltos qualitativos viabilizados pelas reservas quantitativas; pois mesmo que às vezes insignificantes, invisíveis, são graduais e efetivas (Ciampa, 2009Ciampa, A. C. (2009). A Estória do Severino e a História da Severina: um ensaio de Psicologia Social. (11ª ed.). São Paulo: Brasiliense . (Originalmente publicada em 1987).).

Todo esse processo histórico particular se constrói sobre uma estrutura social de interação com semelhantes, os quais, compartilhando e (re)criando conteúdos simbólicos e significados sociais pelas linguagem, agenciam a manutenção de identidades. Entretanto, também agenciam vias alternativas de construção de identificações emancipatórias. Anos depois, Ciampa (1998Ciampa, A. C. (1998). Identidade humana como metamorfose: a questão da família e do trabalho e a crise de sentido na modernidade. Interações, 3(6), 87-101., p. 93) se vale da perspectiva habermasiana do Lebenswelt para apresentar a estrutura sociocultural da intersubjetividade mediante “a socialização das gerações humanas, com as quais se produzem indivíduo, sociedade e cultura, ou seja, os três elementos componentes do que Habermas denomina mundo da vida (que se diferencia do mundo sistêmico, ou melhor, do sistema)”.

Almeida (2005Almeida, J. A. M. (2005). Sobre a Anamorfose: identidade e emancipação na velhice. Tese de Doutorado, Programa de Pós-graduação em Psicologia Social. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, SP.) e Lima (2009Lima, A. F.(2009). Sofrimento de indeterminação e reconhecimento perverso: um estudo da construção da personagem doente mental a partir do sintagma identidade-metamorfose-emancipação. Tese de Doutorado, Programa de Pós-graduação em Psicologia Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, SP.), com suas teses de doutorado, além de ampliarem a inteligibilidade psicossocial do construto de Ciampa, aprofundam as problemáticas sobre o panorama capitalista contemporâneo por meio do pensamento habermasiano. Aprofundam as problemáticas de interferências e perversão das identidades humanas através dos agenciamentos da racionalidade instrumental que, segundo Habermas, difundem-se no nosso cotidiano. São formas estratégicas de Colonização do mundo da vida que usurpam as vias dialógicas de interação entre os sujeitos e, concomitantemente, dominam as formas de vidas particulares humanas com claros e sutis propósitos de controle e cooptação para os interesses de uma razão interesseira pelo poder e dinheiro.

Juracy Almeida, com a tese Sobre Anamorfose: Identidade e Emancipação na velhice (2005Almeida, J. A. M. (2005). Sobre a Anamorfose: identidade e emancipação na velhice. Tese de Doutorado, Programa de Pós-graduação em Psicologia Social. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, SP.), colabora com os trabalhos do Ciampa trazendo como problemática as distorções imagéticas da metamorfose que camuflam a condição humana, seja pelas exigências de adaptação dentro do sistema de normas sociais, seja pela apresentação de formas excepcionais de representação no mundo. “A anamorfose, contudo, pode ser pensada a partir de um outro registro, o dos projetos singulares/particulares que se antepõem aos modelos estabelecidos. Ou seja, daqueles projetos que enunciam a possibilidade de autonomia e de revitalização pessoal/grupal” (Almeida, 2002, p. 59Almeida, J. A. M. (2002). Identidade, anamorfose e emancipação: uma leitura do conto “A velha senhora indigna” de Bertold Brecht. Revista Kairós, 5(1), 73-111.). Trata-se de um jogo de perspectivas visuais: ora, pelo mundo, podem ser vistos como aberrações, ora, pelo ponto de vista dos sujeitos, vistos como projetos emancipatórios. Esse jogo é mediado pelos modelos propostos (impostos), o que sugere as deformações (anamorfoses) das imagens de si idealizadas, projetadas. A resultante dessas anamorfoses pode variar de alucinações que provocam incertezas, mal-estar, insatisfações até projetos de luta e resistência, para reivindicação e construção de novos modelos e formas de vida (Almeida, 2002, 2009).

O livro Metamorfose, anamorfose e reconhecimento perverso: a identidade na perspectiva da Psicologia Social Crítica, de Aluísio Lima (2010Lima, A. F. (2010). Metamorfose, anamorfose e reconhecimento perverso: a identidade na perspectiva da Psicologia Social Crítica (1ª ed.). São Paulo: FAPESP; EDUC. ), apresenta um interessante estudo sobre as políticas de identidade dentro do sistema de saúde mental brasileiro que agenciam, mediante o discurso psiquiátrico, formas de reconhecimento perverso que aprisionam os sujeitos no condizente e cristalizado personagem doente mental. Um papel social por ele resgatado na historiografia das políticas de saúde mental brasileira, na explicitação da formação da loucura, por um lado, e no fracasso da reforma psiquiátrica, por outro. Para apresentar sua problematização, o autor vê na história de Severina, escrita por Ciampa, esse mecanismo operando:

Ela aceita (estrategicamente) o reconhecimento perverso que lhe fora atribuído ao ser diagnosticada como doente mental - reconhecimento perverso não por que a reconhece como alguém ali com uma situação problemática, mas perverso por que desconsidera toda sua história e a convence de que o problema é uma loucura individual - e dramatiza a personagem diante do médico (não como escrava, mas como atriz que espera ser bem-sucedida no papel desempenhado) até ser aposentada. (Lima, 2010Lima, A. F. (2010). Metamorfose, anamorfose e reconhecimento perverso: a identidade na perspectiva da Psicologia Social Crítica (1ª ed.). São Paulo: FAPESP; EDUC. , pp. 216-217)

Com base nas teses acima descritas e nos artigos/livros referenciados ao longo deste artigo acerca do sintagma, constatamos que as problematizações sobre o construto da Metamorfose em busca de Emancipação anunciam o Mundo da Vida como o fundamento onde a vida humana transcorre, transforma e é transformada pelo mundo. Ao falarmos das formas de comprometimento da vida humana, por exemplo com o signo da identidade fetiche, podemos estar problematizando as estratégias de colonização do mundo vida no agenciamento psicossocial das interações humanas.

Almeida (2009) ao nos ensinar que a vida cultural se submete à razão instrumental, colonizada pelos sistemas burocráticos e financeiros contemporâneos, percebe que as relações sociais atendem a uma lógica interesseira que promove interações coercitivas. Tais contatos corrompem as possibilidades de comunicação livre entre os indivíduos restringindo e dificultando o diálogo e o entendimento. Tal lógica de controle e de manipulação no mundo vida coloniza o campo das relações intersubjetivas que deveriam garantir os aportes simbólicos necessários para as renovações e inovações das metamorfoses no mundo. Lima e Ciampa (2012Lima, A. F. & Ciampa, A. C. (2012). Metamorfose humana em busca de emancipação: a identidade na perspectiva da Psicologia Social Crítica. In A. F. Lima (Org.), Psicologia Social Crítica: paralaxes do contemporâneo (1ª ed., pp. 11-30). Porto Alegre: Sulina .) elucidam que essa situação leva ao impedimento das emancipações das metamorfoses, culminando no fetichismo da personagem, como já discorremos anteriormente.

Um panorama sobre o construto Mundo da Vida

O panorama descrito ao longo deste artigo nos permite apresentar a seguinte afirmação: O Mundo da Vida é anunciado como a fundação intersubjetiva da Metamorfose em busca de Emancipação, afirmação essa que está em consonância com os ensinamentos de Habermas. Segundo Oliveira (1999aOliveira, N. F. (1999a). Mundo da vida: a apropriação habermasiana de Husserl e Wittgenstein. Veritas, 44(1), 133-146., 1999bOliveira, N. F. (1999b). Mundo da vida: Habermas, mundo da vida e a “terceira via” do moderno. In Tractatus Ethico-Politicus (1ª ed., pp. 189-210). Porto Alegre: Edipucrs.), as discussões presentes no livro Lógica das Ciências Sociais seriam os prolegômenos da Teoria da Ação Comunicativa. Habermas resgata os fenomenólogos para a construção de alternativas metodológicas para os trabalhos das ciências sociais preocupadas em compreender as sedimentações culturais nas quais os indivíduos circulam e interagem. Lima (2015Lima, A. F. (2015). A Teoria Crítica de Jürgen Habermas: cinco ensaios sobre linguagem, identidade e Psicologia Social (1ª ed.). Porto Alegre: Sulina .) lembra que Habermas tece vários elogios a Alfred Schutz, Tomas Luckmann e Peter Berger. Teriam esses autores constituído importantes inovações teóricas de compreensão e investigação das ciências sociais. Em Texto e contextos (2015Habermas, J. (2015). Textos e contextos (A. I. Segatto, Trad.). São Paulo: Editora Unesp.), Habermas situa a importante história de Husserl com sua proposta revigoradora para as ciências ao retornarem e se renovarem pelos conhecimentos do mundo da vida.

Esse construto fenomenológico (Astrain, 2006Astrain, R. S. (2006). Prefacio. In J. Pizzi (Org.), O mundo da vida: Husserl e Habermas (pp. 0-18). Ijuí, RS: Unijuí.; Pizzi, 2006Pizzi, J. (2006). O mundo da vida: Husserl e Habermas . Ijuí, RS: Unijuí .) se faz presente em diversas reflexões ontológicas, epistemológicas e metodológicas na esfera da Psicologia, Sociologia e Antropologia (Gadamer, 2012Gadamer, H. G. (2012). Hegel-Husserl-Heidegger (M. A. Casanova, Trad.). Petropolis, RJ: Vozes.). Cogitações fundadas em tal construto fenomenológico (Pizzi, 2006) reverberam não apenas nas filosofias, mas também nas ciências, instigando-as aos desenvolvimentos de renovação e crítica de seus pressupostos e do mundo (Ricoeur, 2009Ricoeur, P. (2009). Na escola fenomenologia (E. F. Alves, Trad.). Petropolis, RJ: Vozes .). Assim, seu potencial compreensivo repercute para além do pretendido na reflexão husserliana, sendo importante para Alfred Schutz, Tomas Luckmann e Peter Berger na revisão da Sociologia Compreensiva, bem como para Jürgen Habermas na fundação da Teoria da Ação Comunicativa no que concerne à Escola de Frankfurt (Astrain, 2006; Habermas, 1990; Lima, 2015Lima, A. F. (2015). A Teoria Crítica de Jürgen Habermas: cinco ensaios sobre linguagem, identidade e Psicologia Social (1ª ed.). Porto Alegre: Sulina .).

Originário em Husserl (2012Husserl, E. (2012). A crise das ciências europeias e a Fenomenologia Transcendental: uma introdução à filosofia fenomenológica. Rio de Janeiro: Forense Universitária.), o Mundo da Vida é o mundo das tradições socioculturais das criações humanas organizadas numa estrutura que sustenta a experiência de vida dos que aí estão. “Essa estrutura geral, a que todo ente relativo está vinculado” (Husserl, 2012, p. 113). O Mundo da Vida é tudo aquilo que se distribui e se localiza na história da humanidade, local de realizações das práxis dos sujeitos. Conjuntura de criações relativas aos humanos que constitui o mundo cultural, composto por ciências, práticas, ideais humanos, os quais ganham efetividade nas transformações da humanidade. Transformações essas que garantem o movimento da cultura na historicidade dos homens.

Sobre a experiência das interações, esse filósofo volta suas considerações para o viver dos sujeitos na realização de suas práxis: “A vida é permanentemente viver na certeza do mundo” (Husserl, 2012Husserl, E. (2012). A crise das ciências europeias e a Fenomenologia Transcendental: uma introdução à filosofia fenomenológica. Rio de Janeiro: Forense Universitária., p. 116). Viver é ter ciência do contato com as criações que constituem sua estrutura, na qual se vivencia a efetividade de ser no mundo. “O mundo da vida é um domínio de evidências originárias” (Husserl, 2012, p. 104), em que os sujeitos percebem o mundo neles mesmos, na sua presença, seja pelo contato com sua materialidade mundana, seja pelas recordações ou imaginações da cultura operadas pela consciência viva.

Schutz, interessado pela constituição da consciência humana, desenvolve uma fenomenologia do mundo natural através da renovação da Sociologia Compreensiva. As obras Fenomenologia e relações sociais (Schutz ,1979Schutz, A. (1979). Fenomenologia e relações sociais: textos escolhidos. Rio de Janeiro: Zahar.) e Las Estruturas del Mundo de la vida (Schutz & Luckmam, 2001Schutz, A. & Luckmann, T. (2001). Las Estruturas del Mundo de la Vida. Buenos Aires: Amarroto.), trazem elementos sobre a experiência humana no mundo, no que concerne aos elementos intersubjetivos de experiências e na constituição da consciência humana. Segundo Castro (2012Castro, F. F. (2012). A sociologia fenomenológica de Alfred Schutz. Ciências Sociais Unisinos, 48(1), 52-60. , p. 54), tais elementos desdobram-se em conceitos como as “‘reservas de experiências’ [que] se refere ao processo de sedimentação dos conhecimentos sociais”, tipicidade da vida quotidiana que “refere-se ao modo pelo qual as diversas experiências se confirmam com base no modelo anteriormente estabelecido” (p. 55) e, por fim “‘estruturas de pertinência’, que se referem à forma como os sujeitos sociais se organizam e regem as diversas situações da vida” (p. 54).

Berger e Luckmann, nos estudos sobre o mundo da vida cotidiana, oferecem-nos “um universo simbólico que representa a legitimidade da ordem institucional em um plano mais genérico, os mecanismos de conservação ... dos universos simbólicos conferindo legitimidade” (Martins, 2007Martins, R. O. (2007). Pensando o mundo da vida localmente: a contribuição da sociologia do conhecimento de Peter L. Berger e Thomas Luckmann para a compreensão do modelo de justificação do Direito de Jürgen Habermas [Trabalho completo]. In Anais do XVI Congresso Nacional do CONPEDI. Florianópolis: Fundação Boiteux. (pp. 6446-6462) , pp. 64-56). No texto A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento (Berger & Luckmann, 1994Berger, P. & Luckmann, T. (1994). A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento (11ª ed.). Petropólis, RJ: Vozes.), esses autores também exploram sobre os mundos simbólico e cultural, importantes na socialização dos sujeitos, especialmente na construção de seus papéis sociais e, por consequência, na formação da identidade humana.

Habermas (1987Habermas, J. (1987). Teoria de la accion comunicativa. Madrid: Taurus., 1990), por sua vez, disserta sobre o adoecimento da vida humana nas interações comunicativas, as quais desembocam no conceito de Colonização do mundo da vida. Segundo Lima (2015Lima, A. F. (2015). A Teoria Crítica de Jürgen Habermas: cinco ensaios sobre linguagem, identidade e Psicologia Social (1ª ed.). Porto Alegre: Sulina .), o potencial comunicativo colonizado é substituído por introjeções cognitivas, expectativas morais, expressões de valores, organizações comunitárias e solidárias, que, de maneira racional, levam a uma racionalização e coisificação do potencial comunicativo e consensual cotidiano, ocasionando o empobrecimento da cultura.

Tais preocupações são compartilhadas pelos psicólogos sociais críticos como Ciampa (2009Ciampa, A. C. (2009). A Estória do Severino e a História da Severina: um ensaio de Psicologia Social. (11ª ed.). São Paulo: Brasiliense . (Originalmente publicada em 1987).), Almeida (2005Almeida, J. A. M. (2005). Sobre a Anamorfose: identidade e emancipação na velhice. Tese de Doutorado, Programa de Pós-graduação em Psicologia Social. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, SP.) e Lima (2010Lima, A. F. (2010). Metamorfose, anamorfose e reconhecimento perverso: a identidade na perspectiva da Psicologia Social Crítica (1ª ed.). São Paulo: FAPESP; EDUC. , 2015) que, mediante a perspectiva de construção da Identidade Humana no processo vital de metamorfose, na alternância e/ou cristalização dos papéis sociais inseridos em uma conjuntura social e cultural, pensam de forma crítica as denominadas políticas de identidade (Ciampa & Lima, 2012).

Nesse sentido, passa a ser ofício dos pesquisadores da identidade descobrir formas, através da lógica dialogal da ação comunicativa, de fazer cessar a reificação e a colonização, exercidas pelo sistema sobre o mundo da vida. Para isso, torna-se necessário olhar a sociedade enquanto esfera simultaneamente pública e política, na qual a explicação da ação social se articularia com o movimento político de defesa da sociedade contra a penetração dos subsistemas nas formas comunicativas de ação. O poder comunicativo somente é formado nos espaços públicos que estabelecem relações sobre a base de um reconhecimento recíproco e que possibilitam o uso de liberdades comunicativas.

Últimas considerações e novos interesses

Esperamos ter deixado claro, com as discussões realizadas ao longo deste artigo, que os conteúdos políticos envolvidos no conceito de identidade desenvolvido por Ciampa vêm ganhando cada vez mais força, primordialmente ao ter passado da simples concepção de autonomia como uma busca pelo autogoverno para autonomia como uma busca por emancipação humana, uma autonomia que está entrelaçada ao sintagma Identidade-Metamorfose-Emancipação.

Devemos salientar que o fortalecimento do próprio sintagma é fruto das metamorfoses que o mesmo viveu mediante as (re)construções e ampliações de suas perspectivas no seu trabalho vigilante e crítico diante das transformações do capitalismo liberal contemporâneo e suas sutis e violentas formas de dominação. Ilustramos o salto e/ou ampliação da perspectiva identidade-metamorfose para o sintagma Identidade-Metamorfose-Emancipação, ocorrida em 1999, e apresentamos a consolidação da participação dos trabalhos de Almeida e Lima, que, mesmo após seus doutoramentos, trabalham conjuntamente com Ciampa no fortalecimento desse projeto teórico-metodológico.

Nos últimos anos, no Paralaxe, pesquisadores aproximam-se das discussões dessa perspectiva identitária angustiados com a potencialidade investigativa e crítica dessa psicologia socialmente comprometida. A exemplo desses tipos de pesquisas, temos as dissertações de José Umbelino Gonçalves Neto, com o título “As identidades da ‘identidade’ na Psicologia Social: sobre os diferentes usos e significados do conceito ‘identidade’”, e de Vinicius Furlan, intitulada “A história de Davi: metamorfoses na identidade e o abrigamento”, ambas defendidas em 2015.

Assim, junto às últimas considerações da proposta deste artigo, também apresentamos novos interesses de pesquisa e colaboração ao sintagma. Interesses de pesquisadores que, implicados com as metamorfoses das vidas no mundo, buscam compreender a partir de um olhar crítico os atravessamentos das histórias de vida dos sujeitos. Assim, com novos interesses e perspectivas, eles se aproximam dos trabalhos desenvolvidos por Ciampa, Almeida e Lima. Desse modo, esperamos que outros trabalhos possam se associar aos estudos do sintagma com fins de colaborar com a própria metamorfose desse projeto científico e político comprometido com a emancipação humana.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2017

Histórico

  • Recebido
    11 Out 2016
  • Aceito
    19 Dez 2016
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