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POLÍTICAS DE IDENTIDADE NO SISTEMA DE ACOLHIMENTO A CRIANÇAS: A HISTÓRIA DE VIDA DE UMA PÓS-ABRIGADA

POLÍTICAS DE IDENTIDAD EN EL SISTEMA DE APOYO INFANTIL: LA HISTORIA DE LA VIDA DE UNA MUJER JOVEN DESPUÉS DEL TIEMPO DE ABRIGO

IDENTITY POLICIES IN THE CHILDREN'S WELFARE SYSTEM: THE LIFE HISTORY OF A YOUNG WOMAN AFTER SHELTER TIME

Resumo

Este artigo apresenta as sínteses de uma pesquisa, objetivando desvelar as possibilidades de superação do estigma do abandono de egressos do sistema de acolhimento institucional de crianças e adolescentes, por meio do entendimento das políticas de identidade e identidades políticas. Foi utilizado o referencial teórico proposto pela teoria de identidade, com a finalidade de abarcar a complexidade da medida de proteção previsto pelo ECA. Como método foi eleita a entrevista de história de vida, realizada no estudo de caso de uma jovem de 22 anos, negra, cuja classe social de origem é a baixa, e que morou dos 10 aos 17 anos em uma instituição não governamental de acolhimento com quartos coletivos. Aproximando o relato da teoria, são elucidadas algumas reflexões acerca do potencial da criança ou adolescente se representar como sujeito de direitos pelo viés da autonomia promovida pelas pessoas da comunidade.

Palavras-chave:
acolhimento institucional; Psicologia Social; identidade

Resumen

En este trabajo se presenta la síntesis de un estudio, con el objetivo de hacerse conocer las posibilidades de superación de los niños y jóvenes que vivieron en orfanatos a través de la comprensión de la Identidad y de las Políticas de Identidad. Se utilizó el marco propuesto por la teoría de la Identidad, con el fin de abarcar la complejidad de la protección prevista por el Estatuto da Criança e do Adolescente (Brasil). Como método, ha sido elegida la entrevista de Historia de Vida, con el estudio de caso de un joven de 22 años de edad, negro, clase social baja y que vivió de los 10 a los 17 años en un orfanato no gubernamental con dormitorios compartidos. Se pudo reflexionar sobre el potencial del niño o adolescente representado como un sujeto de derechos por el sesgo de la autonomía promovida por miembros de la comunidad.

Palabras clave:
abrigos institucionales; Psicología social; identidad

Abstract

This article shows the synthesis of a research report, which aimed at investigating the possibilities of recovery from the abandon sensation that affects children and adolescents that live a long period in foster care, through the context of identity politics and political identities. The identity theory has been used as a theorical reference, attempting to comprise the complexity of the protection measure as conceived by ECA. The chosen method is the life story interview of a 22 years old black woman, coming from lower social classes, and that lived in a non-governmental organization, sharing a room, between the ages of 10 and 17. Some reflections are elucidated in this article based on these life stories and the closeness to the theory. These reflections are about the comprehension of solidarity through acquaintanceship with other people, whom represent the child’s potential as an individual with rights, and autonomy promoted by the people of the community.

Keywords:
child welfare; Social Psychology; identity

Introdução

Este artigo apresenta a história de vida de M., jovem de 22 anos, abrigada dos 07 até sua emancipação forçada aos 17 anos, cuja síntese nos permite entender o desvelamento das possibilidades de superação da prescrição de marginalidade, inculcada às crianças e adolescentes acolhidas. Utilizamos a categoria de análise proposta pelos estudos em identidade de Ciampa (2011Ciampa, A.C. (2011). A estória do Severino e a História da Severina (12ª ed.). São Paulo: Brasiliense . (Original publicado em 1987)): o sintagma identidade-metamorfose-emancipação, e a categoria de análise de políticas de identidade/identidade política.

O Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA (Lei Federal n. 8.069/90Lei Federal n. 8.069, de 13 de julho de 1990. (1990). Estatuto da Criança e do Adolescente. Brasil. Recupera de http:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm
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) foi promulgado com o propósito de garantir a proteção dos direitos dessa população. Tal ação resultou em um avanço no modo de se reconhecer a criança, visto que no antigo Código de Menores (Lei Federal n. 6.697/79Lei Federal n. 6.697, de 10 outubro de 1979. (1979). Institui o Código de Menores. Brasil. Recuperado de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1970-1979/L6697.htm
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) havia uma orientação punitiva marcada pela discriminação social por classes, e o uso da palavra “menor” ao se referir à criança pauperizada, ou em conflito com a lei. Além disso, não existia uma separação clara entre a população que necessitava de medida de acolhimento e a população que estava em conflito com a lei, necessitando de medida socioeducativa. Com o advento do ECA, podemos entender o acolhimento institucional como medida de proteção provisória e excepcional para crianças e adolescentes, utilizada como forma de transição em situação de risco pessoal e social. No entanto, de acordo com os dados levantados por Silva (2004Silva, E. R. (2004). O direito à convivência familiar e comunitária: os abrigos para crianças e adolescentes no Brasil. Brasília, DF: IPEA/CONANDA. ), o tempo de duração da institucionalização de crianças no Brasil pode atingir um período superior a 10 anos. Nesse sentido, há uma discrepância entre aquilo que é previsto e a prática do acolhimento, ou seja, um tempo de institucionalização maior do que o calculado e, em alguns casos, sem a possibilidade de fortalecimento dos vínculos familiares ou inserção do jovem em uma família substituta, como previsto na lei.

No que tange o momento de saída da criança acolhida, bem como o entendimento dos adultos que passaram por este processo, há uma escassa e ainda incipiente literatura; nesse viés estão os estudos de Santos e Boucinha (2011Santos, N. S. S. & Boucinha, I. A. (2011). A experiência de morar em abrigos. Gerais: Revista Interinstitucional de Psicologia, 4(1), 36-49. Recuperado de http://www.fafich.ufmg.br/gerais/index.php/gerais/article/viewFile/145/195
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), Martinez (2006Martinez, A. L. (2006). Adolescentes no momento de saída do abrigo: um olhar para os sentidos construídos. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-graduação em Psicologia, Faculdade de Filosofia e Letras, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, SP.) e Ribeiro (2008Ribeiro, L. C. (2008). A trajetória de vida de um jovem que vivenciou o rompimento dos vínculos familiares e um longo período de abrigamento. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-graduação em Serviço Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.). Os estudos que trabalham com a possibilidade de superação das prescrições de marginalidade dos acolhidos apresentam escassez similar: Sousa e Paravidini (2011Sousa, K. K. & Paravidini, J. L. L. (2011). Vínculos entre crianças em situação de acolhimento institucional e visitantes da instituição. Psicologia: Ciência e Profissão, 31(3), 536-553. Acesso em 27 de Outubro, 2016, em Acesso em 27 de Outubro, 2016, em https://dx.doi.org/10.1590/S1414-98932011000300008
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), Ribeiro (2008) e Marques e Czermak (2008Marques, C. C. & Czermak, R. (2008) O olhar da Psicologia no abrigo: uma cartografia. Psicologia & Sociedade , 20(3), 360-366. ). É possível destacar a ausência de pesquisas voltadas para crianças e adolescentes que visam à transição para a vida adulta e a possibilidades de autonomia.

Com base nas tensões elucidadas, temos por objetivo geral entender as possibilidades de superação e de ganho de autonomia diante do estigma social do abandono de uma pessoa que necessitou no período da infância e adolescência ser acolhida. Como objetivo específico, buscamos identificar quais as políticas de identidade são oferecidas a uma pessoa acolhida. Partimos da hipótese de que há uma ausência de condições objetivas para promover a autonomia da criança/adolescente acolhida, ideologicamente justificada pelo entendimento do estigma do abandono e desprovida de estruturação da vida adulta. Tal condição implica uma constituição identitária vista de modo naturalista, ou seja, pelo entendimento da vida como uma provisoriedade e da autonomia como algo inerente apenas ao marcador da idade com a chegada da maioridade.

A justificativa desta pesquisa está na possibilidade de entendimento das condições que possam promover a autonomia a crianças e adolescentes acolhidos, por meio do olhar e narrativa de uma egressa do sistema de acolhimento, que poderá ser objeto de reflexão para novas análises e práticas.

Identidade é metamorfose em busca de emancipação

Nos vários contextos da estrutura social, as pessoas são produto e produtoras da sua história de vida. Ao ter uma identidade, o sujeito passa a representá-la na realidade social e na articulação entre o diferente e o igual, por meio de várias personagens, em um jogo interativo de ocultação e revelação. Por meio das escolhas frente às determinações, a pessoa irá constituir uma nova atividade representativa, o que resultará em uma nova personagem (vida) assumindo o papel da outra (morte). “São múltiplas personagens que ora se conservam, ora se sucedem; ora coexistem, ora se alternam” (Ciampa, 2011Ciampa, A.C. (2011). A estória do Severino e a História da Severina (12ª ed.). São Paulo: Brasiliense . (Original publicado em 1987), p. 162). Esse movimento é uma categoria de análise intitulada metamorfose - e significa a mudança de forma ou, literalmente, transformação.

Almeida (2005Almeida, J. A. M. (2005). Sobre a anamorfose: identidade e emancipação na velhice. Tese de Doutorado, Programa de Pós-graduação em Psicologia Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.), ao revisar o conceito de metamorfose, encontra outros elementos no sentido da mudança para regulação de indivíduos, a fim de cumprir as necessidades do mercado. “O que se pretende é o conformismo generalizado. O sucesso dessa tendência implicaria na heteronomia e na alienação pessoal, favorecendo a colonização do futuro” (Almeida, 2005, p. 81). Ao contrário da metamorfose, a realidade social pode se apresentar de modo hostil ao reduzir o número de escolhas para se assumir novas personagens. Esta condição é entendida como “mesmice”, pela reposição constante da mesma personagem e do grande esforço de mantê-la aparentemente imutável.

A impossibilidade de criar novas personagens também pode ser oriunda de determinações que aniquilam a identidade, e de condições desumanas às quais as pessoas são submetidas diante das mazelas sociais. Seu desenvolvimento é impedido e prejudicado, forçando a pessoa a ser uma réplica de si mesma, restando apenas o movimento de morte, resultando na má-infinidade, conceito de origem hegeliana, ou seja, em que o sentido da mesmice está relacionado a não superação das contradições sociais (Ciampa, 2011Ciampa, A.C. (2011). A estória do Severino e a História da Severina (12ª ed.). São Paulo: Brasiliense . (Original publicado em 1987)).

Para entender a complexidade das transformações em movimento, Ciampa (2011Ciampa, A.C. (2011). A estória do Severino e a História da Severina (12ª ed.). São Paulo: Brasiliense . (Original publicado em 1987)) conceitua mais uma categoria de análise: a mesmidade, ou seja, dentro do processo de socialização aprender a se diferenciar do outro para buscar a si mesmo. A mesmidade é a busca pela alteridade pela negação da negação, ou seja, permitir que eu me represente tendo outro como referência, negando a mim mesmo, ao mesmo tempo em que nego o outro, que sou eu mesmo. Nas palavras do autor: “é sermos o Um e um Outro, para que cheguemos a ser Um, numa infindável transformação” (Ciampa, 1984Ciampa, A. C. (1984). Identidade. In S. T. M. Lane & W. Codo (Orgs.), O homem em movimento (pp. 60-74). São Paulo: Brasiliense.).

O conceito de emancipação é considerado uma categoria afirmativa da identidade. Emancipar-se é libertar as pessoas e os grupos da sua escravidão tornando-os, de acordo com Ciampa (2011Ciampa, A.C. (2011). A estória do Severino e a História da Severina (12ª ed.). São Paulo: Brasiliense . (Original publicado em 1987)), escravos de si mesmos; para que isso ocorra, há um movimento de transcendência das prescrições e padrões pré-estabelecidos na sociedade. As pesquisas em identidade a partir de 1996 têm se privilegiado de trajetórias em que o narrador seja um sujeito emblemático (Griebeler, 2014Griebeler, D. (2014). Sujeitos emblemáticos à luz do sintagma identidade-metamorfose-emancipação: produções acadêmicas do NEPIM. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-graduação em Psicologia Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.). “São personagens que constroem novos sentidos para a sua existência” (Miranda, 2014Miranda, S. F. (2014). Identidade sob a perspectiva da psicologia social crítica: revisitando os caminhos da edificação de uma teoria. Revista de Psicologia, 5(2), 124-137. , p. 25).

Políticas de identidade e identidades políticas

As políticas de identidade como categoria de análise norteiam-se para o estudo de grupos sociais estigmatizados, ou seja, grupos que se afastam negativamente das expectativas sociais, que são desacreditadas por seus estigmas, podendo estes ser: pessoas com deformidades físicas, culpa de caráter individual ou estigmas tribais de raça, nação ou religião (Goffman, 1982Goffman, E. (1982). Estigma: notas sobre a manipulação da Identidade deteriorada (4ª ed.). Rio de Janeiro: LTC.). Além das personagens que assumimos na realidade social, precisamos negociar o modo como queremos ser reconhecidos e como nos reconhecem. Por isso, as políticas de identidade nos jogos de interação são uma constante tensão entre as atribuições do sujeito e as atribuições do intragrupo e do exogrupo.

As linhas ou códigos de conduta apresentados ao sujeito estigmatizado tendem a cobrir certas questões-padrão no exercício de fazer a sua adequação (Goffman, 1982Goffman, E. (1982). Estigma: notas sobre a manipulação da Identidade deteriorada (4ª ed.). Rio de Janeiro: LTC.), ou conter caracteres de cunho ideológico para justificar o funcionamento da instituição ou estrutura social, por meio de aspectos regulatórios, pela essencialização e submissão de papéis. Para Goffman (1982) no que se refere aos mecanismos de alinhamento do eu pelos grupos, podemos entender esta dinâmica de duas maneiras: a primeira está relacionada ao intragrupo como a relação que o estigmatizado tem com os seus iguais que vivenciam a mesma condição ou sofrimento na estrutura social. Este funcionamento grupal pode gerar um sentimento de pertencimento, e em alguns níveis, o questionamento aberto da desaprovação com que ele é tratado, podendo levá-lo ao ativismo. A segunda maneira é pelo exogrupo, pela perspectiva atribuída pelos “normais” no modo de ver o estigmatizado. No entanto, diferente do primeiro caso, não carregam nos padrões de conduta oferecidos uma orientação política, pelo contrário, a linha defendida é a da normalização do estigmatizado.

Na leitura de Ciampa (2004Ciampa, A. C. (2004). Políticas de identidade e identidade política. In C. I. L. Dunker & M. C. Passos (Orgs.), Uma psicologia que se interroga: ensaio. (pp. 133-144). São Paulo: Edicon.): “a política de identidade de um grupo ou coletividade refere-se de fato a uma ‘personagem’ coletiva”. Ao trabalharmos com esta categoria de análise, devemos entender qual o sentido dos códigos de conduta traçados ao estigmatizado na sociedade moderna, uma vez que estaríamos diante da dialética entre o progresso e a dominação. Esta leitura feita pelo autor cabe, principalmente, nos casos de grupos e pessoas consideradas à margem da sociedade. Para isso, Ciampa (2004) interpreta as políticas de identidade apoiado nas asserções de Habermas (2012Habermas, J. (2012). Introdução: acessos à problemática da racionalidade. In Teoria do agir comunicativo: sobre a crítica da razão funcionalista (pp. 17-196). Martins Fontes: São Paulo.) e seu diagnóstico atual de sociedades de capitalismo-tardio, em que há o desenvolvimento de uma racionalidade instrumental a serviço da colonização do mundo da vida (cultura, sociedade e indivíduo) pela ordem sistêmica (relações de poder, mercado e burocracia). Nessa perspectiva assumida por Ciampa (2004), o estudo das políticas de identidade, além de contemplar aspectos relacionados à constituição social do self, também leva em conta as possibilidades de fragmentos emancipatórios do sujeito diante dos imperativos da ordem sistêmica, que têm como objetivo administrar a moral a serviço da dominação das pessoas. Este processo de controle da ordem sistêmica leva à descaracterização das relações humanas - reificação.

Para além das formas de ajustamento individual e sua relação com o coletivo, as identidades políticas promovem uma especificidade no modo como as pessoas conseguem superar a sua condição de desajustamento. Ter uma identidade política é romper com as homogeneizações sociais pela busca dos significados reais na identidade que envolvam a autonomia e a autenticidade no modo de se representar. Com as devidas apropriações feitas por Ciampa (2004Ciampa, A. C. (2004). Políticas de identidade e identidade política. In C. I. L. Dunker & M. C. Passos (Orgs.), Uma psicologia que se interroga: ensaio. (pp. 133-144). São Paulo: Edicon.), pensar em uma identidade política é entender algumas características do que Habermas (1976Habermas, J. (1976). Para a reconstrução do materialismo histórico. São Paulo: Brasiliense .) conceituou como “identidade do eu pós-convencional”, ou seja, há elementos constitutivos de uma consciência capaz de questionar e diferenciar- se das linhas de conduta predicadas pelos grupos, papéis, normas e instituições sociais. Tanto Habermas (1990) quanto Ciampa (2011) se apoiam nas concepções do self social de Mead (2010Mead, G. H. (2010). O self. In Mente, self e sociedade (C. W. Morris, Trad., pp. 151-240). Aparecida, SP: Ideias & Letras. (Original publicado em 1934)), em que pesam dois aspectos que são interdependentes: o “eu” e o “mim”. Sendo o “mim” a adoção das atitudes dos outros que nos cercam, o conceito de comunidade e a interiorização de normas da sociedade. A aquisição desta parte do self é feita pela mediação dos jogos (games) em que a criança consegue distinguir o seu papel e o de outra pessoa, de modo a seguir as regras que estão colocadas. O “eu” corresponde à instância criativa do self e à capacidade de inaugurar novas maneira de se representar diante das relações sociais - aquilo que ainda não está planejado ou previsto pela convenção. O modo como desenvolvemos esta parte do self está relacionado com a brincadeira (play) em que a criança tem liberdade para experimentar diferentes papéis e formas de existir. “É devido ao ‘eu’ que dizemos que nunca estamos plenamente cientes de quem somos que nos surpreendemos com os nossos próprios atos” (Mead, 2010, p. 192).

A individuação (o “eu” se sobrepondo ao “mim”) é capaz de promover uma identidade do eu pós-convencional (Habermas, 1990Habermas, J. (1990). Individuação através de socialização: sobre a teoria da subjetividade de George Herbert Mead. In Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos (pp.183-234). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.). De acordo com a apropriação desses conceitos para uma identidade política, o sujeito, mesmo tendo uma personagem, consegue predicar-se com novos significados, gerados a partir da reflexão de apropriação criativa da sua história de vida. As identidades políticas nos permitem entender as trajetórias cujo projeto de vida atribuído é a constituição do eu com uma conotação política. Por considerarmos que vida é movimento, é transformação (Ciampa, 2011Ciampa, A.C. (2011). A estória do Severino e a História da Severina (12ª ed.). São Paulo: Brasiliense . (Original publicado em 1987)), mesmo com a superação do conflito, o ator continua a se relacionar com novos cenários e outras tensões da sociedade, assumindo novas personagens, o que não o impede de ceder a armadilhas ideológicas em que cristalize o seu eu - elemento que pode levar à aniquilação do sujeito.

A narrativa de história de vida como método

Para a análise do problema utilizamos a metodologia qualitativa, tendo como instrumento de coleta de dados a entrevista de história de vida. Este instrumento se vale da dialética materialista a partir da sutura entre o sujeito e a construção social da realidade. De acordo com Alberti (2005Alberti, V. (2005). Manual de história oral (3ª ed.). Rio de Janeiro: FGV Editora. , p. 37-38) a história de vida é entendida como: “... centro de interesse do próprio indivíduo na história, incluindo sua trajetória desde a infância até o momento em que fala, passando pelos diversos acontecimentos e conjunturas que presenciou, vivenciou e se inteirou”. O uso deste instrumento se justifica pelos estudos de identidade por eleger as dimensões individual-particular-universal, considerando as questões temporais regressivo-progressivas no modo como a pessoa que narra ordena os acontecimentos a partir do presente. Nesse processo, “narrador e ouvinte partilham uma dupla tarefa interpretativa: compreender os significados que constituíram o momento onde se vive o acontecimento e os sentidos do momento em que é lembrado” (Antunes, 2012Antunes, M. S. X. (2012). A compreensão do sintagma identidade-metamorfose-emancipação por intermédio das narrativas de história de vida: uma discussão sobre o método. In A. F. Lima (Org.), Psicologia Social Crítica: paralaxes do contemporâneo (pp. 67-84). Porto Alegre: Sulina. , p. 73). Foram elaboradas com estes princípios duas questões disparadoras e norteadoras para que a entrevistada pudesse narrar a sua história. Sendo a primeira pergunta: “Quem é você”? e “Qual o seu projeto de vida”? Os demais encontros buscaram entender, aprofundar e elucidar alguns elementos que a narradora julgasse pertinentes.

Para selecionar a narradora, obtivemos indicações de funcionários do sistema de acolhimento que foram utilizadas em um estudo exploratório com cinco indivíduos, e de uma fundação para defesa dos direitos das crianças. Desses, destacamos a jovem entrevistada por eleger na sua narrativa a experiência do acolhimento institucional, e a questão do risco e vulnerabilidade de crianças como campo de luta. Foram 10 encontros e 20 horas de gravações para obter a narrativa aqui apresentada. Todas as entrevistas foram transcritas e previamente entregues à narradora, que teve liberdade de acrescentar ou excluir relatos. As entrevistas foram encerradas quando chegamos ao ponto de saturação dos conteúdos narrados, contando inclusive com a narradora para eleger este ponto. Ao final da pesquisa houve um encontro para a devolutiva.

De uma vida estragada a uma que merece ser vivida: a experiência de ser acolhida institucionalmente na infância

A experiência do acolhimento é apresentada na história de M., da qual destacamos as sínteses e personagens que correspondem ao nosso objetivo. Para analisar os sentidos e significados, algumas personagens foram delineadas por expressarem parte da totalidade de M. Dessas personagens foi composto um apanhado esquemático.

Nossa narradora inicia a sua trajetória quando seu pai, dependente químico, não consegue manter-se em um emprego e pagar o aluguel da casa. Sem recursos materiais para cuidar de uma criança, ele a deixa aos cuidados dos seus parentes; aqui M. nos apresenta sua primeira personagem autoatribuída: a “menina-ioiô”, que vai e vem controlada pelas mãos dos adultos. Essa personagem é uma representação da mesmice, pois sua opinião e seus desejos não são considerados. Com um histórico longo de idas e vindas, passou pela casa dos dois tios paternos, do seu avô, das vizinhas do seu avô, da sua mãe e padrasto, e por último retornando à casa do avô. Em sua última passagem pela casa do avô, a “menina-ioiô” não ia para escola, não tomava banho, ficava sem comida e era exposta a várias cenas de violência e abuso de sua dignidade como as tentativas de molestá-la. Algum tempo depois seu pai falece; nessa época, M. estava matriculada em uma escola pública e a equipe de professoras, ao notar as ausências da sala de aula, acionam o conselho tutelar. Após a denúncia, M. foi encaminhada para uma instituição de acolhimento, onde a “menina-ioiô” é alojada em um quarto com várias meninas. Sua primeira crítica a esse ambiente é quanto à lógica coletiva e ausência de afeto:

Podia tipo, alguém pegar para usar [as roupas]. Porque não tem como você controlar isso. Tinha 80 pessoas morando com você, é muito difícil isso. Não tem como controlar. Era tudo rotina lá, eu chegava, ia para a escola, voltava, almoçava e ficava. Atividade não tinha nenhuma para eu fazer. Eu ficava ou no parque brincando ou no quarto, às vezes. Não podia ficar [no quarto] porque a tia tinha arrumado, sabe?...O que você queria são coisas simples, sabe? Mas a gente sente falta. E roupa, sabe? Comida a gente não podia escolher o que a gente queria não. Era o que a gente ganhasse e pronto, não pode escolher muito...

Ao ingressar na instituição de acolhimento, M. deixa de ser a “menina-ioiô” e se metamorfoseia para a personagem autoatribuída de “menina-solitária”. Como tentativa de negação dessa realidade hostil, manteve uma postura de afastamento apenas calando e chorando. Entre a garantia dos diretos e a lógica da caridade, é apresentada, pelas funcionárias, à primeira política de identidade, na tentativa de institucionalizá-la:

Mas tinha umas tias que falavam que: ‘Ah! Tem gente pior que você! Agradece a Deus pelo que você tem’... Eu acho que para elas uma pessoa está bem só porque tem comida e roupa para vestir, sabe? Mas eu não estava bem só por causa disso, faltava alguma coisa. Que lá é um lugar muito solitário, muito sozinho, não tem afetividade lá.

Esta é uma tentativa, por parte do exogrupo, de justificar o funcionamento da instituição. No entanto, a linha ideológica traçada é no sentido da docilidade, domesticação e gratidão, ou seja, para manter a realidade e assujeitar a criança institucionalizada. Este tipo de orientação surge para negar uma medida de proteção dos seus direitos ao confundi-los com privilégios. Trata-se de uma reprodução do olhar caritativo, em que a criança não é reconhecida como sujeito de direitos. Na argumentação do exogrupo há a falácia de que, para crianças ou pessoas em situação de risco ou pauperização, apenas os recursos materiais são necessários, negando as contradições do sistema e o sofrimento da criança acolhida pelo rompimento dos vínculos familiares e privação da autonomia afetiva. No entanto, M. contraria esse código de conduta e continua a repor a personagem “menina-solitária”. As lacunas afetivas em sua vida vão se intensificando. Diante da sua má-infinidade, e pela contradição entre o seu desejo e a condições objetivas, tenta o suicídio:

Eu tinha, eu tinha tio, que não queria ficar comigo. Aí meu pai morreu aí a minha vida estragou. Teve um tempo que eu até quis, tentei suicídio... Nesse tempo, eu era muito fechada, eu acho que tinha brigado com alguém, eu não lembro. Aí me deu essa loucura, eu bebi um monte de coisas, tudo o que você pode imaginar. Eu passei maior mal... porque eu tomei um monte de produto de limpeza, fui para o hospital e fiz lavagem... Acho que fiquei uns cinco dias internada. O ruim é que depois disso me rotularam, tudo o que eu fazia falavam que eu era louca... Os rótulos me irritam, não sei, parece uma coisa assim: é mais fácil rotular uma pessoa do que tentar argumentar com ela e entender. Parece que é mais fácil rotular. Eu sofria muito com esse rótulo na instituição, foi a minha adolescência inteira praticamente, foi quase a minha permanência toda lá.

De acordo com a teoria de identidade, podemos entender o sentido do suicídio atribuído por M. como a tentativa de morte da personagem “menina-solitária”, uma vez que não conseguia metamorfosear-se em outras formas de se representar. Até o momento, não se identifica com ninguém nas suas relações objetivas. “Um mundo que não merece ser vivido deve ser recusado, negado” (Ciampa, 2011Ciampa, A.C. (2011). A estória do Severino e a História da Severina (12ª ed.). São Paulo: Brasiliense . (Original publicado em 1987), p. 234). Após a tentativa de suicídio é reconhecida como louca e, por estar fora da razão, não deve ser ouvida, agora é a “louca-sem-razão”, uma personagem atribuída pelo exogrupo, ou seja, as funcionárias da instituição para justificar sua não aderência à linha ideológica definida. O relato continua sem que haja, nesse ínterim, alguma tentativa, por parte dos técnicos do sistema de proteção, para o fortalecimento dos vínculos familiares, ou colocação em família substituta conforme previsto no ECA, para que a provisoriedade no sistema de acolhimento seja factível. Neste sentido, o exogrupo se mostra orientado para manutenção do sistema de acolhimento, e não para o entendimento do desenvolvimento do ator-social que deveria ser o protagonista: a criança acolhida. Em contraposição, as cenas narradas no acolhimento, a escola, por meio do relacionamento com as professoras, aparece como um lugar em potencial para as suas futuras metamorfoses.

A escola foi um lugar agradável, era meio que um refúgio: eu tinha bastante amigo, eu tinha bastantes professoras que eu conversava, porque sabiam, sabe? Da situação, aí elas conversavam, me davam abraço, perguntavam do meu dia, da semana... Eu achava essa atitude dos professores bacana, porque eles se importavam com a gente, faziam perguntas que muitas tias que estavam no lar não perguntavam.

M. chega à fase da adolescência e encontra a atenção das professoras. Neste período, começa a formar uma crítica da rotina rígida e da massificação de crianças no sistema de acolhimento. Por ela não adotar o primeiro padrão de conduta oferecido pelas funcionárias, lhe é predicada outra condição pelo exogrupo: as prescrições da marginalidade, com contornos de culpabilização do sujeito, de modo a garantir a inimputabilidade da instituição:

Até as próprias educadoras que trabalham lá elas falam: ‘Ah! Esse menino vai ser vagabundo, esse menino não presta. Ixi, você vai ser, vai pedir esmola na rua, vai catar papelão!’ Fica desmoralizando as pessoas lá dentro, era isso que me irritava. Não era só a influência do meu tio, da minha família biológica, também era a influência de quem trabalhava lá, de ficar falando: ‘Ah! Essa menina não estuda mesmo, não vai para a escola, vai ser burra mesmo, vai catar latinha na rua!’ Falavam assim!

M. não aceita essa predicação feita pelas funcionárias e não responde mais à personagem “louca-sem-razão”. O exogrupo, ao ver que ela não aceita os códigos de conduta institucionais, lhe atribui a condição de rebelde, M. passa a representar a personagem “adolescente-rebelde”. Nesse momento, nossa narradora anuncia o seu primeiro projeto de vida: “Não ser aquilo que os outros querem que ela seja!”:

Eu não vou deixar que eles me martirizem, me estigmatizar, sabe? Colocar isso na minha vida, eu não ia ser mesmo! Eu acho que eu ia ficar vivendo a influência dos outros, até hoje, ainda bem que não foi assim. É bem isso, eu gostava de falar isso, de ir contra o que as pessoas falam. E ainda falando uma coisa, me subestimando, falando uma coisa que eu ia ser ainda no futuro, eu falava: ‘Não!’ - e ainda falava no tempo em que eu era revoltada, falava bem desaforada: ‘Não, não vou ser! Fica quieta! Você não sabe o que está falando!’

Em paralelo, M. começa a frequentar uma igreja de orientação pentecostal. Conhece C. e seu marido, passa a frequentar as festas de final de ano na casa deles e começa a expor acontecimentos da instituição entendidos como abusivos e negligentes por C., seu marido e as professoras. Neste momento, a “adolescente-rebelde” passa a entender que é sujeito de direitos, junta-se às suas colegas de quarto para realizar denúncias sobre as práticas que ocorriam na instituição como: desvio de verba, punição física de crianças, objetificação do corpo das adolescentes e desmoralização dos meninos (bater puxando as partes íntimas). Inicia a sua luta por liberdade e pelo reconhecimento de si como sujeito de direitos. Essa ação promovida pela “adolescente-rebelde” começa a ser a sua busca por autonomia:

E eu peguei e denunciei, fui eu e mais um grupo de meninas e meninos que foram lá denunciar. Eu fugia, pulava o muro e ia no Conselho. Às vezes, eu ia no Fórum. Ah! Eu ia no Conselho, falava, aí depois ou o conselheiro me levava de novo para o abrigo ou alguém do abrigo ia me buscar... . A gente [colegas de quarto] começou a fazer bagunça mesmo, até brincamos que estávamos fazendo greve... fizemos até cartaz, dizendo que a gente estava em greve, umas coisas assim. Quando eu fazia alguma denúncia, aí eles usavam esse argumento para justificar as minhas denúncias e eles falavam: ‘Ah! Mas ela faz tratamento psiquiátrico, vai ao psicólogo’. É por isso que eu tinha muita dificuldade quando eu ia falar alguma coisa lá no Fórum porque eles me taxaram que eu era doida.

A autonomia e a individuação nessa passagem foram, para M., processos mediados pela relação com o outro. A superação da mesmice nas personagens aparece quando os seus outros: o exogrupo de professoras, C., seu marido e o intragrupo das colegas de quarto significaram em sua vida a noção de que crianças são sujeitos de direitos, retirando-a da condição de criança-objeto. Outro sentido é a questão da evasão como garantia da expressão da sua individualidade; e um rudimentar protagonismo como cidadã, uma vez que os processos institucionais negam o sujeito pela mesmice da personagem. M., por meio da personagem “adolescente-rebelde”, começa a ter algum protagonismo em sua vida ao reivindicar os seus direitos de modo ensaístico e lúdico, na simulação de uma greve. Esta cena nos mostra a importância do lúdico para superar o estigma do abandono, além do jogo como mediador do processo de individuação e constituição de uma identidade política. O jogo ou a brincadeira, quando nossa narradora representou a personagem “menina-ioiô”, não havia sido citado em nenhum momento. No entanto, quando começa a reivindicar os seus direitos por meio da personagem “adolescente-rebelde” o lúdico é eleito em seu discurso como forma de apropriação da realidade, e busca pela sua autonomia. Com isso, M. assume uma identidade de papel (Habermas, 1976Habermas, J. (1976). Para a reconstrução do materialismo histórico. São Paulo: Brasiliense .) e começa a entender as regras do jogo social, desenvolvendo formas mais criativas de se representar. Além disso, vemos o início da implementação do seu primeiro projeto de vida com sentido emancipatório: “Não ser aquilo que outros querem que ela seja!”. No entanto, os fios manuseados pelos representantes da instituição buscaram cumprir o roteiro da segunda política da identidade, novamente colocando-a como a personagem com sofrimento indeterminado: “louca-sem-razão”, personagem pressuposta, vivendo na má infinidade.

M. completa 17 anos e consegue um emprego como caixa em um estabelecimento. Quando a “adolescente-rebelde” começa a entender e manejar alguns dos fios da sua vida institucional tem uma surpresa: é emancipada para a maioridade por um juiz, sem o seu conhecimento e consentimento. Recebe uma ligação da instituição no seu trabalho dizendo para retirar seus pertences, pois seu tio, que há muito tempo não via, iria buscá-la e ela voltaria a morar na casa do avô. M. sai da instituição de acolhimento com o que restou de sua história em um saco de lixo - gesto significativo. Ao chegar à casa do avô percebe que nada mudou: não houve nenhuma rede de apoio que pudesse fortalecer os vínculos afetivos entre ela e os possíveis cuidadores. E mais, na casa não há lugar para dormir, fogão para cozinhar ou máquina de lavar. M. passa a repor a personagem que irá atribuir como a “adulta-abandonada”; autoatribuição que vem no sentido de repetição das cenas de abandono que lembra de sua infância:

Aí, no outro dia eu fui trabalhar, com o sentimento assim, nossa minha vida não adiantou de nada. Pra quê, que eu fiquei lá? Sabe? Porque era para eu dar um jeito na minha vida. Não tinha marmita para levar para o serviço, porque lá não tinha fogão para fazer comida, não tinha máquina ou tanque para lavar as minhas roupas, o meu uniforme do serviço. ... Fui morar com o meu avô, aí comecei a sofrer tudo o que sofria no passado.

A “adulta-abandonada” vai buscar amparo e conforto na igreja que frequentava. Lá encontra C., que tenta tranquilizá-la e a leva para a casa do avô. Ao entrar na casa, C. percebe a condição de precariedade e propõe a M. que vá para a casa dela para poder comer algo e lavar sua roupa. Desde esse dia, M. passa a viver com C. e seu marido e agora passa a se atribuir uma personagem que não esperava mais ser: a “filha-que-é-escutada”. Essa personagem será representada e reconhecida pelas relações de afeto, com a adoção de C.; a narradora ganha uma mãe, um pai, um irmão, tios, tias e avô. Mesmo tendo em seu cotidiano afetividade e uma família com pessoas que estão dispostas a escutá-la e compartilhar afeto, M. fala da sua história marcada pelas políticas públicas, em especial a institucionalização. Relata que ainda hoje tem dificuldade em lidar com figuras do gênero masculino e, às vezes, tem dificuldade em dizer o que quer, pois quando se expressava era para lutar pelos seus direitos. M. narra as marcas que ficaram do estigma do abandono e da experiência de necessitar ir para uma instituição de acolhimento. Uma das marcas é o medo de não ter controle da sua vida, e ser dependente de outras pessoas, ou seja, permanecer na mesmice.

As marcas do abandono fazem parte de sua identidade, por isso o medo da mesmice. No entanto M. usa a sua história para dar sentido à trajetória de outras pessoas semelhantes a sua: iniciou a sua graduação em Pedagogia, realiza estágio em uma instituição para proteger e garantir os direitos das crianças, em seu TCC pesquisa a luta por moradia do Movimento Sem-Terra (MTST). M. atua, ainda, em um projeto social para construir moradias para pessoas que não podem pagar financiamentos formais. Com estes novos cenários, desvela duas coisas: o peso de narrar uma história no sentido coletivo, para que mais pessoas possam obter algum fragmento de emancipação, e a negação da prescrição de marginalidade que o exogrupo de funcionárias tentou inculcar.

Acho que isso está me fazendo bem agora, ajudar as pessoas. Acho que eu não ia ficar bem se eu não fizesse isso. Acho que não teria sentido né? E outra, eu também posso contar a minha história, posso dar uma esperança. Que ela pode conseguir alguma coisa também, que ela não vai ficar só naquela situação, que ela não tem só aquele mundo.

A eleição da questão da moradia como sua agenda de ativismo é percebida como o resgate da sua própria história, pois o início da sua jornada dá-se quando o pai, sem emprego e sem moradia, perde a casa alugada. M. pode, agora, contar a sua história - ela se atribui a personagem “contadora-de-histórias”, encontra no ativismo um fragmento de emancipação de si mesma e do outro. Em continuação, nos apresenta o seu próximo projeto de vida: ser educadora social para oferecer apoio e escuta a crianças assistidas pelo sistema de acolhimento. Ao fim de sua narrativa, refuta a personagem “adolescente-rebelde” metamorfoseando-se com sentido autônomo para a personagem autoatribuída “pessoa-crítica” que questiona e fala.

Então, é ... Eu acho que não sei nem se a palavra certa é rebelde. Porque, assim, eu nunca aceitei, eu queria saber o porquê das coisas. Eu acho que eu falei isso, porque as pessoas falavam do abrigo, as tias falavam: ‘Aí, mas você é revoltada, quer fazer a revolução’, que não sei o quê ... Não é bem revoltada, eu sou uma pessoa crítica.

Por meio dos mutirões para construir casas, age de modo preventivo para que outras crianças não sejam separadas de suas famílias. O sentido que M. atribui ao seu ativismo na questão da moradia tem como premissa a ideia de que a questão de risco e precariedade ultrapassa a personagem social “criança-abandonada”, pois antes há uma família exposta à ausência de recursos, oportunidades e o acesso aos seus direitos sociais. A personagem “pessoa-crítica” nos revela mais do que a superação de uma vida inicialmente estragada (sic) pelo veneno do abandono, mas a substância de uma identidade política com algumas partículas de uma identidade do eu pós-convencional, pela capacidade de transcender as políticas de identidade que a conduziam para a mesmice. Vemos nessa passagem final o que Ciampa (2011Ciampa, A.C. (2011). A estória do Severino e a História da Severina (12ª ed.). São Paulo: Brasiliense . (Original publicado em 1987)) conceitua como salto qualitativo; no caso de M., o salto ocorre ao não interiorizar as prescrições de marginalidade e fazer um projeto de vida emblemático, que no final da sua narrativa adquire contornos políticos, com o entendimento de que sua condição é inerente à estrutura da sociedade fragilizada e as formas imperfeitas de reconhecimento da personagem social “criança-acolhida”.

Considerações finais

Ao longo das exposições elucidadas, tivemos como objetivo, por meio das categorias de análise propostas pela teoria de identidade (Ciampa, 2011Ciampa, A.C. (2011). A estória do Severino e a História da Severina (12ª ed.). São Paulo: Brasiliense . (Original publicado em 1987)), entender como é a experiência de ter sido acolhido na infância ou adolescência; quais as políticas de identidades atribuídas; e as possibilidades de superação neste cenário. Partindo do referencial teórico e da narrativa de M., desvelamos duas políticas de identidade oferecidas como carreira moral: a primeira vinculada à gratidão e docilidade; e a segunda é a culpabilização do sujeito pela prescrição de marginalidade. A partir das premissas de Habermas (2012Habermas, J. (2012). Introdução: acessos à problemática da racionalidade. In Teoria do agir comunicativo: sobre a crítica da razão funcionalista (pp. 17-196). Martins Fontes: São Paulo.), essas políticas de identidade têm um sentido colonizador, pois atuam para manter as relações de poder adulto x criança a favor da racionalização instrumental, no sentido de justificar o funcionamento da instituição. De acordo com a narradora, o olhar dos funcionários sobre as crianças nega a sua individualidade, nesse sentido, confirmamos a hipótese de que há evidências de despreparo e ausência de capacitação para lidar com a população de crianças acolhidas em suas necessidades não materiais.

No entanto, a convivência com pessoas da comunidade, como as professoras, e o fortalecimento da relação de M. por meio da personagem “adolescente-rebelde” com o intragrupo (as colegas de quarto), contribuiu para a superação do estigma social do abandono. Tendo como base a premissa de que “o singular materializa o universal na unidade do particular” (Ciampa, 2011Ciampa, A.C. (2011). A estória do Severino e a História da Severina (12ª ed.). São Paulo: Brasiliense . (Original publicado em 1987), p. 213), encontramos na história de vida de M., para a superação do estigma do abandono, a solidariedade e a valorização da criança como sujeito de direitos por meio da relação com as professoras; C. e seu marido como elementos chaves para a garantia da autonomia e individuação. Considerando a teoria de identidade proposta por Ciampa (2011), fazer valer esta forma de representação da personagem social “criança”, proposta pelas políticas públicas, é promover um projeto de sociedade em que pese a percepção da construção de um sujeito autônomo capaz de se representar pelo protagonismo que esta concepção lhe garante.

A criança institucionalizada por longos períodos é um dos sintomas de uma sociedade colonizada, cujas políticas de identidade infantojuvenis pressupõem que as crianças e os adolescentes deverão ter representantes; isso significa que, na maioria das situações, elas não podem se representar. Na ausência de um representante que “fale pela criança”, o que resta são as formas desumanas que levam à morte simbólica, ou seja, à reposição de condições que subvertem e a aniquilam. A infância torna-se indigna (os seus direitos não são garantidos), podendo até mesmo chegar a uma infância perdida (nem mesmo a sua humanidade é reconhecida). Diante disso, com relação a questões objetivas na constituição da identidade de egressos no sistema de acolhimento, podemos entender que algumas crianças crescem pela mesmice no sentido da má infinidade, ou seja, pela provisoriedade em que suas vidas são pensadas, pelo olhar do adulto que a desapropria da sua experiência. O reconhecimento social da criança e adolescente como “sujeito de direitos”, conforme prevê o ECA, não deve ser apenas um jogo de retóricas, mas uma emergência.

Portanto, diante das exposições feitas, há a necessidade da construção de uma práxis que entenda as políticas públicas pelo olhar da criança e que garantam a sua autonomia e o apoio necessário para a sua transição para a maioridade e saída da instituição.

Agradecimento

À agência de fomento: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - [CAPES], bolsa DS.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2017

Histórico

  • Recebido
    31 Out 2016
  • Revisado
    03 Dez 2016
  • Aceito
    30 Mar 2017
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