Acessibilidade / Reportar erro

“DEVEMOS CONTINUAR?” IDENTIDADE, HISTÓRIA E UTOPIA DO EDUCADOR DE RUA

“DEBEMOS SEGUIR?” IDENTIDAD, HISTORIA Y UTOPIA DEL EDUCADOR DE CALLE

“SHOULD WE CONTINUE?” IDENTITY, HISTORY AND UTOPIA OF THE STREET EDUCATOR

Resumo

O propósito deste trabalho foi refletir como os educadores de rua articulam o pensamento utópico com o pensamento histórico, a partir dos relatos de suas experiências ao longo de quinze anos. O sintagma identidade-metamorfose-emancipação (Ciampa, 2003) e os conceitos de pensamento utópico e pensamento histórico (Habermas, 1987) formam o arcabouço teórico que embasa a presente pesquisa. Utilizamos na coleta de dados a entrevista “não diretiva centrada” (Minayo, 1999). Observou-se que é possível articular história e utopia. O estudo indica que, para que essa articulação seja possível, é necessário que o sujeito tenha a flexibilidade de reinventar seus projetos utópicos, mudando assim de projeto emancipatório, mas não perdendo de vista a energia utópica que o move. Concluímos, também, que os profissionais que articularam os dois movimentos tendem a apresentar uma postura pós-convencional diante da vida.

Palavras-chave:
identidade; meninos de rua; educação social; vulnerabilidade social

Resumen

El propósito del presente estudio ha sido reflejar cómo los educadores de la calle articulan el pensamiento utópico con el pensamiento histórico, a partir de los relatos de sus experiencias a lo largo de quince años. El marco teórico del trabajo es el sintagma “Identidad-metamorfosis-emancipación” de Ciampa (2003) y los conceptos del pensamiento utópico y pensamiento histórico de Habermas (1987). En la colección de datos se utilizó la técnica "no directiva centrada" (Minayo, 1999). Se observó que es posible articular la historia y la utopía. El estudio indica que para que sea posible, es necesario que el sujeto tenga flexibilidad para reinventar sus proyectos utópicos. Por lo tanto, se hace necesario el cambio de proyecto de emancipación, pero sin perder de vista la energía utópica que se le mueve. También se puede concluir que los profesionales que articulan esos dos movimientos tienden a tener una actitud post-convencional en sus vidas.

Palabras-clave:
identidad; niños de la calle; educación social; vulnerabilidad social

Abstract

The purpose of this work was to reflect how street educators articulate utopian thinking with historical thinking, based on the reports of their experiences over fifteen years of practice. The theoretical framework used is based in the identity-metamorphosis-emancipation sintagma developed by Ciampa (2003) and in the notions of utopic thinking and historical thinking.(Habermas, 1987). The empirical research is based on interview classified by Minayo (1999) as “non directive centered”. The observation revealed that it is possible to articulate history and utopia. The study indicates that whoever embraces the utopia thinking, and wants it to become reality, has to develop the flexibility to reinvent his own utopic projects, therefore changing his emancipatory project without losing the utopic perspective. We conclude also that those professionals who are able to articulate both movements tend to have a post-conventional stance in life.

Keywords:
identity; street children; social education; social vulnerability

Introdução

As duas últimas décadas do século XX, apesar de impregnadas de aspectos fortemente regulatórios, assistiram a movimentos emancipatórios poderosos com a emergência de novos protagonistas na arena social, como as organizações não governamentais-ONGs atuantes no processo de resgate da cidadania de crianças e adolescentes (Santos, 2013Santos, B. S. (2013). Pela mão de Alice - o social e o político na pós-modernidade (9ª ed.). Coimbra: Editora Almedina.).

Um ator, frequentemente esquecido, mas diretamente responsável pelo sucesso desse processo é o educador de rua. O educador de rua, para realizar sua prática, precisa estar imbuído de um forte componente utópico e acreditar que com sua prática profissional pode transformar a realidade e mudar a sociedade. Habermas (1987Habermas, J. (1987). A nova intransparência. Novos Estudos Cebrap, 18, 103-114. ), entretanto, coloca que o horizonte histórico atual parece ter esgotado as energias utópicas da sociedade.

Esse trabalho se propõe a refletir se os educadores de rua procuram articular o pensamento utópico que costuma acompanhá-los no começo do seu trabalho, época em que estão cheios de sonhos, com o pensamento histórico, depois de uma prática de quinze anos numa profissão desgastante que nem sempre se consegue melhorar a vida dos meninos de rua.

Um dos estudos pioneiros sobre o educador de rua é o de Barbetta (1993Barbetta, A. (1993). A saga dos menores e dos educadores na conquista da condição de cidadão: o movimento nacional de meninos/as de rua na década de 80. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-graduação em Serviço Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo. ) que aborda a participação do educador de rua de forma indireta. Esse estudo é seguido de vários outros que investigam as representações veiculadas pelos educadores de rua (Almeida, 1997Almeida, J. L. V. (1997). Educadores de rua do estado de São Paulo: as representações que informam a sua prática educativa. Tese de Doutorado, Programa de Pós-graduação em Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo.), as transformações pelas quais passou a prática profissional (Graciani, 2001Graciani, M. S. S. (2001). Pedagogia social de rua: análise e sistematização de uma experiência (4ª ed.). São Paulo: Cortez; Instituto Paulo Freire.; Grandino, 1998Grandino, P. J. (1998). O educador de rua e suas práticas educativas. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-graduação em Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo. ).

A interação entre educador social de rua e educando também é abordada (Leme, 2004Leme, M. C. G. (2004). Ousando dizer a própria história: o protagonismo político - pedagógico da educação social de rua. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-graduação em Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo.), sobretudo no que diz respeito à dinâmica saúde/sofrimento mental vivida pelos educadores sociais em seu trabalho (Bottega & Merlo, 2010Bottega, C. G. & Merlo, A. R. C. (2010). Prazer e sofrimento no trabalho dos educadores sociais com adolescentes em situações de rua. Cadernos de Psicologia Social e do Trabalho, 13(2), 259-275.), a necessidade de efetuarem a diferenciação entre cuidado e controle na relação com o adolescente (Macerata & Passos, 2015Macerata, I. M. & Passos, E. (2015). Intervenção com jovens em situação de rua: problematizando cuidado e controle. Psicologia & Sociedade, 27(3), 537-547. Recuperado de http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-71822015000300537&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
), e a importância do vínculo estabelecido entre educador e adolescente para que ocorra a saída da rua (Morais & Koller, 2012Morais, N. A. & Koller, S. H. (2012). Um estudo com egressos de instituições para crianças em situação de rua: percepção acerca da situação atual de vida e do atendimento recebido. Estudos de Psicologia. 17(3), 405-412. ).

Contudo, não se encontra discussão sobre a dinâmica do pensamento utópico e histórico para o educador de rua e seu impacto na sua prática profissional e este artigo procura contribuir para o avanço deste tema ainda pouco explorado.

Chama a atenção que a maioria dos projetos sociais e seus educadores buscam utilizar princípios da pedagogia da libertação desenvolvida por Paulo Freire (2005Freire, P. (2005). Pedagogia do oprimido (40a ed.). Rio de Janeiro: Paz e Terra.). Princípios esses que valorizam o diálogo e a ideia de que tanto educador, como educando, detêm algum tipo de saber, e um saber renovado se constrói no encontro entre os dois. Uma percepção crítica e consciente das causas geradoras das condições de exclusão em que estes meninos se encontram e das possibilidades reais de transformação desenvolve-se através do diálogo. Essa abordagem educativa parece compatível com o que se vem denominando “guinada linguística”, mais especificamente, com o que Habermas (2002Habermas, J. (2002). O pensamento pós-metafísico (2ª ed.) Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. ) chama de paradigma do agir comunicativo.

Pareceu-nos que a prática desses educadores levaria ao desenvolvimento de identidades pós-convencionais, ou seja, identidades que caminham no sentido da emancipação e que seria profícuo o estudo da identidade desses educadores. O Projeto eleito para o estudo foi o Projeto Axé, em Salvador, que completava quinze anos no momento da coleta dos dados. O que ficou premente, desde as entrevistas preliminares, e que passou a ser o objeto da pesquisa, foi o embate entre a esperança de mudança e a experiência de anos convivendo com adolescentes com um cotidiano desumanizante. Descortinou-se à nossa frente o que Habermas (1987Habermas, J. (1987). A nova intransparência. Novos Estudos Cebrap, 18, 103-114. ) chama de o confronto entre pensamento utópico e pensamento histórico. Como pensamento histórico, entende-se aquele que vem com a experiência do passado, enquanto o pensamento utópico é aquele que se projeta no futuro.

A articulação entre pensamento histórico e pensamento utópico tornou-se a questão central do nosso trabalho. No início de suas trajetórias profissionais como educadores, deparamos com o pensamento utópico como motor fundamental dos sujeitos. Quando se propuseram a trabalhar com educação social de rua, a energia que os movia vinha de suas utopias, tendo como norte a pedagogia do Oprimido (Freire, 2005Freire, P. (2005). Pedagogia do oprimido (40a ed.). Rio de Janeiro: Paz e Terra.), a Pedagogia Social de Rua (Graciani, 2001Graciani, M. S. S. (2001). Pedagogia social de rua: análise e sistematização de uma experiência (4ª ed.). São Paulo: Cortez; Instituto Paulo Freire.) e a pedagogia do desejo, desenvolvida pelo Projeto Axé.

Passados dez, quinze anos, o que se tem agora configura um pensamento histórico, a estruturação de um balanço do que resultou dos sonhos que forjaram o pensamento utópico inicial.

O objetivo central deste trabalho é compreender como os educadores de rua articularam o pensamento utópico, constituído no começo de seu trabalho no Projeto Axé, com o pensamento histórico construído ao longo de uma prática de vários anos, de tal modo a compreender também o sentido emancipatório ou não do processo de metamorfose de suas identidades.

Se alguns deles, depois de dez, quinze anos em contato com uma realidade social desumanizante, conseguem integrar a experiência e esperança, temos aqui uma pista não só de que devemos continuar com nossa luta pela emancipação humana, mas também de como essa luta se desenvolve.

Referencial teórico

Para realizar tal reflexão, utilizamos como fundamentação teórica: o sintagma identidade como metamorfose em busca da emancipação desenvolvido por Ciampa (2003Ciampa, A. C. (2003). A identidade social como metamorfose humana em busca da emancipação: articulando pensamento histórico e pensamento utópico. In XXIX Encontro da Sociedade Interamericana de Psicologia. Lima. (pp. 1-15) ); os conceitos de pensamento utópico e pensamento histórico pensados por Habermas (1987Habermas, J. (1987). A nova intransparência. Novos Estudos Cebrap, 18, 103-114. ).

Para compreender o que entendemos por articulação entre pensamento histórico e pensamento utópico precisamos compreender o sentido da emancipação como é trabalhado através do sintagma identidade-metamorfose-emancipação desenvolvido por Ciampa (2003Ciampa, A. C. (2003). A identidade social como metamorfose humana em busca da emancipação: articulando pensamento histórico e pensamento utópico. In XXIX Encontro da Sociedade Interamericana de Psicologia. Lima. (pp. 1-15) ).

Ciampa parte da noção de papel social, desenvolvida por Berger e Luckmann (1999Berger, P. L. & Luckmann, T. (1999). A construção social da realidade (18ª ed.). Petrópolis, RJ: Vozes. ), mas distingue e relaciona a noção de papel e a de personagem. Para ele, ao desempenhar papéis sociais normativamente definidos por instituições e organizações, cada ator encarna variados personagens, mais ou menos idiossincráticos. Assim, o processo de metamorfose identitário se dá empiricamente pelo movimento desses personagens, ao longo da vida do sujeito.

A identidade é um processo, um processo contínuo de transformações. Nesse processo eu faço escolhas: posso também optar por continuar na mesmice, reproduzindo velhos personagens (em ações cujo sentido é de resistência) ou optar por encarnar um novo personagem como forma de romper com a mesmice, partindo para outros caminhos (rebeldia, inovação, etc). (Ciampa, 1998Ciampa, A. C. (1998). A estória do Severino e a história da Severina (6ª ed.). São Paulo: Brasiliense. , p. 180)

O sintagma refere-se à identidade como metamorfose que busca a emancipação, em que a articulação da socialização e da individualização permite a concretização de uma vida que mereça ser vivida por todos, de uma vida que faça sentido para cada um. Em termos de sociedade, para Habermas (1990Habermas, J. (1990). Para a reconstrução do materialismo histórico (2ª ed.) São Paulo: Brasiliense . ), trata-se do Projeto de Estado de Direito de uma sociedade democrática, que se baseia numa moral igualitária e numa ética libertária.

Entretanto, as modernas sociedades capitalistas, com suas reformas e modernizações que favorecem quase exclusivamente a racionalidade da ordem sistêmica, distorcem a ideia de metamorfose humana - que pode ser traduzida pela ideia de humanização - promovendo mudanças que, em última análise, colonizam o mundo da vida para servir aos interesses da ordem sistêmica, gerando uma metamorfose “desumanizadora”, que pode ser entendida como coisificação de indivíduos.

Quando a lógica do mercado e a lógica administrativa passam a dominar instâncias em que deveria prevalecer a lógica comunicativa, nesse caso dizemos que o mundo sistêmico está colonizando o mundo da vida. O processo emancipatório estaria, então, ameaçado pela colonização do mundo da vida.

Atualmente, com o aumento da complexidade das relações entre capital, Estado e mercado de trabalho, com a supervalorização do ter, com a imagem sendo mais forte que o conteúdo, com o aumento das tensões sociais, parece que as relações sistêmicas estão cada vez mais colonizando o mundo da vida.

Entretanto, todas essas mudanças do capitalismo tardio trazem também em seu bojo novas alternativas identitárias que não existiam antes. Novas profissões, novos nichos a serem explorados, que terminam por propiciar condições para que os indivíduos possam fazer escolhas mais autônomas. Essa novas escolhas e opções trazem novos grupos, por exemplo: os rappers, os cantores de hip hop, os DJs, os VJs, os captadores de recursos, os catadores de lata e os educadores sociais de rua, que se constituem como objeto de estudo desta pesquisa.

Para fazer escolhas autônomas, emancipatórias, nas quais se valorizam porções de vida mais humanizantes, é preciso sentir-se indignado com a degradação do outro e deixar-se tomar por uma energia que nos move para frente, a energia utópica.

Habermas (1987Habermas, J. (1987). A nova intransparência. Novos Estudos Cebrap, 18, 103-114. ) afirma que desde o início do século XIX “utopia transformou-se num conceito de luta política usada por todos contra todos” (p. 104). Nos dias atuais, para o autor, parece que as energias utópicas e o pensamento histórico não se se encontram mais atrelados.

De acordo com Habermas (1987Habermas, J. (1987). A nova intransparência. Novos Estudos Cebrap, 18, 103-114. ), as utopias clássicas permitiram que a sociedade se desenvolvesse a tal ponto que uma boa parte dos indivíduos pode ter acesso a uma vida digna e socialmente organizada. O autor afirma, entretanto, que quando se analisam as utopias sociais ao lado do pensamento histórico, vemos evidências de que as coisas não deram tão certo. A energia nuclear, a tecnologia, os instrumentos do desenvolvimento mostraram que sempre têm um lado destrutivo.

A estrutura da sociedade burguesa moldou-se através do trabalho, este penetrou em todos os domínios e as expectativas utópicas também se dirigiram nesse sentido; a utopia buscava a emancipação do trabalho com relação às determinações externas (Habermas, 1987Habermas, J. (1987). A nova intransparência. Novos Estudos Cebrap, 18, 103-114. ).

Para Habermas (1987Habermas, J. (1987). A nova intransparência. Novos Estudos Cebrap, 18, 103-114. ) “a utopia da sociedade do trabalho perdeu sua força persuasiva” (p.106) e esse fenômeno é importante para esclarecer o esgotamento do impulso utópico. Habermas (1987) afirma que desde a metade dos anos setenta, quando os limites do Estado do Bem-Estar Social ficaram evidentes, este perdeu a capacidade de abrir possibilidades futuras de uma vida coletivamente melhor e menos ameaçada (p. 106). Surgiu, desde então, a dificuldade de pensar um novo modelo que despertasse novamente nos indivíduos energias utópicas.

Tal modelo adviria do intercâmbio entre a ordem sistêmica e o mundo da vida. E esse modelo só poderia funcionar se houvesse uma nova partilha do poder. Teria que haver um novo equilíbrio entre os recursos que pudessem satisfazer as necessidades das sociedades e o exercício do governo: o dinheiro, o poder e a solidariedade, ou seja, a solidariedade teria que ser forte o suficiente para se contrapor às outras duas forças, ao poder administrativo e ao poder do dinheiro (Habermas, 1987Habermas, J. (1987). A nova intransparência. Novos Estudos Cebrap, 18, 103-114. ).

Para Habermas (1987Habermas, J. (1987). A nova intransparência. Novos Estudos Cebrap, 18, 103-114. ), é da sociedade que deve emergir um desejo de mudança e a partir daí esta deve buscar formas de promover o intercâmbio entre as áreas da vida comunicativamente estruturadas, o estado e a economia.

Se o pensamento histórico, que é aquele que nos permite analisar os acontecimentos passados, parece desanimador, o pensamento utópico parece ter, juntamente com a sociedade, mudado de viés e agora não centra seu foco no mundo do trabalho e sim exige “mais liberdade e igualdade para todos, brancos e negros, homens e mulheres, cristãos e islâmicos, etc., etc., como universalização da dignidade da vida humana” (Ciampa, 2003Ciampa, A. C. (2003). A identidade social como metamorfose humana em busca da emancipação: articulando pensamento histórico e pensamento utópico. In XXIX Encontro da Sociedade Interamericana de Psicologia. Lima. (pp. 1-15) , p. 9).

O pensamento utópico aparece frente a nós como uma energia, como foi dito antes, é a energia utópica que nos faz lutar por um mundo mais justo, “abrindo alternativas de ação e margens de possibilidades” (Habermas, 1987Habermas, J. (1987). A nova intransparência. Novos Estudos Cebrap, 18, 103-114. , p. 104). Esta energia utópica se materializa, se torna real, se instrumentaliza num projeto utópico.

Esse projeto utópico configura-se um projeto político, individual ou coletivo, com sentido emancipatório. Ciampa (2003Ciampa, A. C. (2003). A identidade social como metamorfose humana em busca da emancipação: articulando pensamento histórico e pensamento utópico. In XXIX Encontro da Sociedade Interamericana de Psicologia. Lima. (pp. 1-15) , p. 11) nos diz: “Se a emancipação como projeto ético é o sentido a ser concretizada, essa concretização só ocorrerá a partir de projetos políticos.” Num sentido mais amplo, o projeto utópico é um projeto político emancipatório.

A articulação entre pensamento histórico e pensamento utópico ocorre quando um indivíduo, ou uma coletividade, utilizam a história como uma referência, um guia, mas prosseguem lutando por seu projeto político, sem se deixar cair, entretanto, no utopismo, e nas soluções fáceis e milagrosas.

Método

Na concepção de identidade utilizada por Ciampa, esta se constrói na relação do indivíduo com o outro, relação esta que é marcada por um determinado contexto físico e social, que se produziu através de uma história específica e que pode caminhar, ou não, no sentido da emancipação. Sendo assim, a maioria das pesquisas que utilizam esse aporte teórico optam pela pesquisa qualitativa e por narrativas de histórias de vida como instrumento metodológico (Antunes, 2012Antunes, M. S. X. (2012). A compreensão do sintagma identidade-metamorfose-emancipação por intermédio das narrativas de história de vida: uma discussão sobre o método. In A. F. Lima (Org.), Psicologia Social Crítica: paralaxes do contemporâneo (pp. 67-84). Porto Alegre: Sulina. ).

Coadunados com esse pensamento, optamos também por trabalhar com histórias de vida, uma vez que através da história de vida do sujeito podemos compreender seu processo de socialização, suas opções de vida, suas contradições, suas idiossincrasias, seu contexto social, histórico e cultural.

Grande parte dos pesquisadores segue um padrão de entrevista não estruturada, na qual o sujeito é solicitado a contar sua história livremente (Antunes, 2012Antunes, M. S. X. (2012). A compreensão do sintagma identidade-metamorfose-emancipação por intermédio das narrativas de história de vida: uma discussão sobre o método. In A. F. Lima (Org.), Psicologia Social Crítica: paralaxes do contemporâneo (pp. 67-84). Porto Alegre: Sulina. ). Considerando os aspectos temáticos e teóricos desse trabalho, optamos também por utilizar uma entrevista não estruturada, classificada como “não diretiva centrada” ou “entrevista focalizada” que é aquela “onde se aprofunda a conversa sobre determinado tema sem prévio roteiro” (Minayo, 1999Minayo, M. C. S. (1999). O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde (6ª ed.) São Paulo: Hucitec; Rio de Janeiro: ABRASCO. , p. 108).

A nossa fala inicial foi: “Estamos pesquisando a identidade do educador de rua, gostaríamos de conhecer você, pensamos que uma ideia interessante é você nos contar um pouco de sua vida, de seu trabalho no Axé, como você veio para cá?”.

Essas perguntas iniciais eram apenas para dar um foco ao encontro. Ao longo das entrevistas, fizemos algumas intervenções para que a nossa interação transcorresse da forma mais natural possível ou para voltar ao nosso campo de interesse, quando a conversa se afastava demais do tema.

Foram realizadas três entrevistas em profundidade, com Edna, Rita, e Mari - nomes fictícios escolhidos para não expor os sujeitos. A seleção dos participantes foi norteada pela busca de educadores que entraram em diferentes épocas no Projeto e constituíam vozes de lugares diferentes, uma da coordenação, outra que já havia se desligado do Projeto e outra que ainda permanece no Projeto, mas nunca saiu do papel de educadora de rua.

Análise de dados

1 - A história de Edna

Proveniente de uma família de baixa renda de uma cidade média do interior da Bahia observa-se em Edna, desde menina, uma preocupação com as dificuldades enfrentadas por famílias ainda mais carentes que a sua. Quando adolescente resolve estudar e trabalhar, participando ativamente do movimento estudantil. Em sua opinião, o movimento estudantil foi de extrema importância para despertar sua consciência para as injustiças sociais inerentes ao sistema capitalista. Edna se torna uma adolescente militante política que, movida pela energia utópica, se junta a outros jovens para lutar pelas causas em que acredita. A consciência da desigualdade que aparece ainda embrionária na sua infância toma forma e se organiza num discurso racional crítico.

Muda-se para Salvador, e lá se gradua em Serviço Social. Recém-formada, aceita o que foi para ela um grande desafio: trabalhar no Governo do Estado como coordenadora de uma equipe multidisciplinar formada por profissionais graduados há mais tempo do que ela. A equipe realizou um bem-sucedido trabalho de intervenção numa comunidade carente e Edna relata o orgulho que sente com esta realização.

Depois de algum tempo, a limitada remuneração como servidora estadual impele Edna a diversificar suas atividades, buscando novas formas de aumentar seus ganhos. Procurando outra fonte de renda, aceita o convite de uma amiga para ir a uma das primeiras reuniões de um projeto social que se tornaria o Projeto AXÉ, ao qual se agrega, participando da primeira contagem de meninos de rua efetuada em Salvador, pelo embrionário Projeto AXÉ. Edna viu o Projeto nascer, crescer e amadurecer.

Logo após a contagem, é aprovada no primeiro processo seletivo para educadores de rua. Diversos profissionais renomados na área foram convidados para ministrar a formação deste primeiro grupo de educadores, dentre os quais destacamos Paulo Freire, que trabalhou com os novos profissionais a educação libertadora, e Maria Stela Graciani, que levou sua experiência com educação de rua realizada no centro de São Paulo.

Para os educadores do início do Projeto AXÉ, neste momento em que todos estavam plenos de energia utópica, tudo era construção e todas as novas ideias eram bem-vindas. Havia espaço para que pessoas com várias identidades políticas convivessem, pois ainda não estava consolidada uma política de identidade do Projeto.

Depois de passar três meses como educadora de rua, Edna é convidada para ser supervisora. Ela não aceita, mas é importante frisar que se destacou profissionalmente desde o início do Projeto. Apesar de não ter o Axé como um sonho ou como uma meta inicial, ao trabalhar diretamente com os meninos em situação vulnerável, a energia utópica de Edna é canalizada para o trabalho com aquelas crianças e ela se torna, então, uma entusiasta da profissão de educadora de rua.

Mesmo tendo recebido dois convites posteriores para deixar a educação de rua, só depois de três anos ela resolve assumir outro cargo. Passa, então, a ser supervisora da área de família, em seguida é promovida a gerente e, na época de nossa pesquisa, é coordenadora de toda uma área. Em 15 anos saiu do cargo de educadora de rua para a direção. Uma trajetória de sucesso.

O discurso de Edna permite-nos inferir que o trabalho com os meninos modificou-a. No movimento estudantil, sua inquietação e sua energia utópica ficavam no plano das ideias, era tudo muito estimulante, mas era teoria. No trabalho no governo do Estado, no interior, ela fica fascinada com a sua capacidade de realização, com o sucesso do trabalho. Percebe-se, entretanto, que a vivência com os meninos na rua, além de ser para ela um trabalho gratificante, afetou os seus conteúdos psíquicos de forma mais profunda.

Edna nos diz que entrou no trabalho por uma questão profissional e financeira, era uma profissional procurando mais uma fonte de renda. Esse trabalho, entretanto, acabou por ser um instrumento que trouxe de volta sua energia utópica, canalizando-a num projeto emancipatório.

Para Edna, o trabalho só fazia sentido se tivesse um resultado positivo. Ela estava ali para que os meninos saíssem das ruas, para que melhorassem suas vidas; conseguir concretizar esse objetivo é o que dá sentido ao seu trabalho como educadora.

Hoje, na maturidade, seu discurso deixa transparecer que sem o pensamento utópico não se prossegue no trabalho social, pois o retorno é pouco sensível e vem de forma muito lenta. "Eles me impulsionaram a continuar. Eles foram minha referência, que esse trabalho valia a pena. Eles e mais alguns outros são referência pra mim. Eu dizia: não, vale a pena esse trabalho, está no caminho certo" (Edna, 2007).

Analisando a história de vida de Edna até o momento, notamos que ela é movida por duas forças. A primeira é a energia utópica. Podemos perceber isso em várias de suas atitudes. Ela participa do movimento estudantil. Ela escolhe a profissão de Assistente Social. Um dos trabalhos de que ela mais se orgulha foi, no Governo do Estado, de levar condições de vida melhores a um município paupérrimo da Bahia. Trabalha há quinze anos com população de rua, o que exige esperança renovada a cada momento.

A segunda força motora é o sucesso profissional. Ela se reconhece como boa profissional, gosta de desafios, gosta de ser a educadora bem-sucedida. Essa energia do sucesso, do reconhecimento, do desafio profissional a impulsiona para frente.

Movida por essas duas fontes de energia, a utopia e o sucesso profissional, seu movimento oscila. Ora está preocupada só com a ordem sistêmica, executa movimentos estratégicos visando existir como vencedora, ora toma decisões de grande autonomia gerando movimentos emancipatórios, mostrando-se frente a nós como uma identidade pós-convencional.

Aqui, percebe-se o quanto pensamento histórico e energia utópica estão imbricados. Quando Edna nos diz que sem indignação com as condições desumanas nas quais os meninos vivem na rua não conseguiria desenvolver seu trabalho, está dizendo que sem uma dose de energia utópica não conseguiria ser educadora de rua. Ela acrescenta ainda que precisa saber que o trabalho dá resultado para continuar nele, ou seja, revela que precisa tanto da energia utópica quanto da experiência histórica, mostrando que essas duas forças que parecem opostas, muitas vezes, se realimentam.

Segundo Habermas, “a moderna consciência do tempo inaugura um horizonte onde o pensamento utópico funde-se ao pensamento histórico” (Habermas, 1987, p. 104).

Edna articula história e utopia, diante da história consegue realizar mudanças emancipatórias ao longo de sua vida, conseguindo visualizar alternativas de mudança e manter viva a esperança e seus projetos utópicos.

2 - A história de Rita

Rita, nosso segundo sujeito de pesquisa, vem de uma família de classe média e teve uma infância estável e feliz. Em sua juventude, Rita mostra falta de objetividade e indecisão em suas escolhas pessoais e profissionais. Apesar de ter interesse na graduação em Bioquímica, presta vestibular para Educação Física, que abandona pelo curso de psicomotricidade e por um estágio no Instituto Pestalozzi.

Apaixona-se, casa-se, abandona tudo (faculdade, estágio, curso de psicomotricidade) e muda-se para o Rio de Janeiro. Pouco tempo depois separa-se do marido e volta para Salvador. Começa o curso de Pedagogia e casa-se novamente. Só a partir desse momento ela parece conseguir estabilidade para levar sua vida profissional adiante.

Formada em Pedagogia, vai ocupar um cargo de confiança na Secretaria de Saúde do Estado da Bahia e assume a coordenação editorial de uma revista sobre saúde pública, participando ainda da Comissão Estadual de Dengue na parte de educação. Após alguns anos, muda o grupo político dominante, e ela deixa de ser servidora estadual para trabalhar como orientadora educacional num colégio de classe média. Esta posição, entretanto, não a satisfaz. Na escola particular ela se sente tolhida, pois apesar de ser bem remunerada ela não está fazendo nenhum movimento emancipatório. Aquele trabalho não faz sentido para ela, que busca outros caminhos.

Rita passa a trabalhar de dia na escola particular e à noite num Projeto social da Prefeitura, o projeto Cidade Mãe, numa casa de acolhimento noturno para meninas, a casa de Oxum. Todavia, estava sempre atenta esperando que o Projeto Axé iniciasse algum processo seletivo para educador de rua. Naquele momento, este era seu grande Projeto utópico: ser educadora de rua do Projeto Axé.

Percebemos, entretanto, uma sutileza quando nos propomos a compreender o sentido da metamorfose de Rita em educadora de rua. Ela já estava sendo educadora do projeto Cidade Mãe, já trabalhava com meninos de rua na casa de acolhimento, mas seu principal objetivo, seu projeto pessoal naquele momento era ser educadora do Projeto Axé. Na história de vida de Rita não tinha sido observado, até esse instante, elementos que caracterizassem um pensamento utópico forte. De repente, no meio da narrativa, revela-se esse projeto emancipatório que a motiva a ser educadora de rua, forte a ponto de fazê-la trabalhar de noite e de dia. Projeto não só de ser educadora, mas de ser educadora do Projeto Axé. O Projeto Axé é muito significativo para Rita, a concretização de uma utopia com a qual ela queria colaborar. Além de ser o símbolo de um projeto social que estava dando certo, o Axé representava uma forma já estruturada de entrar para um projeto político emancipatório no qual ela acreditava.

Contudo, ao entrar finalmente no Projeto Axé, Rita estranha bastante o modus operandi encontrado. Como ela não participou do processo de construção da estrutura normativa que direciona a prática do Projeto Axé, esta lhe aparece, no dizer de Berger e Luckmann (1999Berger, P. L. & Luckmann, T. (1999). A construção social da realidade (18ª ed.). Petrópolis, RJ: Vozes. ), como uma realidade dada que lhe causa estranhamento.

Com o passar do tempo, Rita aprende a lidar com os meninos na rua, passa a gostar do método de trabalho utilizado pelo Projeto e desenvolve muito bem o seu papel de educadora de rua, sendo promovida a supervisora pedagógica de rua.

Rita, aparentemente, havia conseguido transformar seu projeto utópico em realidade, conseguindo pequenas grandes vitórias com os meninos. Cerca de nove anos depois, entretanto, as coisas parecem não ir mais tão bem. Surgem queixas, insatisfações, doenças ocupacionais. E é justamente nesse momento de sua vida que a encontramos para a entrevista.

Ela parece muito decepcionada com o Projeto. Não propriamente com a sua proposta pedagógica, com sua prática de rua, ou com a maneira como eles lidam com os meninos. Sua insatisfação é como educadora e nesse ponto ela se posiciona com segurança.

Aos poucos ela nos conta os fatos que a fizeram decepcionar-se: “você se desencanta um pouco com isto, com esse descuido, não digo nem com os meninos, nem com os Projetos, mas eu acho que esse desrespeito nessas relações dos adultos, que quando começam a aparecer me desencantaram um pouco” (Rita, 2007).

À medida que fala, Rita vai esclarecendo melhor os fatos. Ela trabalhava numa unidade ligada à área pedagógica e é transferida para a área de família. Recebe a notícia de última hora e sem muitos esclarecimentos. Fica indignada, pois a área de Projetos era sua especialidade. O que mais a indignou foi que a transferência de uma unidade para outra se deu sem aviso, sem justificativa e sem uma preparação prévia dos meninos.

O que ela não aceita, de acordo com seu relato, é a mudança imposta, sem explicação, sem justificativa, sem diálogo. Para Paulo Freire: “Somente o diálogo, que implica um pensar crítico, é capaz, também, de gerá-lo. Sem ele não há comunicação e sem esta não há verdadeira educação” (Freire, 2005, p. 96).

Parece que, frente aos acontecimentos históricos, Rita passa a apresentar um desencanto com relação às contradições existentes no que ela chama de “prática dos adultos”. O que no começo era a realização do seu projeto utópico passa a deixá-la muito insatisfeita e, com o surgimento de muitas doenças ocupacionais, ela opta por desligar-se do Projeto Axé.

Percebe que o modelo que havia projetado não atende mais aos seus anseios e esse fato passa a lhe incomodar muito. Ocorre com ela o processo descrito por Goffman (1999Goffman, E. (1999). A representação do eu na vida cotidiana (8ª ed.). Petrópolis, RJ: Vozes . ):

Dado o fato de o indivíduo efetivamente projetar uma definição da situação quando chega à presença dos outros, podemos supor que venham a ocorrer, durante a interação, fatos que contradigam, desacreditem, ou, de qualquer outro modo, lancem dúvidas sobre essa projeção. Quando esses fatos perturbadores ocorrem, a própria interação pode sofrer uma interrupção confusa e embaraçosa. (Goffman, 1999Goffman, E. (1999). A representação do eu na vida cotidiana (8ª ed.). Petrópolis, RJ: Vozes . , p. 21)

Apesar de estar saindo do Projeto Axé, Rita valoriza o trabalho que fez e considera que este a transformou muito e positivamente: “Eu acho, eu acho que me transformou. É como eu disse no princípio, o que me encantou foi esse trabalho de rua. Foi ele que fez a diferença para mim...” (Rita, 2007).

Para Rita, alguns procedimentos da organização funcionaram como normas regulatórias, pois impediram que, dentro do Projeto, ela continuasse a fazer movimentos emancipatórios.

A luta pela concretização da utopia é, em última análise, a busca da emancipação. Então, como nos diz Ciampa (2002Ciampa, A. C. (2002). Políticas de Identidade e Identidades Políticas. In C. I. L. Dunker & M. C. Passos (Orgs.), Uma Psicologia que se interroga: ensaios (pp. 133-144). São Paulo: Edicon. ), “é preciso captar o sentido da metamorfose”. Esta metamorfose de Rita em busca de outro projeto político significa a negação da falta de autonomia, e também, da falta de livre arbítrio em que estava como educadora.

Apesar de uma experiência histórica negativa, busca outros caminhos, mas de uma forma centrada, planeja prestar consultoria, articula alternativas de prestação de serviço, não cai num ceticismo imobilizante. Por outro lado, sabe que vai ter dificuldades financeiras, não cai num utopismo delirante. Consegue, então, a partir de sua experiência como educadora de rua, articular história e utopia, pois não deixa que experiências negativas do passado a paralisem, buscando sempre uma nova maneira de instrumentalizar sua energia utópica.

3 - A história de Mari

Nosso terceiro sujeito de pesquisa é Mari, que trabalha há sete anos no Projeto Axé e continua como educadora de rua. Mari é do interior do estado, foi morar em Salvador para cursar a faculdade de Pedagogia. Seu pai era um fazendeiro abastado que sofreu sérias dificuldades financeiras e praticamente perdeu tudo.

Para não onerar ainda mais as despesas do pai, Mari estagiou desde o início do curso com uma pedagoga que atendia crianças com necessidades especiais. Sua opção, desde o início, foi trabalhar com crianças que fugissem dos padrões de normalidade estabelecidos pela sociedade. Com o agravamento das dificuldades financeiras da família, ela sentiu necessidade de buscar um emprego que lhe proporcionasse mais estabilidade e segurança e envia seu currículo para a seleção de educadores de rua do Projeto Axé.

Numa primeira análise, poder-se-ia inferir que Mari não estava numa busca emancipatória, não tinha projeto utópico. Afinal, ela é dura e seu discurso, pragmático: “eu buscava um emprego” (Mari, 2007). Parece que sua opção é apenas uma escolha estratégica, visando atender às necessidades do mundo sistêmico. Essa conclusão, contudo, não se sustenta. Caso fosse apenas uma decisão estratégica, ela poderia optar por empregos mais bem remunerados, no entanto se propõe a passar por uma seleção rígida para trabalhar na área que havia escolhido: educação. A escolha de Mari é também estratégica, visa à sua sobrevivência, mas não perde de vista o seu lado emancipatório. Dentro das suas necessidades e possibilidades, ela escolhe trabalhar com uma profissão que permite um projeto utópico.

Mari trabalha há sete anos como educadora de rua do Projeto Axé e seu relato indica que, nesse momento de sua vida, o criticismo do pensamento histórico está predominando sobre o seu projeto utópico de ser educadora de rua do Projeto Axé.

A sua maior desmotivação vem do fato dos meninos estarem usando drogas muito potentes e a sua recuperação está se tornando cada vez mais difícil. Ela está sentindo uma dificuldade maior em atraí-los para o Projeto, em estabelecer laços, em mostrar a eles que ainda há um vasto espaço para uma metamorfose em sua vida, para o devir de outros personagens numa existência menos degradante. Para Mari, o crack é tão devastador que destrói os meninos antes que qualquer relação possa ser estabelecida.

Não há espaço para a pedagogia do desejo se o único desejo é a droga, tampouco há como estabelecer uma relação de sedução pedagógica quando o indivíduo já foi atraído por uma presença tão forte como o crack. Em sua opinião, talvez a solução fosse o trabalho de uma equipe multidisciplinar tentando resolver a questão, pois esta tem se mostrado muito grave.

Desânimo e desencanto marcam o discurso de Mari. Quando lhe pergunto se ela tem alguma vontade de fazer carreira no Axé, ela me responde de forma taxativa: “Não. Não penso em carreira. Acabei. Não penso. Às vezes, vêm esses convites assim para uma supervisão. Não penso, não quero, não desejo. Não desejo. Não tenho desejado” (Mari, 2007).

Nesse ponto, Mari está irredutível. Quer sair do Projeto Axé. Está em busca de outro emprego. Não sabe qual; o Axé, contudo, não atende mais às suas expectativas e ansiedades. Diz que não há outros motivos para querer sair, além do desencanto. Afirma que tem um ótimo relacionamento com seus colegas e chefes.

O problema de Mari não é com a Instituição, com o Projeto Axé, é com a educação de rua em si. Esse projeto utópico se esgotou. Ela está cansada de ver os meninos voltarem para as ruas ou não aderirem ao Projeto.

tenho tido uma ideia muito pessimista com essas crianças, com esse Projeto de meninos de rua. Talvez isso não tenha colaborado, talvez isso não esteja colaborando comigo por alguma razão, mas, eu já tenho uma ideia, já estou cansada, eles não saem, eles não saem... (Mari, 2007)

Esse cansaço de Mari remete às palavras de Habermas (1987Habermas, J. (1987). A nova intransparência. Novos Estudos Cebrap, 18, 103-114. ): “o pensamento histórico saturado de experiência parece destinado a criticar os projetos utópicos” (Habermas, 1987, p. 104).

Na história de Mari, a experiência histórica parece ter acabado com seu projeto utópico com relação aos meninos de rua. Ela está convencida que o método utilizado não é resposta para o desafio; tem sérias dúvidas se o problema da infância de rua tem solução, nas condições atuais.

Por isso, e por outros problemas pessoais, sobre os quais se recusa a falar, está disposta a sair do Projeto Axé. Não há desejo, não há mais projeto emancipatório. Hoje, para Mari, o que há é a reposição do seu papel de educadora de rua. Uma vez que o Axé não tem condições de atender seu projeto emancipatório, não satisfaz mais suas necessidades financeiras, continuar trabalhando nele perde o sentido para Mari. Ela está vivendo um círculo vicioso, numa crise de má infinidade e não sabe como sair dela. Para ela, sua profissão não tem mais nenhuma conotação emancipatória.

Almeida (2005Almeida, J. A. M. (2005). Sobre a anamorfose: Identidade e emancipação na velhice. Tese de Doutorado. Programa de Pós-graduação em Serviço Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo. ) nos lembra que a reposição em si não é um processo valorativamente bom ou ruim, é um esforço para manter uma situação prévia, e expressa o modo como lidamos como o mundo. Ela pode ser dolorosa se estamos, por algum motivo, tentando manter uma situação que não nos agrada mais. É o que acontece com Mari, exercer sua profissão hoje é doloroso para ela.

Parece, entretanto, que a dificuldade de tirar os meninos da rua, o tempo, o cansaço, e alguns motivos pessoais terminaram por minar seu ânimo e ela não consegue mais acreditar em soluções vindas de projetos políticos concretos.

Decepcionada com seu trabalho na área social, canaliza a sua utopia para a religião. Seus companheiros de fé estão tentando encontrar outro emprego para ela. Uma amiga disse que ela vai trabalhar no local onde Deus designar. Sem saber para onde direcionar sua vida, Mari coloca todos os seus problemas nas mãos da sua religião. Beirando o fanatismo, ela deixou de resolver seus próprios problemas esperando que Deus o faça.

eu estava até conversando com uma irmã em Cristo ... a gente estava vendo um trabalho... Aí uma pessoa falou ... você vai trabalhar num lugar que Deus queira que você trabalhe.... Aí, eu gostei. Por quê? Porque eu posso ir para um trabalho e minha alma pode definhar. Eu posso ir para um trabalho e não gostar. Vai criar uma história. Vai criar uma frustração. ‘Eu estou fazendo o quê aqui?’, ‘Eu sai de um, vim para outro’. E essa fé é uma coisa muito... nossa! (Mari, 2007)

Mari não consegue articular pensamento histórico e pensamento utópico. Diante do que ela considera a inviabilidade do seu projeto utópico, ela adota uma atitude de não crer mais que projetos emancipatórios possam resolver seus problemas terrenos. Desiste da utopia e cai no utopismo.

Habermas (1987Habermas, J. (1987). A nova intransparência. Novos Estudos Cebrap, 18, 103-114. ) faz uma crítica a esse utopismo, essa visão religiosa da utopia. Considera-a quase uma regressão, pois se a utopia adota apenas a forma religiosa, ela separa-se do pensamento histórico e diminuem-se as alternativas reais de luta política.

Talvez a consciência da história se descarregue de suas energias utópicas, assim como no fim do século XVIII, com a temporalização das utopias, as expectativas no paraíso imigraram para a vida terrena, hoje, duzentos anos depois, as expectativas utópicas perderiam o seu caráter secular e readotariam uma forma religiosa (Habermas, 1987Habermas, J. (1987). A nova intransparência. Novos Estudos Cebrap, 18, 103-114. , p. 105).

Mari viu e acompanhou meninos em situações tão difíceis que está descrente da possibilidade de salvação pelo trabalho social. Ela parece ter desistido da sua luta por autonomia; paradoxalmente, vale-se da autonomia que alcançou para escolher a heteronomia de botar nas mãos de Deus o seu destino.

Conclusão

A utopia é instrumentalizada sob a forma de projetos utópicos, que são projetos políticos e emancipatórios. Esses projetos utópicos variam de acordo com as circunstâncias, o que não se pode perder é a utopia em si, a energia utópica, a capacidade de acreditar na transformação da realidade pessoal e/ou social.

Entendemos que a articulação entre pensamento histórico e pensamento utópico torna possível que o indivíduo vá adequando o seu projeto de vida, buscando garantir um sentido emancipatório para o processo de metamorfose que constitui sua identidade. Esta adequação previne contra um utopismo ingênuo e deslumbrado, incapaz de crítica do processo histórico da sociedade; por outro lado, tal adequação impede que um ceticismo imobilista elimine toda e qualquer energia utópica, a pretexto de permanecer numa crítica radicalizada que se torna de fato paralisante. Em síntese, essa articulação pressupõe uma adequação na perspectiva pós-metafísica, de tal modo que se possa argumentar racionalmente a validade e a factibilidade de projetos, evitando retornar ao utopismo religioso que de fato elimina o debate argumentativo por se apoiar no dogma.

Edna conseguiu articular adequadamente pensamento histórico e pensamento utópico. Apesar de todos os problemas, de todas as dificuldades enfrentadas com os meninos, ela não desiste do seu Projeto utópico. Continua trabalhando no Projeto Axé, como coordenadora da área de família e defendendo a proposta do Projeto. Segundo Habermas (1987Habermas, J. (1987). A nova intransparência. Novos Estudos Cebrap, 18, 103-114. ), “quem for mais sensível às energias utópicas do espírito de época promoverá mais vigorosamente a fusão do pensamento histórico com o pensamento utópico” (p. 104). E Edna age assim, sensível às energias e mudanças do momento busca sempre novas possibilidades para sua energia utópica. Ela toma decisões que lhe são favoráveis profissionalmente sem perder de vista o lado emancipatório de suas escolhas.

Rita não é tão bem-sucedida quanto Edna no Projeto Axé. O desligamento de Rita é doloroso para ela. Sente necessidade de desligar-se do Axé porque suas normas e suas rotinas antes tinham sentido emancipatório para ela, mas depois passam a ter apenas sentido regulatório, de certa forma coercitivo. Até aquele momento, o espaço que havia para o diálogo a satisfazia, mas, depois de alguns anos, ela começa a se ressentir com uma série de fatos, e o espaço para o diálogo na sua avaliação não é mais suficiente.

Rita desiste de ter seu projeto utópico vinculado ao Projeto Axé, mas não perde a força de sua utopia, apenas muda o seu sentido. Vai trabalhar por conta própria, prestando consultorias com um grupo de amigos envolvido em educação popular. Rita sai do Projeto, entretanto não abandona seu projeto utópico, articulando assim história e utopia. O que para Habermas seria: “A atualidade concebe-se recorrentemente como uma passagem para o novo; ela vive na transitoriedade dos acontecimentos históricos e na expectativa de outra configuração de futuro” (Habermas, 1987, p. 103).

Já Mari, das três, é a única que em momento algum da sua narrativa mostra que conseguiu articular adequadamente pensamento utópico e pensamento histórico. Passa da utopia para o utopismo. Passa de uma fé comum, uma religiosidade que a maioria das pessoas pratica para uma fé cega, sem questionamentos, colocando as decisões sobre a sua vida nas mãos de Deus, sem utilizar sua autonomia, nem mesmo seu livre-arbítrio.

O pensamento histórico saturado de experiência parece destinado a criticar os Projetos utópicos; o pensamento utópico, em sua exuberância, parece ter a função de abrir alternativas de ação e margens de possibilidades que se projetem sobre as continuidades históricas (Habermas, 1987Habermas, J. (1987). A nova intransparência. Novos Estudos Cebrap, 18, 103-114. , p. 104, grifo dos autores).

Diante da história, “abrir alternativas de ação”, é isso que Edna e Rita conseguem fazer e Mari não. Observa-se que quem carrega a energia utópica dentro de si e quer vê-la tornar-se realidade tem que acompanhar o passo da história e reinventar sua utopia mudando de projeto, mas mantendo o pensamento utópico. Metamorfoseando-se, emancipando-se, tornando-se um sujeito pós-convencional. Tentando, num universo que domina a lógica sistêmica, não abandonar o sentido emancipatório de suas escolhas.

Sendo assim, observamos que existe um fértil campo de estudos em que se pode refletir sobre processos identitários, que impedem a articulação de utopia e história pessoal, tais como a mesmice, a cristalização da identidade, a reposição. Todos esses temas podem ser pensados com o pensamento histórico e o pensamento utópico como forma de contribuição à teoria da identidade.

Agradecimento

À agência de fomento, Conselho Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento [CNPQ] - bolsa de Doutorado.

Referências

  • Almeida, J. L. V. (1997). Educadores de rua do estado de São Paulo: as representações que informam a sua prática educativa Tese de Doutorado, Programa de Pós-graduação em Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo.
  • Almeida, J. A. M. (2005). Sobre a anamorfose: Identidade e emancipação na velhice Tese de Doutorado. Programa de Pós-graduação em Serviço Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.
  • Antunes, M. S. X. (2012). A compreensão do sintagma identidade-metamorfose-emancipação por intermédio das narrativas de história de vida: uma discussão sobre o método. In A. F. Lima (Org.), Psicologia Social Crítica: paralaxes do contemporâneo (pp. 67-84). Porto Alegre: Sulina.
  • Barbetta, A. (1993). A saga dos menores e dos educadores na conquista da condição de cidadão: o movimento nacional de meninos/as de rua na década de 80 Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-graduação em Serviço Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.
  • Berger, P. L. & Luckmann, T. (1999). A construção social da realidade (18ª ed.). Petrópolis, RJ: Vozes.
  • Bottega, C. G. & Merlo, A. R. C. (2010). Prazer e sofrimento no trabalho dos educadores sociais com adolescentes em situações de rua. Cadernos de Psicologia Social e do Trabalho, 13(2), 259-275.
  • Ciampa, A. C. (1998). A estória do Severino e a história da Severina (6ª ed.). São Paulo: Brasiliense.
  • Ciampa, A. C. (2002). Políticas de Identidade e Identidades Políticas. In C. I. L. Dunker & M. C. Passos (Orgs.), Uma Psicologia que se interroga: ensaios (pp. 133-144). São Paulo: Edicon.
  • Ciampa, A. C. (2003). A identidade social como metamorfose humana em busca da emancipação: articulando pensamento histórico e pensamento utópico. In XXIX Encontro da Sociedade Interamericana de Psicologia Lima. (pp. 1-15)
  • Freire, P. (2005). Pedagogia do oprimido (40a ed.). Rio de Janeiro: Paz e Terra.
  • Goffman, E. (1999). A representação do eu na vida cotidiana (8ª ed.). Petrópolis, RJ: Vozes .
  • Graciani, M. S. S. (2001). Pedagogia social de rua: análise e sistematização de uma experiência (4ª ed.). São Paulo: Cortez; Instituto Paulo Freire.
  • Grandino, P. J. (1998). O educador de rua e suas práticas educativas Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-graduação em Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo.
  • Habermas, J. (1987). A nova intransparência. Novos Estudos Cebrap, 18, 103-114.
  • Habermas, J. (1990). Para a reconstrução do materialismo histórico (2ª ed.) São Paulo: Brasiliense .
  • Habermas, J. (2002). O pensamento pós-metafísico (2ª ed.) Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.
  • Leme, M. C. G. (2004). Ousando dizer a própria história: o protagonismo político - pedagógico da educação social de rua Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-graduação em Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo.
  • Macerata, I. M. & Passos, E. (2015). Intervenção com jovens em situação de rua: problematizando cuidado e controle. Psicologia & Sociedade, 27(3), 537-547. Recuperado de http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-71822015000300537&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt
    » http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-71822015000300537&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt
  • Minayo, M. C. S. (1999). O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde (6ª ed.) São Paulo: Hucitec; Rio de Janeiro: ABRASCO.
  • Morais, N. A. & Koller, S. H. (2012). Um estudo com egressos de instituições para crianças em situação de rua: percepção acerca da situação atual de vida e do atendimento recebido. Estudos de Psicologia 17(3), 405-412.
  • Santos, B. S. (2013). Pela mão de Alice - o social e o político na pós-modernidade (9ª ed.). Coimbra: Editora Almedina.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2017

Histórico

  • Recebido
    14 Nov 2016
  • Revisado
    04 Jan 2017
  • Aceito
    16 Abr 2017
Associação Brasileira de Psicologia Social Programa de Pós-graduação em Psicologia, Universidade Federal de Pernambuco, Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH), Av. da Arquitetura S/N - 7º Andar - Cidade Universitária, Recife - PE - CEP: 50740-550 - Belo Horizonte - MG - Brazil
E-mail: revistapsisoc@gmail.com