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DANÇAR PARA SAIR DO LUGAR: A PRODUÇÃO DE LUGARES PERIGOSOS

BAILAR PARA SALIR DEL LUGAR: LA PRODUCCIÓN DE LUGARES PELIGROSOS

DANCING IN ORDER TO MOVE: THE EMERGENCE OF DANGEROUS PLACES

RESUMO

Este artigo tem como objetivo problematizar a produção de lugares perigosos, a partir de narrativas de usuários das políticas de assistência social, em uma pesquisa cartográfica que trata dos discursos sobre a redução da maioridade penal. Para tanto, utilizamos o conceito de governamentalidade, de Michel Foucault, a fim de pensar a produção desses lugares e de suas políticas públicas, de acordo com marcadores trazidos nas narrativas da pesquisa. Trata-se de uma lógica territorial que legitima a atuação sobre seus sujeitos, independentemente de suas ações, reforçando a conexão pobreza-marginalidade-criminalidade, a partir das políticas públicas de segurança e assistência social.

Palavras-chave:
Lugares Perigosos; Governamentalidade; Segurança Pública; Assistência Social

RESUMEN

Este articulo tiene como objetivo la problemática de la producción de lugares peligrosos, en base de cronicas de beneficiarios de las políticas de asistencia social, en una investigacion cartográfica que trata dos maneras sobre la reducción de la mayoría de edad penal. Para eso, utilizamos el concepto de gubernamentalidad de Michel Foucault, con el objeto de analizar y reflexionar en el surgimiento de estos lugares y de la implementacion de políticas públicas, de acuerdo con indicadores marcados en las cronicas de la investigacion. Se trata de una lógica territorial que legitima la accion del estado sobre los sujetos, independentemente de sus acciones, reforzando la coneccion pobreza-marginalidad- criminalidad, a partir de políticas públicas de seguridad y asistencia social.

Palabras-clave:
Lugares Peligrosos; Gubernamentalidad; Seguridad Pública; Asistencia Social

ABSTRACT

This article aims to discuss the emergence of dangerous places, having as a starting point the narratives of users of social work policies, collected in a cartographic research addressing the discourses about reducing the minimum age for criminal responsibility in Brazil. For that, we used Michel Foucault’s concept of governmentality, in order to reflect on the emergence of these places and their public policies, in accordance with markers present in the studied narratives. It is a territorial logic that justifies actions on its subjects, regardless of their own actions, reinforcing a connection between poverty, marginality and crime, based on public policies of security and social work.

Keywords:
Dangerous Places; Governmentality; Public Security; Social Work

Notas introdutórias: vivenciando o lugar

Ao percorrer com os olhos a rodovia 471, em direção a Rio Pardo/RS, não encontro o lado de baixo. Somente consta no mapa da rodovia para cima. A zona sul não está nesse mapa! Sinto a invisibilidade, que passa a aumentar conforme o manuseio. Procuro quem o construiu, tentando achar uma explicação, talvez um culpado. Vejo imagens lindas, de um mapa turístico, que mostra a beleza da cidade, esta que tanto encanta turistas e moradores. O ponto turístico mais próximo à zona sul é o Santuário de Schoenstatt, que fica no trajeto, na própria BR. A área mais nobre da cidade fica no seu extremo oposto, assim como sua entrada principal pela RS-287. A invisibilidade concretizada no mapa ativa meu sentimento enquanto trabalhadora, que percebe que ela ocorre no cotidiano de suas vidas. Santa Cruz do Sul, uma cidade rica, de origem germânica, qual sua relação com os moradores da zona sul? Algumas pessoas que são daqui naturais não conhecem esse lugar. Quando tento explicar onde eu trabalho, conhecem no máximo até a BR, como no mapa. (Diário de campo, 07/10/2016)

No mapa da cidade de Santa Cruz do Sul - município de médio porte localizado na região central do Rio Grande do Sul -, partindo do seu centro, o acesso à zona sul se dá pela BR-471, em direção à cidade vizinha, Rio Pardo. A zona sul fica em torno de 15 minutos de carro do centro da cidade.

Se, por um lado, alguns territórios são invisibilizados nos mapas turísticos ou a partir da sua distribuição na cidade, por outro lado eles ganham destaque quando se fala em lugares perigosos, tanto pela população e pela mídia quanto pelas próprias políticas públicas. Pensar na produção desses lugares passa por pensar na organização do Estado, através de suas práticas e serviços, numa lógica a qual Foucault (1999Foucault, M. (1999). Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes. , 2008aFoucault, M. (2008a) O nascimento da biopolítica (Curso dado no Collège de France (1978-1979). São Paulo: Martins Fontes ., 2008bFoucault, M. (2008b) Segurança, território e população (Curso dado no Collège de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes . ) chamou de "governamentalidade". Ao trazer esse conceito, o autor afirma que governar não significa o mesmo que reinar, comandar ou mesmo fazer a lei; assim, governamentalidade se refere a questões do Estado e da população. A governamentalidade trata da “arte de governar” que buscou elaborar, racionalizar e centralizar a partir das condições de emergência no final do Renascimento e entrada na Modernidade, a gestão do que foi constituído como população, em moldes diferentes do que se dava na relação das famílias com a soberania. Veiga-Neto (2005, p. 81) atenta para o fato de que essa nova questão política se colocava na “relação entre segurança, a população e o governo”, na qual se passou a regular modos de vida: inseri-las no jogo do mercado e controlar seus escapes. Tais controles ocorrem nos seus componentes de saúde, sociais, econômicos e políticos, e são legitimados por saberes científicos que passaram a ser produzidos ainda na sociedade disciplinar1 1 A sociedade disciplinar é trabalhada por Foucault (2010) a partir do seu acompanhamento das instituições prisionais e psiquiátricas e trata dessa vigilância sobre o corpo, que busca capturar seu tempo, seus movimentos e sua organização, em seus detalhes. Sua finalidade é formar corpos dóceis e úteis para a produção. É a partir dessa racionalidade que passa a haver um investimento no corpo e a produção de conhecimento científico sobre o mesmo. . Dessa maneira, tem-se uma nova tecnologia de poder, que não exclui a disciplinar (centrada no corpo individual), mas que a modifica e a integra, e, apoiada em instrumentos diferentes, se volta para outro nível, outra escala: a vida dos homens, entendida aqui como o homem-espécie (Foucault, 1999). Tal tecnologia de poder é denominada por Foucault como biopolítica.

A lógica territorial tem tido cada vez mais centralidade nos atendimentos das famílias pobres, a partir das diversas políticas públicas que entendem ser tais territórios como vulneráveis e de risco, a exemplo das políticas de segurança e assistência social. Desta forma, a territorialidade serve como dispositivo utilizado no planejamento das ações governamentais, orientando onde determinados serviços devem se fazer presentes para o atendimento dos seus moradores.

A partir disso, pode-se dizer que é aqui, quando passa a se constituir o problema da cidade, a partir dos efeitos do meio geográfico (pântanos, clima, hidrografia etc) sobre a população, “que a biopolítica vai extrair seu saber e definir o campo de intervenção de seu poder” (Foucault, 1999Foucault, M. (1999). Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes. , p. 292). Trata-se de um dispositivo que permite “pôr indivíduos em visibilidade, normalização dos comportamentos, espécie de controle policial espontâneo que se exerce assim pela própria disposição espacial da cidade” (Foucault, 1999, p. 299).

O presente artigo busca, portanto, problematizar a produção de lugares perigosos, a partir de narrativas de usuários das políticas de assistência social. Para tal intento, a produção de dados ocorreu mediante a realização de grupos com usuários do território de um Centro de Referência de Assistência Social da cidade de Santa Cruz do Sul/RS, nos quais foi proposta uma discussão referente à questão da redução da maioridade penal - tema que ganhou visibilidade em 2015, diante da aprovação da PEC 171/93 na Câmara dos Deputados. Entende-se aqui a produção de lugares perigosos como movimentos que produzem modos de subjetivação de lugares e sujeitos. Trata-se de problematizar as territorialidades através das quais as vidas são capturadas, suas linhas de fuga e resistências, atentando para os processos de subjetivação que interseccionam sujeitos, territórios, instituições e políticas.

Deste modo, o artigo está organizado da seguinte forma: (a) apresentação da cartografia como método que permite acompanhar as narrativas da pesquisa; (b) discussão sobre os movimentos de produção dos lugares perigosos e dos seus moradores; (c) problematização de dois marcadores que se entrelaçam na produção desses lugares: a segurança pública e a assistência social.

Acompanhando os movimentos da dança: o fazer cartográfico

Como estratégia para a discussão das narrativas e análise dos jogos de forças presentes, trazemos a cartografia enquanto método, o que permite ir além das formas, das representações, da fixidez dos seus lugares. Ela trata de uma busca pela expressividade e pelas multiplicidades, num movimento contínuo e acompanhamento dos seus percursos: outros modos, outros entornos, outros sentidos. Dizemos do atentar para a vida, com seus gostos, práticas, pensamentos e sentimentos, e buscamos dar visibilidade ao que talvez nos ajude a pensar num “contradiscurso”, construindo assim a possibilidade de um dançar que não se esgote e não se reduza a determinados lugares.

A cartografia não busca o caminho para se chegar a um lugar, mas esse “desenhar a rede de forças à qual o objeto ou fenômeno em questão se encontra conectado, dando conta de suas modulações e de seu movimento permanente” (Barros & Kastrup, 2010, p. 57Barros, L. R. & Kastrup, V. (2010). Cartografar é acompanhar processos. In E. Passos, V. Kastrup, & L. Escóssia (Orgs.), Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade (pp. 52-75). Porto Alegre: Sulina.). Anular os movimentos do corpo é suprimir-lhe a vida, estatizá-lo. Antecipar seus movimentos, como propõem algumas metodologias, é negar-lhe o acidente e a dinâmica dos seus encontros, é supor verdades absolutas.

Falamos de um desafio onde nos colocamos como sujeito nesse dançar, a fim de buscar o movimento das imagens do nosso pensamento: “imagem do pensamento significa uma forma à qual o pensamento está territorializado” (Oliveira, 2014Oliveira, T. R. M. (2014). Mapas, dança, desenhos: a cartografia como método de pesquisa em educação. In D. E. Meyer & M. A. Paraíso (Orgs.), Metodologias de pesquisas pós-críticas em educação (pp. 281-305). Belo Horizonte: Mazza., p. 285). Passetti (2013Passetti, E. (2013). O carcereiro que há em nós. In Entre garantias de direitos e práticas libertárias (pp. 147-181). Porto Alegre: Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande Do Sul., p. 149) nos diz de uma “atividade crítica do pensamento sobre o pensamento”, da possibilidade de combater alguns saberes e verdades instituídos, numa tentativa de fugir das capturas que engessam nossos modos de ser e pensar. Assim como o conceito de fluxo do pensamento de William James (1890/1945, citado por Kastrup, 2010Kastrup, V. (2010). O funcionamento da atenção no trabalho do cartógrafo. In E. Passos, V. Kastrup, & L. Escóssia (Orgs.), Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade (pp. 32-51). Porto Alegre: Sulina .), a dança permite paradas no movimento, e não do movimento.

Para a produção de dados, buscamos compor narrativas sobre a produção de territórios perigosos a partir de dois procedimentos: (a) grupos de usuários do Programa de Atenção Integral à Família - PAIF; (b) diário de campo. Os grupos de usuários são espaços já existentes como atividade central do Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), nos quais mensalmente são discutidos diversos assuntos sobre a garantia de direitos ou outros temas que o grupo achar pertinente, sob coordenação do psicólogo ou assistente social. Para a pesquisa, foi realizada uma conversa prévia com três destes grupos sobre a possibilidade de trazer para um dos seus encontros o tema “Redução da maioridade penal e a relação entre juventude e criminalidade”. Participaram desses grupos 56 sujeitos, todos pertencentes à área de abrangência do CRAS I, que se localiza na zona sul de Santa Cruz do Sul. Desse modo, partimos das discussões realizadas nos grupos e buscamos articulá-las às narrativas provenientes dos outros lugares de fala.

No diário de campo foram realizados registros que se conectavam com o tema, a partir de diferentes lugares, a saber: fragmentos das mídias, imagens, documentos das políticas públicas, legislações afins, escutas diversas em espaços públicos, bem como o exercício do pensamento da pesquisadora, na busca por atentar aos afetos e desejos que se colocaram nesse processo. O diário permite o registro, a partir de diferentes tempos e lugares, desses movimentos que nos dizem sobre os modos de ver e pensar; abre espaço ao registro de falas, observações, notícias, olhares, imagens, afetos.

Montando o cenário: a produção de “lugares perigosos” e “seus” sujeitos

De que outros modos, não fosse por essa distribuição espacial, as operações da Brigada Militar adentrariam daquela forma naquele lugar? Enquanto eu estava ali no meio da “Rua das Carrocinhas”, durante aquela conversa rápida com uma moradora, entrou Conselho Tutelar, saiu Secretaria da Saúde, entrou a Brigada Militar e nós, da Assistência Social, conversávamos sobre a guarda de três crianças que estavam prestes a serem acolhidas. Que lugar é esse onde o trânsito é livre? (Diário de campo, 20/12/2016)

Assim como os jovens potencialmente perigosos foram constituídos como tal, independentemente da sua ação, os territórios ditos perigosos são formações reservadas à população em vulnerabilidade ou risco sociais. Nesses lugares estão não somente seus jovens, mas suas famílias “incompetentes”, nomeadas “desestruturadas”, onde o Estado e a sociedade se sentem autorizados a entrar, a versar, a diagnosticar, a julgar. Os lugares perigosos constituem seus sujeitos para além da infração, assim como as instituições de sequestro, trabalhadas por Foucault (2010Foucault, M. (2010). Vigiar e punir. Petrópolis, RJ: Vozes. ).

A produção dos lugares perigosos, entretanto, não se dá somente pela regulamentação do Estado, mas por seus diversos atores. São movimentos diversos e contínuos que os delimitam e formam e que também se dão pela própria juventude, mesmo que ainda pela via do tráfico ou da violência. Esses lugares dizem das estatísticas e práticas utilizadas pelo Estado, que aponta possibilidades e impossibilidades; da juventude e suas famílias; dos nossos modos de pensamento e formas de subjetivação.

O lugar de "delinqüente" tem nos apresentado um fluxo que vai da sua “dívida social”, que os leva à prisão ao da sua “dívida durante o encarceramento” e que os devolve para o crime. Da gestão pelo encarceramento à gestão dos seus espaços de moradia, tem-se buscado o controle dessa juventude, que, como discutem Cruz, Hillesheim e Guareschi (2005Cruz, L., Hillesheim, B., & Guareschi, N. M. F. (2005). Infância e políticas públicas: um olhar sobre as práticas psi. Psicologia & Sociedade, 17(3), 42-49. ), no Brasil, tem sido alvo de medidas higienistas e eugênicas especialmente a partir do final do século XIX, quando houve uma preocupação com o contingente de crianças e adolescentes que viviam nas ruas e a criação de casas de correção, que objetivavam seu disciplinamento pelo trabalho.

Ao pedir informação para um morador e liderança na comunidade, a fim de encontrar uma casa onde a pesquisadora deveria realizar uma visita domiciliar, ele alerta: “olha, ali é boca braba, ruim de entrar” (Diário de campo, 12/10/2016). Essa narrativa aponta para subjetividades presentes nesse lugar, a partir da sua produção espacial. Trata-se de jogos de forças que dizem tanto do lugar desse líder local quanto da pesquisadora e da juventude em si. A partir da sua problematização, é possível dar-se conta da relação do CRAS com essa juventude e de alguns pactos que se colocam nessa rede de atendimento, os quais vêm a produzir determinados lugares. A “boca braba”, ou seja, o lugar perigoso, serve a essa liderança, que se posiciona como alguém que tem acesso a lugares e relações que outros não têm; serve à juventude que é protegida em espaços onde ninguém quer entrar e que “pertencem” a eles; serve às políticas públicas que exercem seu trabalho a partir da sua delimitação territorial, tal como preconizado pelas políticas de assistência social. Mas, afinal, que lugar é esse? E para a pesquisadora, o que desperta o ultrapassar suas fronteiras, adentrar a “boca braba” e buscar o outro?

Penso que o meu sentimento não é de medo; pelo contrário, sinto-me mais segura ali do que em outros espaços na cidade. Talvez esteja acessando não só esses lugares, mas me conectando às suas subjetividades. Ou então aqueles sujeitos soam como pertencentes àqueles lugares e isso não me causa estranhamento. E o quanto eu pertenço a esse lugar? Estou fora e dentro dele ao mesmo tempo. Provavelmente ali, naquele momento, a insegurança se dê realmente com a chegada da polícia, como comentou numa aula uma estudante de Psicologia. (Diário de campo, 12/10/2016)

Nos movimentos que compuseram a pesquisa, fomos apresentadas à segurança pública como um importante marcador das narrativas dos sujeitos com quem estivemos em contato, que trazem consigo os sentimentos de insegurança e medo, num reforço a um risco2 2 Ver Castel (1987). contínuo, devido ao qual devemos estar em permanente vigília, pois a qualquer momento algo pode acontecer. Dentro desse contexto, onde a delinquência serve como justificativa para perpetuar e autorizar a vigilância sobre a população (Foucault, 2010Foucault, M. (2010). Vigiar e punir. Petrópolis, RJ: Vozes. ), somos diariamente apresentados aos nossos inimigos e seus lugares perigosos, dos quais devemos nos proteger.

Primeiro Ato: os lugares da segurança pública

Essa imagem serve a muitos pensamentos que participam dos embates atuais da segurança e criminalidade. Que lugar é esse, da lixeira e da rua, na frente do Palácio da Polícia, sob os olhos não só desta, mas de quem passa? Por que a lixeira e não outro lugar? Vidas que nada valem são ali expostas para quem passa... São diversos os pensares e as narrativas possíveis mas, enquanto isso, eles estão ali com os corpos nus e expostos - como nos suplícios - e servem de cardápio a uma sociedade que está em guerra. Não somente suas vidas estão em jogo, mas o que se produz sobre elas, as forças que lutam, o que é da ordem do poder. (Diário de campo, 10/11/20163 3 Para uma descrição e imagem da cena mencionada, ver matéria do G1 (2016b). )

As narrativas sobre a segurança pública servem para falar do descaso do governo, da necessidade de consumirmos segurança, de como devemos nos comportar, de quais lugares e em que horários estamos autorizados a circular, de quem são nossos amigos e inimigos, de quem tem “direito aos direitos”, de quem deve viver e quem deve ser eliminado do convívio social. Suas dicotomias servem ao reforço de alguns lugares, como, por exemplo, o do “cidadão de bem” e do “bandido”: aqueles, considerados “produtivos, trabalhadores e pais de família”, como se estes não tivessem família e não dessem conta de sua sobrevivência, ainda que de outros modos e nas suas condições de pobreza. Quando se fala em lugares perigosos, há a interdição dos seus sujeitos a partir dos modos homogeneizantes com que são vistos e tratados, numa lógica em que o medo está em nós e, o perigo, neles.

Para problematizar tais modos, trazemos dois crimes nos quais pais foram assassinados na presença dos seus filhos, no retorno da escola: o primeiro ocorreu na periferia de Santa Cruz do Sul/RS (território do CRAS I), em que um pai, ao chegar com a filha da escola, pediu para que esperassem que a mesma descesse do carro antes de ser morto. Na ocasião, a menina saiu em busca de ajuda para não morrer e para salvarem seu pai. O segundo crime, por sua vez, se deu em um bairro de classe média alta, em Porto Alegre, capital do estado do Rio Grande do Sul, onde uma mãe que esperava o filho na frente da escola foi roubada e morta. O crime, que gerou grande mobilização e repercussão midiática, convocou a manifestação de diversos governantes e profissionais, em suas práticas e narrativas4 4 Ver G1 (2016a). .

Para além da quantidade de linhas das narrativas e do lugar onde foram encontradas (a primeira num grupo de PAIF e a segunda na mídia), cabe a problematização de suas (in)visibilidades: o primeiro caso fica limitado ao espaço e às ações do seu território; lá, onde o crime acontece, nos bairros pobres e estigmatizados, os vizinhos encontram seus modos, inclusive os de lidar com a dor do outro e a sua. Provavelmente, não saberíamos do ocorrido não fosse por essa narrativa ou por pequenas linhas do jornal local, onde o medo e a dor do outro nos é facilmente anônima ou desconhecida. No segundo crime, por sua vez, a narrativa nos provoca a sensação de uma cortina que se abre: imagens, prisões, diligências, mobilizações, detenções, informações, anúncios, comentários, ironias, demissões, criação de novo gabinete, divulgação de notas, pedidos de ajuda à Força Nacional. O que tais narrativas, tão semelhantes e ao mesmo tempo tão diferentes, nos apontam?

Batista (2010Batista, N. (2010). Sessão de abertura. In P. Abramovay & V. M. Batista (Orgs.), Depois do grande encarceramento. Rio de Janeiro: Revan.) atenta para a interdição das tragédias sociais pela nova economia e sua redução às representações jurídico-penais, sendo seus movimentos apreendidos pela polícia e pela mídia. Segundo o autor, trata-se “de um bom lugar para esconder a política, atrás da legislação penal e de um senso comum criminológico positivista reverenciado diariamente pelas âncoras da televisão” (p. 7). Por sua vez, Wacquant (2007Wacquant, L. (2007). Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos [A onda punitiva]. Rio de Janeiro: Revan .), quando fala do Estado Penal, nos apresenta alguns princípios presentes nas políticas neoliberais de segurança, a saber: o anúncio de ataque ao crime sem levar em conta suas causas, o desejo por inovações burocráticas e tecnológicas, a disseminação da política punitiva junto a um discurso alarmista sobre a insegurança, a guerra contra o crime junto à visibilidade de uma vítima na figura do cidadão exemplar, uma revalorização da estigmatização de outros sujeitos, dentre outros.

Trata-se dessa racionalidade jurídico-penal que prevalece nos discursos contemporâneos e neoliberais da segurança pública e que se apresenta como modo de gerir a população, tanto na captura dos sujeitos identificados como “perigosos”, como dos ditos “cidadãos de bem”, num contexto democrático onde “a participação política é uma exigência da legitimidade dos governos” (Tótora, 2014Tótora, S. M. C. (2014). Governamentalidade: democracia e segurança. In S. Vaccaro & N. Avelino (Orgs.), Governamentalidade: Segurança (pp. 59-80). São Paulo: Intermeios; Capes., p. 66) e “assegura o acesso e o exercício do poder político às lideranças” (Tótora, 2014, p. 63).

As narrativas de moradores dos lugares produzidos como sendo perigosos denunciam uma lógica que insere essas vidas na precariedade ou na sua morte física e política. Quando Foucault (1999Foucault, M. (1999). Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes. ) fala do racismo de Estado - que é o que assegura a morte numa sociedade caracterizada pelo exercício do biopoder -, ele não diz somente de uma morte direta, mas de “tudo o que pode ser assassínio indireto: o fato de expor à morte, de multiplicar para alguns o risco de morte ou, pura e simplesmente, a morte política, a expulsão, a rejeição etc” (Foucault, 1999, p. 306). Nessa perspectiva, podemos observar o sentimento de abandono pelo Estado no que se refere à garantia dos direitos constitucionais e/ou uma oferta desses direitos condicionada aos modos de subjetivação já conhecidos.

São diversas as narrativas que dizem da mãe que só consegue a pensão se o pai dos filhos estiver preso, do filho com diagnóstico de distúrbios de saúde mental que só consegue benefício previdenciário quando acessa o presídio forense, dos crimes que só alcançam resposta do governo se ganharem grande repercussão midiática, dos sujeitos que só conseguem se aposentar se apresentarem risco para a sociedade, dos familiares que só obtêm tratamento para dependência de drogas mediante o desejo do sujeito ou dos pais que só conseguem vaga para seus filhos na creche mediante diagnóstico de risco. Como garantir tais direitos sem apelar a diagnósticos e pareceres? Como construir Direitos Humanos que sirvam mais à defesa da vida do que como instrumento de captura?

Outras vidas, no entanto, são efetivamente alvos de extermínio5 5 Dados como os presentes na série Mapas da Violência, produzida pela Flacso, mostram o alto índice de mortes entre jovens pobres e negros. A Anistia Internacional também vem realizando campanhas sobre o tema no país. e, para isso, algumas justificativas nos são apresentadas. As drogas, aqui, ocupam o lugar de provocar a morte: para além da não garantia de tratamento da sua dependência, também pela via do tráfico e da guerra às drogas na lógica estadunidense, através de mortes causadas pela polícia, pelas relações com o tráfico, por uma bala sem sujeito (perdida) ou contra o sujeito errado. Agamben (2010Agamben, G. (2010). Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Editora UFMG.) atenta para essas vidas matáveis6 6 Agamben traz o conceito de vida nua para tratar desses sujeitos cujas vidas estão fora do ordenamento jurídico e desprotegidas, por caber ao poder soberano o seu destino e pelo fato de suas mortes não serem consideradas crime, pois elas se justificam a priori para a preservação de outras vidas. O conceito de poder soberano de Agamben, diferentemente de Foucault, nos dirá sobre uma racionalidade ainda presente e que mantém a lógica do “fazer morrer e deixar viver” (tanatopolítica). , que não têm valor e que podem ser julgadas por qualquer um de nós, nesse agir soberano, e cujas mortes não são consideradas crime, pois elas se justificam a priori para a preservação de outras vidas.

Por outro lado, o tráfico passa a assumir a gestão de vidas - ainda que perpassada pela violência e pela morte -, construindo um outro lugar para o criminoso: o de quem protege. A partir disso, outros modos de sustento, de proteção e de relações acabam se estabelecendo, bem como a produção de “lugares dentro dos lugares” ou uma distinção entre seus moradores: “quando o tráfico está organizado, eles sabem que as crianças podem andar na rua, que a dona Maria vai ter o gás” (estudante, moradora da periferia de Porto Alegre). “É que essa esquina é um perigo!” (Moradora, grupo de PAIF).

Nesse contexto, no qual se carece da garantia de direitos e em que o tráfico muitas vezes assume a gestão desses lugares, que possibilidades de outros figurinos têm sido ofertados às pessoas que vivem nesses territórios? Para além das narrativas e dos dados que apontam o desemprego entre os jovens e as dificuldades em mantê-los no espaço escolar (numa escola que facilmente identifica seus “desajustados” e “perigosos”), as políticas públicas seguem criando práticas que buscam “dar conta” desses sujeitos e que acabam, mais uma vez, reforçando discursos e verdades historicamente produzidos.

Em matéria no site do Governo do Estado do Rio Grande do Sul (2016Governo do Estado do Rio Grande do Sul. (2016). Santa Cruz do Sul inaugura Centro Integrado de Segurança Pública. Recuperado de <https://estado.rs.gov.br/santa-cruz-do-sul-inaugura-centro-integrado-de-seguranca-publica>
https://estado.rs.gov.br/santa-cruz-do-s...
, grifos nossos) sobre a inauguração do Centro Integrado de Segurança Pública e Cidadania de Santa Cruz do Sul, que reúne, no mesmo espaço, serviços de segurança, proteção e assistência social, é possível ler as seguintes declarações:

A expectativa é de que o novo espaço centralize e facilite o acesso e o atendimento "à comunidade da zona sul do município" […]

Segurança é prioridade para todo mundo, e a junção da Polícia Civil, Brigada Militar, Guarda Municipal e dos órgãos assistenciais do município é uma unidade que devemos aprender a conquistar. Esse exemplo vai servir para muitas comunidades que desejarem integrar a segurança e a assistência social, porque sem políticas sociais não se consegue diminuir a criminalidade. [Declaração do governador do Rio Grande do Sul]

Um projeto inédito e uma grande conquista para quem trabalha defendendo a vida do cidadão. (Declaração do prefeito de Santa Cruz do Sul)

Trata-se de uma governamentalidade que inclui “não somente o exercício prático do governo, mas também as formas de pensar o governo, a razão (ou saber) que orienta essas práticas” (Silveira, 2015Silveira, D. S. (2015). Governamentalidades, saberes e políticas públicas na área de direitos humanos da criança e do adolescente. In H. Resende (Org.), Michel Foucault: o governo da infância (pp. 57-83). Belo Horizonte: Autêntica., p. 58). Podemos dizer que aqui, onde temos o imperativo da segurança, as práticas, mecanismos, instituições e saberes que fazem parte dessa governamentalidade constituem o lugar, e as pessoas para os quais o acesso deve ser facilitado e conectam, mais uma vez, a segurança à assistência social, num reforço dessa racionalidade que diz que onde está a pobreza, está o perigo.

É nesse contexto, que vincula criminalidade e pobreza, que a política de Assistência Social foi produzida historicamente para governar determinados sujeitos. Sua construção como política pública, na busca de garantir direitos e abdicar das práticas benevolentes e assistencialistas que eram ofertadas até então, não deixou de lado tal conexão, mas a atualizou em estratégias biopolíticas, onde cabe ao Estado não mais a tutela, mas a regulamentação. Nessa perspectiva, trazemos a seguir, a discussão sobre esse entrelaçamento entre assistência social e territórios perigosos.

Segundo Ato: o território da Assistência Social

A territorialidade passa a ser um dos eixos estruturantes para a operacionalização do Plano Nacional de Assistência Social, elaborado a partir das deliberações da IV Conferência Nacional da Assistência Social em 2004. O mesmo modelo que busca a proximidade dos serviços aos cidadãos prioriza algumas famílias e territórios como focos de intervenção da política e vincula suas pessoas aos seus espaços, produzindo não somente sujeitos, mas também lugares perigosos. Trata-se de lugares onde a vigilância deve ser constante, independentemente dos seus acontecimentos e dos seus moradores. Como discutem Cruz e Hillesheim (2016Cruz, L. & Hillesheim, B. (2016). Vulnerabilidade social. In R. M. C. Fernandes & A. Hellmann (Orgs.), Dicionário crítico: política de assistência social no Brasil (pp. 300-302). Porto Alegre: UFRGS., p. 302), tanto a pobreza é enunciada como uma das principais condições de vulnerabilidade, como o risco é compreendido “como decorrente da não prevenção das situações de vulnerabilidade social”.

Os Centros de Referência da Assistência Social (CRAS) devem ali se fazer presentes e a eles cabe prevenir riscos, fortalecer vínculos familiares e comunitários e proteger, ao mesmo tempo em que constituem a falta, a condição de fragilidade, a vulnerabilidade. Importante salientar que as famílias atendidas pela PNAS - essa que não se constituiu para todos, mas para "quem dela precisa" - devem ser incluídas no Cadastro Único a partir do fator renda7 7 As famílias que devem realizar o Cadastro Único da Assistência Social, condição para utilizar seus serviços e programas, são as que possuem renda de até três salários-mínimos. , configurando uma política para atendimento à pobreza.

As narrativas produzidas no decorrer dessa pesquisa nos apresentam uma conexão das pessoas aos seus lugares e a constituição de determinados modos e efeitos homogeneizantes. São produções de subjetividades que versam sobre suas (im)possibilidades de vida: de conseguir emprego, sua condição moral, sentimento de pertença e, até mesmo, sobre a (im)possibilidade de consumo para além da posse econômica. A construção discursiva sobre esses lugares, que perpassa seus diversos locutores, ocorre para além dos acontecimentos, numa produção “controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade” (Foucault, 2013Foucault, M. (2013). A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France (2 de dezembro de 1970). São Paulo: Loyola., pp. 8-9).

Antigamente… quando acontecia algum assassinato na Boa Esperança, no rádio [anunciava]: [nome do bairro]. E não era… Então, a fama já tinha bem antes de existir a violência dentro do bairro!... E daí parece que isso foi chamando, foi chamando e hoje tá mesmo, cada vez pior. (Moradora C, grupo de PAIF)

Uma vez que se trata de territórios tido como vulneráveis, e tal vulnerabilidade se enreda nas linhas de forças e relações de poder, nos cabe problematizar seus modos e atentar para suas resistências, tendo em vista que a vulnerabilidade não necessariamente é fixa, ela pode dizer de movimentos, de momentos, de estados, e pode ser reconhecida para além do fator econômico e dos seus lugares. Em uma reunião de rede territorial, ocorre o relato de uma diretora acerca de um aluno que havia fumado maconha antes de entrar na escola; após ser retirado da sala de aula e levado para a sala da direção, ele comentou: “profe, me ofereceram agora uma arma e doze mil só pra mim para fazer um assalto. Era doze mil só pra mim! Mas eu preferi vir pra aula” (Diário de campo, 28/9/2016).

Outras narrativas se conectam a esta: “Moço, eu moro no Menino Deus, ao lado do presídio. Eu moro lá porque eu não tenho como morar em outro lugar. Eu tenho quinhentos reais para dar de entrada num guarda-roupas, eu posso comprar aqui?” (moradora que não havia conseguido comprar um guarda-roupas em outra loja após informar seu endereço, grupo de PAIF). Eles me disseram no CAPS8 8 Centro de Atendimento Psicossocial. que eu tinha que contar quem era o pai dela [da filha], mas isso pertence a mim. Acho que eles não têm que se meter na minha vida, ninguém me dá nada.” (Moradora encaminhada pelo Conselho Tutelar ao CRAS, 18/2/2016). “Olha bem para mim, eu tenho cara de bandido? . . . Bandido não anda assim, bandido anda engravatado, bandido anda limpo” (trabalhador da construção civil, negro, ao ser abordado pela polícia enquanto voltava do trabalho).

No caso dessa mãe que denuncia a prescrição do CAPS, mesmo que ainda não tenha sido garantido pelo Estado o direito à pensão alimentícia da sua filha, percebe-se o quanto insistimos no governo das condutas de certos sujeitos. Diversas são as prescrições que essas famílias recebem da rede de atendimento e a partir das quais devem ajustar suas condutas para a “melhoria da sua vida e da sociedade”. Mais do que garantia de direitos, as práticas ofertadas têm servido - nessa aliança com a segurança e o judiciário - como polícia desse modelo de família que se fundou na modernidade “em detrimento de um outro, o social, do qual ela é ao mesmo tempo rainha e prisioneira” (Donzelot, 1986Donzelot, J. (1986). A polícia das famílias. Rio de Janeiro: Graal., p. 13).

Nessa lógica em que cabe ao CRAS a prevenção das “famílias com potencial para”, com a justificativa de garantir seus direitos “ainda não violados”, Castel (1987Castel, R. (1987). A gestão dos riscos: da antipsiquiatria à pós-psicanálise. Rio de Janeiro: Francisco Alves. ) e Beck (2010Beck, U. (2010). Sociedade de risco: rumo a outra modernidade. São Paulo: Editora 34. ) nos auxiliam a pensar a lógica da probabilidade, da prevenção. É a partir do risco, entendido como probabilidade, que se avalia e antecipa o perigo na modernidade. Tal risco, que pode ser tanto para o sujeito quanto uma ameaça aos modos de vida hegemônicos (Hüning, 2007Hüning, S. (2007). Psicologia: da (a)normalidade ao risco. In N. Guareschi & S. Hüning (Orgs.), Implicações da Psicologia no Contemporâneo (pp. 135-158). Porto Alegre: Editora da PUCRS.), possibilita que determinadas práticas sejam direcionadas a determinados sujeitos e lugares, antes mesmo do perigo ocorrer. “Quanto maior for a presença de fatores de risco”, ponderam Hillesheim e Cruz (2008Hillesheim, B. & Cruz, L. R. (2008). Risco, vulnerabilidade e infância: algumas aproximações. Psicologia & Sociedade , 20(2), 192-199. , p. 5) sobre essa lógica probabilística, “maior a vulnerabilidade desta população e, portanto, maior a possibilidade da ocorrência de algum dano, fazendo-se necessária a intervenção sobre o perigo, deslocando-o de uma ordem do imponderável e tornando-o passível de previsão e controle”. “Eu gostaria de dizer pra ele que ele não tá consciente do risco que ele tá correndo” (profissional do CAPS sobre possibilidade de internação de jovem, 21/6/16).

Como dançar para sair desses lugares, se as orientações da PNAS propõem, cada vez mais, o entrelaçamento entre a oferta de um direito e a captura dos seus sujeitos? Mesmo que ao CRAS seja orientada à prevenção, à garantia de direitos, ao incentivo ao protagonismo e à superação da vulnerabilidade, o Reordenamento do Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (2013)9 9 Cf. Resolução CNAS nº 1, de 21 fev. 2013. exige a categorização dos sujeitos para sua inclusão no Sistema de Informações do Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SISC) do Ministério, a partir de situações pré-estabelecidas10 10 São critérios para inclusão nos SCFV: situação de isolamento, trabalho infantil, vivência de violência e/ou negligência, fora da escola ou com defasagem superior a dois anos, situação de acolhimento, cumprimento ou egresso de medidas socioeducativas, situação de abuso e/ ou exploração sexual, com medidas protetivas e situação de rua. . Desta forma, só há o acesso ao serviço de prevenção e o recebimento de recursos diante de sua fixação em determinados lugares.

A dança continua: considerações

A partir da pesquisa que se propunha a acompanhar as narrativas sobre a redução da maioridade penal, foi possível o encontro com um marcador importante: o território. Entendemos aqui o território como mecanismo que serve ao dispositivo de segurança, instrumento técnico central para a governamentalidade (Foucault, 2008bFoucault, M. (2008b) Segurança, território e população (Curso dado no Collège de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes . ). Trata-se de um território que produz subjetividade e que vem sendo construído pela sociedade e legitimado pelas políticas públicas, aqui especificamente as de segurança pública e assistência social, como modo de captura dos seus sujeitos. No entanto, percorrer um território é ir além do seu espaço físico; não basta estar nas suas áreas de “vulnerabilidade”, mas se deixar tocar pela sua escuta, esta que permita o dançar e contribua para borrar suas fronteiras, em vez de legitimar seu encarceramento.

A segurança pública, que se apresenta como um importante marcador das narrativas da pesquisa, nos diz de um dispositivo que regula a vida nos seus diferentes movimentos e que produz a necessidade de uma constante vigília, como nos apontou Foucault em Território, Segurança e População (2008bFoucault, M. (2008b) Segurança, território e população (Curso dado no Collège de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes . ) e Nascimento da Biopolítica (2008a). Nessa lógica, há a necessidade de reforçar o lugar do inimigo, que vem sendo potencializado pelos discursos midiáticos, fascistas e governamentais da crise do Estado na atualidade. Trata-se de movimentos que têm produzido e/ou legitimado a lógica dicotômica do sujeito perigoso e do dito "cidadão de bem", do bandido e da vítima, da violência e do medo, como se não houvesse medo, fragilidade e vítimas nos lugares produzidos como perigosos e como se as vidas se reduzissem a esses esquemas binários. Quando se dá visibilidade às suas vidas, é através do lugar da falta e da incompetência que continuam a reforçar tais lugares. Lá, onde a bala não tem sujeito, o policial não pede licença, o entregador de gás não entra, os próprios moradores resolvem seus conflitos e a mídia sensacionaliza suas violências, o Estado só se faz presente pelo controle; o tráfico, muitas vezes, assume a sua gestão. Sua violência é constituída antes dos seus crimes ocorrerem e a lei serve mais para penalizá-los e reforçar suas dicotomias do que propriamente para garantir direitos.

A impunidade e a falta de segurança têm sido narradas a partir do lugar do “cidadão de bem” e utilizadas fortemente como um discurso que serve às políticas de segurança. Mesmo que os jovens pobres e negros estejam morrendo em massa no Brasil, o que geralmente aparece nas narrativas (especialmente da mídia) é o seu outro lugar, o de quem violenta. Pouco se fala dos extermínios nas favelas - até mesmo porque suas mortes não raro são vistas como justificáveis -, mas sim dos crimes que ocorrem nos espaços privilegiados das cidades. Amador e Fernandes (2016Amador, F. S. & Fernandes, D. R. (2016). Cidades (in)habituais: considerações sobre o neoliberalismo e resistência. Factal: Revista de Psicologia, 28(2), 252-256. , p. 254) lembram que, já na construção das cidades, “estabelece-se um domínio de uma lógica individualista onde o outro é alienado de suas relações, convívios e preocupações”. E a nossa aproximação desses lugares se dá pelas mídias (que não falam das condições de vida desses sujeitos, mas do lugar da segurança e do judiciário), quando não desligamos nossos aparelhos por estarmos cansados ou abalados por ver tanta violência.

É preciso encontrar movimentos num contexto que leva não somente ao extermínio das vidas que nada valem, mas aos seus modos precários, ao seu esgotamento. Dizemos dessa morte de sentido, morte política, do não pertencimento que ocorre num contexto biopolítico e democrático, onde suas práticas têm servido mais à vigilância e controle dessas populações.

Há aqui a necessidade de problematizar seus modos dicotômicos, de atentar para o entre, para os modos que esses sujeitos encontram para resolver suas questões, mesmo que pela violência ou pelo silêncio. Nesse cenário, o tráfico de drogas, ao mesmo tempo em que violenta, apresenta possibilidades de existência, acesso a bens e não raro assume o lugar da gestão e da proteção. A partir das suas próprias leis, o tráfico reformula fronteiras, seleciona e diferencia seus moradores, constrói outras relações. Enquanto isso, o Estado permanece justificando suas ações na lógica da “guerra às drogas” estadunidense e aperfeiçoa suas políticas criminais, apoiadas no discurso da necessidade de segurança.

No território da Assistência Social, seguimos produzindo movimentos e atualizando práticas que servem ao controle biopolítico da população e reforçam a conexão criminalidade-marginalidade-pobreza. A lógica territorial, produzida pela Política Nacional de Assistência Social, legitima a atuação sobre seus moradores, independentemente das suas ações, assim como Foucault (2010Foucault, M. (2010). Vigiar e punir. Petrópolis, RJ: Vozes. ) nos mostrou na constituição do delinquente e do louco nos seus estudos sobre as instituições. São os lugares perigosos - travestidos de vulneráveis, nas políticas públicas - que apresentam riscos sociais, e por isso dispositivos de controle são justificáveis no sentido de prevenção e superação de tais riscos. Trata-se de movimentos cujos efeitos discursivos se cruzam com a potência desses sujeitos de conseguirem emprego, de consumirem, com a sua condição moral, com seus direitos, sua segurança, seu acesso aos serviços, seu sentimento de pertença etc.

Nos lugares perigosos, nos quais entramos e saímos de casas e de vidas sem pedir licença, se produzem também outros modos de vida, de organização e até mesmo de proteção, com algumas regras próprias que parecem surgir na contramão de alguns controles já estabelecidos. Seus territórios, afastados do centro da cidade e inexistentes no mapa turístico, dizem dessa relação que se estabelece entre seus moradores e os demais. Aos profissionais que lá devem trabalhar, cabe fortalecer seus vínculos com os seus iguais, nesses espaços onde devem permanecer. Todavia, a produção de subjetividade se dá na virtualidade e ultrapassa os movimentos de entrada e saída - tanto dos moradores quanto dos profissionais, atravessando as vidas. Sem sentirem-se autorizados, muitas vezes, a dar seu parecer diante dos profissionais e seus saberes, esses sujeitos simplesmente não frequentam as oficinas, não aparecem aos atendimentos, abandonam a escola, não recebem as agentes de saúde ou não seguem suas orientações.

Para o encontro com outros modos, parece que temos que nos permitir problematizar seus lugares, atentar para o entre, as formas de subjetivação, o pensar outramente. Talvez suas fugas, seu não-lugar nos auxilie nesse processo, desde que estejamos dispostos a encontrá-los e estabelecer com eles uma outra relação: a da dança.

Referências

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  • Wacquant, L. (2007). Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos [A onda punitiva]. Rio de Janeiro: Revan .
  • 1
    A sociedade disciplinar é trabalhada por Foucault (2010) a partir do seu acompanhamento das instituições prisionais e psiquiátricas e trata dessa vigilância sobre o corpo, que busca capturar seu tempo, seus movimentos e sua organização, em seus detalhes. Sua finalidade é formar corpos dóceis e úteis para a produção. É a partir dessa racionalidade que passa a haver um investimento no corpo e a produção de conhecimento científico sobre o mesmo.
  • 2
    Ver Castel (1987).
  • 3
    Para uma descrição e imagem da cena mencionada, ver matéria do G1 (2016bG1. (2016b, 9 de novembro). Presos são algemados em lixeira após horas dentro de viatura no RS. Recuperado de <http://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2016/11/presos-sao-algemados-em-lixeira-apos-horas-dentro-de-viatura-no-rs.html>
    http://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul...
    ).
  • 4
    Ver G1 (2016aG1. (2016a, 26 de agosto). Decretada prisão de suspeitos da morte de mãe na frente da filha no RS. Recuperado de <http://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2016/08/decretada-prisao-de-suspeitos-da-morte-de-mae-na-frente-da-filha-no-rs.html>
    http://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul...
    ).
  • 5
    Dados como os presentes na série Mapas da Violência, produzida pela Flacso, mostram o alto índice de mortes entre jovens pobres e negros. A Anistia Internacional também vem realizando campanhas sobre o tema no país.
  • 6
    Agamben traz o conceito de vida nua para tratar desses sujeitos cujas vidas estão fora do ordenamento jurídico e desprotegidas, por caber ao poder soberano o seu destino e pelo fato de suas mortes não serem consideradas crime, pois elas se justificam a priori para a preservação de outras vidas. O conceito de poder soberano de Agamben, diferentemente de Foucault, nos dirá sobre uma racionalidade ainda presente e que mantém a lógica do “fazer morrer e deixar viver” (tanatopolítica).
  • 7
    As famílias que devem realizar o Cadastro Único da Assistência Social, condição para utilizar seus serviços e programas, são as que possuem renda de até três salários-mínimos.
  • 8
    Centro de Atendimento Psicossocial.
  • 9
    Cf. Resolução CNAS nº 1, de 21 fev. 2013Conselho Nacional de Assistência Social [CNAS]. (2013). Resolução nº 01, de 21 de fevereiro de 2013. Recuperado de <https://cmas.jundiai.sp.gov.br/wp-content/uploads/2014/04/Resolu%C3%A7%C3%A3o-01.2013.pdf>
    https://cmas.jundiai.sp.gov.br/wp-conten...
    .
  • 10
    São critérios para inclusão nos SCFV: situação de isolamento, trabalho infantil, vivência de violência e/ou negligência, fora da escola ou com defasagem superior a dois anos, situação de acolhimento, cumprimento ou egresso de medidas socioeducativas, situação de abuso e/ ou exploração sexual, com medidas protetivas e situação de rua.
  • Financiamento: Betina Hillesheim, CNPQ (Bolsa de produtividade em pesquisa), processo número 304818/2015-1.
  • Consentimento de uso de imagem: Não se aplica.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jul 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    20 Jun 2018
  • Aceito
    01 Nov 2018
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