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CARACTERIZAÇÃO, REINCIDÊNCIA E PERCEPÇÃO DE HOMENS AUTORES DE VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER SOBRE GRUPOS REFLEXIVOS

CARACTERIZACIÓN, REINCIDENCIA Y PERCEPCIÓN DE HOMBRES AUTORES DE VIOLENCIA CONTRA LA MUJER SOBRE GRUPOS REFLEXIVOS

CHARACTERIZATION, RECIDIVISM AND PERCEPTION OF MEN PERPETRATORS OF VIOLENCE AGAINST WOMEN ABOUT REFLECTIVE GROUPS

RESUMO

Este estudo busca caracterizar homens autores de violência contra mulheres (HAV) que participaram de Grupos Reflexivos (GR) do Núcleo Especializado de Atendimento ao Homem ao Autor de Violência Doméstica e Familiar (NEAH) em Belém-PA, com destaque para a reincidência e a percepção dos HAV sobre os GR. Trata-se de um estudo documental, com registros feitos entre 2012 e 2015. Entre os resultados, verificou-se que 33,8% desses homens (n=24) não haviam completado o Ensino Fundamental, 58,8% (n=40) eram usuários de álcool e 54,8% (n=40) conviviam com a mulher no momento da agressão. Ademais, 61,2% (n=41) deles foram processados por violência física contra a mulher, mas apenas 1,3% (n=1) reincidiram nesta forma de agressão após a participação no GR. Estes foram descritos como um mecanismo acessível na prevenção da violência, pois proporciona cuidado, aprendizado e reflexão, porém, demanda por maiores pesquisas e investimentos que se aproximem de outras políticas sociais a fim de construir uma rede sólida de reformulação das relações sociais de gênero.

PALAVRAS CHAVES:
Violência de gênero; Autor de violência; Reincidência; Grupo Reflexivo

RESUMEN

Este estudio busca caracterizar a hombres autores de violencia contra mujeres (HAV) y su participación en Grupos Reflexivos (GR) del Núcleo Especializado de Atendimento ao Homem ao Autor de Violência Doméstica e Familiar (NEAH) en Belém-PA, con destaque para la reincidencia y la percepción de los HAV sobre los GR. Se trata de un estudio documental con registros realizados entre 2012 y 2015. Entre los resultados, se verificó que el 33,8% de esos hombres (n = 24) no habían completado la Enseñanza Fundamental, el 58,8% (n = 40) eran usuarios de alcohol y el 54,8% (n = 40) residían con la mujer en el momento de la agresión. Además, 61,2% (n = 41) de ellos fueron procesados por violencia física contra la mujer, pero sólo el 1,3% (n = 1) reincidieron en esta forma de agresión después de la participación en Grupos Reflexivos. Estos fueron descritos como un mecanismo accesible en la prevención de la violencia, pues proporciona cuidado, aprendizaje y reflexión, pero demanda mayores investigaciones e inversiones que se aproximen a otras políticas sociales a fin de construir una red sólida de reformulación de las relaciones sociales de género.

PALABRAS CLAVE:
Violencia de género; Autor de la violencia; Reincidencia; Grupo Reflexivo

ABSTRACT

This study seeks to characterize men who were perpetrators of violence against women (HAV) and their participation in Reflexive Groups (GR) of the Nucleus X in Belém-PA, Brazil, highlighting the recidivism and the perception of HAV about GR. This is a documentary study with records made between 2012 and 2015. Among the results, 33.8% of these men (n = 24) did not complete Elementary School, 58.8% (n = 40) were alcohol users, 54.8% (n = 40) lived with the woman at the time of the aggression. In addition, 61.2% (n = 41) were prosecuted for physical violence against women, but only 1.3% (n = 1) relapsed in this form of aggression after participating in the GR. These have been described as an accessible mechanism in the prevention of violence that provides care, learning and reflection, demand for more research and investments that approach other social politics in order to build a solid network of reformulation of social relations of gender.

KEYWORDS:
Gender violence; Perpetrator of violence; Recidivism; Reflexive Group

Introdução

No Brasil ainda são poucas as experiências de Grupos Reflexivos com homens autores de violência contra a mulher, e, apesar de serem previstas em lei (art. 35, inciso V da Lei 11.340/06, Lei Federal Maria da Penha), e contarem com resultados significativos em algumas regiões do país, com frequência essas iniciativas carecem de avaliação sistemática de seus resultados e efeitos. Esta questão, em particular, demanda a realização de pesquisas que possam apoiar a ampliação e consolidação desse tipo de serviço e contribuir para o seu aprimoramento, como afirma Beiras (2014Beiras, A. (2014). Relatório Mapeamento de Serviços de atenção grupal a homens autores de violência contra mulheres no contexto brasileiro. Rio de Janeiro: Instituto Noos. Recuperado de http://noos.org.br/portal/wp-content/uploads/2015/04/Relatorio-Mapeamento-SHAV_site.pdf
http://noos.org.br/portal/wp-content/upl...
).

De acordo com Beiras e Bronz (2016Beiras, A. & Bronz, A. (2016). Metodologia de grupo reflexivos de gênero. Rio de Janeiro: Instituto Noos . Recuperado de https://issuu.com/annacarlaferreira/docs/metodologia__pdf-07-06-2017
https://issuu.com/annacarlaferreira/docs...
), os Grupos Reflexivos são espaços de convívio, problematização e questionamentos, onde deve-se respeitar a diversidade, exercitar o diálogo e promover debates críticos sobre o cotidiano dos participantes. No decorrer do processo, com o acolhimento e a vinculação ao grupo, bem como as intervenções, espera-se que visões de mundo sejam ampliadas, e relações de gênero equitativas sejam construídas. Ao final do processo, os autores ressaltam que a maioria indica a adoção de novas posturas e atitudes frente às situações de conflito, procurando, assim, evitar o uso de violência em seus relacionamentos.

Em uma pesquisa que analisou a experiência de um Grupo Reflexivo sobre violência de gênero em Londrina, PR, Freitas e Cabrera (2011Freitas, R. M. & Cabrera, J. O. (2011). Grupo Reflexivo: uma alternativa de trabalho voltada aos homens cumpridores de medida protetiva. In Anais do II Simpósio Gênero e Políticas Públicas. Universidade Estadual de Londrina, PR: UEL. Recuperado de http://www.uel.br/eventos/gpp/pages/arquivos/Renata%20e%20cia.pdf
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) ouviram sete homens após suas participações nesse tipo de serviço. Entre outros resultados, verificou-se que os participantes definiram esses grupos como um espaço de acolhimento que ajuda o homem a refletir sobre a relação entre o pensar e o agir frente a situações de conflitos na vida cotidiana, e lhe proporciona a troca de experiências com outros em igual condição. Do mesmo modo, Souza et al. (2016Souza, J. R., Almeida, A. B. B., Alves, S. O., Ekuni, R., Garcia, L. R. D., Lopes, S. S., & Takahara, E. A. (2016). Programa Basta: Relatos e reflexões sobre violência contra a mulher. Revista Conexão, 12(1), 156-165. Recuperado de http://www.revistas2.uepg.br/index.php/conexao/article/view/7927
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), em um relato da experiência dos Grupos Reflexivos do Projeto de Extensão Patronato Municipal de Jacarezinho, concluíram que os grupos funcionaram como um espaço de reflexão e informação, onde os homens autores de violência foram levados a pensar sobre as dimensões da violência, assim como sobre os outros tipos de violência que vão além da violência física e atingem as mulheres também psicologicamente.

Esses estudos (Freitas & Cabrera, 2011Freitas, R. M. & Cabrera, J. O. (2011). Grupo Reflexivo: uma alternativa de trabalho voltada aos homens cumpridores de medida protetiva. In Anais do II Simpósio Gênero e Políticas Públicas. Universidade Estadual de Londrina, PR: UEL. Recuperado de http://www.uel.br/eventos/gpp/pages/arquivos/Renata%20e%20cia.pdf
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; Souza et al. 2016Souza, J. R., Almeida, A. B. B., Alves, S. O., Ekuni, R., Garcia, L. R. D., Lopes, S. S., & Takahara, E. A. (2016). Programa Basta: Relatos e reflexões sobre violência contra a mulher. Revista Conexão, 12(1), 156-165. Recuperado de http://www.revistas2.uepg.br/index.php/conexao/article/view/7927
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) remetem, porém, a experiências realizadas nas regiões Sul. No Norte do país, mais precisamente na Região Metropolitana de Belém, o Núcleo Especializado de Atendimento ao Homem ao Autor de Violência Doméstica e Familiar (NEAH) apresenta-se como um dispositivo para atender as demandas de homens que praticaram qualquer forma de violência contra uma mulher. É direcionado a homens que praticaram atos considerados de baixo potencial ofensivo, respondendo a processo judicial ou condenados para cumprimento de medidas de penas alternativas. Nesses termos, sua participação é tida como condição sine qua non para a suspensão da execução da pena privativa de liberdade. Ou seja, a maioria dos HAV presentes nesse tipo de atendimento foi encaminhada por decisão judicial e a sua participação nestes grupos tende a ter caráter obrigatório.

Desde janeiro de 2012, além de ter assegurado acompanhamento jurídico pelo NEAH, os HAV também são encaminhados para Grupos Reflexivos. Estes objetivam contribuir com a promoção de mudanças comportamentais, reflexão sobre atitudes violentas e responsabilização perante a agressão praticada. Sendo assim, criou-se um espaço que objetiva privilegiar atividades educativas a partir de uma reflexão de condutas, histórias de vida, relação social de gênero e habilidades sociais construídas ao longo da história de cada homem.

A partir da experiência acumulada nos anos anteriores, em 2016, a Defensoria Pública do Estado do Pará, através do NEAH, lançou o projeto “Reincidência Zero”, que buscou promover o desenvolvimento de ações de educação e fomentar a responsabilização ao cumpridor de penas e medidas alternativas. Segundo Araújo (2016Araújo, M. V. S. (2015). O núcleo especializado de atenção ao homem - relato de experiência. Revista NUFEN, 7(1), 109-115. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S2175-25912015000100007&lng=pt&nrm=iso
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), os dados estatísticos de homens cadastrados e acompanhados pelo núcleo demonstram resultados positivos em relação à taxa de reincidência. A autora ressalta que a participação em palestras, oficinas, roda de conversa e Grupos Reflexivos tem sido eficaz, no entanto requer maiores estudos, estrutura e recursos financeiros, posto que existe uma demanda considerável de HAV que precisariam ser incluídos no serviço de atendimento.

No que se refere às estatísticas referentes à reincidência entre HAV que participaram de Grupos Reflexivos, o relatório final de uma pesquisa que avaliou serviços de responsabilização penal de homens autores de violência, elaborado pelo CEPIA (2016Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação [CEPIA]. (2016). Relatório de pesquisa. Violência contra as mulheres, os serviços de responsabilização dos homens autores de violência. Rio de Janeiro: Autor. Recuperado de http://cepia.org.br/wp-content/uploads/2017/06/relatorio.pdf
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), divulgou que dos onze Grupos Reflexivos pesquisados no Brasil, apenas três deles disponibilizaram informações sobre as taxas de reincidência no crime. Entre os casos analisados, o levantamento mostra que em Vitória, ES, não houve casos de reincidência no período considerado, já em São Paulo, SP, a taxa de reincidência teria ficado em 11%, e em Porto Alegre, RS, foi registrado apenas um caso de reincidência.

Em dados divulgados pelo Juizado Especial Criminal de Violência Doméstica contra a Mulher, de São Gonçalo, RJ, no ano de 2013, constatou-se que, dos homens que praticaram violência contra mulher e participam de Grupos Reflexivos, menos de 2% voltaram a agredir suas companheiras. Em São Caetano, SP, entre 2006 e 2008, verificou-se que dentre 56 homens que haviam participado de Grupos Reflexivos no período, houve apenas um caso de reincidência e três outros de abandono (Suxberger & Ferreira, 2016Suxberger, A. H. G. & Ferreira, N. N. A. (2016). Políticas de intervenção no enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a mulher. Revista de Criminologias e Politicas Criminais 2(1), 228-249. Recuperado de http://www.indexlaw.org/index.php/revistacpc/article/view/298
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).

Neste estudo, ao se tratar especificamente da violência contra a mulher, será considerado reincidente o sujeito que foi processado mais de uma vez pelo mesmo ato, isto é, qualquer ameaça ou violação à integridade física e psicológica da mulher. Essa definição está de acordo com o conceito de reincidência jurídica defendido por Capdevila et al. (2015Capdevila, M. C., Serentill, M. B., Puig, M. F., Pueyo, A. A., Ferrer, B. F., López, N. C., Bou, A. G., Pedro, A. B., Manonelles, A. B., & Encinas, J. M. (2015). Tasa de reincidencia penitenciaria 2014. Generalitat de Catalunya. Centre d' EstudisJurídics i FormacióEspecialitzada. Barcelona, ESP. Recuperado de http://cejfe.gencat.cat/web/.content/home/recerca/cataleg/crono/2015/taxa_reincidencia_2014/tasa_reincidencia_2014_cast.pdf
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). Desse ponto de vista conceitual, quando o indivíduo comete um novo delito, este ato será processado, e gerará outro processo judicial de acordo com a mesma classificação prevista pelo Código Penal Brasileiro.

A despeito disso, conforme Capdevila et al. (2015Capdevila, M. C., Serentill, M. B., Puig, M. F., Pueyo, A. A., Ferrer, B. F., López, N. C., Bou, A. G., Pedro, A. B., Manonelles, A. B., & Encinas, J. M. (2015). Tasa de reincidencia penitenciaria 2014. Generalitat de Catalunya. Centre d' EstudisJurídics i FormacióEspecialitzada. Barcelona, ESP. Recuperado de http://cejfe.gencat.cat/web/.content/home/recerca/cataleg/crono/2015/taxa_reincidencia_2014/tasa_reincidencia_2014_cast.pdf
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), estudos envolvendo a problemática da criminalidade afirmam que não há como medir com exatidão a taxa de reincidência em uma dada população ou amostra. Entende-se que sempre existirão crimes cometidos que não foram e nem serão registrados, o que dificulta a busca pela exatidão dos dados. Os autores também ressaltam a carência de estudos que averiguam a frequência e as circunstâncias em que ocorre a reincidência em violência contra a mulher. Por isso, apontam a importância de estudar o fenômeno da reincidência, principalmente por possibilitar uma avaliação genérica de programas aplicados nas prisões e em outros contextos de execução penal.

Além disso, alguns autores destacam a escassez de medidas efetivas que considerem os homens autores de violência. A maioria dos estudos que buscam compreender a violência perpetrada contra a mulher focaliza a pessoa que sofreu agressão (Guimarães & Diniz, 2017Guimarães, F. L. & Diniz, G. R. S. (2017). Masculinidades, duplo-vínculo e violência conjugal contra a mulher. In C. Stevens, S. Oliveira, V. Zanello, E. Silva, & C. Portela. (Orgs.), Mulheres e violências: interseccionalidades (pp. 586-605). Brasília, DF: Technopolitik. Recuperado de https://www.geledes.org.br/wp-content/uploads/2017/03/Mulheres-e-viol%C3%AAncias-interseccionalidades.pdf
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). Nessa conjuntura, destaca-se a importância de intensificar os estudos voltados ao homem, compreendendo os fatores que contribuem para que ele volte a praticar a violência como a condição a partir da qual será possível evitá-la. Ou seja, tais estudos devem visar os dispositivos direcionados ao HAV, com o objetivo de avaliar mudanças positivas que podem contribuir para a expansão desses mecanismos de prevenção.

Desse modo, o presente estudo pretende caracterizar os homens autores de violência que participaram de Grupos Reflexivos do NEAH, na Região Metropolitana de Belém (RMB), no período de 2012 a 2015 e, na sequência, verificar os que reincidiram após a participação nesses Grupos Reflexivos. Além disso, buscou-se conhecer a percepção dos homens autores sobre os Grupos Reflexivos, bem como os aspectos positivos e negativos dessa participação.

Método

O presente estudo trata-se de uma análise baseada em fonte documental e de caráter descritivo-exploratório, que levou em consideração características e percepções de homens que participaram de Grupos Reflexivos realizados na Defensoria Pública do Estado do Pará, na Região Metropolitana de Belém, no período de 2012 a 2015. Esse período foi escolhido por marcar o início do Grupo Reflexivo na RMB, mas, também, por ser esperado que ao fim dele a maioria dos homens já tenha cumprido o tempo determinado pelo juiz para atendimento nesse tipo de serviço, sendo reconhecida a sua participação como medida de pena alternativa.

Para a coleta dos dados deste estudo foram considerados os documentos de 76 homens, tais como: (a) Folha de Atendimento Psicossocial, com informações sobre a condição socioeconômica, história de vida e características da violência perpetrada (esse documento era usado principalmente pelos profissionais de Serviço Social e Pedagogia); (b) Guia para Execução de Penas e Medidas Não Privativas de Liberdade, com informações sobre a pena estabelecida pelo juiz e (c) Questionários de Avaliação aplicados pela Equipe Multiprofissional do NEAH ao final de cada Grupo Reflexivo, com perguntas relacionadas à experiência, à atuação dos profissionais, sobre a relação com os outros participantes e perspectiva de vida após a participação no grupo.

Instrumentos

Para coleta de dados, foi utilizado um Formulário para Caracterização Biopsicossocial de Autores de Violência (FCBAV). Neste estudo, o FCBAV foi dividido nos seguintes eixos: dados sociodemográficos do autor (idade, situação conjugal, escolaridade, ocupação); informações sobre drogadição (usuário de álcool e/ou outras drogas); dados da violência (tipo de local onde aconteceu a violência, natureza da violência, número de processos judiciais tipificados na Lei Maria da Penha); aspectos da relação mulher e autor (vínculo com a mulher, tempo de convívio); informações sobre Grupo Reflexivo (definição e avaliação sobre o Grupo Reflexivo ) e aspectos da reincidência (número de processos antes e após a participação no grupo).

Para obter informações quanto aos números da reincidência nessa população antes e depois da participação no GR promovido pelo NEAH, foi feita consulta direta ao sistema de distribuição e acompanhamento processual denominado LIBRA, disponibilizado pelo Tribunal de Justiça do Estado do Pará (TJPA), e as informações também divulgadas no site deste órgão, que permitiu a realização de uma pesquisa detalhada do histórico processual de cada participante dos Grupos Reflexivos.

Procedimento

Inicialmente, alguns FCBAV foram preenchidos com o intuito de verificar quais alterações deveriam ser feitas e quais variáveis poderiam ser incluídas ou retiradas da pesquisa. Em sequência, baseando-se no formulário adaptado com todas as variáveis a serem pesquisadas, foi criada uma planilha no programa Excel com os espaços para lançamento dos dados que poderiam ser extraídos dos documentos. A partir de então, os dados foram registrados diretamente para a planilha no programa Excel. Por fim, foi feita uma consulta processual detalhada com o nome de cada participante do Grupo Reflexivo no LIBRA, com objetivo de verificar o registro de processos em violência contra a mulher antes e depois da participação do autor no Grupo Reflexivo. Em seguida, os dados quantitativos foram tratados através do pacote estatístico Statistical Package for the Social Sciences (SPSS), versão 22, e foram organizados por categorias, de acordo as variáveis relativas às características do autor, assim como o tipo de violência perpetrada e aspectos da reincidência. Já os dados referentes à percepção dos homens foram analisados e aglutinados em torno de definições mais frequentes entre as respostas dos HAV.

Em relação aos aspectos éticos, a pesquisa foi autorizada pelo NEAH e está de acordo com a Resolução nº 510/2016Resolução n. 510, de 07 de abril de 2016. (2016). Dispõe sobre as normas aplicáveis a pesquisas em Ciências Humanas e Sociais. Brasília, DF: Conselho Nacional de Saúde. Recuperado de http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2016/Reso510.pdf
http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/...
sobre Ética em Pesquisa nas Ciências Humanas e Sociais, de 7 de abril de 2016.

Resultados e discussão

Foram analisados dados extraídos dos documentos que envolveram 76 homens, entre 20 e 62 anos de idade. Como apresentado na Tabela 1, em relação à escolaridade, verificou-se que a maioria dos homens não havia completado o Ensino Fundamental (33,8%, n= 24) e exercia trabalho remunerado (72,1%, n= 52), desempenhando ocupações formais (58,3%, n= 42), como pedreiro, motorista, eletricista, agente de portaria, vigilante, carpinteiro, taxista, pintor, professor, entre outras.

Tabela 1:
Características socioeconômicas de homens autores de violência contra a mulher que participaram do Grupo Reflexivo do Núcleo Especializado de Atendimento ao Homem ao Autor de Violência Doméstica e Familiar (NEAH), entre 2012 e 2015, no município de Belém (N= 76)

No que se refere ao uso de álcool e/ou outras drogas, a maioria dos homens fazia uso de apenas álcool (58,8%, n=40) e outros de álcool e outras drogas, como cigarro, cocaína e maconha (30,9%, n=21). Nos documentos consultados no presente estudo não havia informações sobre a regularidade com que acontecia o uso de substâncias psicoativas. Logo, tornou-se difícil precisar a relação entre o uso do álcool e outras drogas psicoativas com o ato violento gerador do processo. Martins e Nascimento (2017Martins, A. G. & Nascimento, A. R. A. (2017). Violência doméstica, álcool e outros fatores associados: uma análise bibliométrica. Arquivos Brasileiros de Psicologia. 69(1), 107-121. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S1809-52672017000100009
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) observaram na bibliografia que, frequentemente, o uso de álcool e outras drogas é percebido como um fator desinibidor que aumenta a probabilidade de os conflitos serem resolvidos de forma violenta, o que se constitui em uma das principais queixas trazidas pelas mulheres que, muitas vezes, relatam o uso abusivo de substâncias psicoativas como um potencializador da agressão e do sofrimento ocasionados na relação.

Tabela 2:
Aspectos da relação com a vítima e violência praticada. (N= 76)

A Tabela 2 deixa claro que a maioria dos homens declarou ser à época o atual companheiro da vítima (54,8%, n=40), e outros apresentaram-se como o ex-companheiro dela (17,8%; n=13). Em relação ao tempo de convívio, grande parte informou que o casal convivera por mais de dez anos (53,6%, n=30). Esses dados corroboram os achados do relatório publicado pelo Conselho Nacional de Justiça, em 2018: o companheiro ou o ex-companheiro é o principal perpetrador da violência. Por serem homens que conviveram geralmente mais de dez anos com a mulher, os casos apurados revestem-se de um certo nível de complexidade, dada a existência de um vínculo afetivo com o agressor, o que, frequentemente, faz com que a mulher evite denunciar a agressão sofrida com o objetivo de encerrar o ciclo da violência, o que pode levá-la a permanecer na relação e impedir a ruptura do laço que os une. Por diferentes motivos, a mulher tende a manter a violência, ora por não perceber que sofre violência em seu cotidiano, ora por medo de novas e mais graves agressões, ou até por acreditar que o homem não voltará a cometer o ato violento.

Nos documentos analisados, a violência física foi praticada em 61,2% (n=41) dos casos, já a violência psicológica esteve presente em 17,9% (n=12), porém, vale ressaltar que em 19,4% (n=13) foi registrado mais de um episódio e tipo de violência, principalmente aquele de natureza física e psicológica. Amaral et al., (2016Amaral, L. B. M., Vasconcelos, T. B., Sá, E. F., Silva, A. S. R. & Macena, R. H. M. (2016). Violência doméstica e Lei Maria da Penha: perfil das agressões sofridas por mulheres abrigadas em unidade social de proteção. Revista Estudos Feministas, 24(2), 521-540. Recuperado de http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2016000200521
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) também observaram maior ocorrência de registros de violência física e psicológica nos relacionamentos, inclusive concomitantemente. A violência psicológica ocorreu associada a outras formas de violência, sendo que, por envolver comportamentos que comumente são encarados como normais pela sociedade patriarcal, sua identificação é complexa, e, às vezes, as próprias mulheres não percebem que se encontram em um relacionamento abusivo. Ao reconhecer como violência apenas a agressão física, elas tendem a buscar ajuda nos órgãos competentes apenas após terem sofrido violência física, o que justificaria o grande número de casos de violência física e psicológica notificados.

No que se refere ao local da violência, 95,5% (n=65) declararam que a violência ocorreu em local privado, especialmente na residência do casal ou de familiares. Segundo Madureira, Raimondo, Ferraz, Marcovicz, Labronici e Mantovani (2014Madureira, A. B., Raimondo, M. L., Ferraz, M. R., Marcovicz, G. V., Labronici, L. M., & Mantovani, M. F. (2014). Perfil de homens autores de violência contra mulheres detidos em flagrante: contribuições para o enfrentamento. Escola Anna Nery, 18(4), 600-606. Recuperado de http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-81452014000400600
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), a residência é o principal local onde ocorrem as agressões, deixando de ser um ambiente de tranqüilidade, passando a ser um espaço de insegurança e medo, onde coexistem sentimentos de afeto e agressão, podendo inclusive trazer consequências graves e de longo prazo para a mulher, os filhos e outros familiares que convivem no contexto da violência.

O cenário de processos envolvendo a Lei Maria da Penha aponta que, em sua maioria, as pessoas que buscam resolver seus conflitos na esfera judicial têm pouca escolaridade, exercem trabalhos informais com baixa renda e o episódio gerador do processo ocorreu associado ao uso de álcool e outras drogas (Conselho Nacional de Justiça, 2018Conselho Nacional de Justiça. (2018). Entre práticas retributivas e restaurativas: a Lei Maria da Penha e os avanços e desafios do Poder Judiciário. Pernambuco: Universidade Católica de Pernambuco. Recuperado de http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2018/04/69f98306e01d7a679720c82bf016b8ea.pdf
http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arq...
). Apesar de os HAV sentenciados terem essas características em comum, não significa a inexistência de violência contra a mulher em outras camadas sociais. Esses resultados apenas reforçam a seletividade do sistema penal (Sousa, Lopes, & Silva, 2018), pois ainda existem casos que permanecem obscuros e não chegam nem mesmo às delegacias especializadas, ou, quando chegam, muitas vezes as denúncias são retiradas e as mulheres retornam o convívio com o HAV continuando o ciclo da violência.

Nesse sentido, Moraes, Cavalcante, Pantoja, e Costa (2018Moraes, M. S. B., Cavalcante, L. I., Pantoja, Z. C., & Costa, L. P. (2018). Violência por parceiro íntimo: características dos envolvidos e da agressão. Revista Psi Unisc (Santa Cruz do Sul), 2(2), 78-96. Recuperado de https://online.unisc.br/seer/index.php/psi/article/view/11901
https://online.unisc.br/seer/index.php/p...
) pontuam que pessoas de classe econômica menos favorecida têm pouco ou inexistente acesso a formas alternativas de resolver conflitos conjugais, como acompanhamento psicoterápico ou de saúde em geral, recorrendo à denúncia como uma forma de punição ao parceiro e uma medida pedagógica pontual. Combinado a isso, apontam a subnotificação de casos de violência junto às instituições públicas, envolvendo pessoas com alto poder aquisitivo, como um dos motivos que reforça a falsa ideia de que a violência de gênero contra a mulher ocorre apenas em uma determinada camada social.

Considerando isso, ao se propor caracterizar o homem autor de violência contra a mulher em uma determinada população, é importante compreender que não há um conjunto de características que encerra um padrão de homem violento. Existem diferentes variáveis que podem estar associadas à prática da violência, entre outras, aquelas que se modificam em razão da cultura, do ambiente o qual o indivíduo está inserido e das relações estabelecidas com os sujeitos ao seu redor. Para Andrade (2014Andrade, L. F. (2014). Grupos de Homens e homens em grupos: novas dimensões e condições para as masculinidades. In E. A. Blay. (Org.), Feminismos e masculinidades: novos caminhos para enfrentar a violência contra a mulher (1° ed., pp. 173-209). São Paulo: Cultura Acadêmica. Recuperado de https://apublica.org/wp-content/uploads/2016/03/Feminismos_e_masculinidades-WEB-travado-otimizado.pdf
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), é complicada a tarefa de definir um perfil desses homens, pois trata-se de um grupo com diferentes subjetividades, com manifestações de cunho machista e representações sociais comuns moldadas pela sociedade patriarcal e que perpassam por todas as camadas econômicas e sociais.

Reincidência em violência contra mulher a partir de processos judiciais

Além de variáveis biopsicossociais comuns, pode-se dizer que esses homens também são frutos de um longo processo de naturalização da violência contra a mulher, e este processo está apoiado em uma cultura patriarcal construída por séculos. Isso contribui para que o trabalho de desconstrução de formas cristalizadas de pensar, agir e sentir seja dificultoso e demande intervenções eficazes no sentido de evitar que casos de violência se repitam. Embora não existam tantas pesquisas que relacionam a reincidência com o fenômeno da violência contra a mulher, experiências no Brasil trazem resultados positivos que apontam os Grupos Reflexivos como uma metodologia significativa na prevenção dessa forma de violência e na redução do índice de reincidência (Freitas & Cabrera, 2011Freitas, R. M. & Cabrera, J. O. (2011). Grupo Reflexivo: uma alternativa de trabalho voltada aos homens cumpridores de medida protetiva. In Anais do II Simpósio Gênero e Políticas Públicas. Universidade Estadual de Londrina, PR: UEL. Recuperado de http://www.uel.br/eventos/gpp/pages/arquivos/Renata%20e%20cia.pdf
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; Prates & Andrade, 2013Prates, P. L. & Andrade, L. F. (2013). Grupos Reflexivos como medida judicial para homens autores de violência contra a mulher: o contexto sócio histórico. In Anais do X Seminário Internacional Fazendo Gênero. UFSC, Florianópolis, SC. Recuperado de http://www.fg2013.wwc2017.eventos.dype.com.br/resources/anais/20/1373299497_ARQUIVO_PrateseAndradeFazendoGenero10.pdf
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; Souza et al., 2016Souza, J. R., Almeida, A. B. B., Alves, S. O., Ekuni, R., Garcia, L. R. D., Lopes, S. S., & Takahara, E. A. (2016). Programa Basta: Relatos e reflexões sobre violência contra a mulher. Revista Conexão, 12(1), 156-165. Recuperado de http://www.revistas2.uepg.br/index.php/conexao/article/view/7927
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).

No presente estudo, a reincidência foi analisada a partir do histórico de processos judiciais tramitados nas varas especializadas em violência contra a mulher na Região Metropolitana de Belém. A partir disso, buscou-se verificar o número de reincidentes antes e após a participação desses homens nos Grupos Reflexivos sobre violência de gênero. Neste sentido, considerando-se os dados obtidos a partir da análise dos atendimentos feitos pelo Grupo Reflexivo do NEAH, em relação à reincidência, verificou-se que 19,7% (n=15) eram homens reincidentes antes de participar do GR. O restante, cerca de 80,3% (n=61), eram réus primários, ou seja, nunca haviam sido processados por qualquer ato de violência contra a mulher.

Os resultados obtidos por este estudo indicaram que, após a participação no GR, apenas 1,3% (n=1) dos participantes voltou a ser processado pelo mesmo ato, enquanto que os demais, 98,7% (n=75), até o período da coleta de dados, não tinham novos processos judiciais registrados no sistema LIBRA. O único participante que reincidiu tinha quatro (2009/2011/2013/2014) processos judiciais tipificados na LMP, sendo dois processos anteriores à sua participação no GR.

Os resultados corroboram achados de levantamentos anteriores (CEPIA, 2016Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação [CEPIA]. (2016). Relatório de pesquisa. Violência contra as mulheres, os serviços de responsabilização dos homens autores de violência. Rio de Janeiro: Autor. Recuperado de http://cepia.org.br/wp-content/uploads/2017/06/relatorio.pdf
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; Suxberger & Ferreira, 2016Suxberger, A. H. G. & Ferreira, N. N. A. (2016). Políticas de intervenção no enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a mulher. Revista de Criminologias e Politicas Criminais 2(1), 228-249. Recuperado de http://www.indexlaw.org/index.php/revistacpc/article/view/298
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), os quais apontaram os Grupos Reflexivos como espaços de escuta e desconstrução de valores, onde são debatidas questões como masculinidades e feminilidades, a influência do patriarcado na construção social dos papéis de homens e mulheres, conflitos entre parceiros íntimos e nas relações interpessoais, entre outros. A partir disso, espera-se que o homem reconheça o ciclo da violência na sua fase inicial como condição para se trabalhar as possibilidades de ruptura dos mecanismos de reprodução e dominação patriarcal e, assim, compreenda suas raízes históricas e as consequências na sua vida e na sociedade em que vive.

Por outro lado, Billand e Paiva (2017Billand, J. & Paiva, V. S. F. (2017) Desconstruindo expectativas de gênero a partir de uma posição minoritária: como dialogar com homens autores de violência contra a mulher? Ciência & Saúde Coletiva, 22(9), 2979-2988. Recuperado de http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1413-81232017002902979&script=sci_abstract&tlng=pt
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) problematizam que, apesar de os homens mudarem seus discursos e atitudes, há de se considerar que pode ser que as relações de poder com as suas parceiras permaneçam inalteradas em outros ambientes. Para os autores, os homens não usam só a violência física para controlar o comportamento da mulher, pois conseguem controlá-la sem a violência denunciada. Desse ponto de vista, o fato de os homens não serem denunciados ou sentenciados por esse tipo de violação, não significa que eles deixaram de cometer algum tipo de violência contra a mulher. Por essa razão, apresenta-se a demanda de estudos sistemáticos que relacionem a participação em Grupos Reflexivos e o fenômeno da reincidência a partir de outro viés, não apenas o judicial.

Percepção de homens autores de violência contra a mulher sobre os Grupos Reflexivos

Neste estudo, a partir da análise documental que considerou os dados de registros da avaliação feita pelos HAV por meio do preenchimento de questionários aplicados pela Equipe Multidisciplinar do NEAH ao final de cada GR, buscou-se também conhecer a percepção desses homens sobre a sua participação nesse serviço. Especialmente, a sua compreensão sobre o tipo de serviço voltado ao atendimento de homens nessa condição e os aspectos positivos e negativos dessa experiência.

Em relação à definição do Grupo Reflexivo, em sua maioria, os participantes consideraram o GR como um espaço de aprendizado que proporciona reflexão, atuando também como um mecanismo de prevenção, como demonstrado nos seguintes trechos:

É um grupo que ajuda homens que cometeram atos de violência contra suas esposas ou companheiras a refletirem sobre suas atitudes. (HAV 1, 37 anos)

O Grupo Reflexivo é um grupo que ajuda muito a pessoa, pois refletimos em tudo o que for repassado pelos orientadores e o próprio grupo dialogando entre si. (HAV 2, 62 anos)

Ele veio pra ajudar o homem em relação ao comportamento que ele teve no passado, pra que ele reflita colaborando para que esses autores não venham cometer novamente. (HAV 3, 61 anos)

Como mencionado na discussão trazida por Aguiar e Diniz (2017Aguiar, L. H. M. & Diniz, G. R. S. (2017). Estudos sobre masculinidades e seus impactos no trabalho com homens autores de violência. Gênero, 17(2), 81-94. Recuperado de http://www.revistagenero.uff.br/index.php/revistagenero/article/view/943
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), os HAV neste estudo relacionam o Grupo Reflexivo, principalmente, à existência de um dispositivo que proporciona ajuda e cuidado aos seus participantes, onde eles se sentem livres para desabafar e compartilhar experiências com outros homens que passaram por situações semelhantes. Os HAV relataram que, com a participação no GR, um espaço de reflexão sobre comportamentos e atitudes foi construído, contribuindo para assimilar novas formas de resolver conflitos do cotidiano e de se relacionar com as pessoas, especialmente no ambiente familiar.

Neste sentido, Billand e Paiva (2017Billand, J. & Paiva, V. S. F. (2017) Desconstruindo expectativas de gênero a partir de uma posição minoritária: como dialogar com homens autores de violência contra a mulher? Ciência & Saúde Coletiva, 22(9), 2979-2988. Recuperado de http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1413-81232017002902979&script=sci_abstract&tlng=pt
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) compreendem que a troca de relatos em comum contribui para desconstruir o ideal de feminilidade imposto. A partir disso, os homens, ao perceberem o caráter irrealista de suas expectativas em relação às mulheres, mesmo ainda atribuindo responsabilidade a elas pela falha do relacionamento, tendem a abandonar relacionamentos antes mesmo de ocorrer episódios de violências. Para os autores, o Grupo Reflexivo torna-se uma rede de apoio e autocuidado, onde os HAV trocam conselhos e vivências, a ponto de desconstruir representações sociais hegemônicas que servem como base para relações violentas e desiguais. A superação de padrões sociais impostos que envolvem o significado de ser homem e ser mulher no mundo torna-se essencial para a redução dos índices de violência contra a mulher.

Os aspectos positivos destacados pelos participantes foram questões relativas à convivência com o grupo durante o atendimento e as amizades construídas ao longo do processo, além da atuação da equipe de profissionais no manejo da dinâmica do grupo e a compreensão do fenômeno da violência trazida pela equipe.

Trabalho de ajudar as pessoas. Conhecer nós e os amigos. (HAV 4, 39 anos)

Gostei das explicações, das amizades e muita coisa que eu não tinha conhecimento. (HAV 5, 36 anos)

Os aspectos negativos acentuaram a falta de compromisso de alguns membros do grupo com os objetivos assumidos e a falta de intervenções que incluam as mulheres e de um profissional homem na equipe que tenha convivido afetivamente com outra pessoa.

Nem todos cumpriram o horário. Nem todos cumpriram com o objetivo. (HAV 6, 40 anos)

Acredito que esse atendimento, apesar de ser separado, acredito que deveria ter encontro com os dois, tanto de quem cometeu quanto de quem sofreu. (HAV 7, 37 anos)

Foi tudo ótimo, mas acho que faltou um homem né. Que teve uma companheira. (HAV 8, 53 anos)

Considerando que no âmbito da violência contra a mulher existe grande dificuldade de reflexão sobre a própria dinâmica da violência pelos sujeitos envolvidos, é preciso aprimorar suas capacidades de reflexão com o objetivo de superar padrões de relacionamentos violentos (Guimarães & Diniz, 2017Guimarães, F. L. & Diniz, G. R. S. (2017). Masculinidades, duplo-vínculo e violência conjugal contra a mulher. In C. Stevens, S. Oliveira, V. Zanello, E. Silva, & C. Portela. (Orgs.), Mulheres e violências: interseccionalidades (pp. 586-605). Brasília, DF: Technopolitik. Recuperado de https://www.geledes.org.br/wp-content/uploads/2017/03/Mulheres-e-viol%C3%AAncias-interseccionalidades.pdf
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). Ao analisar os documentos que reúnem percepções dos homens autores de violência sobre os Grupos Reflexivos, assim como no estudo de Mistura (2015Mistura, T. F. (2015). Vivência de homens autores de violência contra a mulher em Grupo Reflexivo: memórias e significados presentes. Tese de Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-graduação em Ciência, Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, SP. Recuperado de http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/6/6136/tde-17092015-090601/pt-br.php
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), a partir do registro de relatos, nota-se que esse tipo de experiência pode ser uma estratégia para ampliar as discussões sobre gênero e masculinidades para além do âmbito acadêmico, de tal forma que promova mudanças nas relações sociais e mostre formas alternativas de se comportar diante de situações de conflitos, não só na relação homem e mulher, como também no modo de se relacionar com a comunidade em geral.

Para tanto, a metodologia de trabalho voltada a homens autores de violência precisa ser pensada para além de um viés punitivo (Souza, Lopes, & Silva, 2018Souza, T. L., Lopes, A. B. A., & Silva, F. A. (2018). O Neah e a atenção ao autor de violência doméstica e familiar contra a mulher em Belém. Revista Brasileira de Políticas Públicas, 8(1), 378-395. Recuperado de https://www.publicacoesacademicas.uniceub.br/RBPP/article/view/5047
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). Deve considerar aspectos da socialização masculina a partir de análises críticas de gênero e intencionalidades, compreendendo a violência como um fenômeno complexo e múltiplo. Nesse sentido, o profissional que atua no Grupo Reflexivo precisa constantemente repensar sua concepção sobre violência e sobre os papéis de gênero, pois a maneira como os percebe, permite ou não a identificação das experiências violentas e sentidos atribuídos pelos sujeitos envolvidos em processos de violência contra a mulher (Guimarães & Pedroza, 2015Guimarães, M. C. & Pedroza, R. L. S. (2015). Violência contra a mulher: problematizando definições teóricas, filosóficas e jurídicas. Psicologia & Sociedade, 27(2), 256-266. Recuperado de http://www.scielo.br/pdf/psoc/v27n2/1807-0310-psoc-27-02-00256.pdf
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).

Considerações finais

Os Grupos Reflexivos são considerados, por facilitadores e participantes, como um espaço de escuta, reflexão e aprendizado, o qual, a partir de um processo de responsabilização e desconstrução de padrões de gênero hegemônicos, pode contribuir para mudanças na vida dos homens e das mulheres em seu convívio, mas que ainda demanda por maiores investimentos e pesquisas. Uma delas é a ampliação de intervenções com homens para além do âmbito judicial, e que se aproximem de políticas de assistência social, saúde, educação, trabalho, segurança, a fim de construir uma rede de reformulação das relações sociais de gênero e combate à violência contra a mulher (Sousa, Lopes, & Silva, 2018). Além disso, sugere-se a intensificação de trabalhos que incluam as mulheres, compreendendo o caráter relacional da violência de gênero, e os dois sujeitos como agentes de mudanças.

Neste estudo, notou-se que a maioria das pesquisas sobre violência contra a mulher ainda tem como foco de suas análises a mulher e a agressão por ela sofrida. Isso é presente mesmo em estudos que têm como objeto o homem autor da violência, pois, comumente, os dados são coletados partindo prioritariamente da percepção da mulher. Percebe-se também que a bibliografia que relaciona violência contra a mulher e reincidência ainda é escassa. Existem poucos estudos que realizam o acompanhamento do homem após a participação no Grupo Reflexivo com o objetivo de observar a reincidência dos participantes, e, entre os poucos encontrados até aqui, um número mínimo levantou quais os parâmetros utilizados na definição de reincidência adotada, o que, de certa forma, dificulta a comparação dos resultados entre os estudos.

Assim, algumas questões se tornam pertinentes e poderiam ser melhor debatidas em estudos futuros, tais como: o acompanhamento sistemático de homens que participam de Grupos Reflexivos após a participação nos grupos; uma definição metodológica que viabilize a padronização dos resultados dessas intervenções em diferentes regiões do país; uma investigação que verificasse a reincidência a partir do registro de boletins de ocorrências policiais, já que nem todas as denúncias tornam-se processos judiciais.

A partir desta discussão, espera-se contribuir com a ampliação dos conhecimentos de profissionais que trabalham com homens autores de violência, especialmente os que atuam como facilitadores em Grupos Reflexivos direcionados a esta parcela da população. Com isso, destaca-se também a necessidade de intensificar o compartilhamento, entre profissionais e estudantes, de conteúdo, práticas e dados estatísticos produzidos sobre a temática, com objetivo de melhorar as intervenções direcionadas ao homem autor de violência contra a mulher e intensificar pesquisas na área.

Referências

  • Financiamento: Não houve financiamento.
  • Consentimento de uso de imagem: Foi obtido o consentimento escrito da instituição na qual foi realizada a pesquisa.
  • Aprovação, ética e consentimento: A pesquisa foi autorizada pelo Núcleo Especializado de Atendimento ao Homem e está de acordo com a resolução Nº 510/2016 sobre Ética em Pesquisa nas Ciências Humanas e Sociais, de 07 de abril de 2016.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    4 Nov 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    14 Maio 2017
  • Revisado
    21 Set 2018
  • Aceito
    09 Jun 2019
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