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O FATALISMO NO TRABALHO CAMPONÊS: DA SUBMISSÃO ÀS POSSIBILIDADES DE RUPTURA

EL FATALISMO EN EL TRABAJO CAMPESINO: DE LA SUMISIÓN A LAS POSIBILIDADES DE RUPTURA

FATALISM IN PEASANT LABOR: FROM SUBMISSION TO THE POSSIBILITIES OF RUPTURE

Resumo

O artigo tem como objetivo discutir sobre o fatalismo presente no trabalho camponês e suas possibilidades de ruptura. Apoia-se nas contribuições teóricas de Ignacio Martín-Baró e toma como referente empírico os relatos de camponeses da região Centro-Sul do Estado do Paraná. Os relatos foram obtidos através de uma roda de conversa com agricultores agroecologistas e da realização de entrevistas semiestruturadas com cinco famílias produtoras de tabaco. Tomando como exemplo a fumicultura e a diversificação desta produção para a agricultura agroecológica, busca evidenciar as relações de trabalho como fonte do fatalismo no contexto do campesinato, e a recuperação da memória histórica, a organização social e a prática de classe como dimensões presentes em seu processo de ruptura.

Palavras-chave:
Fatalismo; Trabalho camponês; Campesinato; Agroecologia

Resumen

El artículo tiene como objetivo discutir el fatalismo presente en el trabajo campesino y sus posibilidades de ruptura. Se apoya en las contribuciones teóricas de Ignacio Martín-Baró y toma como referente empírico los relatos de campesinos de la región Centro-Sur del Estado del Paraná, Brasil. Los informes fueron obtenidos a través de una rueda de conversación con agricultores agroecologistas y de la realización de entrevistas semiestructuradas con cinco familias productoras de tabaco. Tomando como ejemplo el cultivo de tabaco y la diversificación de esta producción para la agricultura agroecológica, la investigación busca evidenciar las relaciones de trabajo como fuente del fatalismo en el contexto del campesinado, y la recuperación de la memoria histórica, la organización social y la práctica de clase como dimensiones presentes en su proceso de ruptura.

Palabras clave:
Fatalismo; Trabajo campesino; Campesinado; Agroecología

Abstract

This article focuses on discussing fatalism in peasant labor and its possibilities of rupture. It is based on the theoretical contributions of Ignacio Martín-Baró and takes as an empirical reference the reports of peasants from the Center-South region of the State of Paraná, Brazil. The reports were obtained through a conversation circle with agroecologist farmers and semi-structured interviews with five tobacco-producing families. Taking tobacco production and the diversification of this production for agroecological agriculture as an example, this work seeks to highlight labor relations as a source of fatalism in the context of the peasantry, and the recovery of historical memory, social organization and class practice as dimensions present in its process of rupture.

Keywords:
Fatalism; Peasant work; Peasantry; Agroecology

Introdução

A questão agrária no Brasil envolve uma série de determinantes que marcam profundamente a constituição de nossa história e do nosso território, nos colocando frente a aspectos centrais no que diz respeito também aos processos da constituição subjetiva de nossos povos. Como aponta Ieno (2013Ieno, G. (2013). Prefácio. In J.F. Leite & M. Dimenstein (Orgs.), Psicologia em contextos rurais. (pp. 13-18). Natal: EDUFRN.), a história do Brasil se funda desde o início por uma forte e violenta luta pela terra. Por isso, a questão da propriedade, posse e uso da terra incide direta e indiretamente em nossa história social, política, econômica e cultural e, portanto, na maneira pela qual nossas subjetividades têm sido produzidas.

No percurso histórico do desenvolvimento capitalista, as transformações que marcam a agricultura brasileira vão revelando, nos meandros do processo de modernização e desenvolvimento tecnológico, a incidência cada vez mais forte da indústria sobre o campo. É na trama das complexas transformações pelas quais passa a agricultura na sociedade capitalista que encontramos as bases objetivas sobre as quais se funda a subjetividade da população camponesa1 1 A compreensão do campesinato da qual partimos é a de sua existência enquanto classe social. De modo geral, compreendemos como camponeses aqueles trabalhadores não assalariados que vivem na e da terra e que são historicamente excluídos e oprimidos no contexto da sociedade capitalista, excetuando-se dessa classe, portanto, os grandes proprietários de terra. . Sob o domínio da indústria capitalista no campo, muitos dos trabalhadores camponeses vivenciam um processo de resignação fatalista frente à condição de exploração a que estão submetidos, aspecto que merece atenção ao nos debruçarmos sobre os processos psicossociais nesse contexto.

As reflexões aqui propostas têm sua origem na realização de nossa pesquisa de mestrado, onde buscamos investigar os sentidos atribuídos ao trabalho por famílias camponesas produtoras de tabaco (Rosa, 2018Rosa, M. P. (2018). Os sentidos do trabalho camponês na produção do tabaco e na agroecologia: possibilidades de transformação e resistência. 2018. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-graduação em Psicologia Social, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, SP.). A pesquisa foi realizada no município de Rio Azul-PR tendo como estratégia metodológica a realização de observação participante e entrevistas semiestruturadas com famílias que produziam tabaco e estavam diversificando sua produção para a agricultura agroecológica. Em nossa investigação nos deparamos com a forte presença de um discurso fatalista entre os camponeses fumicultores da região, que se encontravam resignados frente à exploração da indústria capitalista fumageira. Buscando contribuir para a compreensão desse fenômeno e ampliar as reflexões feitas durante a pesquisa, o objetivo desse artigo é discutir o fatalismo presente no trabalho camponês e suas possibilidades de ruptura.

Para tanto nos apoiamos nas contribuições teóricas de Ignacio Martín-Baró acerca do fatalismo e tomamos como referente empírico o relato de alguns dos camponeses produtores de tabaco que participaram da pesquisa. Os relatos apresentados neste artigo formam parte dos dados levantados na investigação e foram obtidos através da gravação de uma roda de conversa e da realização de entrevistas semiestruturadas.

A roda de conversa foi promovida por uma das universidades do Estado do Paraná no mês de maio de 2016, sendo aberta ao público e tendo como temática o relato de agricultores agroecologistas sobre sua experiência de trabalho. Nossa participação na roda de conversa consistiu em uma das estratégias metodológicas adotadas durante a etapa inicial de aproximação com o campo de pesquisa. Cabe destacar que todos os agricultores participantes eram ou haviam sido produtores de fumo. Dentre eles estavam Abel, Toninha e Célia, cujos relatos aparecem neste artigo.

As entrevistas foram realizadas durante o mês de fevereiro de 2017 durante a etapa da coleta de dados. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas com cinco famílias produtoras de tabaco. Dentre os integrantes das famílias entrevistadas, apresentamos trechos dos relatos de Bete (família 1), Valdir (família 2), Henrique (família 3), Rogério (família 4) e Juliana e Felipe (família 5). Destacamos que todos os nomes apresentados no texto são fictícios e que tanto as entrevistas quanto a roda de conversa foram gravadas e transcritas em sua forma literal, mediante aceite dos participantes e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Buscando romper com a exploração a que estavam submetidos na fumicultura, parte dos camponeses participantes da pesquisa havia iniciado o processo de diversificação de suas atividades produtivas para a agricultura agroecológica e a participação em uma associação de agricultores agroecologistas. Localizamos nesse processo importantes possibilidades de ruptura com o fatalismo que os camponeses vivenciavam na produção do tabaco, aspecto que trataremos de abordar na discussão aqui apresentada.

Aportes teóricos para a compreensão do fatalismo latino-americano

A Psicologia brasileira, embora venha dando alguns passos na realização de estudos e intervenções nos contextos do campesinato, tem ainda um longo caminho a percorrer no sentido de contribuir efetivamente com esse contingente de nossa população que historicamente vem sendo deixado à margem de suas reflexões. Tendo em vista a necessidade de contribuir com tal tarefa, buscamos, com o presente artigo, endossar as reflexões acerca da população camponesa e de alguns dos aspectos psicossociais que aí se situam.

Entendemos que a compreensão do fatalismo enquanto fenômeno psicossocial presente entre a população latino-americana é imprescindível aos estudos psicológicos acerca dos nossos povos. Nesse sentido, faz-se necessário ampliar o contingente de pesquisas que possam contribuir para a compreensão do fatalismo em suas manifestações atuais. Essa tarefa nos exige levar em conta os determinantes históricos, políticos, econômicos e culturais contemporâneos do fatalismo, rompendo com uma concepção individualista e subjetivista desse fenômeno e buscando desvelar as raízes materiais e objetivas que lhes dão forma. Como nos lembra Ibáñez (1998Ibáñez, L. C. (1998). Compromiso y ciencia social: el ejemplo de Ignacio Martín-Baró. Tese de Doutorado, Facultad de Psicología, Universidad Autónoma de Madrid, Madrid.), o desafio da psicologia latino-americana consiste em arrancar as maiorias populares das garras de um sórdido fatalismo que justifica a opressão.

Nossas reflexões acerca do fatalismo tomam por base as contribuições presentes na obra de Martín-Baró, cujas produções, como aponta Ibáñez (1998Ibáñez, L. C. (1998). Compromiso y ciencia social: el ejemplo de Ignacio Martín-Baró. Tese de Doutorado, Facultad de Psicología, Universidad Autónoma de Madrid, Madrid.), fazem alusões constantes a essa temática. Para Martín-Baró (2017), o fatalismo está atrelado à ideia de um destino inevitável, trágico e infeliz. Trata-se de uma compreensão da existência humana segundo a qual o destino de todos estaria predeterminado, podendo ser compreendida como uma atitude básica, uma maneira das pessoas de se situarem frente à própria vida. Nesse sentido, Martín-Baró refere-se à existência de uma atitude fatalista por parte dos povos latino-americanos. Para ele, as atitudes assinalam uma relação historicamente determinada entre o sujeito e uma dada circunstância de seu mundo, ou seja, dizem respeito à relação de sentido que o sujeito estabelece com o objeto.

La actitud nos indica así cómo un determinado individuo afronta su mundo: cómo lo percibe, cómo le impacta, qué significa esto o aquello para él. Lo que la realidad, las diversas parcelas de realidad representan para un determinado sujeto, sólo podemos entenderlo cuando captamos la actitud, es decir, la significación que esa realidad tiene para ese sujeto, lo que ya no es un dato puramente objetivo (en cuanto externamente observable), aunque tampoco puramente subjetivo. (Martín-Baró, 1973, p. 478Martín-Baró, I. (1973). Psicología del campesino salvadoreño. Estudios Centroamericanos, 28(8), 476-495.)

Nesta concepção as atitudes referem-se à unidade relacional entre sujeito e objeto e incluem uma estrutura de significação que implica um conhecimento, uma valoração afetiva e uma inclinação à ação. Assim, para Martín-Baró (2017Martín-Baró, I. (2017). Crítica e libertação na psicologia: estudos psicossociais (Org., trad. Fernando Lacerda). Petrópolis, RJ: Vozes.) o fatalismo revela uma forma peculiar de conferir sentido à relação da pessoa consigo mesma e com os fatos de sua existência. Essa compreensão fatalista da existência humana acaba por traduzir-se em conformismo e resignação frente às circunstâncias.

O fatalismo é analisado pelo autor a partir de sua tripla vertente ideacional, afetiva e comportamental. Ao nível das ideias, as mais comuns incluem a compreensão de que os principais aspectos da vida são definidos pelo destino de cada pessoa a partir do momento em que ela nasce e não há nada que possa ser feito para mudar esse destino fatal, já que a vida é regida por forças e poderes superiores. Além disso, há um marco de referência predominantemente religioso nos povos latino-americanos em que a definição do destino é atribuída a Deus. Já os elementos emocionais ou afetivos que aparecem com mais frequência estão ligados à aceitação resignada do destino, a não deixar-se afetar ou emocionar pelas circunstâncias da vida e à vivência do sofrimento como o estado normal das pessoas, havendo uma identificação entre destino e sofrimento. As tendências comportamentais mais frequentes consistem no conformismo e na submissão às exigências do destino, na passividade frente às circunstâncias da vida e na redução do horizonte de vida ao presente. Cabe ressaltar, como o faz o próprio Martín-Baró (2017Martín-Baró, I. (2017). Crítica e libertação na psicologia: estudos psicossociais (Org., trad. Fernando Lacerda). Petrópolis, RJ: Vozes.), que a manifestação de tais aspectos não significa que exista um fatalismo homogêneo e total nos povos dominados. Ao contrário, essas características não devem ser coisificadas como entidades em si mesmas: “Elas deverão ser compreendidas fazendo-se referência à totalidade pessoal (as pessoas “fatalistas”); são características que se apresentarão mais ou menos claramente em cada indivíduo e seu sentido deve ser analisado no contexto de cada circunstância histórica” (p. 177).

Como coloca Martín-Baró (2017Martín-Baró, I. (2017). Crítica e libertação na psicologia: estudos psicossociais (Org., trad. Fernando Lacerda). Petrópolis, RJ: Vozes.), visto que a dominação e a opressão são exercidas em um contexto histórico, determinadas pela especificidade de cada situação e circunstância concreta, há uma grande diversidade de graus e modalidades pelos quais o fatalismo se constitui. Por isso, é preciso que nos perguntemos qual é a forma que o fatalismo assume em cada caso, quais são os processos pelos quais ele é transmitido e em quais comportamentos ele se materializa.

... em alguns casos os principais mecanismos de socialização fatalista são as pautas de formação e educação; em outros, as influências podem vir das ações educativas da escola ou das igrejas; em muitos outros casos, sobretudo no campesinato que constitui uma porcentagem muito elevada da população latino-americana, a experiência no trabalho, a vivência de relações entre trabalhador e patrão no campo, é a principal fonte de fatalismo. (p. 192)

Levando em conta esta última colocação do autor, nossa discussão a respeito do fatalismo no contexto do campesinato tem como eixo central o trabalho camponês, que deve ser analisado em seu caráter histórico, a partir de seus determinantes sociais e culturais. Blanco e Díaz (2007Blanco, A. & Díaz, D. (2007). El rostro bifronte del fatalismo: fatalismo colectivista y fatalismo individualista. Psicothema, 19(4), 552-558.), atentando para os determinantes históricos contemporâneos do fatalismo, apontam que a atitude fatalista deve ser analisada em termos da vivência dos sujeitos em um contexto que se encontra culturalmente marcado pelo individualismo e pela constante insegurança e indefinição que caracterizam a sociedade atual. Para os autores, o fatalismo vem perdendo aqueles contornos nítidos de um esquema cognitivo definido pela aceitação passiva e submissa de um destino determinado pelas forças da natureza ou pela vontade de algum Deus. Nesse sentido, entendemos ser imprescindível compreender o fatalismo em suas manifestações atuais. É preciso ter em vista que desde a década de 1980, quando Martín-Baró escrevia seus últimos trabalhos a respeito do fatalismo, a realidade dos povos latino-americanos passou por significativas mudanças. Além disso, como sempre tratara de enfatizar o próprio autor, cada país e cada realidade possui suas singularidades, que devem ser levadas em conta ao buscarmos compreender os fenômenos psicossociais de maneira contextualizada. Essa tarefa torna-se imprescindível ao exercício de uma Psicologia Social comprometida com a transformação da realidade de opressão a que estão submetidas as maiorias populares e, no caso da temática proposta, as trabalhadoras e os trabalhadores camponeses.

O fatalismo no trabalho camponês: submissão no contexto da produção de tabaco

No cenário mundial da indústria do tabaco, o Brasil ocupa o primeiro lugar no ranking dos principais países exportadores do fumo em folha e é o segundo maior produtor, atrás apenas da China (Bonato, 2007Bonato, A. A. (2007). A fumicultura no Brasil e a Convenção-Quadro para Controle do Tabaco. Recuperado de http://www.deser.org.br/pub_read.asp?id=109.
http://www.deser.org.br/pub_read.asp?id=...
; DESERDepartamento de Estudos Sócio-Econômicos Rurais - DESER. (2015). De olho no mundo do tabaco: boletim de fevereiro. Recuperado de http://www.deser.org.br/documentos/imagem/Boletim-Fevereiro-Otimizado.pdf.
http://www.deser.org.br/documentos/image...
, 2013Departamento de Estudos Sócio-Econômicos Rurais - DESER. (2013). De olho no mundo do tabaco: informações atualizadas do mundo do tabaco. Recuperado de http://www.deser.org.br/documentos/imagem/revista-visualizar.pdf.
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). O mercado brasileiro é dominado por grandes empresas multinacionais, dentre as quais quatro são principais: Souza Cruz, Philip Morris Brasil, Universal Leaf Tabacos e Alliance One. A região responsável pela maior parte da produção é a região Sul, cujos três Estados somam 97,5% do total (Afubra, 2016Associação dos Fumicultores do Brasil - AFUBRA. (2016). Fumicultura no Brasil. Recuperado de http://www.afubra.com.br/fumicultura-brasil.html.
http://www.afubra.com.br/fumicultura-bra...
). Nessa região a produção é desenvolvida pelo sistema de integração entre indústrias e fumicultores e ocorre, em sua maior parte, em pequenas propriedades que fazem uso do trabalho familiar e eventuais contratações no período da colheita.

No sistema de integração, a indústria garante aos fumicultores o fornecimento das sementes e dos fertilizantes, o financiamento para a construção das estufas, assistência técnica e o transporte do tabaco produzido desde a propriedade familiar até à empresa. Em contrapartida, os fumicultores garantem de forma integral e exclusiva a venda de sua produção à empresa integradora, produzindo o volume de fumo contratado. Esse sistema é formalizado através do “contrato de compra e venda do fumo em folha”, firmado entre os produtores e as fumageiras.

A realidade com a qual nos deparamos no contexto da produção do tabaco nos revela que o sistema de integração serve, na verdade, à exploração dos trabalhadores em favor da maximização dos lucros das grandes multinacionais do fumo. As empresas têm nesse sistema uma importante estratégia de controle de toda a produção do tabaco desde o início do cultivo. Ao mesmo tempo em que oferecem aos produtores a ilusão de serem os agentes centrais do processo e terem autonomia para gerenciar o cultivo em suas propriedades, são as empresas que definem antecipadamente a cada ano o preço a ser pago e o tipo de fumo a ser produzido de acordo com as demandas do mercado. Além disso, realizam também a classificação final das folhas do tabaco, o que faz dessa mais uma estratégia de controle, já que o preço pago pelo fumo varia de acordo com sua classificação.

Bonato (2007Bonato, A. A. (2007). A fumicultura no Brasil e a Convenção-Quadro para Controle do Tabaco. Recuperado de http://www.deser.org.br/pub_read.asp?id=109.
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) chama atenção para os malefícios causados pelo tabaco, tanto ao meio ambiente quanto à saúde dos consumidores do produto final e dos agricultores que o cultivam.O trabalho na fumicultura envolve uma série de riscos à saúde, decorrentes de fatores como a elevada exigência física, o uso intensivo de agrotóxicos e o manejo das próprias folhas de tabaco, que contêm uma vasta quantidade de componentes químicos prejudiciais à saúde. Somam-se a esses fatores os baixos preços pagos aos camponeses pela produção do tabaco, evidenciando a condição de exploração a que esses trabalhadores estão submetidos. Sendo as únicas conhecedoras da cadeia e não havendo mecanismos de controle sobre elas, as empresas adquirem um poder imensurável frente aos camponeses, utilizando-se de estratégias diversas para controlar todo o processo da produção do tabaco. O que vemos nesse cenário é a exploração e a dominação dos trabalhadores do campo, submetidos ao poder oligopolista das indústrias fumageiras.

O sistema de integração engendra um modo de organização de toda a cadeia da produção de tabaco que acaba por criar um forte elo de dependência do camponês em relação à empresa, fator agravado, sobretudo, quando a produção se baseia na monocultura, levando as famílias a terem no tabaco sua única fonte de renda. Nesse contexto, manifesta-se o fatalismo dos camponeses, que, ao não vislumbrarem outras possibilidades de trabalho e de sobrevivência, acabam permanecendo na fumicultura, resignados frente às condições de exploração a que estão submetidos. Esse aspecto é expresso na fala de Toninha, uma das camponesas entrevistadas, ao relatar sua resistência inicial frente à proposta do marido de deixarem o cultivo do tabaco para iniciar a produção de alimentos agroecológicos:

“Eu falei pra ele: Não. Se a gente largar de plantar fumo a gente vai passar fome. Da onde que plantar verdura vai dar alguma coisa? Quem que vai comprar de nós?” (Toninha).

A fala de Toninha é compartilhada pela grande maioria dos produtores de fumo da região. O discurso de que outras atividades são inviáveis e insuficientes à obtenção de renda é frequente, apontando para uma atitude fatalista que Martín-Baró (1973Martín-Baró, I. (1973). Psicología del campesino salvadoreño. Estudios Centroamericanos, 28(8), 476-495.) identificava também nos camponeses salvadorenhos. Muitos desses produtores acreditam que a fumicultura é a única atividade rentável possível, como evidenciam as falas de Bete e de Valdir:

“Se pudesse escolher uma atividade que desse a mesma renda do fumo, nossa! Eu não ia pensar nem meia vez, quem dirá uma. Eu ia sair na hora se tivesse. Se a comida fosse mais valorizada, que desse pra você ganhar a mesma coisa que você ganha no fumo, não ficava ninguém. Não era só eu, ninguém ia ficar. É a renda. Se tivesse alguma coisa que nós ganhasse que nem no fumo, nós pensava em parar... Mas agora no momento nós não tamo vendo nenhum foco que seja possível. A gente tem que pagar luz, manter trator, manter o carro, então não tem como. O fumo você investe também, mas é uma coisa que te dá retorno. Se fosse manter hoje sem o fumo tinha que ter uma ótima ideia e que não tivesse muita concorrência pra você vender. E venda garantida. No fumo você tem garantia de venda e o preço não abaixa, ele sobe todo ano. E o resto não” (Bete).

“Eu acho que no nosso caso nós só pensava em fumo porque era a única coisa que dava renda” (Valdir).

A obtenção de renda através da fumicultura é fomentada, ainda, pela viabilidade do cultivo em pequenas áreas e pela garantia da venda do tabaco através do sistema de integração, fatores que acabam por contribuir para a permanência das famílias na fumicultura.

“O fumo dá renda, por isso que tem tanta gente nisso e não sai, por causa de renda. O fumo ainda compensa você produzir com pouca área. ...Tem a segurança que você vai produzir, você vai vender. ...Você tem a venda garantida. Você tem contrato. Nós temo um contrato de 6.800 quilos, tá contratado. Se eu produzir, eles vão comprar” (Felipe).

Outro fator importante à permanência na fumicultura se inscreve nos marcos do avanço da indústria capitalista sobre o campo e da imposição do ideal da modernização como progresso: a venda aos camponeses de maquinários e tecnologias, o que acaba por gerar um acúmulo de dívidas.

“Hoje o povo no interior é um povo alienado, porque vem tudo na casa, o trator, o insumo. A prosa de um vendedor de trator: “Faz pra dez ano. O trator é cem mil e faz em dez vez. Com pouquinhos quilos de fumo você paga”. E assim vai. O cara fica amarrado em plantar fumo esses dez ano por causa de um financiamento de um trator. Se torna uma bola de neve. O cara plantava vinte mil pé de fumo, trabalhava com os cavalo. Isso a gente sabe porque a gente já passou por isso. De vinte, nós tivemos que jogar pra sessenta, setenta, oitenta mil pé de fumo pra você ter o mesmo retorno. Você tem o trator, mas é uma coisa que... E ninguém abre o olho” (Henrique).

O mesmo ocorre com a venda do pacote tecnológico para a própria produção do fumo. Ao adquirirem os insumos junto às empresas, os camponeses se veem amarrados a elas, pois o pagamento por esse pacote é feito ao final de cada safra, com a venda da produção à empresa, que desconta o preço dos insumos do valor a ser pago pelo fumo aos produtores. Isso se agrava no caso do financiamento feito pelas empresas para a construção de estufas, cujo valor é maior, fazendo com que o prazo de pagamento e, consequentemente, o vínculo dos camponeses com as fumageiras se estenda por um período prolongado. Como expressam Valdir e Henrique, essas são estratégias utilizadas pelas empresas para manterem os produtores dependentes e submetidos a elas.

“Eu acho que a firma pensa assim: o importante é nós encher eles de dívida, encher eles de fumo, que daí nós podemo comprar barato. Porque daí ia sobrar fumo. Eles não tão nem aí com os produtor” (Valdir).

“O produtor tá na mão deles. Eles forneceram adubo, forneceram semente, tudo, dão assistência técnica. Na verdade você tá amarrado com eles. Fez o pedido, tem que cumprir” (Henrique).

Frente às dívidas que vão se renovando a cada nova safra, os produtores se veem obrigados a seguir produzindo tabaco, recaindo em um ciclo constante em que, ao plantarem fumo para quitar os débitos anteriores, contraem novas dívidas com a empresa. Diante das condições que lhes são impostas pela necessidade da sobrevivência cotidiana, veem seu horizonte temporal restrito ao momento presente da safra em curso, que possibilitará, por sua vez, a renda necessária para dar início à safra seguinte e assim por diante. Como aponta Martín-Baró (2017Martín-Baró, I. (2017). Crítica e libertação na psicologia: estudos psicossociais (Org., trad. Fernando Lacerda). Petrópolis, RJ: Vozes.), sem perspectivas de alguma mudança significativa que transforme essencialmente sua realidade de exploração, esses trabalhadores não veem motivos para planejar o futuro ou aspirar algo que não poderá ser realizado.

Tal como o futuro, o passado vai perdendo seu espaço. Imersas na cultura do tabaco instalada na região há pelo menos cinco décadas, aquelas memórias do saber-fazer camponês, que anteriormente sustentavam o cultivo da terra em uma agricultura não predatória, vão caindo no esquecimento. Esse aspecto torna ainda mais limitadas as possibilidades de mudança ao gerar uma certa naturalização do cultivo do tabaco na região.

“Hoje a gente faz porque é instintivo” (Felipe).

“Cresceu fazendo isso já, né? Faz parte da tua vida, você cresceu vendo os teus pais trabalhar, teus avós. Então você já vai meio no automático” (Juliana).

As gerações mais novas de agricultores da região já são aquelas que têm suas histórias de vida entrelaçadas ao cultivo do tabaco. É a geração daqueles que cresceram vendo seus pais na lida cotidiana do fumo e que tiraram daí seus aprendizados sobre os saberes e fazeres que hoje constituem seu ofício. Sem memória histórica e perspectivas de futuro, os camponeses se veem presos no que Martín-Baró chama de presentismo: “Lançados aqui, sem memória histórica ou projeto de vida, parece que aos povos latino-americanos não resta nada mais do que a perspectiva de aceitação fatalista de seus destinos” (2017, p.175).

Um dos grandes determinantes desse processo de perda da memória histórica e de produção do fatalismo é a individualização que marca as relações no modo de produção capitalista. Nele, individualismo, competição e meritocracia aparecem como dimensões intrínsecas de uma mesma lógica, apresentando-se como pilares que sustentam a desigualdade e a opressão massiva das maiorias populares. Esses processos vão sendo constantemente fomentados no sistema de integração na produção do tabaco, como expressam os próprios camponeses:

Quando a família faz o pedido de fumo, a família não sai da propriedade, ela fica lá e o instrutor vai lá, faz o pedido, te traz o adubo, te traz a semente. O técnico tá toda semana lá te acompanhando e ainda vem buscar a tua produção lá no paiol, leva e só falta trazer o dinheiro na casa, mas o dinheiro tá na tua conta. O produtor não precisa se incomodar com nada. E é, não só no fumo, mas se for ver hoje na agricultura convencional o agricultor não precisa se organizar mais, ele não precisa participar mais de reunião, de curso pra saber as coisa. Tem na internet, tem no computador. Então por isso que esse debate de trabalhar organizado, trabalhar em cooperativa, trabalhar em associação, juntar, fazer mutirão, trabalhar coletivo, ele é difícil de fazer. Tá cada vez mais difícil, justamente por essas facilidade das empresa integradora, não só o fumo, mas a granja, várias outras coisas que facilita tudo isso. Acomoda o produtor, né. “Eu não preciso me mexer, eu tô bem, vem tudo aqui na minha casa. É só eu ir buscar o dinheiro, gastar... por que que eu vou dar atenção pra tá participando de reunião de comunidade, tá participando de associação, tá me envolvendo, tá esquentando a cabeça?” Então isso que gerou um pouco das desorganização das comunidade, desmontou as associação. Até dez ano atrás todas as comunidade tinha associação de agricultores que discutia o problema das comunidade, várias coisa que a comunidade precisava, questão de educação, de saúde, de tudo... hoje se for ver nas comunidade as associação de comunidade também fragilizaram. E o agricultor se acomodou” (Abel).

Abel denuncia em seu relato a maneira pela qual a assistência técnica individual fornecida pelas empresas contribui para colocar em andamento a individualização de todo o processo de produção do fumo. Eliminando a necessidade de trocas, elas mantêm as famílias dentro dos limites de suas propriedades, minando as relações comunitárias e a organização social.

“No tempo do vô fazia uns mutirão de gente ... Na verdade foi ficando muito fácil, virou um individualismo. Antes a turma se ajudavam mais, era um grupo. Agora cada um faz o seu ali” (Henrique).

Ao enfraquecer os espaços coletivos nas comunidades, as empresas enfraquecem também as possibilidades de enfrentamento por parte dos camponeses às condições de exploração a que estão submetidos. Nesse cenário, as poucas tentativas das famílias de deixar a fumicultura e migrar para outras atividades eram também tentativas individuais, que, sem o suporte necessário, na maioria das vezes acabavam por dar errado. Os casos das tentativas frustradas feitas por famílias vizinhas eram frequentemente lembrados pelos camponeses, servindo de suporte à confirmação da inviabilidade da mudança. Ao se depararem com a vivência de uma experiência real e concreta de imutabilidade, a própria realidade lhes levava a crer que era impossível mudar. Aí se inscreve um aspecto central à compreensão das bases objetivas do fatalismo. Como coloca Martín-Baró (2017Martín-Baró, I. (2017). Crítica e libertação na psicologia: estudos psicossociais (Org., trad. Fernando Lacerda). Petrópolis, RJ: Vozes.), a submissão resignada é aprendida na verificação cotidiana da inviabilidade de qualquer esforço para mudar a realidade.

... o fatalismo é um processo que dá sentido à relação entre as pessoas e um mundo que, para elas, está fechado e fora de controle, isto é, trata-se de uma atitude continuamente causada e reforçada pelo funcionamento opressivo de estruturas macrossociais. A criança das favelas ou dos barracos (champas) introjeta o fatalismo não como herança paterna, mas como fruto de sua própria experiência na sociedade: dia após dia aprende que seus esforços na escola não servem para nada ou quase nada, que a rua recompensa mal seu trabalho prematuro como vendedor de jornais, vigilante de carros ou engraxate e, por isso, é melhor não sonhar ou traçar metas que nunca poderão ser alcançadas. (p. 188, grifos do autor)

O fatalismo, portanto, tem suas raízes na materialidade da vida cotidiana, configurando-se como um correlato psíquico de determinadas estruturas sociais. Não se trata de “falta de vontade” ou de não querer uma mudança (Martín-Baró, 2017Martín-Baró, I. (2017). Crítica e libertação na psicologia: estudos psicossociais (Org., trad. Fernando Lacerda). Petrópolis, RJ: Vozes.), como podemos constatar na fala de Bete e de Rogério:

“É claro que eu ia me sentir muito melhor sem o fumo, não trabalhando no fumo. Porque o fumo prejudica, é serviço cansativo. Se o outro serviço me desse dinheiro que nem o fumo me dá, eu fazia com o maior amor da vida e produzia bastante e não um pouquinho” (Bete)

“Uns tempos atrás meu pai foi parar no hospital, o médico falou que era intoxicação por causa de veneno. Você acha que a gente vendo nossos ancestrais sofrer desse jeito vai querer continuar nisso? Mas de jeito nenhum!” (Rogério)

Como coloca Martín-Baró (2017Martín-Baró, I. (2017). Crítica e libertação na psicologia: estudos psicossociais (Org., trad. Fernando Lacerda). Petrópolis, RJ: Vozes.), o funcionamento implacável do sistema não permite às maiorias oprimidas alcançarem a realização de suas aspirações, ou seja, a própria ordem social dominante propicia e reforça o fatalismo: “Em última instância, a raiz do fatalismo não está na rigidez mental das pessoas, mas na imutabilidade das condições sociais nas quais as pessoas e os grupos se formam” (p.197). No caso dos camponeses produtores de fumo, o fatalismo aparece como fenômeno psicossocial constituído no bojo das relações de trabalho, que se configuram no interior da incidência capitalista sobre o campo.

Uma série de aspectos gestados no sistema de integração constitui as condições materiais que dão base ao fatalismo dos camponeses. As pequenas extensões de terra que caracterizam as propriedades na região e a viabilidade do cultivo do fumo nessas condições, o baixo preço pago pelo fumo às famílias, a garantia da venda da produção através do sistema de integração, o ciclo de dívidas em que as empresas conseguem manter os produtores e a individualização das relações nas comunidades são alguns dos determinantes objetivos do trabalho camponês que contribuem para a manutenção desses trabalhadores na fumicultura. A atitude fatalista que os mantém nessa condição de submissão à exploração tem sua fonte nas próprias relações de trabalho. Nos marcos da exploração capitalista o sistema de integração na fumicultura materializa o domínio das grandes empresas sobre o campo e cria um elo de dependência entre o trabalhador camponês e a indústria do tabaco que dificulta a saída dos camponeses dessa atividade.

Rupturas possíveis: os processos de transformação na diversificação agroecológica

Para Martín-Baró (2017Martín-Baró, I. (2017). Crítica e libertação na psicologia: estudos psicossociais (Org., trad. Fernando Lacerda). Petrópolis, RJ: Vozes.) as possibilidades de eliminação do fatalismo não estão ligadas apenas a modificações nas crenças das pessoas. Ao contrário, é preciso que os sujeitos vivam uma experiência real de modificação do mundo e de determinação do próprio futuro. Nesse sentido, a ruptura com o fatalismo situa-se nas mudanças da relação entre a pessoa e seu mundo: “Trata-se de um processo dialético em que a mudança das condições sociais e a mudança das atitudes pessoais vão se possibilitando mutuamente” (p. 197). Para o autor, esse processo inclui três mudanças: a recuperação da memória histórica, a organização popular e a prática de classe. No caso dos camponeses entrevistados, possibilidades de ruptura com o fatalismo começavam a surgir para alguns deles ao diversificarem suas atividades produtivas, dando início à agricultura agroecológica e à participação em uma associação de agricultores agroecologistas.

A agroecologia consiste em um modo de vida e de agricultura em que a natureza é vista de forma integrada, como um todo interdependente e complexo. Suas práticas baseiam-se em princípios ecológicos como a preservação da vida do solo, a gestão dinâmica da biodiversidade e a conservação de energia em todas as escalas (Via Campesina, 2015Via Campesina. (2015). Agroecología campesina por la soberanía alimentaria y la Madre Tierra: experiencias de La Vía Campesina. Zimbabwe: La Vía Campesina. Recuperado de https://viacampesina.org/es/wp-content/uploads/sites/3/2015/11/CUADERNO%207%20LVC%20ESPANOL.compressed.pdf
https://viacampesina.org/es/wp-content/u...
). A agroecologia não se restringe, no entanto, aos aspectos da produção, mas abrange as relações sociais, mesclando ciência, conhecimento popular, preservação ambiental e inclusão social, incluindo tanto variáveis econômicas, sociais e ambientais como variáveis culturais, políticas e éticas da sustentabilidade (Caporal & Costabeber, 2015Caporal, F. R. & Costabeber, J. A. (2015). Agroecologia: conceitos e princípios para a construção de estilos de agriculturas sustentáveis. In H. Novaes, A. D. Mazin, & L. Santos (Orgs.), Questão agrária, cooperação e agroecologia (pp. 263-284). São Paulo: Outras Expressões. ).Defendendo o acesso a alimentos como um direito universal, a agroecologia diferencia-se dos modelos convencionais orgânicos, que têm por foco atender a nichos de mercado e consumidores com maior poder de compra (Caporal & Petersen, 2012Caporal, F. R. & Petersen, P. (2012). Agroecologia e políticas públicas na América Latina: o caso do Brasil. Agroecología,6, 63-73.).

Ao darem início à agricultura agroecológica, os camponeses produtores de fumo colocavam em curso um processo de mudança em que podemos identificar as três dimensões necessárias à ruptura com o fatalismo apontadas por Martín-Baró (2017Martín-Baró, I. (2017). Crítica e libertação na psicologia: estudos psicossociais (Org., trad. Fernando Lacerda). Petrópolis, RJ: Vozes.). Célia, uma das entrevistadas, falava em seu relato sobre o processo de chegada do fumo na região, a perda da agricultura camponesa daí decorrente e o necessário resgate desses saberes.

“Eu sou filha de agricultor, me criei trabaiando na roça desde sete, oito ano. E antigamente ali nos ano 75 mais ou menos era como nós tamo querendo fazer hoje, sobre agroecologia. Lá não se ouvia falar em veneno, em tanta coisarada. E tudo o que nós plantava era carpido de enxada. E plantava bastante porque nós somo em dez irmão. E não existia, era difícil você ouvir falar em veneno. Daí vivia uma vida parece que tão bão, tinha fartura das coisa. Daí já começou a aparecer o tar veneno, o tar trifluralina de passar na terra pra não carecer carpir. Daí a gente começou a pôr isso pra ir aumentando as lavoura, ter mais mantimento e mais as coisa e cada vez fomo se envolvendo mais e deixando morrer aquilo que era tão precioso. Nós passeava, nós tinha tempo de tanta coisa e daí quando começou isso nós fomo perdendo essas coisa maravilhosa que existia. Porque daí nós colocava mais e mais e mais veneno. E daí logo começou a aparecer o tabaco e também já se envolvemo com plantar fumo. ... E nós perdimo tanta coisa boa que nós deixemo desde a minha idade lá. Mas naquele tempo a gente viveu o que a gente quer viver hoje de volta.” (Célia)

A fala de Célia nos coloca frente a um processo de recuperação da memória histórica. Relembrando o modo de vida da família em sua infância, a agricultora recupera não só a história familiar, mas as memórias do modo de vida camponês. Rompendo com o presentismo vivenciado na produção do fumo, essas memórias contribuem com a percepção da viabilidade de uma retomada da agricultura camponesa, que foi se perdendo com o avanço da cultura do tabaco na região. Retomando elementos do passado os camponeses começavam a romper com a ideia de que o que vivem no presente é a única forma de sustento viável. Para Martín-Baró (2017Martín-Baró, I. (2017). Crítica e libertação na psicologia: estudos psicossociais (Org., trad. Fernando Lacerda). Petrópolis, RJ: Vozes.), essa ruptura com o presentismo, em um processo de abertura para o futuro e de recuperação da memória do passado pessoal e coletivo, é indispensável à ruptura com o fatalismo. A memória histórica, além de permitir às maiorias oprimidas reconhecer suas origens e sua identidade comunitária, permite buscar os determinantes da sua opressão e resgatar fatos do passado que serviram para defender seus interesses e que possam ser úteis novamente para a luta e a conscientização (Martín-Baró, 2017Martín-Baró, I. (2017). Crítica e libertação na psicologia: estudos psicossociais (Org., trad. Fernando Lacerda). Petrópolis, RJ: Vozes., 2011aMartín-Baró, I. (2011a). Desafios e perspectivas da Psicologia Latino-Americana. In R. S. L. Guzzo & F. Lacerda (Orgs.), Psicologia Social para América Latina: o resgate da Psicologia da Libertação (pp. 199-219). Campinas, SP: Alínea., 2011bMartín-Baró, I. (2011b). Para uma Psicologia da Libertação. In R. S. L. Guzzo & F. Lacerda (Orgs.), Psicologia Social para América Latina: o resgate da Psicologia da Libertação (pp. 181-197). Campinas, SP: Alínea .). Essa retomada da memória histórica é uma demanda da própria agroecologia, que tem suas raízes na agricultura camponesa e, por isso, busca resgatar o saber e a cultura camponesa, retomando aqueles conhecimentos e práticas que constituíam esse modo de agricultura e de vida.

Caminhar na direção de um futuro possível exige colocar em andamento a organização social e a prática de classe. Essas duas dimensões da ruptura com o fatalismo também apareciam nos relatos dos camponeses, que demarcavam em suas falas a importância da organização, da coletividade, da cooperação e da ruptura com o individualismo.

“Na agroecologia você não trabalha isolado porque a agroecologia é você trabalhar coletivo. Todo o trabalho a gente começou em grupos, foi a formação de um grupo e depois foi a formação da associação. A gente chegou a fazer mutirão dentro do próprio grupo, as famílias do grupo uma ajudava a outra. Os primeiro dois ano foi só formação, aprender o que é agroecologia, qual que é a diferença, o que que muda, como é trabalhar na agroecologia, trabalhar organizado, trabalhar em forma de grupo, trabalhar no mutirão. Quando uma família tava precisando de ajuda ou precisava colher uma lavoura ou precisava fazer um serviço, o grupo todo ia fazer pra aquela família. Na outra semana era pra outra família e assim por diante. Então a gente fez muito disso que era o resgate dos mutirão que tinha antigamente, que era as pessoa se ajudar, uma pessoa saber da dificuldade da outra. No convencional não é isso, não é mais isso, não existe isso. É mais a competição, um querer produzir mais, um querer ter mais do que o outro. A gente vê hoje o que a mídia nos apresenta, nos mostra é que a gente tem que ser individual, cada um pensar em si, ter pra si, ter patrimônio, ter bens, ter dinheiro, competir com o vizinho muitas vezes. Dentro do debate da agroecologia isso não pode acontecer. Uma família tem que tá sabendo da dificuldade da outra e sabendo de que forma que pode ajudar.” (Abel)

O relato de Abel nos traz lições indispensáveis ao processo de superação do fatalismo. O caminho da construção coletiva aponta importantes possibilidades de ruptura com a submissão resignada e a organização social passa a ser o pano de fundo em que a possibilidade de transformação pode ser costurada. A organização social e o trabalho coletivo favorecem a ruptura com o individualismo presente na atitude fatalista. Para Martín-Baró (2017Martín-Baró, I. (2017). Crítica e libertação na psicologia: estudos psicossociais (Org., trad. Fernando Lacerda). Petrópolis, RJ: Vozes.), apenas a organização social das maiorias populares em função de seus próprios interesses permite superar a concepção individualista de que cada um deve confrontar suas próprias condições de vida e de que o êxito ou o fracasso diz respeito a cada indivíduo em particular. Essa organização traz à consciência a noção de que os membros das classes oprimidas compartilham os mesmos interesses e de que a imutabilidade de suas condições se deve, em grande medida, à sua divisão e ao individualismo.

O espaço coletivo da associação vinha tornando possível aos camponeses perceber que havia um mesmo sofrimento por eles compartilhado, uma mesma exploração de que eram alvos e, por isso, havia também interesses dos quais compartilhavam e uma luta a ser feita coletivamente. A organização social os fortalecia no momento em que, como coloca Martin-Baró (2017Martín-Baró, I. (2017). Crítica e libertação na psicologia: estudos psicossociais (Org., trad. Fernando Lacerda). Petrópolis, RJ: Vozes.), passavam a operacionalizar sua consciência histórica em atividades que serviam aos seus próprios interesses, vislumbrando a partir daí possibilidades de enfrentamento às estruturas opressivas.

Para Martín-Baró (2017Martín-Baró, I. (2017). Crítica e libertação na psicologia: estudos psicossociais (Org., trad. Fernando Lacerda). Petrópolis, RJ: Vozes.), tanto a consciência histórica quanto a organização popular, devem situar-se no contexto de uma prática popular, uma práxis de classe. Essa práxis tem por base o enfrentamento às estruturas políticas, econômicas e psicossociais que sustentam a exploração e a opressão das maiorias populares.

Em última instância, a superação do fatalismo das maiorias populares latino-americanas requer uma mudança revolucionária, isto é, uma mudança nas estruturas políticas e econômicas e, também, psicossociais, sobre as quais está assentado um ordenamento que marginaliza e dociliza, que fundamenta o bem-estar de alguns poucos na exploração opressiva de muitos. Somente a prática revolucionária permitirá aos povos latino-americanos romperem a inflexibilidade de estruturas sociais congeladas em função de interesses minoritários ... (Martín-Baró, 2017, pp. 199-200Martín-Baró, I. (2017). Crítica e libertação na psicologia: estudos psicossociais (Org., trad. Fernando Lacerda). Petrópolis, RJ: Vozes.)

No caso dos camponeses agroecologistas, a resistência e o enfrentamento às estruturas sociais opressivas que uma práxis de classe exige também se faziam presentes como dimensões da agricultura agroecológica. A fala de Abel evidencia esse aspecto ao apontar para as relações existentes entre a agroecologia, a militância e a resistência:

“Pra você ser agroecologista tem que tá bem preparado, tem que ser forte, não pensar só no financeiro, no recurso. Tem que ser militante, tem que ter resistência, tem que ser forte.” (Abel)

A militância destacada por Abel é parte de um projeto popular2 2 Enfatizamos nossa referência a um projeto popular de agroecologia em contraposição à cooptação capitalista desse modo de agricultura por meio da apropriação de aspectos técnicos do manejo agroecológico em favor de interesses mercadológicos. de agroecologia que defende a constituição desse modo de agricultura e de vida como enfrentamento ao agronegócio e às relações históricas de exploração engendradas no capitalismo. A agroecologia, ao trazer como uma de suas dimensões intrínsecas o enfrentamento à agricultura capitalista, apresenta importantes estratégias de resistência e de luta contra as estruturas sociais de opressão e exploração dos trabalhadores do campo. É o caso, por exemplo, do emprego de insumos feitos a partir dos recursos existentes na própria propriedade, o que contribui com a resistência dos camponeses à submissão ao circuito do mercado agroindustrial e ao enfrentamento dos modos destrutivos de produção agrícola nos marcos do capital.

Ao diversificarem a produção do tabaco para a agricultura agroecológica, esses camponeses colocavam em curso uma mudança concreta de sua realidade de exploração. As entrevistas nos revelam um processo no qual, através da recuperação da memória histórica da agricultura camponesa, da organização social na associação de agricultores agroecologistas e da prática de classe daí decorrente, o fatalismo que imobilizava os camponeses frente à situação de exploração vivenciada na produção do tabaco, vinha perdendo sua força e encontrando possibilidades de ruptura. A família de Célia já havia deixado a produção de fumo há treze anos e Abel e Cida eram alguns dos participantes da associação cujas famílias vinham se organizando para deixar efetivamente a fumicultura.

No processo de diversificação agroecológica novas possibilidades iam surgindo e favorecendo a ruptura com o fatalismo marcadamente presente na produção de tabaco. As relações de trabalho, antes fonte do fatalismo, passavam por mudanças significativas e iam permitindo avançar na ruptura com a submissão à indústria capitalista do fumo. Na medida em que o tabaco não era mais a única fonte de renda desses camponeses, os elos de dependência em relação às empresas iam se afrouxando. O individualismo e a competição presentes na fumicultura iam dando lugar à organização coletiva e à cooperação na agricultura agroecológica. Todas essas mudanças iam possibilitando e favorecendo o domínio desses camponeses e camponesas da sua própria realidade, contribuindo com a ruptura da ideia de imutabilidade das condições reais de opressão a que estavam submetidos.

Considerações finais

Os relatos dos camponeses apontam para um fatalismo que tem suas raízes nas relações de trabalho, como apontado por Martín-Baró em relação ao fatalismo no contexto do campesinato. O sistema de integração entre as empresas e os camponeses materializa a incidência da indústria capitalista no campo e dá forma às relações de trabalho que aí se estabelecem, criando as bases objetivas sobre as quais se estabelece o fatalismo. As próprias condições objetivas constituídas nas relações de trabalho reforçam o fatalismo dos camponeses, levando-os à ideia de imutabilidade das condições de exploração em que se encontram e mantendo-os submissos a elas.

Alguns dos camponeses entrevistados começavam a romper com o fatalismo ao darem início à agricultura agroecológica através de sua organização em uma associação. As mudanças daí decorrentes evidenciavam um processo de recuperação da memória histórica da classe camponesa, de organização social e de prática de classe através da associação, três dimensões apontadas por Martín-Baró como indispensáveis à superação do fatalismo. Nesse sentido, os relatos dos camponeses contribuem à compreensão, não só da maneira pela qual o fatalismo vem se constituindo no contexto do campesinato, mas das possibilidades de ruptura que aí se situam, evidenciando que a superação da atitude fatalista só é possível através de uma mudança concreta da realidade em que vivem.

Esperamos, com o presente artigo, poder contribuir com as reflexões acerca do campesinato brasileiro e com a compreensão do fatalismo enquanto importante fenômeno psicossocial aí presente. A nosso ver, tal tarefa nos exige romper com uma psicologia individualizante e psicologizante e atentar para as estruturas sociais que geram a desigualdade, a exploração, a opressão e também o fatalismo que mantêm a população nessas condições, visando o enfrentamento e a luta pela superação dessas estruturas.

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  • 1
    A compreensão do campesinato da qual partimos é a de sua existência enquanto classe social. De modo geral, compreendemos como camponeses aqueles trabalhadores não assalariados que vivem na e da terra e que são historicamente excluídos e oprimidos no contexto da sociedade capitalista, excetuando-se dessa classe, portanto, os grandes proprietários de terra.
  • 2
    Enfatizamos nossa referência a um projeto popular de agroecologia em contraposição à cooptação capitalista desse modo de agricultura por meio da apropriação de aspectos técnicos do manejo agroecológico em favor de interesses mercadológicos.
  • Consentimento de uso de imagen: Não se aplica.
  • Aprovação, ética e consentimento: Não se aplica.
  • Financiamento: Bolsa de mestrado concedida pelo CNPq - número do processo 132452/2016-2.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    25 Jan 2018
  • Revisado
    20 Jun 2019
  • Aceito
    19 Fev 2020
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