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CORPOS, “MENTES”, EMOÇÕES: UMA ANÁLISE SOBRE TDAH E SOCIALIZAÇÃO INFANTIL

CUERPOS, “MENTES”, EMOCIONES: UN ANÁLISIS SOBRE EL TDAH Y LA SOCIALIZACIÓN INFANTIL

BODIES, ‘MINDS’, EMOTIONS: AN ANALYSIS ON ADHD AND CHILD SOCIALIZATION

Resumo

Este artigo problematiza o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), entendendo que sua delimitação clínica e social se orienta por normas de conduta que configuram o processo de socialização infantil. Trata de questões emergentes de dois trabalhos de campo, realizados em um ambulatório de psiquiatria infantil (dissertação de mestrado da autora deste artigo) e em escolas brasileiras (tese de doutorado), nos períodos de 2009-2011 e 2012-2016, respectivamente. Parte-se da questão de gênero suscitada pela prevalência do transtorno para analisar algumas dessas normas de conduta social - sobretudo aquelas relacionadas ao controle da corporalidade e das emoções -, e do estigma sofrido por crianças diagnosticadas para compreender a legitimação de intervenções especializadas bem como a produção de identidades. Almeja-se explorar a conjuntura da sociedade contemporânea, que articula o domínio sobre o corpo, a “mente” e as emoções para conferir sentido às condutas, crenças e desejos coletivos e individuais.

Palavras-chave:
TDAH; Socialização infantil; Estigma; Gênero

Resumen

Este artículo problematiza el Trastorno por Déficit de Atención e Hiperactividad (TDAH), entendiendo que su delimitación clínica y social se guía por normas de conducta que configuran el proceso de socialización del niño. Se ocupa de cuestiones que surgen de dos proyectos de trabajo realizados en una clínica de psiquiatría infantil (tesis de maestría del autor) y en escuelas brasileñas (tesis doctoral), de 2009-2011 y 2012-2016, respectivamente. La cuestión de género que plantea la prevalencia del trastorno se utiliza para analizar algunas normas de conducta social -especialmente el control del cuerpo y las emociones- y el estigma que sufren los niños diagnosticados para comprender la legitimidad de las intervenciones especializadas, así como la producción de identidades. El objetivo es explorar la coyuntura de la sociedad contemporánea, que articula el dominio sobre el cuerpo, la "mente" y las emociones para dar sentido a la conducta, creencias y deseos colectivos e individuales.

Palabras-clave:
TDAH; Socialización infantil; Estigma; Género

Abstract

This article discusses the Attention Deficit Hyperactivity Disorder (ADHD), understanding that its clinical and social delimitation is guided by norms of conduct that configure the process of child socialization. It deals with issues emerging from two fieldwork projects carried out in a children's psychiatry outpatient clinic (the author's master's dissertation) and in Brazilian schools (doctoral thesis). Respectively, the first one was from 2009 to 2011 and the second from 2012 to 2016. The gender issue raised by the prevalence of the disorder is used to analyze some of these norms of social conduct, especially those related to the control of the body and emotions. Moreover, it is used to analyze the stigma suffered by diagnosed children to understand the legitimacy of specialized interventions as well as the production of identities. The aim is to explore the conjuncture of contemporary society, which articulates dominance over the body, the "mind" and the emotions to assign meaning to collective and individual conduct, beliefs and desires.

Keywords:
ADHD; Child Socialization; Stigma; Gender

Introdução

O Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) foi definido na quarta edição do Manual diagnóstico e estatístico dos transtornos mentais (DSM-IV), publicada em 1994 e revisada em 2000 pela Associação Americana de Psiquiatria (APA, 1994American Psychiatry Association - APA. (1994). Diagnostic and statistical manual of mental disorders (DSM-IV). 4th edition. Washington, DC: Author.), como um transtorno mental caracteristicamente infantil, cujos sintomas desenvolvem-se antes dos sete anos de idade. Alterações categoriais são, entretanto, observadas no texto da quinta edição - o DSM-V (APA, 2013American Psychiatry Association - APA. (2013). Diagnostic and statistical manual of mental disorders (DSM-V). 5th edition. Washington, DC: Author.) -, no qual o TDAH foi redefinido como um problema de neurodesenvolvimento associado a fatores prognósticos e de risco (temperamentais, ambientais, genético-fisiológicos, interacionais), cujos sintomas são verificados antes dos doze anos de idade, o que pressupõe um acompanhamento clínico durante a infância e adolescência e a expansão do diagnóstico em direção à vida adulta. Ainda que não existam resultados de pesquisa e testes conclusivos acerca das modificações cerebrais específicas relativas ao TDAH, essa definição categorial orienta a prática clínica psiquiátrica em diferentes países.

No Brasil, a popularidade de tal classificação psiquiátrica cresce progressivamente devido ao aumento do número de casos tanto infanto-juvenis quanto adultos, às notícias divulgadas pela mídia, à difusão de discursos médicos através de diferentes meios e à manifestação de leigos - entendendo o termo como uma referência aos indivíduos que não são profissionais de saúde -, com destaque aos grupos virtuais criados em redes sociais e aos grupos de apoio a portadores, tais como a Associação Brasileira do Déficit de Atenção (ABDA). Chama atenção nesse fenômeno o fato de que sintomas identificados e tratados são comportamentos infantis redefinidos como patológicos, como causadores de sofrimento psicossocial, cuja expressão mais evidenciada relaciona-se a comportamentos masculinos. A quarta edição do DSM-IV estimava que, na década de 1990, de quatro a nove meninos em idade escolar eram identificados como portadores de TDAH, subtipo hiperativo-impulsivo, enquanto apenas uma menina, nas mesmas condições, recebia tal diagnóstico, relativo porém ao subtipo desatento. O DSM-V reafirma a prevalência significativa em meninos - modificando, entretanto, a razão menino/menina para 2:1 - e a tendência de que meninas apresentem sintomas primários de desatenção.

No referido manual, intensidade, persistência e prejuízo são os princípios de distinção entre os sintomas de TDAH e os comportamentos infantis normais. Em conjunto, esses princípios impactariam negativamente na vida pessoal, social, acadêmica e profissional dos indivíduos afetados pelo transtorno. Na prática clínica, o diagnóstico é realizado, principalmente, por psiquiatras e neurologistas, que analisam queixas e relatos de pacientes, pais, professores e outras pessoas próximas ao portador, histórias pessoais, questionários, testes de inteligência, exames laboratoriais e preenchimento de critérios diagnósticos. O diagnóstico assenta-se na hipótese de que as causas do transtorno tenham um substrato genético e neurológico, com falhas em neurotransmissores responsáveis pela atenção individual, concentração e controle emocional e com influência secundária do meio em que o indivíduo vive. Nesse sentido, embora existam mais de uma alternativa terapêutica (tais como as intervenções psicossociais e de modificação comportamental), no Brasil os medicamentos psicotrópicos constituem a principal forma de tratamento do TDAH, sendo o metilfenidato (um psicoestimulante) o mais popularmente conhecido e prescrito.

Além de informações técnicas e terapêuticas sobre o transtorno, o DSM oferece descrições de comportamentos infantis indicativos da existência do TDAH, tais como: distrair-se com estímulos irrelevantes, esquecer-se de tarefas diárias, mover-se inquietante e constantemente na cadeira, correr e falar excessivamente, manifestar impaciência ou envolver-se em acidentes e em atividades potencialmente perigosas, sem que haja consideração quanto às possíveis consequências (APA, 2013, pp. 59-60American Psychiatry Association - APA. (2013). Diagnostic and statistical manual of mental disorders (DSM-V). 5th edition. Washington, DC: Author.). Essas condutas desdobram-se em outras tantas indicações e constituem o perfil das crianças com TDAH.

A descrição pragmática e instrumental do TDAH (e dos demais transtornos mentais encontrados no DSM) provém de um consenso entre clínicos e pesquisadores médicos que, a partir de suas experiências clínicas e acadêmicas, dispõem de dados usados para elaborar categorias diagnósticas, fazer previsões a partir delas e propor maneiras de minimizar o sofrimento humano e potencializar o bem-estar dos indivíduos. Desse consenso surgem categorias descritivas que designam uma condição como clinicamente patológica. No entanto, consideramos que essa relação é mais complexa, pois a própria elaboração da categoria descritiva de um transtorno mental - bem como seu caráter negativo e prejudicial, isto é, patológico - se origina de negociações circunscritas a determinadas condições sociais, históricas, econômicas e políticas. Condições essas que orientam, dentre outros processos, a inserção da criança em uma sociedade.

Com base nessa consideração, o presente artigo tem o objetivo de problematizar a categoria TDAH, entendendo que sua delimitação clínica e social, assim como de seus sintomas (hiperatividade, desatenção e impulsividade), orienta-se por normas de conduta que configuram o processo de inserção social da criança, isto é, a socialização. Parte-se da questão de gênero suscitada pela prevalência do transtorno para analisar algumas dessas normas de conduta social - sobretudo aquelas relacionadas ao controle da corporalidade e das emoções -, bem como do estigma sofrido por crianças diagnosticadas para compreender, por um lado, a legitimação de intervenções especializadas e, por outro, a produção de identidades. Almeja-se, desse modo, explorar a conjuntura da sociedade contemporânea, que articula o domínio sobre o corpo, a “mente” e as emoções para conferir sentido às condutas, crenças e desejos coletivos e individuais. Para tanto, serão apresentados alguns dados e discussões provenientes de dissertação de mestrado e tese de doutorado, produzidas pela autora deste artigo.

Breves explicações metodológicas e conceituais

A discussão orientadora deste artigo advém dos dados coletados em dois momentos de pesquisa de campo. O primeiro diz respeito à investigação, no nível de mestrado, desenvolvida entre 2009 e 2011 pela autora deste artigo. Fundamentada por metodologia qualitativa, essa pesquisa adotou a etnografia como método básico, desdobrando-se em observação participante em um ambulatório universitário de psiquiatria infantil, localizado na cidade de Campinas (SP), em entrevistas semiestruturadas com os informantes pré-selecionados e na produção de desenhos infantis.

Participaram como sujeitos de pesquisa os profissionais de saúde do ambulatório, as crianças diagnosticadas com TDAH, entre seis e doze anos de idade atendidas no local, e seus pais ou representantes legais. O objetivo dessa pesquisa de campo foi compreender as formas pelas quais os diferentes sujeitos compreendiam o TDAH, relacionando-o ou não com as exigências sociais voltadas ao “bom comportamento”. Destaque especial foi dado à participação das crianças, entendidas como atores sociais, e das representações por elas mobilizadas sobre sua condição clínica e social.

Já o segundo momento refere-se à pesquisa, no nível de doutorado, realizada entre 2012 e 2015 pela autora deste artigo. Ela se caracteriza como um prolongamento da investigação anterior em direção às escolas. A pesquisa de campo foi executada em duas escolas públicas, estadual e municipal, uma escola privada e um programa de educação não formal localizados nas cidades de Campinas e Moji Mirim (SP). Contou com técnicas metodológicas de observação participante em salas de aula e em espaços escolares de recreação, de entrevistas semiestruturadas individuais e coletivas com educadores(as), de entrevistas com pais e/ou responsáveis legais (quando possível) e de entrevistas e conversas não formais com crianças (diagnosticadas ou não com TDAH) entre cinco e treze anos de idade.

Compreendendo a escola como uma das principais instituições sociais responsáveis pela inserção social das crianças e de reprodução de normas sociais de conduta, assim como o meio do qual emerge a maior parte das demandas por atendimento especializado e diagnóstico de crianças hiperativas e desatentas, a referida pesquisa de campo privilegiou a descrição dos mecanismos pelos quais o TDAH se constitui socialmente como uma categoria capaz de explicar e orientar condutas individuais e coletivas. Novamente, as crianças tiveram protagonismo enquanto participantes da pesquisa, uma vez que seus discursos e sua interação com pares e com adultos nortearam as observações e entrevistas feitas em campo.

Em ambas, observou-se que a categoria clínica TDAH - que, teoricamente, se pretende universal e a-histórica, já que seus sintomas manifestam disfunções cerebrais supostamente independentes de questões culturais, étnicas e sociais - articula-se intimamente com as expectativas socialmente elaboradas em torno do desempenho social ideal a ser manifestado por crianças em um dado contexto. Portanto, o fio condutor das análises realizadas é o conceito sociológico de socialização.

No pensamento sociológico clássico, a socialização é o processo de inserção social de cada indivíduo, no qual ele aprende as normas que regem sua sociedade e que, por isso, devem orientar sua conduta. A sociologia durkheimiana foi a primeira a propor tal concepção, segundo a qual a adequada inserção infantil garantiria a ordem social. Outros pensadores, como Peter Berger e Thomas Luckmann, aprofundaram o conceito de socialização, tipificando-o como designação de um processo de construção social da realidade, para o qual a família e a escola desempenham papel fundamental, já que se trata de instituições voltadas à infância. Nas últimas décadas, o olhar sociológico sobre a criança tem se modificado, passando a encará-la como um ator social que reproduz normas, mas que também as negocia e, assim, participa criativamente da sociedade e produz aspectos sociais inovadores a partir de relações de pares (Corsaro, 2007Corsaro, W. A. (1997). The sociology of childhood. Newburry Park, CA: Pine Forge Press.). Isso permite ressignificar a socialização como um processo que mescla elementos fixos e dinâmicos das formas de relação social na contemporaneidade.

Essa combinação é claramente observada nas escolas, onde a hiperatividade, a impulsividade e a desatenção tornam-se problemas comportamentais fundamentais, correntemente indicados como suspeita de TDAH. Na escola, a linearidade das salas de aula, a rigidez dos exames e as hierarquias coexistem com propostas pedagógicas de flexibilização das aptidões infantis e de produção da autonomia tanto do professor quanto do aluno. Seu objetivo final é o sucesso escolar e social. Ou, em outras palavras, a efetivação de uma boa socialização. Adaptar-se e encaixar-se são, portanto, pressupostos da conduta dos sujeitos escolares. Envolvem um conjunto de expectativas relativas à execução de tarefas de modo concentrado, eficaz, silencioso e sem erros. Esse conjunto de padrões seguidos em sala de aula, aos quais os alunos têm de ser adaptar independentemente de suas diferenças e dificuldades, ocasiona um processo de exclusão dos “inadaptados”.

Dentre os mecanismos de exclusão, observados em trabalhos de campo, destacam-se três comumente mobilizados no espaço escolar: a segregação física ou simbólica dentro da sala de aula (como o posicionamento do aluno indisciplinado ou com dificuldades em carteiras que marcam, simbolicamente, sua distinção), o potencial ou real atraso escolar (a repetência) e a classificação negativa (o estigma). Neste artigo será dada luz a este último, sobretudo em seu desdobramento relativo à questão de gênero revelada pela prevalência do TDAH. Nessa perspectiva, entende-se que essa categoria diagnóstica, consolidada como a manifestação de disfunções neuronais específicas, impõe-se como um princípio explicativo sobre o problema do controle da corporalidade, das condutas, do desempenho, das emoções e, portanto, da socialização infantil.

Gênero no TDAH: as marcas sociais da corporalidade e das emoções

As diferenças de gênero referentes ao TDAH são geralmente analisadas a partir do ponto de vista biológico, segundo uma perspectiva que busca compreender de que forma funcionam as estruturas cerebrais de meninos e meninas. O pressuposto desse esforço reside no fato de que os sintomas do transtorno, organizados em subtipos hiperativo-impulsivo e desatento, divergem conforme o gênero da criança diagnosticada. Ao passo que a desatenção incide mais em meninas, a hiperatividade e a impulsividade afetam mais os meninos, o que não implica, contudo, a exclusividade dos sintomas para cada gênero. As ciências médicas têm proposto o estudo e a discussão aprofundados do tema para avaliar a real existência de diferenças ou se meninas têm sido ignoradas, haja vista suas manifestações mais discretas. No entanto, uma reflexão sociológica sobre essa distinção aponta as implicações sociais e culturais de tais afirmações.

A expressão “dificuldade em brincar ou ficar em silêncio durante o lazer” é proposta pelo DSM como uma indicação sintomática do TDAH e evidencia que o controle da corporalidade, das emoções e de qualquer tipo de manifestação expressiva é desejado mesmo nas brincadeiras, momentos em que a criança teria espaço para se expressar e se descontrair. Isso se observa em escolas convencionais, onde a brincadeira e a ludicidade perdem espaço para modos engessados de ensino e aprendizagem.

Algo semelhante se dava no espaço do ambulatório psiquiátrico dedicado às crianças que aguardavam atendimento. Tratava-se de um espaço de brincadeiras supervisionado por adultos, a fim de que elas não saíssem do controle, de que não prevalecesse a bagunça e de que as crianças não perturbassem o trabalho dos médicos. Um espaço onde não era permitido gritar, correr ou brigar, ações nas quais se destacavam os meninos, e onde os bons comportamentos eram recompensados por meio de elogios ou presentes. Os recreios escolares também são espaços supervisionados. Embora as crianças observadas durantes os trabalhos de campo aproveitassem esse espaço para extravasar a energia, correndo, gritando e pulando, a constante presença dos adultos visava a evitar brigas, acidentes e o descumprimento das regras institucionais.

Em relação ao TDAH, observou-se que a literatura consultada e os profissionais do ambulatório entendem que as meninas diagnosticadas padecem, mais comumente, do subtipo desatencional, já que o problema mais significativo se encontra na dificuldade de concentração, e menos na hiperatividade ou na impulsividade. Cabe lembrar que, segundo o DSM-IV, a proporção de diagnósticos de TDAH varia entre quatro meninos para uma menina e nove meninos para uma menina, sendo que a cada revisão do manual os critérios diagnósticos tornam-se mais inclusivos, permitindo que mais indivíduos sejam diagnosticados.

Segundo os dados levantados no ambulatório universitário, dos 180 pacientes (124 meninos e 56 meninas) atendidos em dois meses não especificados de 2010, 41 recebiam o diagnóstico, sendo 32 meninos e nove meninas, uma razão de aproximadamente três para um. Já o DSM-V, publicado treze anos depois da edição precedente, relata que o TDAH é verificado em cerca de 5% de crianças em uma população (e em 2,5% de adultos), em uma proporção de dois meninos para uma menina (e em 1,6 homens adultos para uma mulher adulta). Isso significa que os sintomas em meninos continuam a ser mais facilmente identificados do que aqueles apresentados por meninas.

A metanálise realizada por J. Gershon, em 2002Gershon, J. (2002). A meta-analytic review of gender differences in ADHD. Journal of Attention Disorders, 5, 143-154., evidenciou que, até o início dos anos 2000, diversas pesquisas apontavam que os meninos eram mais facilmente diagnosticados em decorrência da clara percepção de seus comportamentos disruptivos (hiperatividade e impulsividade), enquanto as meninas chamavam menos atenção, sobretudo dos professores em sala de aula. Elas apresentam sintomas de hiperatividade e impulsividade com menos intensidade e persistência, ao contrário da manifestação de problemas de aprendizagem e condições internalizantes, como ansiedade e depressão. Em consequência, os autores alertam: essa é uma das explicações possíveis para a distinção de gênero nos diagnósticos de TDAH, mas que, se real, indica que muitas meninas ainda não foram diagnosticadas.

Por outro lado, Hart, Grand e Riley (2006Hart, N., Grand, N., & Riley, K. (2006). Making the grade: the gender gap, ADHD, and the medicalization of boyhood. In D. Rosenfeld & C. A. Faircloth (Eds.), Medicalized masculinities (pp. 132-164). Philadelphia, PA: Temple University Press.) conceitualizaram o TDAH como uma “resistência à socialização”, uma classificação de crianças tidas como incapazes de se tornar atores sociais efetivos, de respeitar regras, de prever as consequências de seus atos e de desenvolver um raciocínio moral. Diante da disparidade de gênero, relativa à identificação de casos de TDAH, os autores entendem que ocorre a medicalização da infância masculina, isto é, a transformação de certos comportamentos infantis em problemas médicos, que passam a ser tratados por profissionais especializados e, geralmente, por meio de medicamentos (Conrad, 2007Conrad, P. (2007). The medicalization of society: on the transformation of human conditions into treatable disorders. Baltimore, MD: The John Hopkins University Press.). Assim, o medicamento pode funcionar como um substituto tecnológico à internalização da moral, da autodisciplina e do controle emocional, a fim de possibilitar às crianças uma adequada integração e interação social.

Essa alegação refere-se a uma intolerância social a certos comportamentos, tais como desobediência, agitação, extravasamento de emoções, desatenção - entre outros “desvios” do que se consideram comportamentos infantis adequados. Muitos desses problemas, tidos como desvios sociais, são reinterpretados como disfunções oriundas de falhas na composição biológica individual, especialmente em meninos inseridos em sociedades que mantêm viva a ideia moral de que o homem deve ser forte, racional e trabalhador, enquanto à mulher é permitida a fraqueza e a emotividade. Nesse sentido, o TDAH possibilitaria a identificação das crianças que não se socializam adequadamente e a Ritalina® viabilizaria uma inserção tida como eficiente, traduzida na aquisição e desenvolvimento de habilidades para altos desempenhos em interações sociais e em atividades acadêmicas e profissionais, marcadas por uma necessidade de destaque individual em esquemas classificatórios e competitivos de autodisciplina e de flexibilidade.

É preciso notar que o TDAH é definido, em sua base, como um distúrbio das funções executivas responsáveis pela autorregulação e autodireção das ações individuais (Barkley, 1981Barkley, R. A. (1981). Hyperactive children: a handbook for diagnosis and treatment. New York, NY: The Guilford Press.). Em outras palavras, atribui-se ao funcionamento cerebral a habilidade do autocontrole corporal, emocional e de conduta, habilidade cujo desenvolvimento deve ser garantido pelo meio em que as crianças se inserem, com destaque para a ação dos adultos, seja ela educativa ou reguladora. Isso implica a produção de expectativas sociais voltadas para o desenvolvimento de habilidades individuais de automotivação, controle dos impulsos e canalização das emoções, entendidas como fundamentais para o sucesso pessoal, acadêmico e profissional do indivíduo.

Esses pressupostos têm implicação direta na questão de gênero. Mesmo com todas as mudanças sociais ocorridas na divisão social do trabalho e nas formas de arranjo familiar, a oposição binária entre homem e mulher, respaldada pela dicotomia virilidade/passividade, se expressa no controle comportamental exercido por meio da categoria clínica TDAH e do uso de medicamentos psicotrópicos, sobretudo quando se trata de condutas masculinas “descontroladas”. Entretanto, a discussão não acaba aí.

As indicações comportamentais referentes ao TDAH trazidas pelo DSM constituem uma lista de descontroles emocionais e corpóreos que, caracterizados como sintomas de um transtorno mental, podem ser identificados e tratados como patologias por meio de terapias específicas. Se os resquícios de um imaginário anterior ainda se fazem presentes, meninos extremamente agitados, impulsivos e até mesmo desatentos não se enquadram na racionalidade, força e notoriedade no trabalho escolar que se espera que “naturalmente” demonstrem. Essas manifestações são, portanto, patológicas e passíveis de tratamento psiquiátrico e medicamentoso, apresentando efeitos controladores tanto no sentido econômico e político de formar indivíduos consumidores, eficientes, produtivos, flexíveis, quanto no sentido moral de modelar o homem para a vida em sociedade. Essas referências podem ser observadas no trecho de entrevista a seguir:

ele [o tio] fala assim que eu tenho que ser mais quieto, que eu não posso ficar fazendo muita bagunça. ... Tem que ser um homem de verdade, não posso trair a minha mulher, não posso... tenho que trabalhar, tenho que ser alguém na vida, tenho que ser uma boa pessoa, boa mesmo e não brigar. (Marcelo, 12 anos; entrevista concedida em 11 fev. 2010)

As orientações do tio guiam o menino, por meio do controle das emoções e da corporalidade, na formação do adulto ideal, um homem de verdade, que trabalha, tem uma família bem estruturada, é honesto e respeitador das regras sociais. Pode-se considerar que há nessas orientações uma ambiguidade entre aquilo que se espera dos meninos e o que os médicos definem como comportamentos masculinos patológicos.

Em seu estudo sobre a construção do masculino, Welzer-Lang (2001Welzer-Lang, D. (2001). A construção do masculino: dominação das mulheres e homofobia. Revista Estudos Feministas, 9(2), 460-482.) afirma que os meninos são educados para se diferenciar das meninas, o que implica a demonstração de comportamentos e características que se opõem à emotividade feminina, tais como força, atividade, racionalidade e, até mesmo, infidelidade. Notamos, entretanto, que no caso dos meninos diagnosticados como portadores de TDAH, são exatamente os comportamentos agitados e agressivos que são identificados como sintomas do transtorno.

Uma interpretação possível para esse paradoxo encontra-se na incapacidade de se controlar: o homem “deve” brigar para ser diferente da mulher, mas brigar impulsivamente, sem controle e sem previsão reporta ao descontrole - uma incapacidade “patológica” de autocontrole em determinados contextos - e, consequentemente, ao descontrole feminino, “naturalmente” caracterizado pela libertação das emoções e da corporalidade, e ao descontrole do louco.

No caso das meninas, consideradas como naturalmente mais delicadas, calmas, caladas, pacíficas (e/ou passivas) e introspectivas, se a hiperatividade ou a impulsividade fossem indicadas como a patologia de seus comportamentos, talvez fosse mais fácil compreendê-los como algo que escapa às expectativas. Contudo, é a desatenção sua característica mais marcante e elas sofrem, igualmente aos meninos, a pressão social por bons comportamentos e desempenhos, causando-lhes sentimentos de inferioridade, vergonha e humilhação. Ao se analisar o fato de que as mulheres vêm ganhando cada vez mais espaço em ambientes onde, anteriormente, predominavam os homens, sobretudo em um mercado de trabalho que exige mais habilidades cognitivas e psicossociais do que físicas, verifica-se a consequente supervalorização de competências intelectuais e de controle comportamental para a obtenção de sucesso e prosperidade. Como consequência, esse sucesso estará mais distante para os indivíduos com dificuldades de aprendizagem e autocontrole.

Já das meninas (e futuras mulheres) se exige uma formação acadêmica e de personalidade marcada pela flexibilidade para que sejam bem-sucedidas profissionalmente e ainda capazes de criar e educar seus filhos. Ainda hoje a mulher é considerada a principal responsável por tal função, embora muitas vezes suas tarefas sejam assumidas ou compartilhadas com companheiros/as, babás, mães, avós, filhas/os mais velhas, professoras/es e cuidadoras de creches. Sendo assim, desde a mais tenra idade, a menina é inserida em um mundo de exigências de bom desempenho acadêmico, habilidades intelectuais e aptidão em interações sociais para que sejam mulheres de negócio e mães dedicadas, enfim, “super-mulheres” responsáveis por tudo e por todos. A menina que não aprende na escola, porque se distrai com os mais insignificantes estímulos, e não participa de diversos círculos afetivos e de interação social é, então, redefinida como um problema, e um problema patológico, uma vez que seus comportamentos sinalam alguns dos sintomas do TDAH.

A menina, com sua introspecção, não incomoda os demais indivíduos a sua volta, ao contrário do menino hiperativo e impulsivo, que perturba e impossibilita o desenvolvimento de atividades em sala de aula e dentro de casa. Entretanto, a possibilidade de agrupar comportamentos aparentemente distintos sob uma mesma denominação categórica deve-se à compreensão do cérebro como uma entidade fundamental à atividade humana, inclusive a social. É sobre esse pressuposto que Russell Barkley (1981Barkley, R. A. (1981). Hyperactive children: a handbook for diagnosis and treatment. New York, NY: The Guilford Press.) definiu o TDAH como um distúrbio das funções executivas responsáveis pela autorregulação e autodireção das ações individuais. Isso significa que a criança acometida por esse transtorno seria incapaz, em razão de disfunções neurofisiológicas, de executar a gestão efetiva de si no que toca à tomada de decisões e à resolução de problemas visando a objetivos presentes e futuros. E, diante de sua generalidade, essa incapacidade de gerir a própria vida associa os sintomas típicos do TDAH a prejuízos na interação social, bem como a perfis de risco relativos a uma gama de problemáticas sociais potenciais, incluindo a manifestação de outras condições clínicas (como a depressão), o fracasso escolar, acidentes automobilísticos, abuso de drogas e criminalidade (Recuperado de http://www.ufrgs.br/prodah/).

Desse modo, a corporalidade e as emoções - elementos fundamentais à categoria TDAH, cuja manifestação condiz com atribuições de gênero relativas à socialização infantil - representam a porta pela qual as intervenções técnico-científicas adentram o mundo social dos indivíduos, em sua amplitude: atuando em uma disfunção cerebral, supostamente responsável por diferentes aspectos da vida individual e coletiva, atinge-se a produção de indivíduos adequados a um determinado projeto de sociedade. Essa intervenção também cria um referencial explicativo que, agregando cérebro, mente, corpo, corporalidade, emoções e condutas, fornece aos indivíduos novos sentidos para a compreensão do mundo social.

Isso significa que, em um contexto histórico em que um modelo cerebral-cognitivo orienta, predominantemente, as ciências e as ações sociais, agir sobre a fisiologia e a mecânica cerebral significa agir sobre a mente (aspectos psicológicos), o corpo (e suas mínimas partes disciplinadas, conforme a terminologia foucaultiana), as emoções e a adequação e ação social (em última instância, a socialização). Essa intervenção se valida em nome do bem-estar da criança e daqueles que a cercam, o que remete a uma intervenção em “algo que não está funcionando bem”, nas palavras de um médico psiquiatra entrevistado durante os trabalhos de campo, assim como contribui para a produção de identidades individuais e coletivas.

Estigma, identidade e intervenção especializada

Eu sou um menino que é desfeito por todos da escola. Adoro jogos eletrônicos, TV, PC e esportes, tipo futebol, basquete, pingue-pongue, tênis e vôlei. Na escola todos falam que eu tomo “Gardenal”, que sou louco, que sou um débil mental, que sou burro, que sou um debilóide. (Redação feita por Marcelo, 12 anos; informação concedida por meio de entrevista realizada em 11 fev. 2010)

Nesse trecho de redação escolar, cujo tema é “quem sou eu?”, a criança revela que sua identidade é formada por gostos próprios, como jogar videogame, futebol e pingue-pongue, mas que, antes de tudo, é desconstruída (desfeita) e reconstruída pelas considerações negativas dos demais indivíduos em relação à sua condição. Aqui se tem uma referência bastante clara ao estigma e seu vínculo direto e profundo com o TDAH e com as ideias de patologia e loucura.

Para Goffman (1963/1988Goffman, E. (1988). Estigma: Notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan. (Original publicado em 1963)), o estigma resulta de uma discordância entre as características reais de um indivíduo e as esperadas pelos demais (virtuais), segundo o grupo a que ele pertence. Trata-se de uma marca simbólica imputada ao indivíduo que não condiz com as expectativas alheias e que permite identificá-lo e, até mesmo, puni-lo. Assumindo que, no caso das crianças com TDAH, o que se definem como sintomas do transtorno são comportamentos considerados como inadequados e incômodos, o estigma apresenta-se em forma de isolamentos, brincadeiras e apelidos pejorativos e agressões físicas e simbólicas. Desse modo, o estigma inferioriza a criança em razão da inadequação de suas condutas às expectativas e exigências sociais por obediência e respeitos aos adultos, bom desempenho escolar, boas amizades, controle das emoções e dos movimentos em determinados locais e situações, entre outras. Antigamente, essa transgressão imputava às crianças outras marcas - tais como “bagunceira”, “desobediente” e “malcriada” - que, com o advento do TDAH, foram reinterpretadas como sintomas de um transtorno mental, genético e, consequentemente, individual. Nesse processo, a criança “bagunceira” passou, popularmente, a ser “louca”, o que evidencia a existência de uma forte relação entre transtorno mental e loucura, desrazão, descontrole, caos e perigo.

Em seus primórdios, a psiquiatria assumiu a loucura e o louco como objetos exclusivos de estudos e tratamento, sendo eles opostos à racionalidade e à ordem social. Foucault (1961/2010Foucault, M. (2010). História da loucura. São Paulo: Perspectiva. (Original publicado em 1961)) mostra que essa separação não é algo natural - embora muitas vezes seja assim considerada -, mas construída historicamente em um processo que retira da loucura sua verdade e razão, silencia-a como algo monstruoso, caótico e perigoso e transforma-a em uma doença da mente. Embora atualmente a psiquiatria tenha abandonado formalmente o termo “loucura”, preferindo as noções de sofrimento psíquico e mal-estar, sua essência naturalizada e sua relação com os transtornos mentais perduram no imaginário coletivo. É isso que permite chamar de louca uma criança que apresenta comportamentos estigmatizados (medicamente definidos como patológicos), que é diagnosticada como portadora de um transtorno mental e que recebe medicamentos controlados (“para a cabeça”). Essa relação orienta, portanto, algumas experiências cotidianas, como afirmou uma participante de pesquisa:

eles [os hiperativos] passam por ser malcriados, sem educação, menino que não fica quieto, sei lá, sabe, passam por preconceitos..., aí quando a pessoa fica sabendo “não, ele tem um problema, ele tá sendo medicado”, “ah, ele é louco!” ..., aí tem medo, começam a ter medo, porque ele vai ter crise, porque ele vai atacar. Tem aquele rótulo, ...aquele desenho do vidro de veneno, aquela caveirinha, “afaste-se”, “perigo”, “veneno”, “alta voltagem”. (Cecília, mãe; entrevista concedida em 11 fev., 2010)

A loucura como estigma causa diferentes reações nos indivíduos ditos normais, variando desde as brincadeiras malfazejas até o medo da crise, da agressão, da irracionalidade e da imprevisibilidade. A criança torna-se marcada por rótulos invisíveis que indicam o perigo, como afirmou a mãe entrevistada, que impactam em sua vida, sobretudo na forma como o sujeito se concebe. Em outras palavras, as crianças com TDAH tornam-se estigmatizadas não só por ação dos demais indivíduos (adultos ou crianças normais), mas também por elas mesmas, uma vez que interiorizam a reconstrução de sua autoimagem inferiorizada e a assumem como verdadeira, o que origina sentimentos de inferioridade, humilhação e vergonha e o desejo de ser ou mostrar-se igual às crianças “normais”. Elas (re)criam, assim, suas identidades.

[ele diz] “eu quero tomar o remédio logo pra mim [sic] ficar mais calmo”. Às vezes ele fala “não sei por que eu sou tão agitado assim, por que eu que sou desse jeito, mãe? Eu queria ser do outro jeito”. ...Então ele queria ser uma criança igual às outras pra não ter que ficar chamando muito a atenção dele. Que ele tinha vergonha de ser do jeito que ele é. Ele tem vergonha porque a gente fica chamando muito a atenção. (Taís, mãe; entrevista concedida em 14 out., 2010)

A condição da criança (ser excessivamente agitada) desencadeia fatos que se tornam mais importantes e incômodos a ela do que a condição em si. O fato de ser repreendido pela mãe desperta a atenção e o interesse dos outros, que sabem, por experiência, que alguma transgressão foi cometida. O sentimento de vergonha, então, expressa outro de inferioridade. Analisando o trecho de entrevista anterior e tendo em vista essas discussões, dois pontos saltam à vista, a saber: a classificação de comportamentos como “certos” e “errados” e o uso do medicamento enquanto forma de, supostamente, suplantar as diferenças desvantajosas de um indivíduo. A descrição de alguns comportamentos como indicações sintomáticas do TDAH não tem a finalidade de imputar uma natureza exclusivamente patológica a tais manifestações. Isto é, nem todos que apresentam tais comportamentos têm problemas psiquiátricos. Porém, como a noção de transtorno mental tem uma carga simbólica negativa na sociedade, ocorre uma correlação entre uma categoria patológica - em oposição aos comportamentos normais - e uma classificação anterior, social, que distingue os comportamentos socialmente aceitáveis dos repudiados.

Há uma ideia mais ou menos geral na sociedade contemporânea de que a criança deve brincar, mas também estudar, demonstrar bons desempenhos em seu aprendizado e obedecer às regras sociais e às ordens dos adultos, principalmente quando se referem a condutas adequadas para determinados lugares e situações. Assim, as crianças que não condizem com essas expectativas são consideradas desviantes e problemáticas, e seus pais, os principais responsáveis pelo desvio. No entanto, a partir do momento em que esses desvios tornam-se transtornos psiquiátricos patológicos, passam a ser vistos como problemas individuais causados por uma suposta disfuncionalidade cerebral-cognitiva e corporal da criança, eximindo os adultos de responsabilidade, afastando qualquer fenômeno social, cultural, histórico, político e econômico de sua raiz e permitindo que a solução seja encontrada na estabilização neuroquímica.

A inserção do pesquisador em escolas permite-lhe observar que essa lógica classificatória não se restringe às crianças diagnosticadas, identificadas nos espaços escolares como “alunos com laudo médico”, contudo se aplica também a outras crianças ditas problemáticas. O que as distingue, fundamentalmente, é, no primeiro caso, a esperança de pais e professores de que o laudo médico possibilite uma intervenção especializada (médicos, psicólogos, assistentes sociais etc.) que solucione o problema vivido por esses indivíduos e pela criança. Ademais, o laudo médico assegura à criança o direito à inclusão e fundamenta, nesse sentido, projetos de lei direcionados a tais direitos. No segundo caso, a ausência do laudo - ou ainda quando não se observam os efeitos do tratamento oferecido à criança diagnosticada - mobiliza estratégias de exclusão física e simbólica do aluno perturbador no interior da sala de aula.

E esse modo de compreender o comportamento individual torna-se tão arraigado na realidade cotidiana conflituosa de pais e professores a ponto de se solidificar como uma referência de sentido à vida social coletiva desses sujeitos. Aqui é preciso abrir parênteses para esclarecer o que se define como “realidade cotidiana conflituosa entre pais e professores” e sua relação com os diagnósticos psiquiátricos infantis referentes a comportamentos e desempenhos sociais, acadêmicos e cognitivos. Para tanto, faz-se uso da seguinte reflexão elaborada por uma professora entrevistada em trabalho de campo:

Eu acho que o que está acontecendo em todos os lugares é a transferência de responsabilidades. O pai que tinha que ensinar o filho como se portar, educar, ensinar caráter, moral, ninguém ensina isso mais. Aí a escola não está dando conta, ah, vai para o psiquiatra. Dá o remédio e não resolve tudo. ... Aí o pai não consegue controlar e dá para outro controlar. Então fica perdido. A meu ver, as crianças estão completamente perdidas... Então fica essa lacuna, de transferência de responsabilidade, ninguém está querendo... E vai pagando, enquanto dá para pagar, paga médico, fono, psico... Eu tenho um aluno que tinha até tutora, tinha psicopedagogo, tinha a fono, tinha tudo. (Jéssica, professora da rede privada de ensino; entrevista concedida em 10 set., 2013)

Esse excerto nos introduz à importante ideia de lacuna, um “vazio” de diálogo, de relações de confiança e de referências de sentido para a vida pessoal e social de crianças, pais e professores. É recorrente na fala dos professores entrevistados em pesquisa de doutorado a referência a um sentimento generalizado de abandono, por parte tanto do Estado quanto da família, e de responsabilização do profissional escolar não somente pela transmissão de certos saberes e conteúdos, mas também pela higiene e pela transmissão de valores morais às crianças. Essas são as brechas pelas quais a intervenção especializada adentra o espaço escolar e familiar: sem saber como lidar com as crianças “problemáticas” e sentindo-se abandonados, sobrecarregados e impotentes, os professores de escolas públicas e privadas demandam o auxílio de especialistas para explicar e propor soluções para os problemas de todos os sujeitos envolvidos, sendo eles portadores ou não de um laudo médico que ateste a existência de um transtorno mental.

Nota-se, assim, que o estigma - entendido como uma discrepância entre uma expectativa social acerca de um comportamento e o comportamento real - impacta na criança, o objeto primeiro das relações mencionadas, mas também em pais e professores que, sentindo-se inferiores, abandonados e incapazes de cumprir o papel que lhes é socialmente atribuído, recorrem ao auxílio especializado de psicólogos, psiquiatras, neurologistas, assistentes sociais, entre outros. Esses especialistas, por sua vez, atuam com a finalidade de reduzir o estigma individual, provendo aqueles sob sua tutela de explicações e instrumentos direcionados à redução dos danos simbólicos negativos da estigmatização (como a inclusão de crianças portadoras de transtornos mentais ou a conscientização pública dos transtornos ocasionados em professores devido à sobrecarga de sua função) e à promoção da saúde fundamentada na ideia de bem-estar.

O que se vê como consequências desse fenômeno são a demanda social por intervenção médica em diferentes âmbitos da vida social e a produção de novas referências de sentido para os dilemas cotidianos individuais, incluindo aqueles relativos aos “maus” comportamentos e desempenhos escolares de crianças. Nesse caso, o laudo médico é um documento fundamental para que a escola e a família tenham um embasamento legítimo para afirmar que possuem uma criança “em dificuldades de aprendizagem” e para demandar oficialmente o atendimento de especialistas. Estes, por sua vez, atuam no nível psicossocial e corporal a fim de aplicar mecanismos de contenção comportamental sob a justificativa de busca de bem-estar e de adequação da criança ao seu meio.

Um complexo emaranhado de relações então se forma. O TDAH possibilita a elaboração de listas de indicações comportamentais sintomáticas e de critérios diagnósticos que, associados às expectativas sociais relativas a comportamentos tidos como adequados, permitem a oposição entre patologia e normalidade. Divulgam-se, portanto, terapias para a recuperação das crianças afetadas. Assim, a criança passa a ser submetida a identificações (critérios diagnósticos, relatórios, testes de inteligência), classificações (normal/patológico), marcações e punições (estigma, sentimentos de vergonha, medo e humilhação) e correção ou recuperação (tratamentos), servindo como formas de (auto)controle relativas às exigências e expectativas sociais sobre o “bom menino” e a “boa menina” - padrões de comportamento e desempenho social, histórica e culturalmente construídos. Essas formas também contribuem para a (re)construção de suas identidades.

Ao mesmo tempo, insere nessa relação o desempenho cognitivo individual, o que garante ao cérebro e ao medicamento (psicoestimulantes, ansiolíticos, antidepressivos, entre outros usados para atuar em neurotransmissores ligados a comportamentos e a sentimentos) a importante função social de dar sentido aos dilemas e estigmas causados pelos “maus comportamentos” individuais. A Ritalina®, por exemplo, é prescrita por psiquiatras e neurologistas sob a justificativa de amenizar o sofrimento da criança diagnosticada como portadora de TDAH, assim como é solicitada pelos leigos, sobretudo pais e professores, devido à busca pelo bem-estar e pela solução do problema e à preocupação com o futuro da criança, conforme os dados obtidos durante os trabalhos de campo. Desse modo, ela desempenha duas funções primordiais: controlar comportamentos incômodos e inadequados a fim de que a criança se socialize de modo considerado adequado; e auxiliar na atenção dispensada por pais e professores às crianças que demandam cuidados “especiais”.

A realocação do TDAH na recém-criada seção de transtornos do neurodesenvolvimento é bastante significativa, nesse sentido, e remete-nos ao que Nikolas Rose chamou de “política vital”: “nossas crescentes capacidades de controlar, manejar, projetar, construir, remodelar e modular toda uma variedade de capacidades vitais dos seres humanos enquanto criaturas viventes” (Rose, 2007, p. 3Rose, N. (2007). The politics of life itself: biomedicine, power, and subjectivity in the twenty-first century. Princeton, NJ: Princeton University Press.), capacidades essas relacionadas a processos caracterizados pela utilização de tecnologias de triagem e de visualização computadorizada dos níveis moleculares (bioquímicos e genéticos) do corpo humano, pelas padronizações e pelos lucros, pela produção contínua de instrumentos, saberes e ideias acerca do que deve ser o estado ótimo da vida individual e coletiva dos seres humanos, do que eles devem ser, pensar e esperar e das formas pelas quais a conduta humana - incluindo os sentimentos, as crenças e os valores morais - deve ser governada.

Esse governo da conduta humana é demandado pelos indivíduos, sobretudo em contextos de “vazio” de diálogo, de responsabilidade e de referências sociais de sentido para a vida cotidiana, como já foi mencionado neste texto. As crianças também vivem em um “vazio”. Inseridas em um conflito entre escola e família motivada pela culpabilização e responsabilização do outro em torno da educação infantil, em um sistema de ensino descompassado com contextos sociais particulares onde aquelas crianças se inserem e com as exigências de desempenho e comportamento e em um movimento histórico de reformulação da família, da escola e da infância, as crianças adentram os consultórios e os ambulatórios (neuro)psiquiátricos e têm seus comportamentos reativos e defensivos, seus desejos, seus sentimentos, enfim, sua vida ressignificada como uma disfunção neuroquímica.

Considerações finais

Neste artigo, buscou-se problematizar a categoria TDAH, entendendo que sua delimitação clínica e social, assim como de seus sintomas (hiperatividade, desatenção e impulsividade), orienta-se por normas de conduta que configuram o processo de inserção social da criança, isto é, a socialização. A questão de gênero suscitada pela prevalência do transtorno foi privilegiada para analisar algumas dessas normas de conduta social, sobretudo aquelas relacionadas ao controle da corporalidade e das emoções. O estigma sofrido por crianças diagnosticadas foi abordado, por sua vez, para compreender, por um lado, a legitimação de intervenções especializadas e, por outro, a produção de identidades.

Essa perspectiva permitiu analisar o TDAH como um modo de explorar a conjuntura da sociedade contemporânea, que articula o domínio sobre o corpo, a “mente” e as emoções para conferir sentido às condutas, crenças e desejos coletivos e individuais. A questão do bom desempenho individual em termos de desenvolvimento cognitivo e controle emocional, fundamental à sociedade contemporânea que, desde a década de 1990, vive a chamada “era do cérebro” e das descobertas científicas acerca da composição, da herança e das predisposições moleculares do corpo humano, dá o tom da descrição diagnóstica do TDAH, que ganha cada vez mais a cena midiática, familiar e escolar, juntamente à Ritalina® e a outros medicamentos e classificações psiquiátricas. Dá o tom também dos discursos acerca das expectativas sociais em relação aos comportamentos infantis. Nesse sentido, campos do conhecimento técnico-científico, como as neurociências, assumem a responsabilidade por uma relação estabelecida, na contemporaneidade, entre cérebro, mente e sociedade (Ehrenberg, 2004Ehrenberg, A. (2004). Le sujet cérébral. Esprit, 309, 130-155).

Todavia, as questões de gênero e de estigma, evidenciadas pelo fenômeno estudado, permitem-nos perceber que existem padrões de comportamento infantil definidos histórica e socialmente como adequados, em uma relação dual entre “certo” e “errado” que, quando passa pelo campo médico especializado, se transforma em uma dicotomia entre normal e patológico. Não se trata aqui de dizer que as considerações psiquiátricas acerca do TDAH são inverídicas, mas sim de analisar a rede complexa de relações sociais entre sujeitos, instituições, saberes, discursos, interesses e sentimentos e de propor novas formas de olhar para tal complexidade sem se esquecer do fato de que as crianças - diagnosticadas ou não - não são meros objetos de apreço, cuidado ou responsabilidade dos adultos. Desse modo, abre-se a possibilidade de ampliar os olhares acerca dos processos de criação de novos sentidos para a compreensão do mundo social, que hoje se manifestam por meio do TDAH pela articulação entre cérebro, mente, corpo, corporalidade, emoções, condutas e identidades.

Referências

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  • Consentimento de uso de imagem: Não se aplica
  • Aprovação, ética e consentimento: Não se aplica
  • Financiamento: Bolsa de Demanda Social - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES): bolsas de mestrado e doutorado recebidas e distribuídas pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas; Bolsa de Mestrado no País - Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP); Bolsa de Doutorado no País - Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Ago 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    05 Dez 2016
  • Revisado
    11 Mar 2020
  • Aceito
    22 Abr 2020
Associação Brasileira de Psicologia Social Programa de Pós-graduação em Psicologia, Universidade Federal de Pernambuco, Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH), Av. da Arquitetura S/N - 7º Andar - Cidade Universitária, Recife - PE - CEP: 50740-550 - Belo Horizonte - MG - Brazil
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