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SEMEADURAS: UMA CARTOGRAFIA NA ATENÇÃO PRIMÁRIA EM SAÚDE

SEMBRANDO: UNA CARTOGRAFÍA EN LA ATENCIÓN PRIMARIA EN SALUD

SOWING: A CARTOGRAPHY IN PRIMARY HEALTH CARE

Resumo

Os fitoterápicos podem atuar como dispositivo terapêutico micropolítico para o campo da saúde mental. Este relato de experiência apresenta o percurso de uma horta comunitária em uma Unidade de Saúde da Família (USF) no sul da Bahia, com objetivo de resgatar os saberes locais para produzir um campo de visibilidade. Trabalhou-se com o referencial teórico-metodológico da cartografia para analisar os efeitos do dispositivo horta na saúde dos participantes e na construção do vínculo dos trabalhadores de saúde com usuários do serviço. Participaram do grupo em torno de dez pessoas, majoritariamente mulheres negras, pobres, idosas e moradoras do local. Considera-se que a horta constituiu um dispositivo potente para o encontro de usuárias da USF, acompanhamento terapêutico, construção de vínculos, cultivo de plantas medicinais, redução no consumo de medicações alopáticas e mesmo para a produção de legumes e frutas para alimentação das participantes.

Palavras-chave:
Fitoterápicos; Saúde Mental; Atenção Primária à Saúde

Resumen

Los fitoterápicos pueden actuar como dispositivo terapéutico micropolítico para el campo de la salud mental. Este relato de experiencia presenta el recorrido de una huerta comunitaria en un servicio de atención primaria en el sur de Bahía, con el objetivo de rescatar los saberes locales para producir un campo de visibilidad. Se trabajó con el referencial teórico-metodológico de la cartografía para analizar los efectos del dispositivo huerta en la salud de los participantes y en la construcción del vínculo de los trabajadores con los usuarios del servicio. Participaron del grupo cerca de diez personas, mayoritariamente mujeres negras, pobres, ancianas y moradoras del lugar. Se considera que la huerta constituyó un dispositivo potente para el encuentro de usuarias del servicio de salud, acompañamiento terapéutico, construcción de vínculos, cultivo de plantas medicinales, reducción en el consumo de medicamentos alopáticos, e incluso para la producción de legumbres y frutas para alimentación de las participantes.

Palabras clave:
Fitoterápicos; Salud mental; Atención Primaria a la Salud

Abstract

Herbal remedies may act as a micropolitical therapeutic device to the mental health field. This experience report shows the course of a community garden in a Family Health Unit (USF) in the south of Bahia, aiming to rescue the local knowledge in order to produce a visibility field. The cartography was used as theoretic-methodological to analyze the effects of the vegetable garden device on the participants’ health and on the construction of a bond between workers and the service users. About 10 people participated, mostly black, poor and elder women that were local residents. The vegetable garden turned into a potent device for the meetings of primary health care users, for therapeutic follow-up, for building bonds, cultivating medicinal plants, reducing consumption of allopathic medication and even for the production of vegetables and fruits to feed the participants.

Keywords:
Herbal remedies; Mental health; Primary Health Care

Introdução

As hortas para a produção de fitoterápicos, enquanto Práticas Integrativas e Complementares (PIC) (Ministério da Saúde, 2012Ministério da Saúde. (2012). Práticas integrativas e complementares: plantas medicinais e fitoterapia na Atenção Básica. Caderno de Atenção Básica, 31. Recuperado de http://189.28.128.100/dab/docs/publicacoes/geral/miolo_CAP_31.pdf
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) proporcionam transformações nos processos terapêuticos e ético-políticos referentes a pessoas em sofrimento mental grave. Além disso, propiciam a corresponsabilização por iniciativas terapêuticas coerentes com as situações existenciais das pessoas (Tesser & Souza, 2012Tesser, C. D. & Souza, I. M. C. (2012). Atenção Primária, Atenção Psicossocial, Práticas Integrativas e Complementares e suas Afinidades Eletivas. Saúde & Sociedade, 21(2), 336-350.). O uso de fitoterápicos foca a centralidade da pessoa em seus contextos sociais, a partir de uma visão ampliada de saúde, do estímulo ao cuidado de si e da participação ativa da comunidade. Ademais, as hortas geram melhorias e complementação na qualidade alimentar e na troca de saberes sobre os usos fitoterápicos, alimentícios e ornamentais das plantas da região, contribuindo para o fortalecimento da segurança alimentar e nutricional e para a valorização da agricultura urbana.

A Organização Mundial de Saúde (WHO) estima que o uso popular de plantas com fins terapêuticos pela população mundial é de 70% a 90% (WHO, 2011World Health Organization - WHO. (2011). The world medicines situation 2011: traditional medicines: global situation, issues and challenges. Geneva: Author. Recuperado de http://hsrii.org/wp-content/uploads/2014/07/WMS_ch6_wPricing_v6.pdf
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) e, no Brasil, 82% da população utiliza conhecimentos indígenas, quilombolas e científicos para administrar fitoterápicos no cotidiano. Esse conhecimento transgeracional incentiva o desenvolvimento comunitário, a solidariedade e a participação social na saúde.

O uso de fitoterápicos contribui para revitalizar o conhecimento tradicional das comunidades sobre as plantas medicinais, intensificando vínculos de corresponsabilização e valorizando saberes ancestrais e territoriais. Na Atenção Primária em Saúde (APS), o trabalho com fitoterapia pode ser realizado a partir do levantamento das plantas disponíveis e utilizadas na região, educação em saúde, criação de hortos didáticos ou hortas comunitárias, instituição da farmácia viva e prescrição de medicamentos pelos profissionais de saúde. Mesmo assim, ainda é pequeno o rol de fitoterápicos disponíveis para prescrição na Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME) disponibilizada pelo SUS, quando comparado ao cabedal de uso popular das plantas com propriedades medicinais, e ainda são pontuais as experiências de equipes que instituíram esses dispositivos na prática da APS (Ministério da Saúde, 2012Ministério da Saúde. (2012). Práticas integrativas e complementares: plantas medicinais e fitoterapia na Atenção Básica. Caderno de Atenção Básica, 31. Recuperado de http://189.28.128.100/dab/docs/publicacoes/geral/miolo_CAP_31.pdf
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).

Para elaborar um projeto terapêutico singular com fitoterápicos é necessário não superestimar seus efeitos terapêuticos e nem subestimar sua toxicidade, reações adversas e interações medicamentosas, ainda que, em geral, sejam relativamente menores do que na farmacologia alopática (Ministério da Saúde, 2012Ministério da Saúde. (2012). Práticas integrativas e complementares: plantas medicinais e fitoterapia na Atenção Básica. Caderno de Atenção Básica, 31. Recuperado de http://189.28.128.100/dab/docs/publicacoes/geral/miolo_CAP_31.pdf
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). Compartilhar as responsabilidades de qualquer terapêutica com a pessoa ou família como gestores legítimos do seu cuidado é compromisso dos profissionais de saúde. Nessa perspectiva, a fitoterapia compõe as tecnologias do agir em saúde, não apenas como arsenal químico, mas como possibilidade de ampliação da clínica pensada tal qual produto de um coletivo desejante (Sundfeld, 2010Sundfeld, A. C. (2010). Clínica ampliada na atenção básica e processos de subjetivação: relato de uma experiência. Physis Revista de Saúde Coletiva, 20(4), 1079-1097.), aliada às práticas físicas, acompanhamento nutricional e psicológico, que atenda a população considerando suas vulnerabilidades e potências.

Um grupo de horta na Atenção Primária à Saúde é também uma aposta nas PIC de caráter micropolítico e antimanicomial. Pois, o campo da saúde mental, histórica, política e eticamente, ressurge das experiências de desmonte dos manicômios pautados na exclusão, para a reconstrução de outras maneiras de tratar o sofrimento existencial e psíquico (Tesser & Souza, 2012Tesser, C. D. & Souza, I. M. C. (2012). Atenção Primária, Atenção Psicossocial, Práticas Integrativas e Complementares e suas Afinidades Eletivas. Saúde & Sociedade, 21(2), 336-350.). Assim, convergem experiências na APS, saúde mental e PIC, que buscam um modelo de saúde que ressignifique as experiências de viver.

A ampliação da clínica reside em identificar potência na fragilidade, objetivando a integralidade do cuidado. Nessa perspectiva, a saúde mental, desinstitucionalizada, se faz no cotidiano dos territórios simbólicos. O vínculo entre equipe e comunidade é a base para a ordenação e efetivação do cuidado no trabalho vivo em saúde na APS. Ademais, o trabalho vivo pode gerar brechas e linhas de fuga para um saber-saúde plural pautado em planos terapêuticos cuidadores e singulares. Considerando o modelo sistêmico produtor de solidões, o vínculo e a escuta sensível seriam ferramentas imprescindíveis para a APS, uma aposta nos desejos e na intensificação da vida.

A ressignificação das cidades, das suas sobras, de seus desperdícios e de sua dinâmica faz parte da produção de saúde. Para Santos e Rigotto (2010Santos, A. & Rigotto, R. (2010). Território e territorialização: incorporando as relações produção, trabalho, ambiente e saúde na atenção básica à saúde. Trab. educ. saúde, 8 (3), 387-406.), as questões de saúde ambiental são cotidianas e exercem influência no processo de adoecimento e de morte, cabendo ao sistema público de saúde contemplar essas dimensões, sobretudo em nível primário de assistência. Na APS, os serviços de saúde têm a incumbência de fomentar ações preventivas e participativas em nível local, reconhecendo o direito dos seres humanos de viver em um ambiente saudável e de serem informados sobre os riscos para sua saúde, bem como de suas responsabilidades e deveres em relação à proteção, conservação e recuperação do ambiente e da saúde.

Este texto relata uma experiência em saúde mental ancorada no dispositivo horta, em uma residência multiprofissional em Saúde da Família de um município do sul da Bahia e buscou instituir uma ação que propiciasse deslocamentos para formas de resistência e cuidado e multiplicasse caminhos para novos modos de existir dos sujeitos, em sua relação consigo e com o outro. O trabalho teve como objetivo resgatar os saberes locais e estimular a autonomia da comunidade em relação ao cuidado com a saúde.

Percurso metodológico

Este estudo utiliza a cartografia como perspectiva teórico-metodológica ancorada na possibilidade da implicação com a experiência enquanto transvaloração. Marca-se aqui a perspectiva epistemológica circunscrita ao campo de discussão esquizoanalítico. Nesse sentido, Deleuze e Guattari apontam que, por incidir sobre a “Análise do desejo, a esquizoanálise é imediatamente prática, imediatamente política, quer se trate de um indivíduo, de um grupo ou de uma sociedade” (Deleuze & Guattari, 2015, p. 85Deleuze, G. & Guattari, F. (2015). Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia v. 2. São Paulo: Editora 34 .). Este processo analítico abarca na produção do conhecimento tanto as transformações das pessoas envolvidas quanto as da pesquisadora cartógrafa (Passos, Kastrup, & Escóssia, 2014Passos, E., Kastrup, V., & Escóssia, L. (2015). Pistas do Método da Cartografia: Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina.). A cartografia é um método de pesquisa intervenção em que os participantes mergulham em uma experiência de processo em movimento e no qual a teoria e a prática compartilham um mesmo plano de coemergência, de modo que nesse percurso metodológico se produzam acontecimentos.

Para Rolnik (1989Rolnik, S. (1989). Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. São Paulo: Estação Liberdade.), a prática de um cartógrafo diz respeito, fundamentalmente, às estratégias de gênese do desejo no campo social, enquanto processos de subjetivação e singularização em seu devir-sensível. A cartografia exige sensibilidade em traçar modos de singularização, enquanto desejo em construir um mundo que se recusa aos modos de codificação preestabelecidos, buscando outros modos de se relacionar e de criar singulares.

Compreender o território simbólico que permeia os sujeitos e lhes permite linhas de fuga é essencial para produzir cuidado nos caminhos do imperceptível, nos limites do (im)pensável, uma vez que uma pessoa não se desterritorializa sozinha (Deleuze & Guattari, 2015Deleuze, G. & Guattari, F. (2015). Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia v. 2. São Paulo: Editora 34 .). Esse tipo de intervenção advém da perspectiva de construir analisadores que marcam situações, acontecimentos e vivências. Dessa maneira, a cartografia assume caráter interpretativo, pela concepção de dispositivos, modos de subjetivação e produção de diferença a partir dos deslocamentos afetivos que proporciona.

Os residentes, os trabalhadores de saúde, as pessoas usuárias da Unidade de Saúde da Família (USF) e da comunidade foram os participantes desta cartografia pautada no dispositivo horta. No momento zero, o terreno em volta à USF encontrava-se sem nenhuma vegetação ou planta ornamental, apenas coberto por areia e cascalho e servindo como depósito de materiais descartados. O trabalho incluiu a limpeza do local, a busca de recipientes e de terra fértil e, por fim, a semeadura de mudas e sementes, além do cuidado com as plantas que envolveu todo o processo.

Os encontros na horta para o plantio e conversas foram considerados como dispositivos-analisadores transversais capturados no método da cartografia em suas intermitências de linguagem, ação e memória. As múltiplas interpretações perspectivam o relato de experiência enquanto acontecimento e também se convertem em possibilidades de análise para a composição de uma antologia existencial em um encontro de conexões, apoios, bloqueios, jogos e estratégia configurando um poliedro de inteligibilidade (Fonseca et al., 2006Fonseca, T. M. G., Kirst, P. G., Oliveira, A. M., D’Avila, M. F., & Marsillac, A. L. M. (2006). Pesquisa e acontecimento: o toque no impensado. Psicologia em Estudo, Maringá, 11(3), 655-660.).

Na cartografia de imaginários, proximidade e velocidade, características do território simbólico, podem ser sinais de resistência ao revelar a possibilidade de uma globalização horizontalizada e cooperativa em uma paisagem subjetiva. No entanto, é necessário conceber a fluidez do território subjetivo em constante movimento de territorialização-desterritorialização-reterritorialização (Haesbaert, 2004Haesbaert, R. (2004). O Mito da Desterritorialização: do “fim dos territórios” à multiterritorialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.) para aplicar no campo da Saúde Mental, desvelando múltiplas intencionalidades, desejos e projetos. Porém, é também esse território que produz riscos e estrutura vulnerabilidades que afetam os corpos, convocando à criação de espaços de troca, resistência e autonomia na superação do sofrimento (Gondim, 2011Gondim, G. (2011). Territórios na Atenção Básica: múltiplos, singulares ou inexistentes? Tese de Doutorado, Programa de Pós-graduação em Saúde Pública, Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, RJ.).

As observações relatadas neste trabalho foram extraídas do diário cartográfico e incluíram-se na elaboração da cartografia, algumas pistas acerca dos processos de subjetivação deflagrados pelas dobras da subjetividade propostas por Deleuze (1988Deleuze, G. (1988). Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Graal.) e Silva (2005Silva, R. N. (2005). A invenção da psicologia social. Petrópolis, RJ: Vozes.), entendidas como inflexões que constituem relações consigo. A primeira dobra refere-se ao material, ao corpo; a segunda dobra refere-se à regra singular na relação consigo; a terceira, a relação com o saber e a verdade; por fim, a quarta, às expectativas do ser com o exterior, aquilo que está fora.

Resultados e discussão

Participantes: fluxos em devir

A horta produzida e descrita neste relato de experiência foi um dispositivo grupal e dela participaram, mesmo que de maneira intermitente, em torno de dez usuárias e usuários da USF em encontros semanais no período 2017-18. O grupo inicial de aproximadamente 10 pessoas foi se transformando em dispositivo de acompanhamento terapêutico (AT). Percebeu-se que as pessoas mais participativas referiam sofrimento mental, relacionado a algum agravo, diagnóstico prévio ou a situações de perda familiar, econômica ou social. No trajeto grupal e concomitante à semeadura e crescimento das plantas na horta, essas pessoas foram desenvolvendo maior autonomia e, paradoxalmente, maior vínculo com a USF e com a equipe de trabalhadores, horizontalizando a comunicação, buscando a instituição com maior frequência e transformando as queixas sintomáticas em cuidado com o espaço e consigo mesmas. Dessa maneira, ocorreu uma transição de dispositivo grupal operando no ano de 2017, para dispositivo de AT, em 2018, ainda que o espaço tenha se mantido aberto.

As participantes viviam na comunidade, a maioria constituída por mulheres idosas negras e pobres, algumas recebendo algum benefício, outras vivendo com auxílio da família. As mulheres possuíam história de busca frequente de consultas, embora com baixa resolutividade em termos de diminuição de sintomas. No grupo, participaram dois homens e, paulatinamente o espaço foi sendo ocupado por crianças que foram se aproximando da horta, inicialmente apenas olhando e mais tarde se oferecendo para cuidar ou regar as plantas, separar sementes, cuidar das mudas, demonstrando ludicidade.

Durante as atividades desenvolvidas na horta, as participantes mostravam-se à vontade para conversar, expor o que pensavam, questionar a normalidade, a medicalização, o saber-saúde macropolítico e a própria concepção institucional de loucura. Assim, o termo loucura foi sendo dissolvido e ampliado micropoliticamente, tornando-se polifônico na medida em que se aglutinaram as tantas concepções empregadas pelas participantes. Loucura aqui compreendida através do reconhecimento de desvio do mundo ou estranhamento do normal, que se produz indissociavelmente enquanto linha de fuga e de transgressão. Loucura aqui compreendida como devires múltiplos, fluxos.

O método cartográfico permitiu a abertura para explorar essas implicações, resistências, produção de diferença que apareceram enquanto narrativas, mas também enquanto produção de diferença e criação a partir das envolvidas no protagonismo de criar uma horta. O processo reverberou se manifestando em risos, brincadeiras e autonomia, inclusive para diminuir as prescrições institucionais de medicação alopática.

Cartografia, um devir-sensível

O método cartográfico reencontra a USF em seu território, lançando mão dos recursos locais para produção de uma horta terapêutica, orgânica e comunitária com apoio da equipe multiprofissional, que concatenou sentidos ao território polifônico e plural dos sujeitos implicados, ampliando sua concepção de saúde. O vínculo com as participantes foi se intensificando e se constituiu um laboratório vivo de alimentos. Além disso, a ampliação da clínica acompanhou a transformação no ambiente, e foram surgindo outros questionamentos e diálogos sobre as propriedades das plantas, sobre os modos e ciclos de plantio e semeaduras, propiciando que, inúmeras vezes, ao finalizar um atendimento psicológico, as pessoas levassem consigo ervas ou alimentos, corresponsabilizando-se pelo tratamento e mostrando autonomia no processo de saúde-doença-cuidado.

Durante o itinerário cartográfico, houve a transformação do dispositivo grupal em acompanhamento terapêutico (AT), abrindo-se para centrar o cuidado em cada integrante respeitando os tempos singulares. O impacto do dispositivo horta na APS foi reconhecido pela equipe da USF e pela comunidade, produzindo saúde e deslocando conceitos hegemônicos arraigados. Os processos de subjetivação alavancados por esse dispositivo se expressam nas transformações dos participantes no cuidado de si e do outro. A confecção de uma espiral de ervas medicinais da região, idealizada por uma das usuárias, deslocou saberes-saúde da farmácia à terra. Esse processo fez com que as participantes quisessem estudar as propriedades medicinais das ervas (re)conhecidas.

Ainda na perspectiva cartográfica, narra-se a seguir os excertos de algumas conversas e ações que atravessaram os encontros e que constituíram acontecimentos, com intuito de repensar as práticas de saúde mental no território e refletir sobre os processos de subjetivação deflagrados pelas dobras da subjetividade propostas por Deleuze (1986Deleuze, G. (1988). Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Graal.) e Silva (2005Silva, R. N. (2005). A invenção da psicologia social. Petrópolis, RJ: Vozes.). A primeira dobra refere-se ao material, ao corpo; a segunda dobra refere-se à regra singular na relação consigo; a terceira, à relação com o saber e a verdade; por fim, a quarta, às expectativas do ser com o fora.

A primeira dobra: O corpo em analgesia

“ - Na lua cheia, haja diazepan.” (Trecho do diário cartográfico)

A absurda materialidade de uma vivência áspera leva ao delírio do sonho e à busca da analgesia pela medicação. E o sonho é quase real, ou mais real do que poderia atingir qualquer narrativa. O cuidado é possível nas relações, expresso em linhas de fuga ou em pontos de resistência. Mesmo nas situações de vulnerabilidade e de recorrente adoecimento se desvelam potências metafóricas do cotidiano. Nesta primeira dobra, o corpo se reencontra em outros conceitos e contextos, mulheres dobradas em seus corpos expressando desejo de sumir e transitando pelas flutuações e capturas do sentido de suas vidas, em sua clausura rompem o óbvio.

A segunda dobra: n-1

“Trabalhadora de saúde, insone e obsessiva, colhe alfaces na sexta-feira antes de ir para casa e ouve uma menina de 12 anos lhe informar que alface dá sono, então seria uma boa janta. Mulher desempregada leva couves e maracujás colhidos na horta para fazer suco, pois sofre de gastrite nervosa e insônia. Homem idoso leva folhas de capim-limão para a esposa, afinal é seu chá predileto, e lhe acalma as mais difíceis angústias. Meninos passam pelo jardim, depois da escola, para colher e descascar feijão Andu e levar para fazer a janta, que costumava ser só pão.” (Trecho do diário cartográfico)

O desafio da regra singular é proporcional à sua simplicidade. Quantos foram afetados em cada cena? n-1: “é somente assim que o uno faz parte do múltiplo, estando sempre subtraído dele” (Deleuze & Guattari, 2014, p. 21Deleuze, G. & Guattari, F. (2014). Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia 2, v.1. São Paulo: Editora 34.). Cada excerto afeta por ser quase imperceptível em singeleza e potente em vínculo. A regra singular que se inflexiona no cotidiano de seres invisíveis e a abertura ao inesperado. A possibilidade de ofertar outras maneiras de cuidado para além das prescrições alopáticas é resistência à indústria farmacêutica, mas também alimento e autonomia para quem produz e inventa devires.

A Terceira dobra: A força está nas raízes

“Reencontro ela. Idosa, foi prostituta e cuidadora, conheceu a terra e as raízes, bisavó que perdeu a avó depois de perder a mãe. Quantas gerações cabem nela? Quando me ausentei, explica-me, cortou as folhas dos maracujás, mas que não me preocupasse, pois a força das plantas está nas raízes”. (Trecho do diário cartográfico)

A relação com o saber pode transfigurar o pensamento único enquanto fonte de saúde e critério para a verdade. A ideia de que fora do neoliberalismo não há salvação, esvaziando os sentidos das nossas ações no mundo caracteriza a terceira dobra dos processos de subjetivação contemporâneas (Silva, 2005Silva, R. N. (2005). A invenção da psicologia social. Petrópolis, RJ: Vozes.). A compreensão metafórica da gênese energética das plantas também se traduz em transformações e potência presente nas histórias de vida e na polifonia de suas ancestralidades.

A quarta dobra: micropolíticas desejantes

“Essa coisa indissociável que é a práxis: estávamos lá, dançando entre o fazer e o pensar o avesso da loucura. Não se tratava de ser mestre ou aprendiz, mas sermos operadores da transformação de sujeitos em nós. A participação social nasce quando nascem sujeitos da morte dos indivíduos, pois naqueles habitam micropolíticas. A soberania que aqui me refiro é instituinte e dinâmica, pois cresce na ressignificação do território vivo.” (Trecho do diário cartográfico)

Essa reflexão ocorreu durante a criação conjunta da espiral de ervas medicinais e o estudo de fitoterápicos e saberes tradicionais. Relato o empenho na transformação das mulheres no grupo enquanto cuidadoras e, assim, mostrando outra face da participação social, não apenas enquanto aspecto macropolítico, mas também micro, que opera como processo transformador na confluência entre ciência e ancestralidade em corpos-terra.

A cada encontro as forças instituídas corroboram, nesse jogo de disputas, para estagnação de processos burocráticos, uma vez que raramente se discute o que sobra, o que dobra, o que movimenta os sentidos de trabalho. Nesse contexto, buscamos anunciar novos modos de alteridade, deslocando o foco estritamente do sujeito que explica, para aquele que se implica.

Considerações finais

A Reforma Psiquiátrica propôs o fortalecimento das redes de atenção através da desinstitucionalização da loucura, redimensionando o cuidado para o território e para a APS. Porém, ainda hoje, a articulação entre serviços especializados e atenção básica não se deu de forma satisfatória para promover cuidado integral e equânime. Não se trata, portanto, do que é oferecido enquanto terapêutico: grupo, oficina, atendimento individual, visita domiciliar, AT, o que for, mas da maneira como os corpos são atravessados pelos sofrimentos, quais sejam os fluxos. Se somos afetados pelo desvio, é possível bifurcar o imaginário em outras criações do que se é, já não sendo o determinado para si. A expansão da vida na clínica pressupõe o entendimento polifônico do sofrimento, quebrando dualismos interior-exterior, lançando outros sentidos, provocando o exercício ético e político na passagem da vida e nas transições inerentes ao tempo-espaço (Machado & Lavrador, 2009Machado, L. D. & Lavrador, M. C. C. (2009). Por uma clínica da expansão da vida. Interface - Comunic, Saúde, Educ, 13(supl.1), 515-521.).

Defende-se que uma maneira inventiva para oferecer resistência ao modo de produção de subjetividade capitalística reside na criação de espaços coletivos a partir de dispositivos catalisadores de vínculo e de memórias comuns. Assim, deseja-se explorar a criação em sua multiplicidade de potências: como um dos elementos que compõem essa sinfonia que é o cuidado dos seres humanos; como elemento que auxilia um contato maior consigo mesmo e com os outros através do cuidado. Um dispositivo de cuidado que fissura o conhecimento técnico-científico protocolar, tão presente no funcionamento das instituições de saúde que inviabiliza o cuidado singular.

São inúmeros desafios para se trabalhar o processo saúde-doença-cuidado na APS. É preciso aplicar metodologias ativas para cartografar desejos em territórios plurais e subjetivos sem perder a leveza, o envolvimento no cuidado, a atenção para os ciclos, a ressignificação dos espaços, a percepção de um universo em cada semente. A saúde se faz em campo, em tentativa de captar os encontros e (des)encantos nos olhares, as geografias e conexões, as redes e resiliências, as carências e as doenças, os imaginários e territórios subjetivos. Afinal, o que deseja um corpo?

Referências

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  • Financiamento: Não houve financiamento específico para esta pesquisa.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Set 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    16 Jan 2019
  • Revisado
    04 Mar 2020
  • Aceito
    20 Mar 2020
Associação Brasileira de Psicologia Social Programa de Pós-graduação em Psicologia, Universidade Federal de Pernambuco, Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH), Av. da Arquitetura S/N - 7º Andar - Cidade Universitária, Recife - PE - CEP: 50740-550 - Belo Horizonte - MG - Brazil
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