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LUTO E NÃO-VIOLÊNCIA EM TEMPOS DE PANDEMIA: PRECARIEDADE, SAÚDE MENTAL E MODOS OUTROS DE VIVER

LUTO Y NO VIOLENCIA EN TIEMPOS PANDÉMICOS: PRECARIEDAD, SALUD MENTAL Y OTRAS MANERAS DE VIVIR

GRIEF AND NONVIOLENCE IN A PANDEMIC: PRECARITY, MENTAL HEALTH AND OTHER WAYS OF LIVING

Resumo

Este trabalho visa propor uma reflexão sobre a importância da vivência coletiva dos processos de luto, interditados pela emergência da pandemia da Covid-19. Com base em ideias trazidas por intercessores que falam da carência de rituais na cultura contemporânea a partir de paradigmas tradicionais, como Ailton Krenak e Davi Kopenawa, somadas aos princípios apresentados pela perspectiva da não-violência agressiva de Judith Butler, as autoras desenvolvem a hipótese de que o luto, quando elaborado coletivamente, através da oferta de espaços seguros de escuta empática e sensível nos quais as narrativas das dores das perdas sejam acolhidas, pode resultar num processo de resolução de traumas, despertando, assim, a potência necessária para uma composição que leve a ações criativas e solidárias de cuidado comunitário. Metodologicamente, se faz uso da cartografia como processo de registro das linhas de força e afetabilidade reveladas por escutas realizadas em grupos junto aos quais as autoras atuam.

Palavras-chave:
Psicologia Social; Saúde Mental; Luto; Não-Violência; Covid-19

Resumen

Este trabajo tiene como objetivo proponer una reflexión sobre la importancia de la experiencia colectiva de los procesos de luto, prohibida por el surgimiento de la pandemia de COVID-19. Basado en ideas aportadas por intercesores que hablan de la falta de rituales en la cultura contemporánea de paradigmas tradicionales, como Ailton Krenak y Davi Kopenawa, sumados a los principios presentados por la perspectiva de la no violencia agresiva de Judith Butler, las autoras desarrollan la hipótesis de que el luto, cuando se desarrolla colectivamente, a través de la provisión de espacios seguros para escuchar con empatía y sensibilidad en los cuales las narraciones de los dolores de pérdida son bienvenidos, puede resultar en un proceso de resolución de trauma, despertando así el poder necesario para una composición que conduzca a acciones creativas y de apoyo de atención comunitaria. Metodológicamente, se utiliza la cartografía como proceso para registrar las líneas de fuerza y afectividad reveladas al escuchar grupos con los que trabajan las autoras.

Palabras clave:
Psicología Social; Salud Mental; Luto; No violencia; Covid-19

Abstract

This paper proposes a reflection about the importance of the collective experience of grieving processes, that were interrupted by the emergency of the COVID 19 Pandemic. It is based on ideas brought by intercessors who tell us about the scarcity of rituals in contemporary culture from the perspective of traditional paradigms, such as Ailton Krenak and David Kopenawa, in alliance with the principles presented by Judith Butler’s perspective of aggressive nonviolence. The authors develop the hypothesis that grieving, when collectively elaborated with the offer of a safe environment of empathic and sensitive listening, where the narratives of pain and loss are welcomed, can result in a process of trauma resolution. This way, it awakens the necessary potency for composing creative and solidary actions of common care. Methodologically, the cartography is used as a process to register the lines of force and affectability that are revealed by listening processes in groups which the authors work.

Keywords:
Social Psychology; Mental Health; Grief; Nonviolence; COVID-19

Introdução

Uma das marcas da forma pela qual a sociedade se organizou e se organiza contemporaneamente é uma forte desritualização da vida. Isso nos é apontado por alguns autores como Ailton Krenak (2019Krenak, A. (2019) Ideias para adiar o fim do Mundo. São Paulo: Companhia das Letras ., 2020) e Davi Kopenawa (Kopenawa & Albert, 2015Kopenawa, D. & Albert, B. (2015). A Queda do Céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras . ). Os ritos de passagem que, para os povos antigos e originários, são marcadores tão importantes dos ciclos vitais, passaram a ser vistos como comportamentos antiquados, perda de tempo, numa época em que agilidade, eficiência e produtividade são vistos como os motores da civilização, naquilo que Byung-Chul Han (2015Han, B-Chul. (2015). Sociedade do Cansaço. Petrópolis, RJ: Vozes., 2017Han, B-Chul. (2017). Agonia do Eros. Petrópolis, RJ: Vozes .) chama de “sociedade do desempenho”. Dentre estes ritos praticamente abandonados, encontra-se a vivência coletiva do luto. Contudo, neste momento histórico no qual a experiência de despedir-se das pessoas queridas que adoecem e perecem e os momentos de enlutamento compartilhado ainda resguardados pela cultura ocidental (velórios, cerimônias de enterro ou cremação) se encontram interditados pela pandemia da Covid-19, torna-se fundamental refletir sobre estes processos e as consequências psicossociais de não vivenciá-los em plenitude. Por exemplo, Kopenawa conta que sua mãe foi vítima de uma epidemia de sarampo, e seu corpo foi sepultado em um local desconhecido por ele, e relata: “nunca pude chorar minha mãe como faziam nossos antigos. Isso é uma coisa muito ruim. Causou-me um sofrimento muito profundo, e a raiva dessa morte fica em mim desde então. Foi endurecendo com o tempo, e só terá fim quando eu mesmo acabar” (2015, p. 268).

No atual contexto da pandemia, observa-se uma vastíssima produção acadêmica e jornalística, nacional e internacional sendo disponibilizada, beneficiando-se especialmente dos meios digitais, que tomaram protagonismo como principais modos de comunicação disponíveis. Contudo, apesar de sua vastidão e da multiplicidade de abordagens, ainda estamos muitos próximos do calor dos acontecimentos, o que dificulta um distanciamento crítico que nos permitirá, num futuro próximo, avaliar a relevância e o impacto dos materiais produzidos. Dentre essas produções, no ponto de vista das autoras, cabe enfatizar as várias entrevistas e conversas com o ambientalista Ailton Krenak (ver Krenak & Demori, 2020Krenak, A. & Demori, L. (2020). Ailton Krenak e Leandro Demori conversam sobre a crise do coronavírus [arquivo em vídeo]. Recuperado de https://www.youtube.com/watch?v=6XoRg3nj1Ws
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), que trazem uma perspectiva ameríndia que coaduna com a visão da não-violência abordada neste trabalho, agregando uma chave epistemológica diversa e valiosa. Além disso, podemos citar também as produções científicas de diversas instituições, com destaque, no Brasil, para o Observatório Covid-19, da Fundação Oswaldo Cruz (2020Fundação Oswaldo Cruz. (2020). Observatório Covid-19 [website]. Recuperado de https://portal.fiocruz.br/observatorio-Covid-19
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), e os vídeos produzidos pela TV Rede Unida de Educação Permanente em Saúde (2020Canal TV Rede Unida. (2020). Educação Profissional em Saúde [arquivo em video]. Recuperado de https://www.youtube.com/user/RedeUnida1
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). É nesta produção, ainda incipiente, ainda em construção, que este artigo se insere.

Refém de uma psicologia que se embasa fortemente nos pressupostos teóricos da psicanálise, o pensamento contemporâneo ocidental, como propõe Sigmund Freud (1915/2010Freud, S. (1915/2010). Luto e Melancolia. In Introdução ao Narcisismo, Ensaios de Metapsicologia e Outros Textos (1914-1916) (P. C. Souza, trad., pp.127-144). São Paulo: Companhia das Letras.), tende a considerar o luto como uma reação à perda do objeto amoroso, um trabalho interno, um processo individual que ocorre apenas intrapsiquicamente e que “absorve, enquanto dura, todas as energias do Eu” (Freud, 1915/2010, p. 139Freud, S. (1915/2010). Luto e Melancolia. In Introdução ao Narcisismo, Ensaios de Metapsicologia e Outros Textos (1914-1916) (P. C. Souza, trad., pp.127-144). São Paulo: Companhia das Letras.). Portanto, uma elaboração a ser realizada pela pessoa enlutada, que tomará o tempo que for necessário para que ela se resolva e que deve, de preferência, não sofrer interferências ou perturbações externas (Freud, 1915/2010, p. 128Freud, S. (1915/2010). Luto e Melancolia. In Introdução ao Narcisismo, Ensaios de Metapsicologia e Outros Textos (1914-1916) (P. C. Souza, trad., pp.127-144). São Paulo: Companhia das Letras.). Judith Butler (2019Butler, J. (2019). Vida Precária: os poderes do luto e da violência. Belo Horizonte: Autêntica., 2020), porém, assim como Krenak e Kopenawa, citados no parágrafo anterior, aponta a necessidade do resgate do caráter coletivo das vivências do luto. Para essa autora, que vem apresentando em seus trabalhos mais recentes uma reflexão filosófica embasada nos princípios da não-violência, é fundamental repensarmos o papel social do luto vivido coletivamente. A vivência do luto desta forma seria, para Butler (2019), uma forma de admitir a nossa vulnerabilidade e risco frente as outras pessoas, nos colocando em contato com a necessidade de encontrarmos modos de convivência que contemplem as diferenças e as singularidades, ao mesmo tempo em que promovem a possibilidade do convívio comunitário como política de existência. Pontos que interessam, sobretudo, aos âmbitos da psicossociologia de comunidades e à psicologia social, não só como forma de compreensão dos fenômenos sociais, especialmente os observados neste momento tão peculiar da história, mas também para a formulação de ações e estratégias de cuidado possíveis, particularmente no âmbito da saúde mental coletiva. Butler (2020) apresenta a não-violência como uma proposta ética que contrapõe o discurso hegemônico, segundo o qual os fins justificam os meios, sejam eles quais forem, e questiona a ideia prevalecente de violência, apontando a importância de elaborarmos uma nova narrativa que compreende violência e não-violência não como conceitos absolutos, mas como construções que se dão no nível relacional, dialógico. Como ponto de partida para essa reflexão, fundamentados em autoras(os) como Erica Chenoweth e Maria Stefan (2008Chenoweth, E. & Stefan, M. (2008). Why Civil Resistance Works: the strategic logic of nonviolent conflict. International Security, 33(1), 7-44.), Mikhail Lyubansky e Dominic Barter (2019Lyubansky, M. & Barter, D. (2019). Restorative Justice in Schools: Theory, Implementation, and Realistic Expectations. The Psychology of Peace Promotion. https://doi.org/10.1007/978-3-030-14943-7_19
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) e Michael Nagler (2014Nagler, M. (2014). The Nonviolence Handbook: a guide for practical action. San Francisco, CA: Berrett-Koehler.), entre outros, podemos abordar a não-violência como um processo que tem início numa transformação de paradigmas.

Rompendo com uma visão punitivista e adversarial de sociedade, na qual a competição e a guerra por recursos são os modos habituais de convívio, a não-violência propõe uma lógica restaurativa, não-punitiva, baseada no reconhecimento das necessidades e princípios compartilhados que promovem e sustentam a vida, todas as vidas, humanas e não-humanas.

Objetivos

Este artigo visa refletir, tendo como lente de leitura, sobretudo, o paradigma da não-violência, os impactos na saúde mental e os aspectos psicossociais da privação da vivência coletiva dos lutos, especialmente aqueles consequentes das perdas das vida, causadas pela pandemia de Covid-19. Interditados pelas precauções sanitárias, os ritos de despedida e enlutamento não vividos tendem a se constituir como experiências traumáticas, exacerbando conflitos intrapsíquicos, interpessoais e mesmo estruturais. Neste trabalho, buscamos investigar como o testemunho compartilhado oferecido por práticas de enlutamento coletivo, através da criação de espaços seguros para a partilha e escuta das dores das perdas, pode contribuir para a dissolução desses traumas.

Referencial teórico/metodológico

Teoricamente, o artigo se referenda, principalmente, nas ideias pós-estruturalistas advindas, particularmente, de Michael Foucault, autor que embasa fortemente os trabalhos de Judith Butler e Byung-Chul Han. Também utilizamos referenciais pós-colonialistas e do perspectivismo ameríndio oferecido por autores como Ailton Krenak, Davi Kopenawa e Eduardo Viveiros de Castro. Além deles, autoras(es) dedicados aos estudos da não-violência, citados anteriormente. É importante frisar que, para além de referenciais teóricos, consideramos estas(es) autoras(es) como intercessores. Conceito oferecido por Gilles Deleuze (1992Deleuze, G. (1992). Conversações. São Paulo: Editora 34., p. 156), define pessoas, produtos culturais, objetos e mesmo seres da natureza com quem se estabelecem encontros que nos afetam e compõe nossos processos de saber. Assim, ainda que nem todos as(os) autoras(es)-intercessoras(es) apresentados como referências sejam extensamente citados ao longo deste trabalho, suas contribuições constituem as redes de afetabilidade a partir das quais elaboramos nossas ideias, análises e proposições.

Em termos metodológicos, utilizamos o método cartográfico oferecido por Suely Rolnik (2016Rolnik, S. (2016). Cartografia Sentimental: transformações contemporâneas do desejo. Porto Alegre: Sulina.), proposta segundo a qual a pesquisa se desenvolve através das narrativas tecidas em decorrência das reflexões suscitadas pelas leituras, pelas vivências e por atividades de escuta de traumas e lutos realizadas pelas autoras, em rodas de escuta, assim como em ambiente psicoterapêutico. Compreendendo que, para quem pesquisa há, sempre e inevitavelmente, uma forte implicação em seu campo de pesquisa, e considerando que, neste momento, nos encontramos, como acadêmicas(os) e pesquisadoras(es), completamente in-mundizadas(os) pela experiência da pandemia (Abrahão et al., 2016Abrahão, A. L., Merhy, E. E., Gomes, M. P. C., Tallemberg, C., Chagas, M. S., Rocha, M. et al. (2016). O pesquisador in-mundo e o processo de produção de outras formas de investigação em saúde In E. E. Merhy, R. Baduy, C. T. Seixas, D. E. S. Almeida, & H. Slomp (Orgs.), Avaliação Compartilhada do Cuidado em Saúde: surpreendendo o instituído nas redes (pp. 22-30). Rio de Janeiro: Hexis.), o método cartográfico oferece, no nosso entender, um recurso precioso para a expressão e investigação dos afetos que nos penetram e atravessam, coletiva e individualmente. Assim, torna possível visibilizar as linhas que representam a dinâmica de fluxos de forças e afetações que nos habitam, nos perpassam, nos transmutam, transformando nossos próprios corpos-pesquisadoras(es) em campos de problemas, afetadas que também somos pelos desconfortos da des/re-organização das vidas, pelas perdas, pelas dores, pelos lutos convocados pela pandemia.

Pesquisar pelo método cartográfico é, então, tomando de empréstimo as palavras de Antonin Artaud (2019Artaud, A. (2019). Escritos de Antonin Artaud. Porto Alegre: L&PM., p. 165), colocar o próprio corpo a serviço da pesquisa como campo de batalha de problemas. É se dispor a atravessamentos muitas vezes avassaladores e a sustentar os desconfortos, investigando as implicações e as reverberações das vivências coletivas em si própria. É encontrar, a partir delas, o em-comum que nos une à coletividade que, neste momento, engloba o planeta como um todo. Assim, essa pesquisa iniciou-se não meramente a partir de um interesse acadêmico, mas como decorrência de várias das ações de escuta realizadas pelas autoras, das várias narrativas testemunhadas por nós, das nossas “in-mundizações”, da própria vivência da ameaça e das consequências da pandemia em nossas vidas e nas vidas das pessoas com quem convivemos, as quais amamos.

A pesquisa se inicia, então, com a confecção de uma “caixa de afecções”: um repositório de tudo que nos chega do mundo e nos afeta. Notícias, narrativas, canções, imagens, ideias, sentimentos e sensações, objetos, iniciativas, conversas, leituras, intersessões-interferências e intercessões-cruzamentos, reunidos e atuando como linhas de afetabilidade e investigação. Nesta caixa de afecções, o disparador determinante na escolha pela escrita do presente trabalho foi uma conversa sobre luto e não-violência no contexto da pandemia, realizada por uma das autoras com Dominic Barter (Barter & Rente, 2020Barter, D. & Rente, M. A. M. (2020). Uma Conversa Sobre Luto e Não-Violência [arquivo em video]. Recuperado de https://www.youtube.com/watch?v=CjjSofarFic&t=2s
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). A ela, se somaram os afetos poderosos ofertados pelas narrativas testemunhadas, pelas dores, lutos, dúvidas, revoltas e esperanças expressas nas falas de pessoas acompanhadas pelas autoras nos processos de escuta, pela escuta de nossas próprias falas, já que quando falamos de nós, nunca é apenas de nós que falamos (Deleuze, 1974Deleuze, G. (1974). A Lógica do Sentido. São Paulo: Perspectiva.).

Das afecções, brota também o ‘Diário Cartográfico’, que registra pensamentos, ideias, poemas, narrativas, desenhos, conexões; enfim, registra os modos e linhas de afetabilidade, interferências e interseções que irão alimentar a pesquisa e a escrita, oferecendo material de investigação e elaboração,

Assim, no nosso trabalho de pesquisa, experimentamos como pressuposto metodológico básico a ideia de que, ao investigarmos questões do mundo, nos dispomos a nos in-mundizarmos por elas. O conceito de pesquisadora in-mundo refere-se à noção de que a pesquisa é uma ação concreta no mundo, uma interferência no campo de problemas, processo do qual quem pesquisa também sai interferida(o), mudada(o), contaminada(o) (Abrahão et al., 2016Abrahão, A. L., Merhy, E. E., Gomes, M. P. C., Tallemberg, C., Chagas, M. S., Rocha, M. et al. (2016). O pesquisador in-mundo e o processo de produção de outras formas de investigação em saúde In E. E. Merhy, R. Baduy, C. T. Seixas, D. E. S. Almeida, & H. Slomp (Orgs.), Avaliação Compartilhada do Cuidado em Saúde: surpreendendo o instituído nas redes (pp. 22-30). Rio de Janeiro: Hexis.). Assim, muito daquilo que constitui a pesquisa passa pelas narrativas das experiências vividas por nós, pesquisadoras-testemunhas das observações realizadas no campo.

As questões levantadas reverberam através dos nossos atravessamentos, no nosso lugar de escuta e afetações e nos provocam a tecer nossas próprias narrativas e elaborações. Portanto, produzimos nossa narrativa a partir daí; como captadoras de afetabilidade, somos as fontes nucleares da pesquisa.

Enlutar para seguir vivendo: caminhos de potência possível

Mesmo antes da pandemia ter sido decretada pela Organização Mundial da Saúde, em 11 de março de 2020 os nossos trabalhos já se focavam, de formas diversas, na escuta como recurso de cuidado ampliado em saúde. Com o início das recomendações para a restrição de contato social, as redes sociais e os ambientes online passaram a ser os recursos possíveis para dar continuidade a práticas que já faziam parte de nossos repertórios profissionais e de ativismo, como rodas de conversa livre, abertas a todas as pessoas interessadas, além das escutas realizadas em atendimentos psicoterapêuticos individuais e outras práticas grupais de apoio à saúde mental, particularmente baseadas na não-violência; assim como as atividades acadêmicas e docentes, que incluem o apoio para a elaboração de estratégias de enfrentamento ao coronavírus em contextos comunitários, entre outras.

Nessas atuações, a questão do luto e de sua interdição aparece com grande protagonismo. Enlutam-se as vidas perdidas pela doença, mas também os projetos interrompidos, a vida confinada, as relações comprometidas pela distância. Teme-se a infecção, e a confusão de informações abundantes e, muitas vezes, conflitantes, não têm contribuído para que se alcance uma relativa serenidade, que nos permitiria traçar estratégias de cuidado mais efetivas e adequadas.

Concomitantemente, vimos o surgimento de um levante antirracista, disparado pelos assassinatos de George Floyd e Breonna Taylor pela polícia, nos Estados Unidos. Esse fato, que despertou uma indignação disseminada por diversos países, entre eles o Brasil, parece ter iluminado a questão da imensa vulnerabilidade das vidas não-brancas. Assassinatos brutais de pessoas pretas, fatos que, lamentavelmente, fazem parte de cotidiano em nosso país, ganharam protagonismo, visibilizando uma imensa dor compartilhada e motivando multidões a romperem seu isolamento para irem às ruas, reivindicar justiça, respeito e igualdade. De forma semelhante, as reações populares - como as manifestações de profissionais da saúde que ocorreram na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, nas ruas e nas redes sociais - à negligência governamental e a indignação de grande parte da população às falas e atitudes presidenciais minimizando a gravidade da doença e as mortes por ela causadas parecem indicar uma tentativa social de encontrar modos de enfrentamento a uma posição política nefasta, cruel e mortal, o que nos aponta a necessidade e o desafio de construir uma atuação não-violenta, buscando encontrar modos de vida que se neguem a aderir a essa lógica bélica e de dominação, infelizmente ainda hegemônica.

Em todas essas escutas ressoam questões semelhantes: dores, sofrimentos, inquietações, dúvidas, esperanças de transformações que nos conduzam coletivamente a uma vida mais justa e digna. Falas que ouvimos, como a de uma liderança comunitária negra, que afirmou preferir morrer na rua, lutando por sua dignidade, do que esperar a morte pelo vírus recolhida em casa, nos mobilizam. Assim como nos mobiliza a consciência da precariedade das vidas vividas por grande parte da população, para quem a ideia de “ficar em casa” é praticamente inatingível. Afinal, como “ficar em casa” e manter condições mínimas de saúde, física e mental, quando a casa é um barraco de 15 m2, dividido entre muitas pessoas, sem saneamento básico?

“Como é que a gente segura os meninos em casa em época de papagaio?”: redes vivas de cuidado em ato

Papagaio, pipa, pandorga - o nome depende da região do país em que você esteja. Mas os objetos de papel colorido flutuando no céu são os mesmos, presentes nas periferias das grandes cidades, especialmente nos meses de julho e agosto, época de ventos fortes. A variação dos nomes nos revela uma dimensão fundamental na busca pela elaboração de ações e práticas de cuidado que sejam, efetivamente, cuidadosas: a diversidade de territórios nos quais a vida - e a morte - tem lugar. Revela também os riscos de se assumir que existem soluções de cuidado únicas que possam alcançar e beneficiar todas as populações, independentemente de onde elas se encontrem.

Para refinar a noção de território, Milton Santos (1999Santos, M. (1999). O território e o saber local: algumas categorias de análise. Cadernos IPPUR, Rio de Janeiro, 13(2), 15-26.) nos oferece a categoria de análise “evento”. Segundo ele, um evento é um acontecimento que transforma as coisas, conferindo a elas novas características. Essa transformação se dá no tempo e no espaço, conceitos que, em sua proposta, se amalgamam na própria ideia de evento que, segundo ele, “permite unir o mundo ao lugar: a História que se faz e a História já feita; o futuro e o passado que aparece como presente” (Santos, 1999, p. 16). Para este autor, um evento é localizado no território e vivenciado num tempo empírico, experiencial, inter-relacionando-se diretamente, assim, à história e às características locais. Não há dúvidas de que a pandemia da Covid-19 pode ser nomeada como sendo o evento mais relevante da atualidade, e de impactos planetários. Porém, cada território lida com suas consequências de formas diversas, de acordo com as condições de que dispõe, de acordo com sua historicidade e com as redes vivas de relações que nele coexistem.

Ativadas por esse conceito, parece-nos relevante trazer à cena a ideia das redes vivas apresentadas por Merhy et al. (2016Merhy, E. E., Gomes, M. P. C., Silva, E., Santos, M. f. L., Cruz, K. T., & Stomp, H. (2016). Redes Vivas: multiplicidades girando as existências, sinais da rua. In E. E. Merhy, R. Baduy, C. T. Seixas, D. E. S. Almeida, & H. Slomp (Orgs.), Avaliação Compartilhada do Cuidado em Saúde: surpreendendo o instituído nas redes (pp. 31-42). Rio de Janeiro: Hexis .). Conceito desenvolvido no contexto de pesquisas em Micropolítica do Cuidado em Saúde, parece-nos pertinente também para a leitura das dinâmicas que se dão nos territórios de convivência. Neles, as pessoas

enquanto redes de existência, produzem-se ‘em-mundos’, ‘in-mundizam-se”... constituindo certas formas éticas e existenciais e certos modos de conduzir, por si, também a produção de cuidado, disputando o tempo inteiro com as outras diferentes lógicas de existir, em si, e que lhes são impostas pelas instituições. (Merhy et al., 2016Merhy, E. E., Gomes, M. P. C., Silva, E., Santos, M. f. L., Cruz, K. T., & Stomp, H. (2016). Redes Vivas: multiplicidades girando as existências, sinais da rua. In E. E. Merhy, R. Baduy, C. T. Seixas, D. E. S. Almeida, & H. Slomp (Orgs.), Avaliação Compartilhada do Cuidado em Saúde: surpreendendo o instituído nas redes (pp. 31-42). Rio de Janeiro: Hexis ., p. 33)

Na ausência de estratégias de cuidado oferecidas e gestionadas pelo poder público, o que observamos é que as comunidades têm se auto-organizado a partir de laços de solidariedade que configuram e revelam verdadeiras redes vivas em ato, realizando ações de orientação à comunidade, acompanhamento e cuidado das pessoas doentes e mais vulneráveis, distribuição de alimentos, iniciativas de geração de renda emergencial, apoio legal e psicológico etc. Nas palavras de uma das pessoas ouvidas, “a gente faz nas ocupações o trabalho do governo, expondo nossos corpos para fazer esse trabalho”. Assim, organizadas em redes vivas fragmentárias e realizadas em ato, as comunidades produzem modos de existência próprios, eivados de encontros, movimentos e afetos, compartilhando saberes e construindo práticas de partilha de cuidado.

A formação dessas redes autônomas de cuidado e solidariedade entre as populações negligenciadas pelo Estado não só confere sentido às vidas e promove a emancipação coletiva, como também revela as redes de interdependência. No lugar, definido por Santos (1999Santos, M. (1999). O território e o saber local: algumas categorias de análise. Cadernos IPPUR, Rio de Janeiro, 13(2), 15-26.) como sendo o locus intermediário entre o mundo e o indivíduo, território ao mesmo tempo global, compartilhando historicidade com outros territórios, e localizado em um tempo-espaço particular, tensionado permanentemente pela dialética globalização e fragmentação, se configura

um cotidiano compartido entre as mais diversas pessoas, firmas e instituições - [nele] cooperação e conflito são a base da vida em comum. Porque cada qual exerce uma ação própria, a vida social se individualiza; e porque a contiguidade é criadora da comunhão, a política se territorializa, com o confronto entre organização e espontaneidade. O lugar é o quadro de uma referência pragmática do mundo, do qual lhe vem solicitações e ordens precisas de ações condicionadas, mas é também o teatro insubstituível das paixões humanas, responsáveis, através da ação comunicativa, pelas mais diversas manifestações da espontaneidade e da criatividade. (Santos, 1999Santos, M. (1999). O território e o saber local: algumas categorias de análise. Cadernos IPPUR, Rio de Janeiro, 13(2), 15-26., p. 592)

O lugar é, também, o campo, a arena onde as relações de poder e dominação se dão. São essas relações que determinam e definem quais corpos merecem ser protegidos e enlutados. É neste campo, portanto, que a não-violência se apresenta como prática deliberada de resistência à essa lógica, configurando um “inédito-viável” no enfrentamento das desigualdades e injustiças, como veremos no próximo segmento. “Inédito-viável” é uma categoria de análise criada por Paulo Freire e refere-se a uma possibilidade que era anteriormente desconhecida, ainda não vivida, mas que, quando percebida pelos que pensam em termos de utopia, se torna algo que pode vir a ser real. Nasce da denúncia da realidade excludente para anunciar a possibilidade de mudança, a partir do sonho coletivo de realidades possíveis. Não é projeto, mas anteprojeto, já que, para Freire, um projeto só se efetua na praxis, ao ser posto em prática, vivenciado e refletido (Paro, Ventura, & Silva, 2020Paro, C. A., Ventura, M., & Silva, N. E. K. (2019). Paulo Freire e o Inédito Viável: esperança, utopia e transformação na saúde. Trabalho, Educação e Saúde, 18(1). https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol00227
https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol002...
).

Luto e não-violência: o paradigma da interdependência

Ao trazermos a não-violência para a cena como uma contribuição possível para a formulação de um “inédito viável”, que nos permita lidar com as consequências diretas e inevitáveis da pandemia e, ao mesmo tempo, vislumbrar modos de vida outros mais alinhados com os valores de justiça, igualdade e dignidade para todas(os) viventes, é fundamental deixarmos nítido de que não-violência falamos aqui. Há distintas práticas nomeadas como tal, fundamentadas em visões de mundo diferentes que, ainda que se alinhem em termos de propósito, utilizam-se de métodos e bases teóricas distintas. Para os fins deste trabalho, consideramos as contribuições de Judith Butler (2020Butler, J. (2020). The Force of Nonviolence: an ethical-political bind. London: Verso. [Kindle].), no sentido da afirmação de uma não-violência que ela chama de “agressiva”, em contraponto a uma prática não-violenta nomeada como “passiva”.

Para a autora, são duas as visões prevalecentes quando se fala em contrapor o uso da violência, seja ela nas relações intrapessoais (aquelas que ocorrem intrapsiquicamente), nas interpessoais ou nas sistêmicas, estruturais; seja ela perpetrada por pessoas, grupos ou instituições (como o Estado). A primeira destas visões se baseia na ideia da contra-violência, numa relação de reciprocidade direta. Neste ponto de vista, seria justificável usar de violência para nos contrapormos a ataques violentos. O uso da contra-violência seria inevitável, já que estaríamos imersas(os) numa rede de relações inerentemente violentas. Portanto, não nos restaria escolha senão reagirmos a um ataque com ainda mais violência, causando novas contra-reações, o que levaria a um ciclo infinito de escalada de tais comportamentos. Segundo Butler (2020Butler, J. (2020). The Force of Nonviolence: an ethical-political bind. London: Verso. [Kindle].), a intensificação dos conflitos resultante do uso da contra-violência para enfrentar atos violentos pode levar a dinâmicas destrutivas potencialmente incontroláveis, justificando, inclusive, o recrudescimento de práticas repressivas por parte de quem - pessoa(s) ou instituições - detém maior poder nessa relação.

A segunda visão afirma a autodefesa como justificativa para a reação à violência. Neste caso, a problemática apresentada pela autora relaciona-se ao conceito de “eu” inferido pelo uso do prefixo “auto”. Quem é esse eu que se defende, cuja vida é digna(o) de ser defendida(o)? Essa noção de “eu” (self) amplia-se para incluir os iguais, como familiares, grupos de afinidade, componentes de uma comunidade religiosa, uma nação, um território? Se a resposta for afirmativa, apresenta-se outra questão, já que isso implica diretamente na aceitação da existência de “não-eus”, numa relação excludente, justificando e legitimando que o “eu” se defenda através do uso da violência.

Butler (2020Butler, J. (2020). The Force of Nonviolence: an ethical-political bind. London: Verso. [Kindle]., Introdução, e-book) afirma que

Uma vez que certas pessoas são consideradas dignas de defesa, enquanto outras não são, não há um problema de desigualdade que se segue à justificativa da não-violência como estando à serviço da autodefesa? Não se pode explicar essa forma de desigualdade, que coincide com medidas globais de “enlutabilidade” [grievability, no original] de determinados grupos, sem considerar os esquemas raciais que fazem tais distinções grotescas entre quais vidas são valiosas (e potencialmente enlutáveis, se perdidas) e quais não são (tradução nossa).

Ela sustenta ainda que a ideia da autodefesa abre caminho para legitimar o uso da violência na defesa do poder por aquelas instâncias que historicamente o detém, não só produzindo, como também mantendo desigualdades. Estas desigualdades são construídas socialmente, nas relações históricas de poder e, portanto, não dizem nada sobre o valor intrínseco de cada vida.

Em sua descrição da não-violência como uma proposição ético-política, Butler (2015, 2020) contesta essas visões, oferecendo a ideia de que o campo de relações no qual vivemos consiste, fundamentalmente, de relações de interdependência e implicação que se restringem aos encontros humanos, mas se estendem a todas as relações entre seres. Em suas palavras,

se aquele que exerce a não-violência é aparentado daquele que é potencialmente sujeito à violência, então parece haver entre eles uma relação social prévia; eles são parte um do outro, ou seja, um self está implicado no outro self. A não-violência, desta maneira, seria um modo de reconhecer essa relação social, por mais frágil que ela seja, e de afirmar as aspirações normativas que se seguem a essa relação social prévia. Como resultado, uma ética da não-violência não pode ser embasada no individualismo e deve tomar a iniciativa de fomentar uma crítica do individualismo como base ética e política. Desta forma, uma ética política da não-violência deve levar em conta que os seres estão implicados uns nas vidas dos outros, ligados por uma série de relações que podem ser tanto ser destrutivas, quanto apoiadoras. (Butler, 2020Butler, J. (2020). The Force of Nonviolence: an ethical-political bind. London: Verso. [Kindle]., Introdução, e-book, tradução nossa).

Assim, não seria possível afirmar que um ato de autodefesa seria uma ação de autopreservação, já que a própria ideia de um self individualista é contestada. Esta relacionalidade implicada não é, por si só, algo inerentemente bom; o potencial destrutivo da humanidade não é negado por Butler (2020Butler, J. (2020). The Force of Nonviolence: an ethical-political bind. London: Verso. [Kindle].), que inclui como atos definidores das relações humanas o conflito e a agressão. A relacionalidade é um campo ambivalente, no qual “a questão da obrigação ética deve ser trabalhada tendo em vista esse potencial destrutivo constitutivo e persistente” (Butler, 2020, Introdução, e-book). Este trabalho nunca é apenas reflexivo, acontecendo no âmbito das relações intrapsíquicas ou das elaborações internas, pessoais (o que nos colocaria, novamente, na lógica da psicologização individualista), mas convoca a uma praxis que ocorre necessária e simultaneamente também nos campos relacionais interpessoal e sistêmico. A filósofa não nega que o mundo é um campo de forças caracterizado pela prevalência de relações de violência, e afirma que a tarefa e o desafio da atuação não-violência é encontrar modos de vida que anulem ou diminuam a violência, “exatamente nos momentos em que ela parece saturar este mundo e não oferecer nenhuma outra saída” (Butler, 2020, Introdução). Para ela, os vetores deste movimento de mudança residem no discurso, no corpo, nas práticas coletivas, e também nas infraestruturas e nas instituições.

Para embasar as reflexões trazidas neste artigo, interessa-nos, como fundamento ontológico para a formulação da proposta da não-violência, este outro paradigma de pensamento ofertado por Butler (2015, 2020), o qual considera que a vida é caracterizada pela interdependência. Esta implica em igualdade social e mutualidade, já que, neste modo de compreender as relações, as pessoas dependem umas das outras, sendo formadas e sustentadas como viventes nesta dinâmica de coexistência, que não inclui apenas a humanidade, mas também as outras criaturas vivas, ambientes e estruturas. Assim, a violência, mais do que uma agressão individual, é um ataque aos laços sociais. A partir dessa noção, a filósofa nos conduz ao luto como ação e prática de reconhecimento das vidas diversas, considerando que todas são dignas de serem enlutadas, ao contrário do que afirma o pensamento ocidental hegemônico, que valoriza algumas vidas - mormente as brancas, masculinas, de certa classe social - como as que precisam ser protegidas, conservadas e, no seu fim, enlutadas. Segundo Butler (2020, Introdução) “A violência contra o outro é, neste sentido, uma violência contra si mesmo, algo que se torna claro quando reconhecemos que ela agride a interdependência viva que constitui, ou deveria constituir, nosso mundo social” (tradução nossa).

É interessante apontar pontos em comum entre a abordagem da não-violência assim exposta e o modo pelo qual Kopenawa (2015Kopenawa, D. & Albert, B. (2015). A Queda do Céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras . ) descreve a cosmovisão indígena. Segundo ele, os povos originários, em seus modos de existir, não estão etnocentricamente produzindo cuidado apenas de si, mas de todas as formas de vida. A partir de seu posicionamento como povo-floresta, defendendo-a como lugar de produção de seu próprio povo, defendem todas as formas de vida, inclusive as dos brancos que vivem na cidade. De modo similar, Krenak (2019Krenak, A. (2019) Ideias para adiar o fim do Mundo. São Paulo: Companhia das Letras ., 2020Krenak, A. (2020). O amanhã não está à Venda. São Paulo: Companhia das Letras .) afirma a possibilidade de sempre se construir uma outra narrativa e, com ela, a escolha de se estar sempre produzindo um mundo outro. Assim, a construção de uma narrativa sobre sermos todos natureza apresenta a possibilidade de construir um mundo outro, onde a diversidade apresente a dimensão da riqueza. Desta forma, ainda que sem utilizar termos como interdependência ou não-violência, é disso que estes autores também estão falando.

Michael Nagler (2014Nagler, M. (2014). The Nonviolence Handbook: a guide for practical action. San Francisco, CA: Berrett-Koehler.) aponta que, ainda que seja possível que táticas não-violentas sejam utilizadas num contexto violento, isso pode ser considerado uma corrupção da prática da não-violência. Butler (2020Butler, J. (2020). The Force of Nonviolence: an ethical-political bind. London: Verso. [Kindle].), em concordância, afirma que apenas um modo principiológico embasando o uso não estratégico ou ferramental das táticas de ação não-violenta pode ser considerado como aplicação efetiva da mesma, se tivermos em vista que a não-violência é, sobretudo, uma postura ético-política. Portanto, na não-violência, é impossível distinguir os fins dos meios utilizados para atingi-los.

Butler (2020Butler, J. (2020). The Force of Nonviolence: an ethical-political bind. London: Verso. [Kindle].) oferece-nos um conjunto de chaves de compreensão da noção de não-violência que embasa nossa reflexão neste trabalho:

  1. 1.

    O termo violência é usado correntemente para descrever dinâmicas e situações que admitem interpretações diversas. Isso equivale a dizer que a violência é sempre interpretada dentro de uma determinada estrutura política, histórica e social;

  2. 2.

    A não-violência, muito mais do que uma posição moral individual ou uma questão de consciência individual, precisa ser compreendida como uma prática social e política coletiva que, a partir de uma reflexão crítica sobre os laços que nos caracterizam como sociedade, visa denunciar e enfrentar formas sistêmicas de opressão e destruição e construir um mundo embasado na interdependência e na busca por liberdade e igualdade econômica, social e política;

  3. 3.

    a não-violência não se relaciona necessariamente com uma postura calma e pacífica. Com muita frequência, ao agir na direção de interromper dinâmicas de dominação, ela expressa raiva, indignação e agressão. Uma tese central da autora é de que a resistência não-violenta pode e deve assumir, em determinados casos, uma forma agressiva, e isso não é contraditório com sua proposta. Para fundamentar essa ideia, Butler (2020Butler, J. (2020). The Force of Nonviolence: an ethical-political bind. London: Verso. [Kindle].) cita um termo criado por Gandhi, uma das principais referências na construção do pensamento e da prática da não-violência: Satyagraha, que pode ser traduzida por “agarrar-se à verdade”, ou ainda, “força da alma” (Nagler, 2014Nagler, M. (2014). The Nonviolence Handbook: a guide for practical action. San Francisco, CA: Berrett-Koehler., p. 10), consiste na persistência implacável na verdade e no ingresso deliberado no campo da violência, colocando-se a serviço da interrupção de suas dinâmicas;

  4. 4.

    a não-violência é um ideal que nem sempre pode ser atingido completamente na prática. Refere-se ao uso dos corpos como barreiras e obstáculos às ações violentas, o que admite o uso da força e da agressão como legítimas. A ética performática não-violenta, que compreende gestos, atitudes e modos de não-ação obstrutiva, pode ser lida como violenta, e é útil se estabelecer uma distinção operativa entre o uso protetivo da força corporal e a violência. O que parece permitir essa distinção é a intenção de interromper uma injustiça ou uma ação de opressão, mas essa noção também carrega uma ambiguidade, já que a leitura destas ações depende, também, da compreensão do campo de relações de poder no qual esses comportamentos têm lugar;

  5. 5.

    portanto, a não-violência não pode ser considerada um princípio absoluto, uma prescrição de condutas, mas sim um enfrentamento continuado que abraça tais ambiguidades éticas e políticas.

Sendo assim, para Butler (2020Butler, J. (2020). The Force of Nonviolence: an ethical-political bind. London: Verso. [Kindle].), se a não-violência é a proposição de uma conduta ética que deliberadamente se insere dentro do campo de forças da violência, então ela é uma prática de enfrentamento e resistência na qual o engajamento se torna ainda mais relevante justamente naqueles momentos em que a violência parece ser necessária e justificável. Consiste numa ação sustentada e persistente que interrompe os processos violentos e os impede de voltarem a vigorar. Não é, portanto, a ausência ou a negação da violência, mas um comprometimento constante no sentido de interromper essas dinâmicas, enquanto se reafirma os ideais de igualdade, liberdade e justiça para todas as pessoas e seres.

Um argumento bastante utilizado na crítica da não-violência atribui certa ingenuidade à defesa dessa postulação, colocando em dúvida a eficácia das práticas e táticas não-violentas. Contudo, Chenoweth e Stefan (2008Chenoweth, E. & Stefan, M. (2008). Why Civil Resistance Works: the strategic logic of nonviolent conflict. International Security, 33(1), 7-44.), após extensivo estudo de diversas ações de resistência e derrubada de governos antidemocráticos ao redor do mundo, concluíram que, na maioria dos casos estudados, a resistência não-violenta resultou em períodos de ressurgência democrática mais duradouros e pacíficos.

Butler (2020Butler, J. (2020). The Force of Nonviolence: an ethical-political bind. London: Verso. [Kindle].) afirma que a não-violência parece nos exigir um relativo descolamento da realidade tal qual ela se apresenta atualmente, convidando-nos a olhar para outras possibilidades que possam vir a constituir um novo imaginário político. Essa posição é semelhante a de outros autores e autoras que atuam no âmbito da não-violência, que sustentam a convocação de um outro paradigma de cuidado das situações conflituosas. Para eles(as), a não-violência exige que transitemos da lógica hegemônica - bélica, separatista e punitivista, para uma outra lógica: dialógica, inclusiva, não punitivista e não adversarial (Lyubansky & Barter, 2019Lyubansky, M. & Barter, D. (2019). Restorative Justice in Schools: Theory, Implementation, and Realistic Expectations. The Psychology of Peace Promotion. https://doi.org/10.1007/978-3-030-14943-7_19
https://doi.org/10.1007/978-3-030-14943-...
).

Formas de vida outras: potências nascidas do luto

Ainda que a morte seja parte integrante e inseparável da vida, ainda que ela seja uma possibilidade presente a todo momento, em toda parte, nossa cultura parece ter desenvolvido uma aversão a falar sobre ela. É como se, ao nomeá-la, ela se tornasse mais próxima. É como se houvéssemos tecido um pacto coletivo de desconhecimento intencional da morte como possibilidade, um combinado que nos desliga da natureza, da qual ela é um processo inevitável, negando nossa fragilidade e nossa precariedade como viventes. Não é de se estranhar, portanto, que o luto, como processo de elaboração emocional e psíquico da dor da perda, tenha se tornado quase que um não-assunto, invisibilizado nas conversas mais corriqueiras.

Neste momento, contudo, em que a pandemia da Covid-19 rompeu a ilusão de que é possível uma vida sem morte, torna-se fundamental trazer protagonismo para a questão do luto.

Viveiros de Castro (Castro, 2018Castro, E. V. (2018, julho 26). A Morte como Ritual [arquivo em video]. Recuperado de https://www.youtube.com/watch?v=LW0ojNmrF68
https://www.youtube.com/watch?v=LW0ojNmr...
), em palestra para a série de programas chamada “Café Filosófico”, aponta que a morte, ainda que seja um acontecimento corporal, pois corrompe os corpos e nos priva deles, é, também, paradoxalmente, um não-acontecimento. Isso porque ela é algo que só acontece a outrem. Podemos vivenciar experiências de quase-morte, mas nunca a morte em si. Portanto, nosso conhecimento dela é apenas teórico, pois se constrói a partir das narrativas da morte, e não de sua experiência. Ou seja, ela é, para as pessoas que continuam vivas, um conceito, um quase-acontecimento.

Para Deleuze, um evento como a morte não constitui, necessariamente, um acontecimento. Segundo ele, o acontecimento é, naquilo que acontece, “o que deve ser compreendido, o que deve ser querido, o que deve ser representado no que acontece” (Deleuze, 1974, p. 152). Assim, podemos entender por que Viveiros de Castro se refere ao acontecimento da morte como um paradoxo: a morte, em nossa cultura ocidental, não é nem compreendida, nem querida, e nem representada naquilo que acontece. Poderia então o processo de luto ser aquilo que torna a morte um acontecimento, ao nos oferecer possíveis chaves de compreensão dela como processo inextricável da vida, o que nos permitiria passar a amá-la e conferir sentido a ela? Em nosso ponto de vista, amar um acontecimento como escolha ética, assim como propõe Deleuze, relaciona-se à Satyagraha de Gandhi, conforme definida por Nagler (2014Nagler, M. (2014). The Nonviolence Handbook: a guide for practical action. San Francisco, CA: Berrett-Koehler.): “agarrar-se àquilo que é”. O acontecimento da morte é, e quanto a isso nada há a fazer. Aderir à proposta deliberada da não-violência, que nos convida a não engajar no sofrimento, nos apoia a buscar lugares possíveis de potência e a inaugurar formas outras de existência, nas quais a morte seja honrada e reconhecida como parte da natureza que somos nós.

A doença e a morte como traumas, a escuta como antídoto

Um trauma é definido, de forma ampla, como sendo uma lesão provocada por agentes diversos. Para a psicologia, refere-se a uma marca produzida por uma agressão de cunho emocional que é capaz de desencadear perturbações mentais e físicas (Aurélio, 2010Ferreira,A.B. H. (2010). Novo Aurélio Século XXI: o dicionário da língua portuguesa. Curitiba: Positivo Soluções Didáticas. ). Essa agressão pode ser de origem natural ou humana, sendo experimentada como uma força avassaladora, contra a qual a pessoa que o sofre se sente absolutamente impotente. São vivências que fazem parte integrante da experiência humana, porém, podem ser ditas extraordinárias, pois superam a capacidade adaptativa que nos permite lidar com os desafios mais comuns da vida. Um trauma psicológico decorre de ameaças à vida ou à integridade física e emocional, que, pela intensidade com a qual são experimentadas e pela impossibilidade de controlá-las, adaptar-se a elas ou fugir, provocam sentimentos de medo intenso e temor de aniquilação. A experiência do trauma pode se dar tanto diretamente, ao experimentar, por exemplo, exposição a violência extrema ou ameaças à vida, quanto de forma vicária, ao testemunhar essas agressões e ameaças, conforme afirma Judith Herman (2015Herman, J. (2015). Trauma and Recovery. New York: Basic Books.).

Desta forma, podemos considerar a pandemia da Covid-19 como o grande trauma coletivo da era atual, cujas consequências a médio e longo prazo ainda havemos de nos deparar. Assunto, portanto, de grande interesse para os campos da psicologia social e da saúde mental. As marcas deixadas por ela serão profundas e persistentes, não só nas pessoas que perderam entes queridos para a doença e naquelas que foram hospitalizadas e se recuperaram, mas também nas famílias e pessoas responsáveis por seus cuidados, nas profissionais de saúde que atuam nas linhas de frente do enfrentamento e do cuidado e mesmo na população em geral, ameaçada por um ser invisível e desconhecido, muitas de nós confinadas por longos períodos de tempo, tendo nossas rotinas drasticamente alteradas e nossas fontes de renda comprometidas, ainda sem perspectivas de cura ou controle que possam oferecer uma certa segurança para a retomada das atividades da vida cotidiana. Além disso, com as restrições de movimentação e as consequências disso sobre o trabalho e as relações, temos sido exigidas(os) a explorar outras estratégias de vida que, de certa forma, anunciam a possibilidade de novas formas de existência pautadas, por exemplo, no início de uma recusa à aderência irrestrita às práticas capitalistas, na mudança das relações de trabalho e ensino, na digitalização da vida e das relações. Isso, para muitas pessoas, também se apresenta como um fator de risco, já que desorganiza as vidas e derruba uma certa ilusão de controle.

Para Herman (2015Herman, J. (2015). Trauma and Recovery. New York: Basic Books.), o trabalho de dissolução de traumas busca, sobretudo, a restauração das conexões - conosco mesmos, com a comunidade e com a sociedade na qual estamos inseridos. A autora descreve, a partir de sua observação neste trabalho, três estágios fundamentais para a recuperação das pessoas que vivenciaram traumas: estabelecer segurança, reconstituir a história do trauma e restaurar a conexão entre sobreviventes do trauma e suas comunidades. Sendo assim, a oferta de espaços seguros e de confiança, na qual uma escuta empática e sensível das narrativas se processe, pode ser uma estratégia muito efetiva neste cuidado.

Por escuta empática e sensível, entendemos um foco de ação e atenção que visa abrir clareiras na comunicação para que o novo emerja, trazendo a pessoa que escuta como força fraca interferente que apoia no processo da escuta de si mesma e nos desbloqueios da criatividade que leva a outras formas de lidar com as situações desafiadoras e traumáticas. Essa escuta, muito mais do que a captação dos sons e a interpretação dos significados que residem nas palavras ditas e ouvidas, engloba também a linguagem não-verbal, as pausas, a atenção aos sinais e os sentidos ocultos naquilo que é dito, inclusive a partir de produções expressivas, como objetos de arte. Esta modalidade de escuta exige a abertura para os atravessamentos afetivos, convocando a vulnerabilidade de quem se propõe ouvir, ao mesmo tempo em que acolhe a de quem se dispõe a falar. Nas palavras de Rolnik (2016Rolnik, S. (2016). Cartografia Sentimental: transformações contemporâneas do desejo. Porto Alegre: Sulina., p. 12), “nos permite apreender a alteridade em sua condição de campo de forças vivas que nos afetam e se fazem presentes em nosso corpo na forma de sensações... Com ela, o outro é uma presença que se integra à nossa textura sensível, tornando-se, assim, parte de nós mesmos [sic]”. Essa ideia nos remete à noção de interdependência oferecida pelo paradigma da não-violência, sendo coerente, portanto, que embase a prática não-violenta que propomos.

Através dessa escuta - empática, sensível, implicada - busca-se propiciar a confiança que possibilita a expressão legítima dos sentimentos, valores e necessidades que subjazem aos comportamentos. É possível que a relutância em vivenciarmos o luto possa ter relação com a desconfiança de que há condições - intrapsíquicas, relacionais, sistêmicas - para habitá-lo sem nos perdermos nele. Portanto, a oferta de espaços nos quais essa confiança possa ser recuperada pode liberar essa expressão, tornando possível a vivência dos traumas da mudança e o trabalho do luto causado pelas perdas. Torna-se possível restaurar os laços sociais, comunitários, afetados pela morte e pela doença (Herman, 2015Herman, J. (2015). Trauma and Recovery. New York: Basic Books.). As autoras já vêm vivenciando experiências neste sentido, através de suas atuações, por exemplo, nas ‘Rodas de Empatia’. Projeto iniciado em 2014, seu objetivo é resgatar o cuidado comunitário, através da escuta empática, do diálogo e da partilha de vivências e saberes (Leal & Rente, 2019Leal, D. T. B. & Rente, M. A. M. (2019). O conflito e outras noções práticas de reinvenção experimental do Teatro do Oprimido. In: D. T. B. Leal (Org.), Teatra da Oprimida: últimas fronteiras cênicas da pré-transição de gênero (pp. 59-72). Porto Seguro, BA: Universidade Federal do Sul da Bahia. ). Abertas a todas as pessoas interessadas e realizadas em locais públicos, a partir do início da pandemia, elas migraram para o ambiente virtual, tendo ocorrido online, semanalmente, a partir de março de 2020. Similarmente, os encontros da linha de pesquisa na qual as autoras estão inseridas, citados anteriormente, têm sido espaços poderosos de partilha e enlutamento entre os colegas, grande parte deles trabalhadores da saúde atuando diretamente no enfrentamento da Covid-19. Consideramos que cabe a utilização destes e de outros recursos na oferta de espaços - por hora, virtuais, futuramente, de forma presencial - onde a escuta profunda e o cuidado dos traumas advindos da vivência da pandemia poderão continuar se processando.

Considerações finais

Este é um momento histórico importante, marcado pela súbita paralisação das atividades cotidianas, pela reconfiguração de práticas e pela instabilidade causadas pela emergência do coronavírus. Tememos por nossas vidas, pelas vidas das pessoas que amamos, pelas consequências desse hiato forçado para um futuro que se revela imprevisível. Lamentamos as desigualdades que fazem com que certas populações - sempre aquelas historicamente mais afetadas, como as pessoas pobres e negras, os povos originários, as populações periféricas - sejam, novamente, as mais impactadas pela Covid-19. Como nos reorganizaremos, enquanto sociedade, a partir do momento em que essas atividades e práticas forem retomadas? Haverá a sonhada tomada de consciência sobre o fato de que somos, como espécie, responsáveis pelas condições que criaram o campo para que a doença se estabelecesse? Essa consciência desperta será o suficiente para promover as consequentes e sonhadas transformações que nos levarão a uma vida mais plena e cuidadosa? Quais serão as consequências das instabilidades política e econômica que se intensificam a cada dia, especialmente no nosso país?

Todos esses questionamentos e incertezas, somados à consciência cada vez mais aguda da perda de muitas vidas, tanto de pessoas próximas a nós, quanto de outras que, ainda que não façam parte de nossas vidas, integram o tecido social no qual estamos entretecidas(os) e que nos configura como humanidade, convocam nossa dor, nossa tristeza. Os afetos tristes nos despotencializam e nos colocam em risco de aceitar uma servidão voluntária, em nome de gozarmos de proteção e apaziguamento. Nossa hipótese é de que a possibilidade do enlutamento coletivo, através do oferecimento de espaços corajosos, seguros e inclusivos de escuta e partilha das dores e inquietações, nos quais sejam acolhidas todas as expressões legítimas do sofrimento, pode contribuir para a reconfiguração dos afetos, aumentando as potências individuais e coletivas e contribuindo para a invenção de formas outras de viver, mais alinhadas aos princípios e necessidades das vidas.

Quando, através dos processos de escuta e elaboração do luto, dissolvem-se os traumas que bloqueiam a abertura para os afetos tristes estimulados pela experiência extrema da doença e da morte, torna-se finalmente possível vivenciá-lo como processo de elaboração das perdas e abertura de clareiras para formas outras possíveis de vida. Temos observado a emergência de várias estratégias que as pessoas escutadas por nós têm encontrado para lidar com os desafios apresentados pela pandemia e suas restrições. Ações de solidariedade, colaboração, formulação de estratégias de cuidado de si e de outras pessoas, como, por exemplo, iniciativas de arrecadação de alimentos e recursos financeiros para comunidades carentes, compras coletivas, confecção de máscaras para distribuição, formação de grupos comunitários para apoio mútuo entre vizinhanças etc., que se tornam mais sustentáveis quando embasadas na escuta profunda, ao contrário das ações voluntariosas e individualistas que surgem como reação imediata aos estímulos dolorosos. É a potência brotando do luto, o reconhecimento de que as vidas perdidas, todas elas, não pertencem mais somente aos organismos que pereceram, mas também à comunidade da qual elas faziam parte. Torna-se possível celebrar aquelas pessoas que se foram, ao reconhecermos a sua contribuição para nossas próprias vidas e comunidades, reconhecendo “a extraordinária forma pela qual a vida se perde e se perpetua no mesmo momento” (Barter & Rente, 2020Barter, D. & Rente, M. A. M. (2020). Uma Conversa Sobre Luto e Não-Violência [arquivo em video]. Recuperado de https://www.youtube.com/watch?v=CjjSofarFic&t=2s
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, vídeo).

Consideramos que a narrativa apresentada neste trabalho é provisória e ainda há de ser maturada em outras produções, já que nos encontramos em plena vivência da pandemia e há muito a ser construído ainda em termos de outras narrativas, suas leituras e de outras compreensões das consequências e efeitos dos processos sociais decorrentes delas. Mais do que uma tentativa de esgotar o assunto, o que seria inviável, oferecemos aqui um convite para o aprofundamento das reflexões iniciadas e de novas interlocuções que poderão enriquecer e aprofundar reflexões sobre este acontecimento, a pandemia, que, ao nos tomar de assalto por sua ineditude, sua complexidade e seus drásticos impactos, pede por múltiplos olhares.

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  • Consentimento de uso de imagem: Não se aplica
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  • Financiamento: Não houve financiamento

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Set 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    30 Jun 2020
  • Revisado
    24 Jul 2020
  • Aceito
    27 Jul 2020
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