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MULHERES EM TEMPOS DE PANDEMIA: UM ENSAIO TEÓRICO-POLÍTICO SOBRE A CASA E A GUERRA

MUJERES EN TIEMPOS PANDÉMICOS: UN ENSAYO TEÓRICO-POLÍTICO SOBRE LA CASA Y LA GUERRA

WOMEN IN A PANDEMIC CONTEXT: A THEORETICAL-POLITICAL ESSAY ABOUT HOUSE AND WARFARE

Resumo

Nesse ensaio, objetivamos pensar a pandemia a partir da situação das mulheres. Para tanto, analisamos o modo como a crise sanitária aciona teórico-politicamente noções sobre a casa e a guerra, tomadas como dispositivos de análise. A casa tenciona fronteiras entre público e privado, principalmente ao olharmos para a violência contra mulheres e para o trabalho doméstico. A guerra, estratégia que tem sido usada para pensar o combate ao coronavírus, aciona masculinidades afastando as mulheres dos espaços de decisões políticas para enfrentamento da pandemia, apesar de estarem na linha de frente como trabalhadoras da saúde e em outros serviços essenciais. Entretanto, a gramática bélica também possibilita a denúncia de ataques às mulheres em tempos de crise. Nos usos destes dispositivos, identificamos modos de direcionar a comoção social e hierarquizar vidas. Atentamos para a importância de transversalizar a perspectiva de gênero na construção de políticas públicas durante e pós-pandemia.

Palavras-chave:
Pandemias; Violência contra a mulher; Guerra; Psicologia Social; Política pública

Resumen

En este ensayo, nuestro objetivo es pensar la pandemia desde la situación de las mujeres. Con este fin, analizamos la forma en que la crisis de salud desencadena nociones teóricas y políticas sobre la casa y la guerra, tomadas como dispositivos de análisis. La casa tiene la intención de establecer límites entre lo público y lo privado, especialmente cuando se analiza la violencia contra las mujeres y el trabajo doméstico. La guerra, una estrategia para pensar en combatir el coronavirus, desencadena las masculinidades al alejar a las mujeres de los espacios de toma de decisiones políticas para enfrentar la pandemia, a pesar de estar en primera línea como trabajadoras de la salud y en otros servicios esenciales. Sin embargo, la gramática de la guerra también permite denunciar los ataques contra las mujeres en tiempos de crisis. En los usos de estos dispositivos, hemos identificado formas de dirigir la conmoción social y jerarquizar vidas. Señalamos la importancia de incorporar la perspectiva de género en la construcción de políticas públicas durante y después de la pandemia.

Palabras clave:
Pandemias; Violencia contra las mujeres; Guerra; Psicología Social; Política pública

Abstract

In this essay, we aim to think about the pandemic from the women’s situation, by analyzing how the health crisis theoretically and politically operates the concepts of house and warfare. The house tenses borders between public and private spheres, especially when considering the issue of violence against women and the domestic work. As the strategy that has been used to combat coronavirus, warfare triggers concepts of masculinity. That withdraws women from political decision-making spaces, even though they are at the forefront fighting the pandemics as health workers and among other essential services. However, the warfare discourse also enables to expose attacks against women during a period if crisis. These devices are being used to direct social commotion and create a hierarchy over which lives matter. Thus, we highlight the importance of reading gender relations as a transversal issue in the construction of public policies during and after the pandemic.

Keywords:
Pandemics; Violence against women; Warfare; Social Psychology; Public Policy

Introdução

Vitória era técnica de enfermagem. Foi a pessoa mais amorosa e bondosa que a enfermeira Manuela conheceu na vida. Ambas trabalhavam no mesmo hospital e eram muito amigas. “O abraço dela era tão apertado que não dava vontade de sair”, conta Manuela. Apaixonada pela profissão, Vitória tratava seus pacientes como membros da sua família. Vitória Crimele faleceu em Recife (PE), aos 22 anos, vítima do novo coronavírus. (Inumeráveis, 2020)

Mulher, mãe, suburbana e dona de si. "Ah, Dona Vera... Hoje não tem Araketu, caipirinha, Julio Iglesias, nem suas garrafinhas d'água na geladeira... hoje foi seu dia de chegar pra bagunçar outra vizinhança. Obrigada por me proteger, ensinar a não ter medo de homem - porque 'é tudo frouxo' - e que o amor é a única força capaz de derrubar ou levantar alguém. Descanse! E que o povo lá encha as garrafas de água... senão a briga vai ser feia!", deseja a neta Giuline. Vera Lourdes Santos da Silva morreu em Mesquita (RJ), aos 69 anos, vítima do novo coronavírus. (Inumeráveis, 2020Silva, V. R., Ferreira, L., & Lara, B. (2020, 20 de abril). Pandemia dificulta acesso a contraceptivos no sistema de saúde. Gênero e Número. Recuperado de http://www.generonumero.media/pandemia-dificulta-acesso-contraceptivos-no-sistema-de-saude/
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)

Esses depoimentos, e outros que apresentaremos ao longo do texto, compõem alguns projetos (1 1 “Não há quem goste de ser número, gente merece existir em prosa” é a inspiração do projeto “Inumeráveis”, construído pelo artista Edson Pavoni e colaboradores e que conta com uma rede de trabalho colaborativa de jornalistas (Inumeráveis, 2020). Relicários é um projeto da pesquisadora Debora Diniz em parceria com o artista visual Ramon Navarro (Relicários, 2020). ) criados no cenário da pandemia do novo coronavírus. São narrativas que contam histórias e registram os nomes e as singularidades que têm sido, muitas vezes, reduzidas a números. Em tempos de questionamento dos dados estatísticos, ressaltamos que a contagem (de número de infectadas/os e de óbitos) é tão importante quanto a contação enquanto narrativa das particularidades e vivências das perdas e das dificuldades da pandemia. No final de junho, o Brasil ultrapassou 56 mil mortes registradas pela doença. É difícil imaginar o que isso significa e qual a nossa capacidade de luto/comoção e de luta/ação. Nos diferentes momentos em que este texto for lido, teremos outros números contabilizando as perdas e, juntamente com as mortes, há tantos outros aspectos importantes de serem elaborados sobre o caos em que nos lançamos em 2020. Nesse desafio, propomos pensar a pandemia a partir de uma perspectiva feminista, atentando especialmente para a situação das mulheres.

A pandemia ocasionada pelo novo coronavírus intensificou crises que já faziam parte das realidades mundial e nacional. Apesar da palavra “pandemia” remeter a tudo e a todas/os, o processo que atravessamos revela e amplifica dinâmicas do capitalismo neoliberal e mostra sua faceta de desigualdades, especialmente em países como o Brasil, e em corpos marcados pela vulnerabilização social. No cenário brasileiro, a crise sanitária se soma à crise de governança, resultando num pandemônio que produz mais precariedades e violências.

Neste sentido, a pandemia é tomada como analisador - conceito-ferramenta que expressa uma problemática e causa desvios - para pensar a posição das mulheres, sendo a casa e a guerra dispositivos que dão visibilidade a complexos jogos de poder. O poder entendido como uma forma de relação que tem por objeto outras ações possíveis e opera sobre um campo de possibilidades. Desse modo, o exercício do poder abre um campo de respostas, reações, efeitos, invenções possíveis, enfrentamentos e resistências (Michel Foucault, 2006aFoucault, M. (2006a). Estratégia, Poder-Saber. In Coleção Ditos e Escritos (pp. 223-240). Rio de Janeiro: Forense Universitária. ).

Compreendemos dispositivo, em termos foucaultianos, como a rede que se pode tecer entre os elementos heterogêneos que abarca discursos, arquiteturas, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, em suma, o dito e o não dito (Foucault, 2006bFoucault, M. (2006b). Microfísica do poder (22ª ed.). Rio de Janeiro: Graal.). A casa e a guerra seriam máquinas de fazer ver e de fazer falar que comportam linhas de força, de visibilidade e de enunciação (Deleuze, 2013Deleuze, G. (2013). Foucault. São Paulo: Brasiliense.). Não temos como pretensão esgotar os enunciados relativos a esses dois dispositivos, já que a proliferação de materiais circulando tornaria essa tarefa impossível.

Diante desse complexo cenário, objetivamos, neste ensaio, pensar algumas situações em que são produzidos efeitos diferenciados para as mulheres no contexto da pandemia, analisando o modo como a crise sanitária aciona noções sobre a casa e a guerra. Estes dispositivos, analisados a partir de uma perspectiva feminista, embaralham as fronteiras do pessoal e do político, possibilitando articular as relações de poder em embates cotidianos nos espaços íntimos e em contextos sociopolíticos ampliados, resistindo a abordagens individualizantes e dicotômicas.

A reflexão do espaço da casa problematiza a noção de lar harmonioso, especialmente no que diz respeito à violência contra mulheres e ao trabalho doméstico. Já a metáfora da guerra aciona imagens de masculinidade, retirando as mulheres do espaço de decisões políticas, além de direcionar a comoção social, hierarquizando vidas, mas também possibilitando a denúncia do ataque às mulheres em tempos de crise, como já observado em outros contextos históricos.

Neste sentido, abordamos temáticas importantes para a Psicologia Social, que se propõe crítica e comprometida com a realidade brasileira, especialmente o aprofundamento da desigualdade social, delimitando contornos específicos nesta crise sanitária, a partir da distribuição do trabalho doméstico e de cuidado, das violências contra as mulheres, do afastamento das mulheres dos espaços de decisão política, do ataque aos direitos reprodutivos e do controle da comoção pelas perdas. Ademais, sinalizamos a importância de transversalizar a questão de gênero na construção de políticas públicas durante e pós-pandemia.

Fiquem em casa!

As medidas de controle da crise sanitária orientadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) recomendam o isolamento social (2 2 No Brasil, os índices de isolamento social possuem grande variação. Atribuímos este movimento às contradições no âmbito federal - minimizando a gravidade da doença e contrapondo saúde à economia - e às definições em cada estado e município que refletem realidades distintas de cada território, impactando nas diferentes adesões da população às recomendações. ) e diversas medidas de higienização, colocando a casa como espaço privilegiado de proteção. Como alerta Carmen Silva (2020Silva, V. R., Ferreira, L., & Lara, B. (2020, 20 de abril). Pandemia dificulta acesso a contraceptivos no sistema de saúde. Gênero e Número. Recuperado de http://www.generonumero.media/pandemia-dificulta-acesso-contraceptivos-no-sistema-de-saude/
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), líder do Movimento dos Sem-Teto do Centro - MSTC, “o “fique em casa”, pra mim, quando vindo dos governos, soa como uma hipocrisia. É muito fácil você dizer isso para uma população que tem casa, que tem lugar pra se abrigar” (Silva, 2020, s/pSilva, C. (2020). Sete verbos para se conjugar o morar. Texto 048. N-1 Edições. Recuperado de https://n-1edicoes.org/048
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). Se ter uma casa e condições de saneamento básico são privilégios, quem pode ser protegida/o? Diante de números alarmantes de violência doméstica, a casa protege quem? Não questionamos a estratégia do isolamento social, mas alertamos que a consigna “fiquem em casa”, associada à limitação de políticas sociais de educação, de saúde e assistência social, por exemplo, intensifica desigualdades e acentua outros riscos.

Apesar das diferentes condições para o exercício da quarentena, a pandemia nos convoca a pensar e/ou habitar intensivamente o espaço da casa. Ou seja, nem todas/os estão em casa em isolamento social, mas a casa é uma imagem fortemente acionada. Paul B. Preciado (2020Preciado, P. B. (2020). Aprendendo com o vírus. AGB-Campinas. Recuperado de http://agbcampinas.com.br/site/2020/paul-b-preciado-aprendendo-com-o-virus/
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) alerta que, na pandemia, o lar centraliza produção, consumo e controle biopolítico, antes dividido e disperso em instituições tradicionais como fábrica, prisão, escola, hospital. Sobre a vida nas casas, lares ou famílias (domínios discursivos que produzem diferentes significações) não se pode prescindir de abordar relações de poder, desigualdades, formas de dependência e vulnerabilidades que, atravessadas por questões de gênero, raça, sexualidade, geração, territorialidade e outros mapas analíticos, produzem subjetividades (Biroli, 2014Biroli, F. (2014). Justiça e família. In L. F. Miguel & F. Biroli (Orgs.), Feminismo e política: uma introdução (pp. 47-61). São Paulo: Boitempo.).

Na recomendação de ficar em casa, como ressalta Judith Butler (2020aButler, J. (2020a, 17 de maio) Quando a economia se torna o berro angustiante dos eugenistas - visões sobre a quarentena por Judith Butler [Entrevista concedida a J. Dominguez & R. Zen]. Mídia Ninja. Recuperado de https://midianinja.org/juanmanuelpdominguez/quando-a-economia-se-torna-o-berro-angustiante-dos-eugenistas-visoes-sobre-a-quarentena-por-judith-butler/
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), há certa presunção de funcionamento da estrutura de cuidado baseada nas relações de gênero, abrindo espaço também para redefinições, buscando “manter vivas as correntes de afeto, comunidades, alianças queer e solidariedade online” (Butler, 2020a, s/p). Seria possível uma nova cartografia política, tensionando a relação público privado que o dispositivo casa dispara? Diante dessa reflexão, significados vinculados ao cenário doméstico precisam ser desnaturalizados, já que casa e lar não são sinônimos. Se, por um lado, o conceito de casa é historicamente compreendido como um espaço físico que proporciona o descanso e a reunião familiar, por outro lado carrega noções subjetivas de carinho e afeto (Schwarcz, 2020Schwarcz, L. (2020, 04 de maio). Casa não é a mesma coisa que lar (e vice-versa). Nexo Jornal. Recuperado de https://www.nexojornal.com.br/colunistas/2020/Casa-n%C3%A3o-%C3%A9-a-mesma-coisa-que-lar-e-vice-versa
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).

A invenção do conceito de lar está circunscrita a certos modelos de organização social, buscando normatizar a diversidade de formas de existência familiar. No entanto, o conceito tradicional de lar não representa a maioria das residências, servindo ao longo da história como produção de silenciamentos: “Morar não é apenas se cercar de paredes e ter um teto por cima. Mas é se cercar de direitos, de informação, de cidadania” (Silva, 2020Silva, V. R., Ferreira, L., & Lara, B. (2020, 20 de abril). Pandemia dificulta acesso a contraceptivos no sistema de saúde. Gênero e Número. Recuperado de http://www.generonumero.media/pandemia-dificulta-acesso-contraceptivos-no-sistema-de-saude/
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, s/p). Por isso, é importante problematizar o contexto doméstico sem ignorar as tensões, já que ressaltar harmonia ou modelos familiares hegemônicos significa invisibilizar as heranças de violências e desigualdades existentes no Brasil (Schwarcz, 2020Schwarcz, L. (2020, 04 de maio). Casa não é a mesma coisa que lar (e vice-versa). Nexo Jornal. Recuperado de https://www.nexojornal.com.br/colunistas/2020/Casa-n%C3%A3o-%C3%A9-a-mesma-coisa-que-lar-e-vice-versa
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).

Nas casas/lares/famílias, em sua concepção mais convencional, é possível identificar formas de funcionamento que fundem casamento heterossexual monogâmico, amor romântico e cuidado com os/as filhos/as com base na ideia de domesticidade das mulheres (Biroli, 2014Biroli, F. (2014). Justiça e família. In L. F. Miguel & F. Biroli (Orgs.), Feminismo e política: uma introdução (pp. 47-61). São Paulo: Boitempo.). Essa construção relacional na casa/lar/família está intimamente conectada com as desigualdades de gênero em vários níveis, como a sobrecarga de trabalho doméstico das mulheres, incluindo-se a (quase) exclusividade de cuidado com filhas/os e a falta do uso do tempo para si. Como desdobramentos desses arranjos, observamos ciclos de vulnerabilidades nas vidas das mulheres que desembocam na (re)produção da pobreza. Isso porque, além dos processos de marginalização e exploração do trabalho na esfera doméstica aos quais muitas mulheres estão submetidas, qualificar-se e investir na vida profissional é um ato custoso devido à sobrecarga da vida das mulheres.

A casa sob os holofotes

Seu trabalho foi proteger mulheres vítimas de violência. Imagino cada vítima cuidada que sobrevive em luto por ela. Foi a primeira a morrer em Tocantins. Era maranhense, 47 anos. (Relicário, 2020, s/pRelicário. (2020). Relicários são memórias, aquilo que guardamos. Aqui são relicários de uma epidemia no Brasil. Recuperado de https://www.instagram.com/reliquia.rum/
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)

Na tentativa de romper com a noção romantizada e idealizada do lar, problematizamos duas situações em que a casa, como ambiente de afetos e harmonia, é desconstruída: violência doméstica e trabalho doméstico. Esta última linha de análise desdobra-se nas questões referentes ao trabalho reprodutivo e ao ofício doméstico que também aciona a figura da casa enquanto ambiente seguro e confortável para algumas, mediante a colocação de outras mulheres em risco.

Quanto à violência doméstica durante a pandemia, vários países, como China, Espanha, Estados Unidos, França, Itália e Portugal, informaram aumento de ocorrências. No Brasil, identificou-se aumento de 27% das denúncias no ‘ligue 180’. No entanto, os registros de lesão corporal diminuíram em 25,5% nos meses de março e abril de 2020 comparados com o mesmo período do ano anterior (Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2020Fórum Brasileiro de Segurança Pública. (2020). Violência doméstica durante a pandemia de Covid-19. Recuperado de https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2020/06/violencia-domestica-covid-19-ed02-v5.pdf
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). Os dados indicam diferentes realidades no território nacional apontando para heterogeneidades diversas, mas deixando explícito que, para muitas mulheres confinadas com agressores/as, as dificuldades de se fazer uma denúncia nos equipamentos públicos têm se intensificado. Nesse contexto, temos acompanhado a emergência de políticas públicas no cenário mundial que indicam caminhos possíveis para o Brasil.

As ações sinalizam respostas construídas pelos países para mitigar a violência de gênero durante a pandemia e compreendem: (a) manutenção, expansão e inovação dos serviços públicos de atendimento à mulher, caracterizando-os como serviços essenciais (aumento de orçamento, expansão de canais de atendimento e ampliação do número de vagas em abrigos), em países como Argentina, Chile, Colômbia, Espanha, Estados Unidos, França, Portugal e Uruguai; (b) garantia de renda para mulheres (renda mínima e inclusão em programas de transferência de renda), na Argentina; (c) campanhas de conscientização e alerta sobre violência de gênero (apoio da vizinhança na denúncia, elaboração de materiais sobre tipos de violência e apelo nas mídias sociais), em países como China, França, Portugal e Suíça; (d) parcerias do governo para aumentar o alcance de suas ações (parceria com hotéis para aumento da capacidade de abrigo e com organizações da sociedade civil para ampliar atendimentos, parceria com estabelecimentos comerciais como mercados e farmácias para recebimento de denúncias e com serviços postais para reconhecimento de sinais de violência), sendo estratégias implementadas na Espanha, França Reino Unido e em países da região do Caribe (IPEA, 2020IPEA. (2020). Nota técnica Políticas públicas e violência baseada no gênero durante a pandemia da COVID-19: ações presentes, ausentes e recomendadas. Recuperado de http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/10100/1/NT_78_Disoc_Politicas%20Publicas%20e%20Violencia%20Baseada%20no%20Genero%20Durante%20a%20Pandemia%20Da%20Covid_19.pdf
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).

Para muitas mulheres, o espaço doméstico é truculento, já que é onde grande parte das agressões físicas, psicológicas, morais, patrimoniais e sexuais ocorre (Gago, 2020Gago, V. (2020). A potência feminista ou o desejo de transformar tudo. São Paulo: Elefante .). Assim, para algumas, o ambiente da casa nada tem de pacífico ou seguro, tornando-se, muitas vezes, um campo de batalha contra as violências e pela sobrevivência, uma vez que os índices de homicídio de mulheres apresentam uma alta domesticidade, tanto em relação ao local onde ocorrem quanto aos meios utilizados (Wailselfisz, 2015Wailselfisz, J. J. (2015). Mapa da violência: homicídio de mulheres no Brasil. Brasília, DF: ONUMulheres. Recuperado de http://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2016/04/MapaViolencia_2015_mulheres.pdf
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).

De acordo com o Mapa da Violência de 2015, 27,1% dos homicídios de mulheres 3 3 Na apresentação dos dados estatísticos, o Mapa da Violência não faz a distinção entre homicídios e feminicídios. No entanto, é possível traçar algumas características em relação às violências letais cometidas contra as mulheres que se relacionam com a tentativa de desconstrução da casa como um ambiente seguro. ocorreram dentro de casa, enquanto para os homicídios masculinos esse número cai para 10,1%. Em via pública, esses números são, respectivamente, 31,2% e 48,2%. Em relação aos meios utilizados nos crimes, enquanto 73,2% dos homicídios masculinos foram cometidos com arma de fogo, nos homicídios femininos esse número cai para 48,8%. Nos crimes cometidos por meio de objetos cortantes, instrumentos de fácil acesso dentro de casa, os homicídios femininos apresentam o índice de 25,3% e os masculinos, 14,9% (Waiselfisz, 2015).

Quanto à articulação entre casa e trabalho, podemos colocar em análise o trabalho reprodutivo, de cuidado com os/as filhos/as e com os afazeres domésticos. Os significados históricos do trabalho reprodutivo produziram uma carga física e mental acentuada para as mulheres, com o agravante de ser compreendido não como trabalho, mas como demonstração de carinho e “uma necessidade interna, uma aspiração, supostamente vinda das profundezas da nossa natureza feminina” (Federici, 2019Federici, S. (2019). O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. São Paulo: Elefante ., p. 42).

Para Biroli (2018Biroli, F. (2018) Gênero e desigualdades: limites da democracia no Brasil. São Paulo: Boitempo .), a forma como foi se definindo histórica e socialmente a criação de crianças fez da maternidade um fator que reduz a autonomia relativa individual e coletiva das mulheres. Inclusive, podemos conceber maternidades desigualmente seguras, na medida em que os atravessamentos de classe, raça e territorialidade criam contextos, ou mais protetivos, ou mais vulnerabilizantes. Tomemos, por exemplo, o exercício da maternidade e cuidados em situações de conflitos diversos como guerras nacionais ou comunitárias ou diante da violência estatal corporificada na ação policial e suas lógicas racistas, classistas e machistas. O assassinato com dois tiros na cabeça do jovem negro Guilherme Silva Guedes, no dia 14 de junho de 2020Silva, V. R., Ferreira, L., & Lara, B. (2020, 20 de abril). Pandemia dificulta acesso a contraceptivos no sistema de saúde. Gênero e Número. Recuperado de http://www.generonumero.media/pandemia-dificulta-acesso-contraceptivos-no-sistema-de-saude/
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, em São Paulo, e o luto da avó, Antônia Arcanja da Silva, que praticou a maternagem do garoto (Stabile & Dias, 2020Stabile, A. & Dias, P. E. (2020, 16 de junho). Adolescente negro é encontrado morto após ser sequestrado e família suspeita de PMs. El País . Recuperado de https://brasil.elpais.com/brasil/2020-06-16/adolescente-negro-e-encontrado-morto-apos-ser-sequestrado-e-familia-suspeita-de-pms.html
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), expõe o mundo de cuidados das mulheres e as vulnerabilidades que elas e filhas/os, netas/os estão imersas/os.

No contexto da pandemia, para algumas mulheres, os ofícios de cuidado misturam-se às rotinas de home office e homeschooling. Ainda que estas atividades sejam cansativas, são atravessadas por privilégios de classe e raça. Para muitas mulheres, a realização de atividades virtuais remuneradas (home office) representam, além do estrangeirismo linguístico, uma impossibilidade, seja pelo vínculo de trabalho informal seja pela natureza das atividades que exercem. Para outras, as dificuldades e a exaustão estão articuladas à perda ou diminuição brusca da renda e à impossibilidade de contar presencialmente com redes de apoio devido às medidas de distanciamento social (Evans & Ilovatte, 2020Evans, L. & Ilovatte, N. (2020, 09 de maio). Nós, mães, estamos exaustas. Cria para o mundo. Recuperado de https://www.criaparaomundo.com.br/post/n%C3%B3s-m%C3%A3es-estamos-exaustas
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).

Há, ainda, as que exercem os serviços essenciais 4 4 A definição de serviços essenciais tem sofrido alterações ao longo da pandemia, após o Decreto n. 10.282/2020 de 20 de março de 2020. De maneira geral, consideramos serviços essenciais as atividades necessárias à sobrevivência, saúde e abastecimento. e, por isso, estão impossibilitadas de permanecerem em casa, ficando expostas à contaminação. Tais serviços são realizados, majoritariamente, por mulheres (Bhatia, 2020Bhatia, A. (2020, 30 de março). Mulheres e COVID-19: cinco coisas que os governos podem fazer agora. ONU Mulheres. Recuperado de http://www.onumulheres.org.br/noticias/mulheres-e-covid-19-cinco-coisas-que-os-governos-podem-fazer-agora/
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) e, no período da pandemia, as desigualdades do trabalho formal e a conciliação com os cuidados reprodutivos e da casa se tornam mais acentuados.

Na realidade brasileira, o trabalho doméstico não envolve apenas aquele exercido pelas/os próprias/os moradoras/es de um domicílio. Muitas famílias terceirizam essas tarefas às empregadas domésticas, categoria profissional marcada pela desigualdade racial e de gênero, historicamente desvalorizada e que atua, muitas vezes, em condições precárias de trabalho. As mulheres representam 95% das pessoas que exercem o trabalho doméstico terceirizado (IBGE, 2018IBGE. (2018). Pesquisa nacional por amostra de domicílio contínua divulgação especial: mulheres no mercado de trabalho. Rio de Janeiro: Autor. Recuperado de https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101641.pdf
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). Ainda é preciso levar em conta a herança colonial que persiste no país. Somente em 2015 estas trabalhadoras tiveram a garantia de algumas conquistas trabalhistas, por meio da aprovação de emenda constitucional que dispôs sobre o contrato de trabalho doméstico (Lei Complementar n. 150/2015BRASIL (2015). Lei Complementar n. 150, de 01 de junho de 2015. Dispõe sobre o contrato de trabalho doméstico e dá outras providências. Recuperado de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp150.htm
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).

Dentre as peculiaridades deste trabalho, Patricia Hill Collins (2019Collins, P. H. (2019). Pensamento feminista negro. São Paulo: Elefante.) afirma que “o que o torna mais profundamente abusivo que outras ocupações comparáveis é exatamente o que o torna único: a relação pessoal entre empregador e empregado” (p. 117). São relações atravessadas pelo falso movimento de integração das trabalhadoras às famílias, numa tentativa de retirar o cartáter de trabalho que perpassa o vínculo entre empregadas e empregadores/as. Falso, porque tenta invisibilizar o que (d)enuncia as relações de poder: o uso de uniformes, a superexploração, a utilização de ambientes diferentes, a linguagem utilizada para se referir tanto às empregadas quanto aos/às empregadores/as, colocando-as em uma posição de outsider interna (Collins, 2019).

O contexto da pandemia trouxe-nos tristes exemplos que ilustram a realidade do trabalho doméstico no Brasil. A primeira morte pelo novo coronavírus no Rio de Janeiro foi de uma empregada doméstica. Cleonice Gonçalves trabalhava para uma família residente de um apartamento de luxo no Leblon e foi infectada pelos/as empregadores/as recém chegados/as de viagem à Itália (Melo, 2020Melo, M. L. (2020, 19 de março). Primeira vítima do RJ era doméstica e pegou coronavírus da patroa. Uol. Recuperado de https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/03/19/primeira-vitima-do-rj-era-domestica-e-pegou-coronavirus-da-patroa.htm
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)

Um segundo caso, ocorrido durante a escrita desse artigo, diz respeito à morte de Miguel Otávio de Santana, de 5 anos, em Recife. A mãe do menino, Mirtes Renata, empregada doméstica de uma família ligada ao cenário político de Pernambuco, saiu com o cachorro da família, enquanto Miguel ficou sob responsabilidade de Sarí Corte Real, sua empregadora. Sarí, que não teve seu nome revelado nas primeiras notícias, deixou o menino sozinho no elevador de serviço para procurar pela mãe, momento em que teve acesso à parte com abertura para a área externa e caiu do 90 andar do prédio (Magri, 2020Magri, D. (2020, 04 de junho). Morte de criança negra negligenciada pela patroa branca de sua mãe choca o Brasil. El Pais. Recuperado de https://brasil.elpais.com/brasil/2020-06-04/morte-de-crianca-negra-negligenciada-pela-patroa-branca-de-sua-mae-choca-o-brasil.html
https://brasil.elpais.com/brasil/2020-06...
).

Estas duas cenas, envolvendo pelo menos quatro mulheres e uma criança, poderiam ilustrar um filme de terror, mas falam de uma realidade cotidiana e sinalizam que gênero, enquanto categoria de análise, não funciona desconectado de outros marcadores de poder. É necessário interseccioná-los para compreendermos a desproporcionalidade com que a realidade imposta pelo vírus atinge de maneiras diferenciadas mulheres inseridas em contextos sociais e econômicos diversos (Butler, 2020bButler, J. (2020b, 04 de maio). O luto é um ato político em meio à pandemia e suas disparidades [Entrevista concedida a George Yancy]. Carta Maior. Recuperado de https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Pelo-Mundo/Judith-Butler-O-luto-e-um-ato-politico-em-meio-a-pandemia-e-suas-disparidades/6/47390
https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria...
). Nesta direção, Debora Diniz e Gisele Carino (2020Diniz, D. & Carino, G. (2020, 20 de março). Patroas, empregadas e coronavírus. Nós, mulheres da elite, lamentamos a difícil tripla jornada de trabalho com filhos na casa. Muitas já vivem essa cruel realidade há tempos. El País. Recuperado de https://brasil.elpais.com/opiniao/2020-03-21/patroas-empregadas-e-coronavirus.html
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) salientam que “empregada e patroa são as alegorias de como uma pandemia se cruza com as fronteiras dos privilégios de gênero, classe e raça” (s/p) e ressaltam o quanto esse cenário cruel é antigo e tem sustentado, inclusive, a emancipação de mulheres brancas e de elite.

O ficar em casa, ainda que seja uma medida de segurança e, no limite, de sobrevivência, torna-se um movimento possível apenas àquelas e àqueles que se encontram em posições de privilégio5 5 No fim de maio de 2020, quatro estados elencaram o trabalho doméstico na categoria de serviços essenciais. Foram eles: Rio Grande do Sul, Maranhão, Pernambuco (parte das profissionais como babás e cuidadoras de idosos e deficientes) e Pará (sendo que esta última unidade federativa recuou da decisão logo depois de anunciá-la). (Sobreira, 2020). . O imperativo do “fiquem em casa”, ao desdobrar-se em interrogação, permite que miremos sob outros ângulos o que à primeira vista se restringe à esfera privada - a violência doméstica e o trabalho doméstico. Estas temáticas atravessam intensamente os corpos das mulheres e produzem efeitos em diversos âmbitos - na participação política, no trabalho, na economia, nos direitos sexuais e reprodutivos, entre tantos outros aspectos da vida que tensionam as fronteiras entre público e privado.

O exposto até aqui poderia ser entendido como problemas miúdos, íntimos, de impactos menores na dinâmica social que se atormenta com a epidemia mundializada. Vejamos como estas questões se conectam com outro dispositivo que circula entre nós, a saber: a guerra e suas nuances.

Estamos em guerra?

A gravidade da pandemia tem acionado a metáfora da guerra. Não raras vezes, são utilizadas gramáticas bélicas para justificar diferentes medidas de combate ao coronavírus. Portanto, compreendemos que a guerra pode ser um dispositivo de análise no atual contexto. Estamos em guerra contra a Covid-19? Que efeitos essa gramática produz e de que forma é utilizada? De que modo o dispositivo da guerra permite a análise da situação das mulheres na pandemia?

Apesar do enfrentamento ao contágio do novo coronavírus, bem como a área da saúde não serem, claramente, prioridades do governo brasileiro, a gramática bélica é usada para fins específicos, direcionando recursos para algumas áreas e negligenciando outras. Isso porque a leitura da pandemia como uma guerra enquadra o problema em foco - a doença - e direciona esforços exclusivamente para áreas da saúde, responsáveis pelo embate direto com o problema sanitário. Neste enquadramento, excluem-se outras realidades (Sontag, 2003Sontag, S. (2003). Diante da dor dos outros. São Paulo: Companhia das Letras . [ebook]), negligenciando o risco presente em variados contextos, como a própria violência doméstica, e também os riscos associados a vulnerabilidades na realidade brasileira.

Acácio Augusto (2020Augusto, A. (2020). Guerra e Pandemia: produção de um inimigo invisível contra a vida livre. Texto 018. N-1 Edições. Recuperado de https://n-1edicoes.org/018
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) rejeita o uso da associação da pandemia com a guerra e denuncia que essa perspectiva serve aos interesses de senhores/as (patrões/patroas, empresários/as, políticos/as, militares, governantes). Nesta análise, a pandemia se refere “a uma luta pela vida de cada um e não pela morte de um inimigo invisível e intangível” (Augusto, 2020, s/p). Da mesma forma, José Manuel Sabucedo, Mónica Alzate e Dómenico Hur (2020Sabucedo, J. M., Alzate, M., & Hur, D. (2020). COVID-19 y la metáfora de la guerra. In M. Moya et al. (Orgs.), La Psicología Social ante el COVID19: Monográfico del International Journal of Social Psychology (pp. 30-36). https://doi.org/10.31234/osf.io/fdn32
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) problematizam a ambiguidade dessa imagem, que evoca resistência e heroísmo e, ao mesmo tempo, remete a enfrentamento, obediência e inimigo, afastando a utilização de importantes marcos relacionados ao cuidado, à empatia e à solidariedade. Reconhecemos a importância destas análises e utilizamos a guerra como um dispositivo, uma ferramenta não ingênua que permite dar visibilidade a certas relações de poder.

Politicamente, a metáfora da guerra aciona ferramentas específicas de disciplinamento e controle, como ressaltam alguns autores inspirados nas formulações de Foucault, que desenvolveu importantes análises sobre técnicas de poder para o gerenciamento da vida e da morte (Augusto, 2020Augusto, A. (2020). Guerra e Pandemia: produção de um inimigo invisível contra a vida livre. Texto 018. N-1 Edições. Recuperado de https://n-1edicoes.org/018
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; Lifschitz, 2020Lifschitz, J. A. (2020). Pandemia: qual biopolítica? In C. B. Augusto & R. D. Santos (Orgs.), Pandemias e pandemônio no Brasil (1 a ed., pp. 77-89). São Paulo: Tirant lo Blanch. ; Preciado, 2020Preciado, P. B. (2020). Aprendendo com o vírus. AGB-Campinas. Recuperado de http://agbcampinas.com.br/site/2020/paul-b-preciado-aprendendo-com-o-virus/
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). Dessa forma, a gramática bélica aplicada à pandemia produz um estado de emergência, com medidas extremas que servem de “laboratórios de inovação social, ocasião para uma reconfiguração em larga escala das técnicas do corpo e das tecnologias do poder” (Preciado, 2020, s/p).

Aprofundando esta análise no contexto brasileiro, Javier Lifschitz (2020Lifschitz, J. A. (2020). Pandemia: qual biopolítica? In C. B. Augusto & R. D. Santos (Orgs.), Pandemias e pandemônio no Brasil (1 a ed., pp. 77-89). São Paulo: Tirant lo Blanch. ) ressalta que as biopolíticas aqui se sobressaem não pelo excesso, mas pela ausência. Na recusa do dever constitucional de proteção da vida, o Estado brasileiro abandona parte da população, construindo uma estratégia de genocídio. Além disso, a imagem bélica tem reforçado a militarização das decisões políticas em relação à crise sanitária6 6 Até o momento de finalização deste texto, acompanhamos a saída de dois ministros da Saúde, sendo o cargo ocupado, interinamente, por um militar sem formação nem experiência na área. Atualmente, o Governo Federal conta com nove militares, todos homens, em cargos de ministros, correspondendo a 40% do total. .

O contexto tem se tornado ainda mais agravante pela demonstração de menosprezo pelas mortes por parte do Governo Federal: “E daí? Lamento, quer que eu faça o que? ... Mas é a vida. Amanhã vou eu”7 7 Frase do presidente, quando o Brasil ultrapassou cinco mil mortos, em 28 de abril de 2020. (Garcia, Gomes, & Viana, 2020) . Há, ainda, tentativa de ocultar dados relativos à mortalidade da doença pela retirada dos números acumulados de infectadas/os e mortes da página do Ministério da Saúde. Tal estratégia, que aponta para um projeto de nação, faz eco com o fenômeno das fake-news e outras mudanças de gestão governamental8 8 As informações sobre a pandemia fornecidas pelo Ministério da Saúde sofreram mudanças e mostraram incongruências, levando veículos de comunicação a criarem um arranjo de consórcio para a divulgação de informações com dados coletados diretamente junto às secretarias estaduais de saúde. . Assim, associar a pandemia à guerra reforça a ideia de que “mortes serão inevitáveis e sacrifícios serão necessários” (Augusto, 2020Augusto, A. (2020). Guerra e Pandemia: produção de um inimigo invisível contra a vida livre. Texto 018. N-1 Edições. Recuperado de https://n-1edicoes.org/018
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, s/p). Analisando a capacidade de comoção das fotografias de guerras (não como metáforas, mas como conflitos armados reais), Susan Sontag (2003Sontag, S. (2003). Diante da dor dos outros. São Paulo: Companhia das Letras . [ebook]) salienta o risco da insensibilidade pelo fatalismo causado pela guerra, paralisando a transformação da compaixão em ação.

Mãe, nordestina, descendente de indígenas e dona do melhor tempero do mundo. Yandiara era uma avó sempre presente e carinhosa, amiga de todos. Lutava por um mundo melhor e buscava ajudar as pessoas. Deixou um legado de força e coragem. Mãe do Fábio, Ana Paula e Ana Beatriz. Avó da Esther, Guilherme, Lara, Heitor, Marcelo e Gustavo... "Ela não é um número na estatística desse país! Ela é nossa, nossa parte. Nossa vida. Cada vítima foi o amor de alguém!", afirma Fábio. (Inumeráveis, 2020, s/pInumeráveis. (2020). Memorial Inumeráveis, dedicado às vítimas do coronavírus. Recuperado de https://inumeraveis.com.br/
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)

O dispositivo da guerra produz enquadres distintos (Butler, 2015Butler, J. (2015). Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.), direcionando nossa (in)capacidade de comoção com as perdas humanas: “E daí?”. Esse movimento limita a comoção e pode paralisar ações capazes de conter o problema uma vez que “o luto público está estreitamente relacionado à indignação, e a indignação diante da injustiça ou, na verdade, de uma perda irreparável, possui um enorme potencial político” (Butler, 2015, p. 66).

As possibilidades de luto e comoção estão também atravessadas pelas desigualdades de classe e raça. Em um comparativo com a epidemia de zika vírus, Diniz (2020Diniz, D. (2020, 22 de abril). É hora do STF responder o que significa uma epidemia para a vida das mulheres. [Entrevista concedida a Helena Bertho]. Azmina. Recuperado de https://azmina.com.br/reportagens/debora-diniz-e-hora-do-stf-responder-o-que-significa-uma-epidemia-para-a-vida-das-mulheres/
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) reflete sobre a comoção inicial que retratava os bebês com cabecinhas pequenas, numa hipótese de ser uma ameaça global. No entanto, ao contrário do novo coronavírus, quando percebeu-se que a doença estava confinada ao sertão das/os miseráveis, a comoção diminuiu e pouco se ouviu falar sobre zika novamente: “Ela tinha dois anos. A vida curta foi marcada pelas duas epidemias. Zika a marcou antes de nascer, Covid a levou. Morreu em Araripina, o sertão sofrido de zika em Pernambuco.” (Relicário, 2020)

Precisamos, além da comoção, analisar a articulação entre privilégios e violações. Sontag (2003Sontag, S. (2003). Diante da dor dos outros. São Paulo: Companhia das Letras . [ebook]) coloca em análise a noção de solidariedade, sentimento geralmente associado à ação diante da dor dos outros a partir de uma proximidade imaginária que esconde relações de poder. “Na mesma medida em que sentimos solidariedade, sentimos não sermos cúmplices daquilo que causou o sofrimento. Nossa solidariedade proclama nossa inocência, assim como proclama nossa impotência” (Sontag, 2003, s/p).

Além do direcionamento de recursos e da comoção, a metáfora da guerra aciona masculinidades: “O vírus tá aí, vamos ter de enfrentá-lo, mas enfrentar como homem, pô, não como moleque.9 9 Fala do presidente no dia 29 de março de 2020. (Betim, 2020) A pandemia, vista como guerra, seria uma questão masculina? Ao publicar “A guerra não tem rosto de mulher”, Svletana Aleksiévitch (2016Aleksiévitch, S. (2016). A guerra não tem rosto de mulher. São Paulo: Companhia das Letras.) apresenta a Segunda Guerra Mundial a partir da narrativa das mulheres soviéticas. A autora chama atenção para o modo como nessas histórias “não há heróis nem façanhas incríveis, há apenas pessoas ocupadas com uma tarefa desumanamente humana” (p. 11).

No caso da pandemia, são corpos femininos que ocupam a linha de frente do combate ao vírus, sendo maioria nas profissões da saúde (Hernandes & Vieira, 2020Hernandes, E. S. C. & Vieira, L. (2020, 16 de abril). A guerra tem rosto de mulher: trabalhadoras da saúde no enfrentamento à Covid-19. ANESP. Recuperado de http://anesp.org.br/todas-as-noticias/2020/4/16/a-guerra-tem-rosto-de-mulher-trabalhadoras-da-sade-no-enfrentamento-covid-19
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). Esta guerra teria, então, rosto de mulher? Entretanto, mesmo na linha de frente da saúde e de outros serviços considerados essenciais, as mulheres têm sido colocadas em segundo plano, sobretudo no governo federal, alijadas das tomadas de decisão.

Guerra às mulheres: corpos e territórios

A diferença entre a guerra e a paz é a seguinte: na guerra, os pobres são os primeiros a serem mortos; na paz, os pobres são os primeiros a morrer. Para nós, mulheres, há ainda uma outra diferença: na guerra, passamos a ser violadas por quem não conhecemos. (Couto, 2015Couto, M. (2015). Mulheres de Cinzas. São Paulo: Companhia das Letras . [ebook], s/p)

A história mundial nos mostra que situações extremas se convertem em maior violência sobre os corpos e as formas de existir das mulheres. Wânia Pasinato e Elisa Colares (2020Pasinato, W. & Colares, E. (2020, 20 de abril). Pandemia, violência contra as mulheres e a ameaça que vem dos números. Boletim Lua Nova CEDEC. Recuperado de https://boletimluanova.org/2020/04/20/pandemia-violencia-contra-as-mulheres-e-a-ameaca-que-vem-dos-numeros/
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) ressaltam estupros e utilização de coerção sexual em troca de alimentos, medicamentos e tratamentos em situações de guerra ou de crises sanitárias, como na guerra da Bósnia, nos anos 1990, nos campos de estupro de mulheres da Sérvia e na violência sexual contra mulheres sírias durante a travessia para países europeus. Ainda, nas epidemias como de ebola, cólera e zika, a violência sexual contra mulheres também foi usada como forma de controlar o acesso à comida, medicamentos e tratamentos para as mulheres e suas/seus filhas/os.

As violações contra mulheres em tempos de guerra não se restringem às batalhas convencionais entre Estados. Algumas guerras são travadas justamente contra os corpos das mulheres, como ocorreu na caça às bruxas, quando instituições estatais perseguiram mulheres que pretendiam a autonomia de seus corpos, seus trabalhos e suas vidas sendo, inclusive, uma das condições que possibilitou o desenvolvimento da lógica capitalista (Federici, 2017Federici, S. (2017). O calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante .). Já nas novas configurações de guerra, corpos femininos são deslocados de uma posição marginal para uma posição central devido à relação historicamente feita entre corpos femininos e território, sendo que “o corpo se torna independente desse pertencimento a um país conquistado e passa a constituir, em si mesmo, terreno-território da própria ação bélica” (Segato, 2014Segato, R. L. (2014). Las nuevas formas de guerra contra las mujeres. Sociedade e Estado, 29(2), 341-371., p. 352). Neste sentido, abordar as violências contra mulheres lésbicas, trans e travestis como uma guerra aos corpos femininos possibilita compreender uma economia específica e sistemática, não sendo mais possível atribuir razões individualistas ou patologizantes para as masculinidades violentas (Gago, 2020Gago, V. (2020). A potência feminista ou o desejo de transformar tudo. São Paulo: Elefante .). Entendemos esses jogos de poder, portanto, como um projeto de sociedade.

No contexto brasileiro, o uso da metáfora de guerra não é novo. Os movimentos sociais produzem resistência também habitando gramáticas bélicas, por exemplo, denunciando o genocídio da juventude negra, da população trans, o feminicídio, reivindicando políticas de proteção das vidas que são vulnerabilizadas pela ação ou omissão do Estado (Moreira, 2018Moreira, L. E. (2018). Por quem nos comovemos? Reflexões sobre nossos enquadramentos bélicos. Psicologia & Sociedade, 30. https://doi.org/10.1590/1807-0310/2018v30181902
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). Nesse sentido, compreender os usos desta gramática pode ser importante, inclusive pela possibilidade de também reivindicá-la, com base na análise da intensificação de violações de direitos das mulheres neste cenário, uma vez que o dispositivo da guerra é estratégia de denúncia e “lança luz nas violações sistemáticas sofridas pelas mulheres... colocando em foco as relações de força e de poder que envolvem essas dinâmicas” (Gago, 2020Gago, V. (2020). A potência feminista ou o desejo de transformar tudo. São Paulo: Elefante ., p. 81).

Ocupando esta gramática, é possível analisar o modo como a guerra às mulheres na pandemia vai se tornando concreta e visível. Serviços de saúde, essenciais de acordo com a OMS, mas que não contemplam o atendimento de homens cisgêneros, são negligenciados. Segundo Vitória Silva e Letícia Ferreira (2020Silva, V. R. & Ferreira, L. (2020, 2 de junho). Só 55% dos hos dos hospitais que ofereciam serviço de aborto legal no Brasil seguem atendendo na pandemia. Gênero e Número. Recuperado de http://www.generonumero.media/so-55-dos-hospitais-que-ofereciam-servico-de-aborto-legal-no-brasil-seguem-atendendo-na-pandemia/
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), além dos obstáculos e preconceitos para a interrupção da gravidez, durante a pandemia, houve fechamento de grande parte dos hospitais responsáveis por casos de abortamento legal,10 10 No Brasil, a legislação permite o aborto em três situações: anencefalia do feto, estupro e risco de morte para a gestante. sendo que de 72 estabelecimentos11 11 A maior parte dessas instituições se concentra nas capitais das regiões sul e sudeste do país, sendo que em 13 estados não há nenhum hospital que realize o procedimento. que realizavam o procedimento em 2019, apenas 42 mantiveram esse serviço.

Para mulheres que não se enquadram nas hipóteses de aborto legal a situação é ainda mais complexa. Considerando a impossibilidade de realizar o aborto em outro país, encontram-se obrigadas a prosseguir com a gestação ou submeter-se a procedimentos arriscados devido à criminalização da prática no Brasil (Bertho, 2020Bertho, H. (2020, 15 de maio). Elas iam abortar fora do Brasil, mas a pandemia impediu. Gênero e Número. Recuperado de http://www.generonumero.media/aborto-fora-brasil-pandemia-coronavirus/
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). Ainda, algumas instituições suspenderam serviços responsáveis pela distribuição de métodos contraceptivos. “Me disseram que não era hora de pensar nisso” foi a resposta recebida por uma mulher ao ter seu procedimento de colocação de Dispositivo Intrauterino (DIU), agendado há seis meses, cancelado (Silva, Ferreira, & Lara, 2020Silva, V. R., Ferreira, L., & Lara, B. (2020, 20 de abril). Pandemia dificulta acesso a contraceptivos no sistema de saúde. Gênero e Número. Recuperado de http://www.generonumero.media/pandemia-dificulta-acesso-contraceptivos-no-sistema-de-saude/
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).

Dentre as previsões sobre a pandemia, existe o argumento de que com o confinamento veremos a emergência do fenômeno baby boom. Entretanto, é difícil avaliar se serão nascimentos planejados pelas mulheres, efeitos da dificuldade de acesso aos serviços de saúde para contracepção ou interrupção da gravidez ou, ainda, consequências de estupros em contexto de violência doméstica (Ministério da Saúde, 2020). A diminuição ou perda da renda pode impactar no acesso a métodos contraceptivos, e aquelas que dependem do sistema de saúde pública correm risco de contaminação pelo coronavírus nos postos de distribuição ou ficam sem a utilização de algum método, aumentando o risco de gravidezes indesejadas12 12 De acordo com a nota técnica, ”Projeções internacionais estimam que aproximadamente 47 milhões de mulheres em 114 países de baixa e média renda poderão não ter acesso aos métodos contraceptivos, podendo ocorrer mais de 7 milhões de gravidezes não planejadas”. (Ministério da Saúde, 2020) (Agudo, 2020Agudo, A. (2020, 29 de abril). O indesejado baby boom provocado pela pandemia. El País. Recuperado de https://brasil.elpais.com/planeta_futuro/2020-04-28/o-indesejado-baby-boom-provocado-pela-pandemia.html
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).

Políticas de abandono e descaso com questões que não podem esperar o fim da epidemia mundializada para serem solucionadas. Na tentativa de expor as dificuldades de acesso à saúde sexual e reprodutiva no contexto da pandemia, a Coordenação de Saúde das Mulheres do Ministério da Saúde editou, no dia 10 de junho, uma nota técnica (Ministério da Saúde, 2020) que, entre outras ações, recomenda “a continuidade dos serviços de assistência aos casos de violência sexual e aborto legal” (p. 03). Passados cinco dias da publicação, as autoras da nota foram exoneradas, após declarações do presidente13 13 Trecho retirado de publicação no dia 03 de junho da conta oficial do presidente no Twitter: “O Ministério da Saúde está buscando identificar a autoria da minuta de portaria apócrifa sobre aborto que circulou hoje pela internet” (Vargas, 2020). contrárias ao conteúdo do documento (Vargas, 2020Vargas, M. (2020, 5 de junho). Saúde demite autores de nota distorcida por Bolsonaro. Terra. Recuperado de https://www.terra.com.br/noticias/brasil/politica/saude-demite-autores-de-nota-distorcida-por-bolsonaro,9f22eb2ac9097619d4f531ac09240c4exkaalm9a.html
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). No mesmo sentido, foi a fala da ministra da mulher, família e direitos humanos ao se referir à ação do Supremo Tribunal Federal (STF) relativa ao aborto legal: “As mulheres que são vítimas do zika vírus vão abortar... E agora vem do coronavírus? Será que vão querer liberar que todos que tiveram coronavírus poderão abortar no Brasil? Vão liberar geral?”14 14 A reunião ministerial do dia 22 de abril teve seu conteúdo divulgado em maio (Galvani, 2020).

Nesse contexto, presenciamos um agravamento na situação dos direitos sexuais e reprodutivos de meninas e mulheres que já se encontrava sob constantes ataques pelo governo e por parte da sociedade civil antes da pandemia, sendo extremamente negligenciados. Aqui, a guerra contra e no corpo das mulheres fica evidente, uma vez que há um impedimento concreto de acesso a direitos já previstos, colocando em risco a vida das mulheres.

Diante desse cenário, o que estamos presenciando é que a guerra aos corpos das mulheres na pandemia à brasileira ganha contornos perversos e se utiliza inclusive de corpos de mulheres como porta-vozes de medidas contra as mulheres. Além do ataque aos direitos reprodutivos, a ministra da mulher, da família e dos direitos humanos demorou mais de um mês, desde o início da quarentena, para se pronunciar sobre a administração da pasta durante a crise sanitária. Sem detalhar como será utilizado o orçamento, até o início de abril de 2020, o ministério havia executado apenas 0,13% do previsto para o ano de 2020, grande parte utilizado para “despesas diversas”, propagandas institucionais e funcionamento de conselhos da pessoa idosa, pessoa com deficiência e juventude (Zignoni, 2020Zignoni, C. (2020, 9 de abril). O governo que odeia as mulheres: a inércia de Damares Alves na crise do Covid-19. INESC. Recuperado de https://www.inesc.org.br/o-governo-que-odeia-as-mulheres-a-inercia-de-damares-alves-na-crise-da-codiv-19/
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).

Casa e guera não devem ser pensadas separadamente, mas em conjunto, como dispositivos que podem operar um continuum de diversas violências contra os corpos de mulheres. Desse modo, algumas reivindicações já colocadas antes da crise sanitária se mantém, outras tomam novos contornos e expõem ainda mais a necessidade de utilizar a perspectiva transversal de gênero para compreender realidades e construir políticas públicas no país.

Guerra e casa: é possível construir futuros?

Na busca de elaboração teórico-político dos acontecimentos relacionados à pandemia, encontramos importantes vozes de intelectuais contemporâneas/os que procuram compreender o presente e pensar caminhos, desde visões otimistas, que associam o vírus a uma oportunidade de transformação social, a visões pessimistas, que alertam para a capacidade de mutação dos sistemas de opressão. Estas reflexões são de extrema importância e nos apoiaram na produção de sentidos para a construção desse texto.

Nesse ensaio, corremos o risco da escrita em trânsito, feita em meio ao bombardeio de informações e acontecimentos próprio de uma experiência pandêmica como a que atravessamos na qual a velocidade de tudo tem se intensificado. Provocadas pelo intensivo dessa experiência apostamos na utopia ativa de inventar futuros possíveis. A analítica foucaultiana das relações de poder nos oferece pistas para construção de estratégias de enfrentamento, resistência e luta nessa complexa trama que insiste em produzir mais sujeição e menos liberdades (Foucault, 2006aFoucault, M. (2006a). Estratégia, Poder-Saber. In Coleção Ditos e Escritos (pp. 223-240). Rio de Janeiro: Forense Universitária. ).

Ao analisar a pandemia a partir dos dispositivos da casa e da guerra, escolhidos pelo modo como possibilitam dar visibilidade às mulheres neste contexto, propomos ainda duas breves considerações. A primeira diz respeito à necessidade de uma perspectiva transversal de gênero nas ações políticas, tendo em vista a compreensão dos efeitos desiguais que o cenário da pandemia produz para as mulheres, articulando questões de gênero e outros marcadores sociais. A segunda consideração está relacionada com a importância política do luto e a necessidade das narrativas como reconhecimento das perdas.

Na epidemia mundializada, casa e guerra se confundem criando paradoxos. A metáfora da guerra contra o coronavírus se apresenta no espaço público-político suscitando ações heróicas reivindicadas por certa masculinidade, mas, na realidade, são enfrentadas por muitas mulheres à frente de serviços de saúde e outros serviços considerados essenciais. Além disso, ao mesmo tempo que focaliza os esforços da área da saúde para o combate à doença, negligencia âmbitos desse campo relacionados aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, ainda que se trate de casos que não podem esperar o fim da crise para serem solucionados.

A guerra também se mostra dentro das casas, seja pela visibilidade incômoda do trabalho doméstico remunerado e não remunerado, majoritariamente realizado por mulheres, seja pelo risco de, intensificada a convivência, eclodir a violência machista. Ao visibilizar estes dispositivos, problematizamos seus efeitos nos corpos femininos e alertamos para a necessidade de construção de políticas com uma perspectiva transversal de gênero. As inúmeras frentes de ações políticas para o enfrentamento da pandemia, quando não pensadas sob as lentes das desigualdades de gênero, são potencialmente produtoras de maiores vulnerabilidades específicas para as mulheres, nos diferentes aspectos da vida social, além de acentuarem aquelas já presentes antes da crise sanitária.

Neste período, uma ação política implantada com certa perspectiva de gênero foi a definição de um valor diferenciado de renda emergencial no caso de mulheres, quando assumem sozinhas a responsabilidade financeira por seu núcleo familiar: “A mulher provedora de família monoparental receberá 2 (duas) cotas do auxílio” (Lei n. 13.982/2020BRASIL (2020). Lei n. 13.982, de 02 de abril de 2020. Estabelece medidas excepcionais de proteção social...de enfrentamento da emergência ... decorrente do coronavírus (Covid-19). Recuperado de http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n-13.982-de-2-de-abril-de-2020-250915958
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). Nesta ação emergencial, há, ainda que minimamente, o reconhecimento de que a inserção das mulheres no mercado de trabalho e a responsabilização pelo cuidado dos/das filhos/as produz vulnerabilidades específicas. Entretanto, a implantação desta política tornou visível a extensão da precariedade brasileira com a dificuldade de acesso pela falta de documentações básicas de identificação.

A recomendação de transversalizar gênero nas políticas públicas, ainda não assumida de maneira ampliada, está de acordo com a proposta de Victoria Pérez (2020Pérez, V. A. F. 2020. Afrontando la pandemia COVID-19 y sus consecuencias desde la Psicología Social Feminista. In M. Moya et al. (Orgs.), La Psicología Social ante el COVID19: Monográfico del International Journal of Social Psychology (pp. 02-11). https://doi.org/10.31234/osf.io/fdn32
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) de incorporar essa perspectiva em toda construção de conhecimento científico, evitando a cegueira de gênero. A autora ressalta a importância do gênero nos estudos de diferentes aspectos da pandemia e do isolamento social, compreendendo dimensões estatísticas de incidência, mortalidade, demografia profissional, até questões mais descritivas de saúde mental em relação a trabalho e cuidado, tarefas remotas, tempo livre, violência contra mulheres e respostas institucionais à doença (Pérez, 2020).

Ainda, articulando casa e guerra a casa e a guerra, numa análise teórico-política, seria possível contrapor a gramática de construção do inimigo reivindicando uma política da amizade. Para Segato (2020Segato, R. L. (2020, 2 de maio). Es un equívoco pensar que la distancia física no es una distancia social [Entrevista concedida a Astrid Pikinely]. La Nacion. Recuperado de https://www.lanacion.com.ar/opinion/biografiarita-segato-es-un-equivoco-pensar-que-la-distancia-fisica-no-es-una-distancia-social-nid2360208
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) pensar uma política de amizade é reconhecer a trama íntima entre as pessoas, politizar o espaço doméstico ampliado, construindo proximidade através de uma perspectiva feminista. A colocação de questões sobre cuidado, interdependência, reprodução social e economia em pauta na pandemia abre espaço para a utilização de novos vocabulários antes silenciados e para a emergência de novas práticas: “Se nós vamos ser capazes de transformar essas fissuras de garantias de direitos aos mais vulneráveis e aos mais precarizados em uma nova forma de vida coletiva, isso está aberto à disputa” (Diniz, 2020Diniz, D. & Carino, G. (2020, 20 de março). Patroas, empregadas e coronavírus. Nós, mulheres da elite, lamentamos a difícil tripla jornada de trabalho com filhos na casa. Muitas já vivem essa cruel realidade há tempos. El País. Recuperado de https://brasil.elpais.com/opiniao/2020-03-21/patroas-empregadas-e-coronavirus.html
https://brasil.elpais.com/opiniao/2020-0...
, s/p).

Desta maneira, outra consideração para construir futuros está na necessidade política do luto, na democratização das práticas de cuidado e na visibilidade das narrativas e das histórias que se findaram em decorrência do novo coronavírus. Nesse sentido, retomamos os relatos iniciais de Vitória e Vera. A pandemia no Brasil, tragicamente, tem tido muitos nomes e rostos, tanto pela ação direta do vírus quanto pelas precariedades que os desdobramentos sociais da crise sanitária acentuam. Algumas histórias viram notícias e escancaram as desigualdades e as violências do nosso país: Cleonice Gonçalves, Miguel Otávio e Mirtes Renata de Santana, Guilherme Silva Guedes e Antônia Arcanja da Silva. Muitas/os que morreram e outras/os tantos que carregam a saudade e a angústia da ausência dos rituais de despedida e compartilhamento da dor fora do mundo virtual. Muitas destas vidas têm sido resumidas a números sem história, seja pela quantidade assustadora de mortes pela doença, seja pela irresponsabilidade de autoridades em não reconhecer a importância da memória e do luto público. Aproximando das reflexões de Sontag (2003Sontag, S. (2003). Diante da dor dos outros. São Paulo: Companhia das Letras . [ebook]) sobre a importância dos registros narrados, entendemos que “recordar é um ato ético” (s/p), além de nos lembrar de nossa sobrevivência e da necessidade que assumimos de renovar nossas memórias.

Não é preciso conhecer a pessoa perdida para afirmar que isso era uma vida. O que se lamenta é a vida interrompida, a vida que deveria ter tido a chance de viver mais, o valor que a pessoa carrega agora na vida dos outros, a ferida que transforma permanentemente aqueles que sobrevivem. O sofrimento de um outro não é o seu próprio, mas a perda que o estranho suporta atravessa a perda pessoal que sente, potencialmente conectando estranhos em luto. (Butler, 2020bButler, J. (2020b, 04 de maio). O luto é um ato político em meio à pandemia e suas disparidades [Entrevista concedida a George Yancy]. Carta Maior. Recuperado de https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Pelo-Mundo/Judith-Butler-O-luto-e-um-ato-politico-em-meio-a-pandemia-e-suas-disparidades/6/47390
https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria...
, online)

Em um contexto no qual os números aumentam exponencialmente e autoridades tentam minimizar um problema de proporções globais, entendemos as demonstrações de luto e de comoção privadas e, sobretudo, públicas, como atos políticos. Reconhecer as vidas perdidas em que os corpos mortos são marcados por gênero, cor e classe é também um movimento importante para a compreensão das condições sociais, econômicas e políticas que possibilitam uma maior exposição à morte para algumas e alguns.

Referências

Notas

  • 1
    “Não há quem goste de ser número, gente merece existir em prosa” é a inspiração do projeto “Inumeráveis”, construído pelo artista Edson Pavoni e colaboradores e que conta com uma rede de trabalho colaborativa de jornalistas (Inumeráveis, 2020). Relicários é um projeto da pesquisadora Debora Diniz em parceria com o artista visual Ramon Navarro (Relicários, 2020).
  • 2
    No Brasil, os índices de isolamento social possuem grande variação. Atribuímos este movimento às contradições no âmbito federal - minimizando a gravidade da doença e contrapondo saúde à economia - e às definições em cada estado e município que refletem realidades distintas de cada território, impactando nas diferentes adesões da população às recomendações.
  • 3
    Na apresentação dos dados estatísticos, o Mapa da Violência não faz a distinção entre homicídios e feminicídios. No entanto, é possível traçar algumas características em relação às violências letais cometidas contra as mulheres que se relacionam com a tentativa de desconstrução da casa como um ambiente seguro.
  • 4
    A definição de serviços essenciais tem sofrido alterações ao longo da pandemia, após o Decreto n. 10.282/2020 de 20 de março de 2020BRASIL (2020). Decreto n. 10.282, de 20 de março de 2020. Regulamenta a Lei n. 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, para definir os serviços públicos e as atividades essenciais. Recuperado de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/decreto/D10282.htm
    http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
    . De maneira geral, consideramos serviços essenciais as atividades necessárias à sobrevivência, saúde e abastecimento.
  • 5
    No fim de maio de 2020, quatro estados elencaram o trabalho doméstico na categoria de serviços essenciais. Foram eles: Rio Grande do Sul, Maranhão, Pernambuco (parte das profissionais como babás e cuidadoras de idosos e deficientes) e Pará (sendo que esta última unidade federativa recuou da decisão logo depois de anunciá-la). (Sobreira, 2020Sobreira, V. (2020, 25 de maio). Sindicato critica estados que incluíram domésticas em serviço essencial na quarentena. Brasil de Fato. Recuperado de https://www.brasildefato.com.br/2020/05/25/sindicato-critica-estados-que-incluiram-domesticas-em-servico-essencial-na-quarentena
    https://www.brasildefato.com.br/2020/05/...
    ).
  • 6
    Até o momento de finalização deste texto, acompanhamos a saída de dois ministros da Saúde, sendo o cargo ocupado, interinamente, por um militar sem formação nem experiência na área. Atualmente, o Governo Federal conta com nove militares, todos homens, em cargos de ministros, correspondendo a 40% do total.
  • 7
    Frase do presidente, quando o Brasil ultrapassou cinco mil mortos, em 28 de abril de 2020. (Garcia, Gomes, & Viana, 2020Garcia, G., Gomes, P. H., & Viana, H. (2020, 24 de abril). ‘E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê?’, diz Bolsonaro sobre mortes por coronavírus; 'Sou Messias, mas não faço milagre'. Site G1. Recuperado de https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/04/28/e-dai-lamento-quer-que-eu-faca-o-que-diz-bolsonaro-sobre-mortes-por-coronavirus-no-brasil.ghtml
    https://g1.globo.com/politica/noticia/20...
    )
  • 8
    As informações sobre a pandemia fornecidas pelo Ministério da Saúde sofreram mudanças e mostraram incongruências, levando veículos de comunicação a criarem um arranjo de consórcio para a divulgação de informações com dados coletados diretamente junto às secretarias estaduais de saúde.
  • 9
    Fala do presidente no dia 29 de março de 2020. (Betim, 2020Betim, F. (2020, 20 de abril). Drenado por crise política forjada por Bolsonaro, Brasil fica no escuro quanto a avanço real do coronavírus. El País. Recuperado de https://brasil.elpais.com/brasil/2020-04-21/drenado-por-crise-politica-forjada-por-bolsonaro-brasil-fica-no-escuro-quanto-a-avanco-real-do-coronavirus.html
    https://brasil.elpais.com/brasil/2020-04...
    )
  • 10
    No Brasil, a legislação permite o aborto em três situações: anencefalia do feto, estupro e risco de morte para a gestante.
  • 11
    A maior parte dessas instituições se concentra nas capitais das regiões sul e sudeste do país, sendo que em 13 estados não há nenhum hospital que realize o procedimento.
  • 12
    De acordo com a nota técnica, ”Projeções internacionais estimam que aproximadamente 47 milhões de mulheres em 114 países de baixa e média renda poderão não ter acesso aos métodos contraceptivos, podendo ocorrer mais de 7 milhões de gravidezes não planejadas”. (Ministério da Saúde, 2020Ministério da Saúde. (2020). Nota Técnica n. 16/2020 de 1º de junho de 2020. COSMU/CGCIVI/DAPES/SAPS/MS. Acesso à saúde sexual e reprodutiva no contexto da pandemia da covid-19. Recuperado de https://www.cfemea.org.br/images/stories/NT-MS-_ministerioaborto_jun20.pdf
    https://www.cfemea.org.br/images/stories...
    )
  • 13
    Trecho retirado de publicação no dia 03 de junho da conta oficial do presidente no Twitter: “O Ministério da Saúde está buscando identificar a autoria da minuta de portaria apócrifa sobre aborto que circulou hoje pela internet” (Vargas, 2020).
  • 14
    A reunião ministerial do dia 22 de abril teve seu conteúdo divulgado em maio (Galvani, 2020Galvani, G. (2020, 23 de maio). Bolsonaro e ministros ignoraram vítimas e casos de coronavírus em reunião ministerial. Carta Capital. Recuperado de https://www.cartacapital.com.br/politica/bolsonaro-e-ministros-ignoraram-vitimas-e-casos-de-coronavirus-em-reuniao-ministerial/
    https://www.cartacapital.com.br/politica...
    ).
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Set 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    29 Jun 2020
  • Revisado
    10 Jul 2020
  • Aceito
    17 Jul 2020
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