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PORTA GIRATÓRIA NO ACOLHIMENTO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES USUÁRIOS DE DROGAS: DESAFIOS E MANEJOS

PUERTA GIRATORIA EN LA ACOGIDA DE NIÑOS Y ADOLESCENTES CONSUMIDORES DE DROGAS: DESAFÍOS Y GESTIONES

Resumo

O estudo teve como objetivo descrever características relacionadas ao fenômeno da porta giratória em uma Unidade de Acolhimento infantojuvenil e analisar o modo como o serviço maneja este fenômeno. Foi realizado estudo de caso qualitativo com análise de: entrevistas semiestruturadas; observação participante com registro em caderno de campo; documentos e grupo focal. A partir da análise, foram construídos três temas: Vínculos rompidos: “Se a família não se cuidar a gente não consegue” (questões geracionais, vínculo familiar, adesão ao tratamento); Subfinanciamento: “Eles fazem milagre com os recursos que têm” (subfinanciamento estatal, preconceito e investimento privado); Políticas públicas: “Esse problema não é meu” (segmentação do cuidado, falta de apoio comunitário e informação/preparo das instituições). Esses pontos constituem entraves no tratamento de crianças e adolescentes usuários de drogas e remetem ao fenômeno da porta giratória.

Palavras-chave:
Estudo de caso; Drogas (uso); Tratamento; Crianças e adolescentes; Políticas públicas

Resumen

El objetivo del estudio fue describir características relacionadas con el fenómeno de la puerta giratoria en una Unidad de Acogida de Niños y Adolescentes y analizar la forma en que el servicio maneja este fenómeno. Se realizó un estudio de caso cualitativo con el análisis de: entrevistas semiestructuradas; observación participante registrada en cuaderno de campo; documentos y grupos focales. A partir del análisis se construyeron tres temas: Vínculos rotos: "Si la familia no se cuida, no podemos hacerlo" (cuestiones generacionales, vínculo familiar, adherencia al tratamiento); Falta de financiación: “Hacen milagros con los recursos que tienen” (falta de financiación estatal, prejuicios e inversión privada); Políticas públicas: "Este no es mi problema" (segmentación de la atención, falta de apoyo comunitario e información/preparación de las instituciones). Estos puntos constituyen barreras en el tratamiento de los niños, niñas e adolescentes consumidores de drogas y se refieren al fenómeno de la puerta giratoria.

Palabras clave:
Estudio de caso; Drogas (uso); Terapia; Niños y adolescentes; Políticas públicas

Abstract

The study aimed to describe characteristics related to the revolving door phenomenon in a Child and Adolescent Shelter Unit and to analyze the way in which the service manages this phenomenon. A qualitative case study was carried out with the analysis of: semi-structured interviews; participant observation recorded in a field notebook; documents and a focus group. From the analysis, three themes were constructed: Broken bonds: “If the family does not take care of itself, we can’t” (generational issues, family bonds, adherence to treatment); Underfunding: “They work miracles with the resources they have” (state underfunding, prejudice and private investment); Public policies: “This is not my problem” (segmentation of care, lack of community support and information/preparation of the institutions). These points constitute barriers in the treatment of children and adolescents that use drugs and highlight the revolving door phenomenon.

Keywords:
Case study; Drugs (use); Treatment; Children and adolescents; Public policies

Introdução

A atenção em saúde mental de forma regionalizada para públicos específicos, como infantojuvenil e usuários de drogas, continua a ser um desafio no processo de reforma psiquiátrica brasileira, dado por vazios assistenciais, subfinanciamento do setor público, dependência do setor privado, falta de regulação pelo Estado, entre outros (Macedo, Abreu, Fontenele, & Dimenstein, 2017Macedo, J. P., Abreu, M. M., Fontenele, M. G., & Dimenstein, M. (2017). A regionalização da saúde mental e os novos desafios da Reforma Psiquiátrica brasileira.Saúde e Sociedade,26(1), 155-170. https://doi.org/10.1590/s0104-12902017165827
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).

Uma opção de cuidado para a população infantojuvenil, apontada pela legislação, são as Unidade de Acolhimento infantojuvenil (UAi) instituídas no âmbito das Portarias n. 3.088/2011 e n. 121/2012Portaria n. 121, de 25 de janeiro de 2012. Institui a Unidade de Acolhimento para pessoas com necessidades decorrentes do uso de Crack, Álcool e Outras Drogas no componente de atenção residencial de caráter transitório da Rede de Atenção Psicossocial. (2012). Brasília, DF: Ministério da Saúde., ambas do Ministério da Saúde, e ancoradas nas Leis Federais n. 10.216/2001 (que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtorno mental) e n. 8.069/1990 (que institui o Estatuto da Criança e do Adolescente). O programa diz respeito à ampliação da capacidade de cuidado e atenção disponibilizados para os usuários dos serviços de saúde mental (Ministério da Justiça, 2013Ministério da Justiça. (2013). Cartilha Crack, é possível vencer. Enfrentar o crack. Compromisso de todos. Brasília, DF: Autor. Recuperado de http://conselheiros6.nute.ufsc.br/wp-content/uploads/avea/conteudo/cartilha_crack,_ae_possivel_vencer.pdf
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). Essa iniciativa se situa em consonância com o movimento da Reforma Psiquiátrica na direção da proposição de serviços que tenham foco no cuidado comunitário e territorializado em substituição ao modelo hegemônico do hospital psiquiátrico (Mielke, Kantorski, Jardim, Olschowsky, & Machado, 2009Mielke, F. B., Kantorski, L. P., Jardim, V. M. R., Olschowsky, A., & Machado, M. S. (2009). O cuidado em saúde mental no CAPS no entendimento dos profissionais. Ciência & Saúde Coletiva, 14(1), 159-164. https://doi.org/10.1590/S1413-81232009000100021
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). Assim, no campo das drogas, é uma proposta alternativa às instituições que se baseiam em discursos individualistas, moralistas, proibicionistas, focados no isolamento, na abstinência e na guerra às drogas (Araujo, 2018Araujo, C. N. P. (2018). Sentidos construídos com familiares de usuários de drogas sobre a internação involuntária ou compulsória. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-graduação em Psicologia, Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, SP.).

A UAi oferece acolhimento a crianças e adolescentes de 10 a 18 anos com necessidades decorrentes do uso de drogas, garantindo moradia, educação, convivência social e familiar, pautadas no direito ao convívio familiar e comunitário, assim como a ampliação de suas possibilidades de inserção social para a promoção de saúde mental e a construção de novos projetos de vida que objetivem sua autonomia e emancipação. Possui importância dentro do projeto terapêutico singular (PTS) elaborado para o adolescente em conjunto com família e CAPS, no sentido de evitar internações desnecessárias e favorecer o fortalecimento de ações de cuidado ao adolescente (Ministério da Saúde, 2014Ministério da Justiça. (2014). Atenção psicossocial a crianças e adolescentes no SUS: tecendo redes para garantir direitos. Brasília, DF: Autor. Recuperado de http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/atencao_psicossocial_criancas_adolescentes_sus.pdf
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).

Apesar dos avanços nacionais na estruturação da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) trazidos por programas como o “Crack, é possível vencer” (Ministério da Justiça, 2013Ministério da Justiça. (2013). Cartilha Crack, é possível vencer. Enfrentar o crack. Compromisso de todos. Brasília, DF: Autor. Recuperado de http://conselheiros6.nute.ufsc.br/wp-content/uploads/avea/conteudo/cartilha_crack,_ae_possivel_vencer.pdf
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) e do papel das UAis nesse contexto, ainda são observadas fragilidades que envolvem a articulação de serviços, sistematização de fluxo dos casos, falta de dados fidedignos e atualizados, necessidade de qualificação profissional, viés ideológico no entendimento da dinâmica do uso de drogas e do seu tratamento e número de serviços insuficientes em relação ao aumento das demandas (Passos, Reinaldo, Barboza, Braga, & Ladeira, 2016Passos, I. C. F., Reinaldo, A. M. S., Barboza, M. A. G., Braga, G. A. R., & Ladeira, K. E. (2016). A rede de proteção e cuidado a crianças e adolescentes do município de Betim/MG e os desafios do enfrentamento ao uso abusivo de crack, álcool e outras drogas.Pesquisas e Práticas Psicossociais,11(3), 583-601.).

Pimenta, Augusto, Guimarães e Cardoso (2017Pimenta, N., Augusto, R., Guimarães, I. M., & Cardoso, C. (2017). Desafios psicossociais em uma Unidade de Acolhimento Infanto Juvenil [Resumo]. In ABRAPSO Editora (Org.), Caderno de Resumos, do XIX Encontro Nacional da ABRAPSO. Porto Alegre: ABRAPSO. (p. 1594) Recuperado de http://www.encontro2017.abrapso.org.br/trabalho/view?ID_TRABALHO=1894
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) relatam os desafios da experiência de trabalho em uma UAi destacando que, assim como a rede intersetorial para esse público, é um serviço que ainda está em construção e na busca de qualificação para atender a demanda crescente de adolescentes usuários de drogas. Os autores indicam problemas relacionados à dificuldade de entendimento sobre as funções do equipamento por parte da RAPS e até a falta de retaguarda para assistência a esse público. A desarticulação dos serviços pode promover um cuidado fragmentado, sem o foco na reinserção social e na comunidade e que desconsidera a singularidade dos usuários. Essa configuração contribui para inserir o dispositivo no fenômeno conhecido como “porta giratória”, relativo a processos de institucionalização dessa população.

O fenômeno de porta giratória - “revolving door” - foi assim denominado no campo da psiquiatria e refere-se às frequentes re-hospitalizações de pacientes psiquiátricos. No contexto (pós) (des)institucionalização, torna-se importante identificar subgrupos de pacientes afetados por esse fenômeno (Golay, Morandi, Conus, & Bonsack, 2019Golay, P., Morandi, S., Conus, P., & Bonsack, C. (2019). Identifying patterns in psychiatric hospital stays with statistical methods: towards a typology of post-deinstitutionalization hospitalization trajectories. Social Psychiatry and Psychiatric Epidemiology, 54(11), 1411-1417. https://doi.org/10.1007/s00127-019-01717-7
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). No que diz respeito ao tratamento voltado a usuários de drogas, esse fenômeno se faz presente quando o fluxo de crises permanece recorrente e está relacionado à lógica de que o usuário deve se adequar aos serviços disponíveis revelando uma rede insensível às necessidades individuais de cada usuário (Ministério da Saúde, 2015Ministério da Justiça (2015). Guia estratégico para o cuidado de pessoas com necessidades relacionadas ao consumo de álcool e outras drogas. Brasília, DF: Autor. Recuperado de https://portalarquivos2.saude.gov.br/images/pdf/2015/dezembro/15/Guia-Estrat--gico-para-o-Cuidado-de-Pessoas-com-Necessidades-Relacionadas-ao-Consumo-de---lcool-e-Outras-Drogas--Guia-AD-.pdf
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). Apesar da necessidade de compreender esse fenômeno e os desafios postos para sua superação, o que se verifica é a escassez de estudos nacionais envolvendo as implicações desse fenômeno na RAPS e ausência de consenso sobre critérios de definição no Brasil e no exterior (Zanardo, Moro, Ferreira, & Rocha, 2018Zanardo, G. L. P., Moro, L. M., Ferreira, G. S., & Rocha, K. B. (2018). Factors Associated with Psychiatric Readmissions: A Systematic Review. Paidéia (Ribeirão Preto), 28, e2814. https://doi.org/10.1590/1982-4327e2814
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).

Diante deste cenário, são necessárias pesquisas que possam analisar diferentes aspectos relacionados ao fenômeno da porta giratória para que se possa melhor compreender as implicações desse fenômeno para a organização de fluxos entre equipamentos da RAPS visando a aprimorar o cuidado oferecido a crianças e adolescentes usuários de drogas. Assim, este estudo teve como objetivo descrever características relacionadas ao fenômeno da porta giratória em uma UAi na perspectiva dos profissionais e analisar o modo como o serviço tenta manejar esse fenômeno. Espera-se que os resultados deste estudo contribuam para o campo da Psicologia Social no âmbito dos entendimentos sobre os processos de trabalho na RAPS e sua capacidade para produzir um cuidado ativo, resolutivo, longitudinal e territorial diante do fenômeno da porta giratória e, consequentemente, sobre o seu papel como instituições que conformam condições objetivas e subjetivas para as vivências dos adolescentes.

Método

Delineamento

Esta pesquisa se caracteriza como um estudo de caso qualitativo. Estratégia geralmente utilizada quando o pesquisador tem pouco controle sobre os acontecimentos que estuda, elaborando questões do tipo “como” e “por que” para investigar um determinado fenômeno social contemporâneo que ocorre na vida real. Devido às complexidades relacionadas ao que se pretende estudar, são utilizados múltiplos instrumentos para se investigar o caso (Yin, 2015Yin, R. K. (2015) Estudo de caso: planejamento e métodos (5ª ed.). Porto Alegre: Bookman.).

Local

O estudo foi realizado em uma UAi localizada na região central de um município de médio porte (600.000 habitantes) do interior do estado de São Paulo. A UAi foi fundada em 2014 e recebe adolescentes referenciados pelo Centro de Atenção Psicossocial Infantil - Álcool e Drogas (CAPSiAD). Funciona 24 horas por dia, sete dias por semana, com 10 vagas para acolhimento transitório de caráter voluntário para crianças e adolescentes usuários de drogas com idade de 8 a 17 anos no momento da coleta. A UAi inicialmente foi implantada em um único espaço, onde já havia funcionado um asilo e uma casa de repouso. Com o tempo e a percepção de que se tornara extremamente institucionalizada, a UAi foi dividida em dois espaços físicos distintos que se complementam no que diz respeito ao cuidado oferecido às crianças e aos adolescentes acolhidos. Com esse manejo institucional do município estudado o acolhimento ficou em uma casa menor, com características mais próximas a um lar. Nesse local, os acolhidos fazem suas refeições, dormem, fazem a higiene e brincam com maior intimidade entre si. As atividades burocráticas, oficinas artísticas, atendimentos individuais e grupais e grupos pedagógicos e terapêuticos foram transferidos para o segundo espaço com horário de funcionamento das 8 às 17 horas, de segunda à sexta. Nesse local existem 50 vagas para atendimento de crianças e os adolescentes que estão acolhidos, em situação de risco ou que já passaram pelo acolhimento, além de oferecer atendimentos e grupos aos familiares. A mesma equipe atende os dois espaços e é composta por 15 profissionais, sendo uma coordenadora, duas psicólogas, duas educadoras sociais, uma faxineira, uma cozinheira e oito monitores.

Participantes

Participaram do estudo oito profissionais da UAi e seis profissionais do CAPSiAD. Na seleção dos participantes, foram convidados membros da equipe dos serviços, garantindo a variabilidade das funções exercidas e a proximidade com o cuidado dos acolhidos. Visando a preservação de suas identidades, eles serão identificados com nomes fictícios. A Tabela 1 descreve as características dos participantes.

Tabela 1
Caracterização dos Participantes

Instrumentos

Para o desenvolvimento do estudo de caso, foram utilizadas as seguintes técnicas de coleta de dados: (a) Entrevistas semiestruturadas com profissionais da UAi, com roteiro que abordava as concepções dos profissionais acerca das práticas desenvolvidas na UAi, entre elas, as atividades realizadas, avanços e impasses enfrentados na rotina, estratégias utilizadas para oferecer acolhimento humanizado, socialização, integração familiar, reinserção social, articulação com a rede, dificuldades encontradas e melhorias possíveis; (b) Grupo focal: junto aos profissionais do CAPSiAD para propiciar a discussão sobre a rede de cuidados com roteiro que contemplava questões sobre as modificações na RAPS do município após a implantação da UAi, fluxo de encaminhamentos, articulação do cuidado, potencialidade e limites da UAi e melhorias possíveis; (c) Análise documental: foram analisados os projetos de implantação, memorial descritivo de atividades, plano de trabalho e relatório de atividades anual referente ao ano de 2018; (d) Caderno de campo: foram anotadas situações relacionadas aos objetivos do estudo durante as 65 horas de observação participante.

Procedimentos

A coleta de dados foi realizada durante dez meses entre os anos de 2017 e 2018, nos dois espaços que compõem a UAi. A pesquisadora acompanhou a rotina da casa onde acontece o acolhimento, frequentando-a com periodicidade semanal em diferentes dias e horários. Também participou de oficinas e atividades desenvolvidas pelos profissionais técnicos. Foram observadas reuniões realizadas entre as equipes do CAPSiAD e UAi. As entrevistas com os profissionais da UAi foram realizadas durante a observação participante. O grupo focal com profissionais do CAPSiAD foi realizado em horário pré-agendado, em um dia de reunião de equipe. As entrevistas e o grupo focal foram audiogravadas em gravador digital, mediante anuência dos participantes. A participação na pesquisa foi voluntária e precedida por informações aos participantes sobre os objetivos e procedimentos do estudo com leitura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido para todos os participantes antes do início das entrevistas. Houve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa (CAAE n. 72999417.0.0000.5407), respeitando-se todos os aspectos éticos para desenvolvimento de pesquisas com seres humanos estabelecidos pela Resolução n. 510/2016Resolução n. 510, de 07 de abril de 2016. Dispõe sobre as normas aplicáveis a pesquisas em Ciências Humanas e Sociais. (2016). Brasília, DF: Conselho Nacional de Saúde..

A análise de dados de estudos de caso consiste na busca por padrões, insights e conceitos que pareçam promissores por meio da categorização e combinação dos dados (Yin, 2015Yin, R. K. (2015) Estudo de caso: planejamento e métodos (5ª ed.). Porto Alegre: Bookman.). A estratégia analítica utilizada considerou tratar os dados sem proposição teórica a priori para desenvolver descrições do caso com o propósito de associar os dados a conceitos de interesse. A análise do caderno de campo contribuiu para descrição do contexto do estudo, da rotina institucional e das vulnerabilidades sociais dos adolescentes acolhidos. Os documentos do serviço foram analisados compatibilizando-os ao que preconiza a Portaria n. 121/2012Portaria n. 121, de 25 de janeiro de 2012. Institui a Unidade de Acolhimento para pessoas com necessidades decorrentes do uso de Crack, Álcool e Outras Drogas no componente de atenção residencial de caráter transitório da Rede de Atenção Psicossocial. (2012). Brasília, DF: Ministério da Saúde., a fim de compreender como o serviço cumpre o que é estabelecido pelas diretrizes governamentais, como é realizado o financiamento da instituição e seu histórico de implantação.

A técnica utilizada para análise das entrevistas e grupo focal foi a análise temática reflexiva, proposta por Braun e Clarke (2013Braun, V. & Clarke, V. (2013). Successful qualitative research: A practical guide for beginners. London: Sage.). Essa análise tornou possível organizar e descrever as informações de modo detalhado, auxiliando na interpretação destes. A pesquisadora realizou transcrição integral das entrevistas individuais, assim como do grupo focal e familiarizou-se com os dados efetuando leituras repetitivas. A codificação foi elaborada pela organização dos dados em três colunas, a primeira contendo a entrevista na íntegra, a segunda contendo uma síntese relacionada aos objetivos do estudo e a terceira com os grupos de significados identificados na entrevista. Nesse processo, houve a colaboração de uma juíza (membro do laboratório de pesquisa em que o estudo foi conduzido) que realizou a codificação de três entrevistas e participou de reuniões com a pesquisadora principal, para comparação e discussão dos códigos, visando analisar a coerência entre eles, a fim de aprimorar o processo de análise. Foram então construídos temas iniciais relacionados aos objetivos do estudo, com o intuito de transmitir a ideia central dos códigos e organizar os conceitos relacionados. Esses temas iniciais foram discutidos, revisados e ampliados pela primeira e terceira autora após nova imersão nos códigos e discussão. A partir da análise, foram construídos três temas: (a) Vínculos rompidos: “Se a família não se cuidar a gente não consegue”; (b) Subfinanciamento: “Eles fazem milagre com os recursos que têm”; (c) Políticas públicas: “Esse problema não é meu”.

Resultados e discussão

Seguindo as normativas do funcionamento da rede intersetorial presentes na Portaria n. 121/2012Portaria n. 121, de 25 de janeiro de 2012. Institui a Unidade de Acolhimento para pessoas com necessidades decorrentes do uso de Crack, Álcool e Outras Drogas no componente de atenção residencial de caráter transitório da Rede de Atenção Psicossocial. (2012). Brasília, DF: Ministério da Saúde., o CAPSiAD do município tornou-se o responsável por referenciar as crianças e adolescentes para a UAi, que os acolhia mediante decisão tomada pela equipe do CAPSiAD de referência. Entretanto, em virtude das questões de urgência, como situação de rua, e a fim de viabilizar encaminhamentos em qualquer horário, o município decidiu que diferentes serviços (Centro de Referência Especializado de Assistência Social, Conselho Tutelar, escola, entre outros) poderiam entrar em contato com a UAi e realizar encaminhamentos e, nesses casos, o CAPSiAD precisava ser notificado em até 48 horas, sendo corresponsável pela população acolhida.

Justamente pelas situações de vulnerabilidade social da população estudada foi constatado na rede uma frequência oscilante entre os equipamentos do município. Assim como na UAi, profissionais relataram ciclos de ir e vir entre as crianças e adolescentes acolhidos, sendo que a maior parte da demanda atendida já foi atendida pelo serviço estudado em algum outro momento. Esse movimento foi compreendido, neste estudo, pelo fenômeno da porta giratória, que será melhor explorado e discutido nos seguintes temas:

Vínculos rompidos: “Se a família não se cuidar a gente não consegue”

Um dos fatores que contribuem para o fenômeno da porta giratória, segundo os profissionais, é a falta de vínculo familiar e a dificuldade de integração da família ao tratamento. Sublinha-se a importância do apoio social e familiar para a redução desse fenômeno (Zanardo et al., 2018Zanardo, G. L. P., Moro, L. M., Ferreira, G. S., & Rocha, K. B. (2018). Factors Associated with Psychiatric Readmissions: A Systematic Review. Paidéia (Ribeirão Preto), 28, e2814. https://doi.org/10.1590/1982-4327e2814
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). Para Maria, o ciclo de ir e vir dos acolhidos sofre grande influência do contexto familiar: “Ele ficou nesse ciclo de ir e vir e a mãe dele usava [drogas] mais que ele, então você imagina a situação desse menino. Quando ele sai da unidade, vai pra onde? Vai fazer o quê? Então, acaba ficando na rua.” (Maria)

O relato destaca a recorrência de histórias marcadas pela desigualdade social vivida entre as gerações, de forma a tornar o horizonte geracional dessas famílias profundamente marcado por um ciclo de repetições. Helena comenta sobre a trajetória de exclusão e de sofrimento das famílias atendidas como processos de violação de direitos, o que dificulta sua integração nas atividades propostas pelos serviços.

Não é uma tarefa fácil, porque é uma questão geracional mesmo, né? São famílias com histórico de terem sofrido negligência, de terem sofrido algum tipo de abuso, de não terem tido acesso a todos os direitos que cabia. Então já vêm com histórico muito difícil. (Helena)

Para Arenari e Dutra (2016Arenari, B. & Dutra, R. (2016). A construção social da condição de pessoa: premissas para romper o círculo vicioso de exclusão e uso problemático do crack. In J. Souza (Org.), Crack e exclusão social (pp. 191-208) Brasília, DF: Ministério da Justiça e Cidadania, Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas.), as trajetórias de exclusão se reproduzem pela formação de uma socialização precária no contexto familiar, o que acarretaria na ausência de disposições fundamentais para uma conduta bem-sucedida na vida social futura. Além de prejudicar a apropriação de recursos necessários para participar como pessoa no conjunto da vida social nas esferas do ensino formal e do trabalho. No entanto, os autores afirmam que a socialização primária precária não possui a capacidade de determinar o destino dos indivíduos, sendo que as instituições possuem papel fundamental na confirmação ou não dessa trajetória.

É importante compreender o contexto das famílias e o imaginário social em relação ao tratamento oferecido para usuários de drogas produzido por um modelo asilar voltado para a cura (abstinência) com práticas baseadas no isolamento que refletem no afastamento da família no processo de cuidado, proporcionando redução dos vínculos familiares (Silva & Oliveira, 2018Silva, M. B. & Oliveira, J. A. P. (2018). Redução de danos no tratamento de álcool e outras drogas: uma prática possível para a família?Psicologia e Saúde em debate, 4(2), 25-41.). Para Sandra, os entendimentos das famílias sobre o atendimento constituem um ponto chave e há dificuldade de compreender o caráter voluntário do acolhimento:

A maioria é encaminhado, então não tem muito aquela coisa de demanda espontânea de querer ir para o acolhimento. Por serem encaminhados, muitos entendem que é nossa obrigação fazermos eles permanecerem lá, só que na própria triagem já é colocado a questão da política de redução de danos e do caráter voluntário, então já entra no acolhimento ciente, só que algumas famílias não entendem isso, né? (Sandra)

O discurso de expectativas frustradas dos profissionais em relação ao papel das famílias aparece também de outras formas. Segundo alguns entrevistados, as famílias, muitas vezes, colocam a responsabilidade pelo cuidado exclusivamente a cargo das instituições, demonstrando dificuldades em compreender a necessidade de manter contato permanente com o filho. Isso poderia interferir no processo de retorno dos adolescentes ao convívio familiar e comunitário, que deveria ser modificado. Desse modo, seria necessária a conscientização da família de que, além do adolescente, ela também precisa de cuidado e transformação:

Tem família que não adere de jeito nenhum e a gente vai fazendo busca ativa, visita na casa, tenta ganhar a confiança da família, porque a maioria deles é muito desconfiado. A gente se faz presente na vida da família pra família entender que nós não estamos aqui pra cuidar só do fulaninho, por que se a família não se cuidar a gente também não consegue, né? Eles vão entendendo que na verdade nosso movimento é a ideia de transformar a família como um todo pra receber esse adolescente de volta. (Helena)

Segundo Belotti, Fraga e Belotti (2017Belotti, M., Fraga, H. L., & Belotti, L. (2017). Família e atenção psicossocial: o cuidado à pessoa que faz uso abusivo de álcool e outras drogas.Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional,25(3), 617-625. http://doi.org/10.4322/2526-8910.ctoAR0988
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), a não adesão dos familiares ao cuidado pode estar associada a diferentes fatores: busca por tratamentos e soluções rápidas, entendimento da internação e abstinência como única alternativa de tratamento refletindo o discurso hegemônico biomédico; falta de informação da família sobre modelo de atenção psicossocial. A integração familiar na UAi é proporcionada pelo atendimento individual e grupal da família realizado por uma psicóloga, visita domiciliar dos profissionais técnicos ao local de residência das famílias, saídas autorizadas dos adolescentes para ficarem com as famílias aos finais de semana e feriados, visitas das famílias aos sábados quando os adolescentes por algum motivo não podem sair do acolhimento e contato telefônico realizado quinta-feira entre adolescentes e familiares: “Quando nós percebemos que a família tem resistência a gente insiste bastante nas saídas autorizadas, nas visitas para poder reconstruir esse vínculo entre o adolescente e o familiar porque ele também não pode morar com a gente pra sempre” (Simone).

Os profissionais relatam que promovem a integração da família ao serviço por meio de diferentes estratégias, além das atividades rotineiras, como: doação de verduras e cestas básicas para a família, de modo a trazê-los ao serviço; atendimento domiciliar; auxílio no transporte e tratamento de outros membros. De acordo com Maria, essa é uma necessidade para realmente alcançar a família: “Para estruturar esse vínculo, por exemplo, tem uma mãe que a gente atende três filhos dela frequentam aqui. A gente assumiu consulta médica dela, de levar, buscar . . . Ela também é usuária, a gente acompanha ela no CAPSad”.

Além disso, os profissionais notaram que os responsáveis, muitas vezes, não tinham com quem deixar outros filhos e levavam esses para a reunião de família. Assim, a fim de garantir a participação, o serviço elaborou um grupo específico, denominado “grupo de prevenção” para crianças e adolescentes membros da família. Durante a observação, percebeu-se que nele são tratadas temáticas sobre escola e socialização, com flexibilidade para as demandas que aparecem no decorrer de atividades como desenho, pintura e jogos.

Pesquisas apontam que o acolhimento efetivo se baseia na ampliação de vínculos e, para isso, torna-se central o desenvolvimento de novos mecanismos de atuação com busca diária por estratégias criativas que abordem questões que vão além da doença e que considerem as demandas singulares e necessidades reais de cada família (Lisbôa, Brêda, & Albuquerque, 2016Lisbôa, G. L. P., Brêda, M. Z., & Albuquerque, M. C. S. (2016). Ruídos do processo de trabalho e o acolhimento da família na atenção psicossocial em álcool e outras drogas.SMAD. Revista eletrônica saúde mental álcool e drogas,12(2), 75-83. https://doi.org/10.11606/issn.1806-6976.v12i2p75-83
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). As informações aos familiares sobre a proposta de cuidado dos serviços substitutivos, da rede e do funcionamento do modelo de atenção psicossocial emergem nesse contexto de importância do apoio desses ao usuário (Silva & Oliveira, 2018Silva, M. B. & Oliveira, J. A. P. (2018). Redução de danos no tratamento de álcool e outras drogas: uma prática possível para a família?Psicologia e Saúde em debate, 4(2), 25-41.).

A questão do uso de drogas é uma temática complexa que deve considerar a disputa entre diferentes modelos de atenção (assistência social, judiciário, saúde, investimentos públicos e privados). Neste contexto, cabe refletir sobre como as famílias são convidadas a participar dos processos de cuidado. A oferta de cuidado muitas vezes está associada a uma lógica punitiva de vigilância do Estado sobre a conjuntura familiar. Os próprios funcionários da UAi relataram a dificuldade em conciliar ações que visavam a proteger os adolescentes de problemas com a família e com outras que tinham como objetivo reconstruir o vínculo familiar. Isso pode prejudicar a relação da família com os serviços, que tenderá a evitá-los por não considerar que esses seriam parceiros no cuidado.

Subfinanciamento: “Eles fazem milagre com os recursos que têm”

A fala da profissional Lorena, do CAPSiAD utilizada para denominar este tema: “Eles fazem milagre com os recursos que têm, eu acho que eles deviam ter mais apoio ”, sintetiza os aspectos do financiamento que contribuem no fenômeno da porta giratória, como o subfinanciamento estatal, busca por investimento privado e preconceito das empresas pela temática. A Portaria n. 121/2012Portaria n. 121, de 25 de janeiro de 2012. Institui a Unidade de Acolhimento para pessoas com necessidades decorrentes do uso de Crack, Álcool e Outras Drogas no componente de atenção residencial de caráter transitório da Rede de Atenção Psicossocial. (2012). Brasília, DF: Ministério da Saúde. institui incentivo financeiro para implantação da Unidade no valor de R$ 70.000,00, transferido aos fundos de saúde estatal, municipal ou distrital e custeio mensal de R$ 30.000,00 para UAi. Porém, essa verba mensal só garante aproximadamente 85% do financiamento da UAi investigada, como comenta Helena:

A UAi vamos supor uns 85% é mantido pelo governo federal, então eles passam o valor pra gente. Aí uma parte da verba vem de uma Fundação, a gente escreveu o projeto pra eles e fomos contemplados. Também é mantido pelo empresário que fundou a instituição e pelos eventos que a gente realiza de pizza, bazar, bingo...

Segundo Macedo et al. (2017Macedo, J. P., Abreu, M. M., Fontenele, M. G., & Dimenstein, M. (2017). A regionalização da saúde mental e os novos desafios da Reforma Psiquiátrica brasileira.Saúde e Sociedade,26(1), 155-170. https://doi.org/10.1590/s0104-12902017165827
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), existiam 69 unidades de acolhimento adulta e infantojuvenil no Brasil no ano de 2017, considerando que a previsão era a abertura de 574 unidades até 2014, isso corresponde a 12% do que foi anunciado. As mudanças que podem ser observadas no contexto atual brasileiro relacionadas à construção de políticas públicas sobre álcool e drogas demonstram a predominância do discurso hegemônico (moral e biomédico) ao enfatizar o financiamento das internações em detrimento das estratégias de redução de danos enquanto paradigma de cuidado (Araujo, 2018Araujo, C. N. P. (2018). Sentidos construídos com familiares de usuários de drogas sobre a internação involuntária ou compulsória. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-graduação em Psicologia, Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, SP.).

A partir da análise documental, foi identificado que a instituição busca investimento de empresas privadas com a adequação de projetos às propostas de cada edital de financiamento. Porém, esses geralmente abrangem um quadro reduzido de funcionários, com período de execução de um ano. Os dois espaços da UAi são financiadas em parte por instituições privadas, parte pública e parte por ações desenvolvidas pela própria instituição.

Nessa perspectiva, percebe-se o enfraquecimento do papel do Estado e das estratégias públicas destinadas a essa temática, algo que está presente na conjuntura sócio-histórica de planejamento, financiamento e execução de políticas públicas voltadas para o tratamento à população com problemas decorrentes do uso de drogas no Brasil. Nessa área, prevalecem atuações de iniciativas privadas, filantrópicas e não governamentais (Costa, Ronzani, & Colugnati, 2017Costa, P. H. A., Ronzani, T. M., & Colugnati, F. A. B. (2017). “No papel é bonito, mas na prática…” Análise sobre a rede de atenção aos usuários de drogas nas políticas e instrumentos normativos da área.Saúde e Sociedade,26(3), 738-750. https://dx.doi.org/10.1590/s0104-12902017170188
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). Segundo a profissional Sofia: “Se a gente tivesse mais essa entrada, a própria população mesmo, não é só o público, é o privado mesmo, porque é muito mais fácil esperar do privado do que do público infelizmente.”

Existe também uma dificuldade notada pela equipe de conseguir investimentos privados; segundo Helena, as empresas têm receio e preconceito em fazer parceria com a demanda atendida pela instituição: “Falar que você trabalha com adolescente usuário de droga, ninguém ou quase ninguém quer fazer esse link da empresa com a causa, né? É muito difícil justamente porque o senso comum não olha para eles como mereciam ser olhados”. Frente à ameaça de fechamento da instituição por falta de recursos, os profissionais despendem muito tempo realizando ações que revertam em recursos, como venda de alimentos (feijoada e pizzas), realização de bazar com roupas e objetos doados, busca por parcerias e doações. O tempo gasto para conseguir verba atrapalha a dedicação dos profissionais ao cuidado dos adolescentes:

Nossa maior dificuldade é a questão financeira que demanda muito tempo e atenção de toda a equipe, tanto na busca de doação, quanto em vendas e arrecadação de dinheiro. Muitas vezes a gente acaba se perdendo um pouco nessa demanda e esquecendo um pouco da demanda dos meninos. (Simone)

Outra limitação do serviço ligada ao financiamento é a ausência de profissionais. No momento da coleta de dados não havia assistente social e terapeuta ocupacional na equipe. Além disso, várias oficinas foram desativadas por falta de recursos. Os profissionais do CAPSiAD comentaram sobre o movimento de terceirização da saúde e sua influência no financiamento, salários e garantias profissionais:

O fato de ser uma ONG já é problemático em termos de política, né? Então, é muito provável que os profissionais lá ganhem menos, trabalhem horas a mais, não tem uma estabilidade no emprego. Aí faz feijoada e faz pizza, porque eu acredito que só o repasse não dá, né? Então deveria ser um serviço municipalizado, mas a gente tá passando por uma terceirização de serviços, né? (Manuela)

A instituição ser uma ONG também aparece como uma questão problemática devido à ausência de critérios de seleção rígidos. Os profissionais geralmente são contratados por indicação sem ter experiência com a demanda atendida. Assim, acabam reiterando um movimento de constante necessidade de aprendizado na prática sobre como atuar nessa área, de forma a exigir a preocupação frequente da equipe referente à capacitação profissional.

Nesse sentido, cabe o questionamento sobre o impacto do subfinanciamento público nas práticas oferecidas, inclusive no viés ideológico do serviço. O escasso recurso público leva à busca de outras formas de financiamento. Assim, a instituição passa a ter um financiador público e outro financiador privado, que podem ter compreensões divergentes sobre o fenômeno, propondo ações de cuidado diversas, que impactam na capacitação profissional.

Políticas públicas: “Esse problema não é meu”

A falta de apoio da comunidade é mencionada muitas vezes, seja dos equipamentos da rede, que evitam receber adolescentes encaminhados pela unidade, seja das pessoas da vizinhança e sociedade como um todo: “Se a gente tivesse essa participação da sociedade eu acho que a gente poderia ajudar muito mais e o engraçado é que a gente ajudaria a própria sociedade, né?” (Sofia). Estudo realizado por Acioli, Barreira, Lima, Lima e Assis (2018Acioli, R. M. L., Barreira, A. K., Lima, M. L. C., Lima, M. L. L. T., & Assis, S. G. (2018). Avaliação dos serviços de acolhimento institucional de crianças e adolescentes no Recife.Ciência & Saúde Coletiva,23(2), 529-542. https://doi.org/10.1590/1413-81232018232.01172016
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) aborda a aceitação pela vizinhança e pela escola como problemáticas fundamentais que comprometem a inclusão e frequência dessas crianças em lugares distintos devido à rejeição das pessoas. Segundo Maria, aspectos ligados ao preconceito e vitimização dos adolescentes em ambiente escolar dificultam sua inserção e contribuem também para a evasão escolar:

Eles são vistos dentro da escola com bastante preconceito, só deles dizerem que estão em uma UAi. Outros meninos não têm condições de ir pra escola por que estão em uma situação de risco, com problema no bairro onde eles estavam. A escola acaba sendo um lugar de risco para eles e os que a gente consegue inserir a maioria deles não fica.

A escola deveria ser um ambiente de pertencimento para os estudantes, tendo em vista que é um contexto fundamental para o desenvolvimento com reconhecida importância na construção de habilidades, valores e identidade, formação educacional e cidadã, portanto existe a necessidade de concretização de ações intersetoriais para viabilizar a inserção e permanência na escola, principalmente de jovens usuários de drogas (Galhardi & Matsukura, 2018Galhardi, C. C. & Matsukura, T. S. (2018). O cotidiano de adolescentes em um Centro de Atenção Psicossocial de Álcool e outras Drogas: realidades e desafios.Cadernos de Saúde Pública,34(3), e00150816. https://doi.org/10.1590/0102-311x00150816
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).

Esses resultados também foram descritos por Pimenta et al. (2017Pimenta, N., Augusto, R., Guimarães, I. M., & Cardoso, C. (2017). Desafios psicossociais em uma Unidade de Acolhimento Infanto Juvenil [Resumo]. In ABRAPSO Editora (Org.), Caderno de Resumos, do XIX Encontro Nacional da ABRAPSO. Porto Alegre: ABRAPSO. (p. 1594) Recuperado de http://www.encontro2017.abrapso.org.br/trabalho/view?ID_TRABALHO=1894
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), que mencionam as dificuldades encontradas na UAi relacionadas à inserção e à permanência dos adolescentes na escola e resistência/negligência da rede de urgência e emergência provocando um isolamento das especialidades, com respostas pontuais, breves e desarticuladas. Fernanda comenta sobre dificuldades relacionadas à rede de cuidado:

A gente tem dificuldade com a parte de psiquiatria, porque no CAPS não tem um psiquiatra pra atender os meninos e também quando a gente vai levar tinha que ter uma prioridade porque eles são muito agitados, né? Não conseguem ficar esperando.

Existem ainda desafios apontados pelos profissionais da UAi, relativos a ações intersetoriais, tais como a ausência de psiquiatra no CAPSiAD no período da coleta de dados, dificuldade de acesso e acompanhamento em atendimentos médicos, o que dispende tempo da equipe para articular o cuidado com esses serviços. Ainda é incipiente o movimento de aproximação entre os equipamentos de diferentes níveis de complexidades da RAPS e de diversas áreas, portanto, seria fundamental investir na educação permanente dos profissionais para que sejam atendidas as diversas demandas dos usuários de drogas, promovendo encontros produtivos com a rede e evitando o atendimento de modo fragmentado em um único serviço (Ribeiro, Gomes, Eslabão, & Silva, 2018Ribeiro, J. P., Gomes, G. C., Eslabão, A. D., & Silva, P. A. (2018). Contrassensos da rede de atenção psicossocial direcionada ao curso do adolescente usuário de crack.Revista Enfermagem Atual,86(24), 1-12. Recuperado de https://revistaenfermagematual.com.br/index.php/revista/article/view/569
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). Por outro lado, também chama a atenção o fato de os profissionais destacarem a falta do psiquiatra como um dos principais problemas na articulação da rede de cuidados. Isso indica que apesar de todos os determinantes sociais, os profissionais ainda tendem a compreender a questão comportamental e emocional dos jovens como um fenômeno do campo da Psiquiatria.

Outra questão mencionada trata sobre o acesso ao serviço, que ocorre na maioria das vezes a partir de ações protagonizadas pelo poder Judiciário, o que pode indicar uma ineficiência do setor Saúde e/ou existência de complexas situações e impedimentos de caráter social (Conceição, Andreoli, Esperidião, & Santos, 2018Conceição, D. S., Andreoli, S. B., Esperidião, M. A., & Santos, D. N. (2018). Atendimentos de crianças e adolescentes com transtornos por uso de substâncias psicoativas nos Centros de Atenção Psicossocial no Brasil, 2008-2012.Epidemiologia e Serviços de Saúde,27(2), e2017206. https://doi.org/10.5123/s1679-49742018000200002
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). Segundo os profissionais, cerca de 95% dos adolescentes que frequentam o serviço estão ligados ao judiciário de alguma forma; com isso, é possível verificar a alta interferência do judiciário nesses serviços. Simone comenta ainda que o judiciário possui papel também no auxílio na articulação com a rede, pois eles enviam relatórios mais rapidamente e fazem a comunicação com outros serviços:

As pessoas ficam jogando a bomba um para o outro: “Esse problema não é meu”. Nós trabalhamos com o adolescente, fizemos toda a nossa parte e precisa dar alta, precisa que algum órgão faça o acompanhamento da família pra poder receber esse adolescente de volta e os órgãos não se comprometem. Muitas vezes a gente precisa recorrer ao juiz, pra determinar como medida e poder se cumprir aquilo.

É relevante questionar a função do judiciário em articular a rede de atenção psicossocial e de seu envolvimento no cuidado e nas decisões dessa problemática. Para Serena, profissional do CAPSiAD, é prejudicial quando os profissionais do judiciário interferem nas decisões e se sobrepõem aos profissionais da saúde:

Às vezes chega papel falando: “Encaminho para avaliação para internação”. Ele não é da saúde, não sabe se é isso, tinha que encaminhar pra tratamento primeiro e aqui avaliar se vai pra internação, qual vai ser o tipo de tratamento. Então não só na saúde, mas o judiciário ele faz esse papel de se sobrepor aos técnicos.

Para Pimenta et al. (2017Pimenta, N., Augusto, R., Guimarães, I. M., & Cardoso, C. (2017). Desafios psicossociais em uma Unidade de Acolhimento Infanto Juvenil [Resumo]. In ABRAPSO Editora (Org.), Caderno de Resumos, do XIX Encontro Nacional da ABRAPSO. Porto Alegre: ABRAPSO. (p. 1594) Recuperado de http://www.encontro2017.abrapso.org.br/trabalho/view?ID_TRABALHO=1894
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), existe um desconhecimento sobre as funções exercidas pela UAi e certas demandas do judiciário contribuem para o entendimento da UAi como um fim em si mesmo e não um dispositivo parte de um projeto terapêutico. É necessário uma juridicialização engajada militante que promova a garantia de direitos e dignidade. Caso contrário, corre-se o risco da judicialização da saúde mental promover a institucionalização, estigmatização e medicalização da conduta (Rocha, Silva, & Asensi, 2018Rocha, C., Silva, M., & Asensi, F. (2018). Juridicização engajada da adolescência: sobre um caso de internação psiquiátrica compulsória.Saúde e Sociedade ,27(1), 201-214. https://doi.org/10.1590/s0104-12902018170531
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).

Sofia comenta que o judiciário, muitas vezes, encaminha adolescentes que são considerados “difíceis” com a promessa de que a rede atuará conjuntamente para desenvolver o cuidado, mas, com o tempo, as modificações propostas e estratégias conjuntas se perdem e cada serviço acaba segmentado em suas especificidades: “Aí vem com toda aquela coisa de ‘Não, os serviços vão andar juntos’ faz aquela reunião e todo mundo comparece. Mas na hora que a gente precisa e mesmo marca algumas reuniões que se 2 ou 3 serviços vão...”

Enquanto não forem formuladas estratégias de cuidado em conjunto com implementação de fluxogramas, existe a tendência dos vínculos entre serviços serem superficiais e fragmentados. É preciso que a rede reconheça a diversificação da demanda dessa população assegurando um cuidado que ultrapasse o foco na patologia e no uso de drogas, e que vá ao encontro de ações que estimulem a autonomia e cidadania dos sujeitos atendidos (Costa, Ronzani, & Colugnati, 2017Costa, P. H. A., Ronzani, T. M., & Colugnati, F. A. B. (2017). “No papel é bonito, mas na prática…” Análise sobre a rede de atenção aos usuários de drogas nas políticas e instrumentos normativos da área.Saúde e Sociedade,26(3), 738-750. https://dx.doi.org/10.1590/s0104-12902017170188
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). Para que exista uma rede atuante, os profissionais precisam ter a capacidade de se conectarem às pessoas inseridas em outros equipamentos e espaços da comunidade (Ministério da Saúde, 2015Ministério da Justiça (2015). Guia estratégico para o cuidado de pessoas com necessidades relacionadas ao consumo de álcool e outras drogas. Brasília, DF: Autor. Recuperado de https://portalarquivos2.saude.gov.br/images/pdf/2015/dezembro/15/Guia-Estrat--gico-para-o-Cuidado-de-Pessoas-com-Necessidades-Relacionadas-ao-Consumo-de---lcool-e-Outras-Drogas--Guia-AD-.pdf
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). Helena relembra que a rede é constituída de pessoas que precisam se comunicar, caso contrário a porta giratória continuará:

A rede não funciona entre serviços, funciona entre pessoas. Eu percebo que tem muito jogo de empurra-empurra: “É da saúde, então não é da assistência, é do CAPSi, então não é do CAPSiAD”. Então, a rede como um todo não funciona, mas a assistente social da internação que comprou a briga do caso faz a rede funcionar.

Para a construção de um Projeto Terapêutico Singular (PTS) adequado, existe a necessidade da atuação de diversas áreas, além da saúde, uma vez que as necessidades particulares são incapazes de serem atendidas por um único serviço. A importância do PTS está na capacidade de nortear os processos e caminhos de atendimento intersetorial na RAPS (Ministério da Saúde, 2015Ministério da Justiça (2015). Guia estratégico para o cuidado de pessoas com necessidades relacionadas ao consumo de álcool e outras drogas. Brasília, DF: Autor. Recuperado de https://portalarquivos2.saude.gov.br/images/pdf/2015/dezembro/15/Guia-Estrat--gico-para-o-Cuidado-de-Pessoas-com-Necessidades-Relacionadas-ao-Consumo-de---lcool-e-Outras-Drogas--Guia-AD-.pdf
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). Segundo Helena, o ideal seria planejar o PTS no momento de entrada do adolescente no serviço, junto com a família, mas na prática, o serviço exerce ações pontuais relacionadas às necessidades e às demandas diárias observadas: “A gente vai meio que apagando incêndio mesmo para tentar garantir alguns acessos, sabe? Tá com a matrícula da escola atrasada, vamos atrás, quer fazer escolinha de futebol, vamos atrás.”

A construção do PTS também deveria ser realizada junto à equipe do CAPSiAD, porém, segundo Sueli, eles não formulam um documento oficial devido à dinamicidade das demandas atendidas: “As coisas que acontecem com eles são bem mais rápidas do que a gente consegue escrever num papel. Então a gente tem reunião toda terça e combina uma coisa, quarta mudou tudo. Aí é telefone, whatsapp, passa lá.”

A utilização de mídias sociais emerge como uma ferramenta importante ao se levar em conta a rapidez da dinâmica institucional. Este uso vai ao encontro das orientações no guia estratégico para o cuidado de pessoas com necessidades relacionadas ao consumo de álcool e outras drogas que indica o uso de meios de comunicação rápidos e fóruns de discussão como estratégias eficientes para o trabalho com população usuária de drogas (Ministério da Saúde, 2015Ministério da Justiça (2015). Guia estratégico para o cuidado de pessoas com necessidades relacionadas ao consumo de álcool e outras drogas. Brasília, DF: Autor. Recuperado de https://portalarquivos2.saude.gov.br/images/pdf/2015/dezembro/15/Guia-Estrat--gico-para-o-Cuidado-de-Pessoas-com-Necessidades-Relacionadas-ao-Consumo-de---lcool-e-Outras-Drogas--Guia-AD-.pdf
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). Ainda foram ressaltadas potencialidades relacionadas ao vínculo entre adolescentes e profissionais da UAi, o cuidado territorializado com adolescentes e famílias, além da proximidade física entre UAi e CAPSiAD e os equipamentos, o que propicia discussões de caso e articulação de projetos terapêuticos conjuntos entre as equipes.

Assim, pensar como o fenômeno da porta giratória é produzido e seus efeitos possibilita organizar outras estratégias de trabalho que garantam o cuidado resolutivo e longitudinal dessa demanda. A partir disso, é importante pensar práticas que melhorem o vínculo entre os diferentes serviços da rede, bem como qualificar o atendimento a problemas de saúde mental (Zanardo et al., 2018Zanardo, G. L. P., Moro, L. M., Ferreira, G. S., & Rocha, K. B. (2018). Factors Associated with Psychiatric Readmissions: A Systematic Review. Paidéia (Ribeirão Preto), 28, e2814. https://doi.org/10.1590/1982-4327e2814
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). A compreensão da importância de políticas públicas intersetoriais que considerem os contextos que permeiam o uso de drogas e garantam acesso a serviços envolvendo comunidade/famílias/usuários/instituições formadoras foi um avanço para o estabelecimento de políticas realistas que visam prevenção, promoção e redução de danos sociais e individuais (Passos et al., 2016Passos, I. C. F., Reinaldo, A. M. S., Barboza, M. A. G., Braga, G. A. R., & Ladeira, K. E. (2016). A rede de proteção e cuidado a crianças e adolescentes do município de Betim/MG e os desafios do enfrentamento ao uso abusivo de crack, álcool e outras drogas.Pesquisas e Práticas Psicossociais,11(3), 583-601.).

Nesse tema, são trazidos aspectos relativos à rede de cuidados que produzem o fenômeno da porta giratória, promovendo a institucionalização e segmentação do atendimento, tais como a desarticulação da rede, falta de preparo das instituições para receber demandas de populações específicas e ausência de conhecimento dos profissionais da rede sobre o funcionamento da unidade. Esses são aspectos relacionados aos fluxos estabelecidos nos processos de trabalho que cristalizam posições defensivas em relação à demanda (Esse problema não é meu ) e dizem sobre as condições de trabalho desses profissionais.

Esse fenômeno continuará ocorrendo caso não exista uma corresponsabilização e interlocução contínua do cuidado para reduzir as barreiras de acesso, sobreposição de ações entre os serviços e descontinuidade do cuidado (Ministério da Saúde, 2015Ministério da Justiça (2015). Guia estratégico para o cuidado de pessoas com necessidades relacionadas ao consumo de álcool e outras drogas. Brasília, DF: Autor. Recuperado de https://portalarquivos2.saude.gov.br/images/pdf/2015/dezembro/15/Guia-Estrat--gico-para-o-Cuidado-de-Pessoas-com-Necessidades-Relacionadas-ao-Consumo-de---lcool-e-Outras-Drogas--Guia-AD-.pdf
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). São necessárias estratégias inventivas e fortalecimento intersetorial para que a articulação do cuidado seja efetiva, já que essa é uma temática desafiadora que ainda é recente e fragilmente estruturada.

Considerações finais

Existem muitos avanços conquistados com o processo de reforma psiquiátrica e com a organização da RAPS no Brasil, porém ainda é observada necessidade de estruturação da rede, ainda mais no que se refere ao cuidado a populações específicas como crianças e adolescentes usuários de drogas e diante do atual cenário brasileiro de desmonte e retrocesso de políticas públicas no campo da saúde mental com ausência de investimento e implantação de novos equipamentos como as UAis.

Sobre o fenômeno da porta giratória, questões geracionais e de desconhecimento do serviço por parte dos familiares foram relatadas pelos profissionais como promotoras da falta de vínculo familiar e da baixa adesão à UAi. Na perspectiva dos profissionais, a família precisa ser amparada com informações para compreender que as propostas de cuidado da UAi implica o acolhimento provisório e a permanência voluntária por parte dos adolescentes, assim como informação sobre o funcionamento da RAPS, para que possam ser preparadas para reconhecer que fazem parte do processo de cuidado oferecido pelas instituições. Outra questão relevante refere-se ao subfinanciamento público relacionado à recente implantação de políticas públicas voltadas a essa população. A busca por verba privada e doações para o serviço esbarra no preconceito das instituições privadas para desenvolver parceria com esta temática. A falta de apoio social e o preconceito da sociedade e instituições também são apontados, bem como a judicialização da saúde e a falta de acessibilidade a serviços e equipamentos como a escola.

A investigação do fenômeno da porta giratória em uma UAi permitiu apreender o conjunto de (des)articulações entre instituições na efetivação de uma política pública voltada a um segmento etário e social específico, que possui particularidades na vivência como usuários de drogas. Nesse sentido, sua contribuição para o campo da Psicologia Social consiste em visibilizar processos de constituição de subjetividades adolescentes não abstratas mas, ao contrário, concretamente situadas nas tramas histórias do atendimento a essa população. Ao evidenciar, no âmbito de um programa, as tensões e fragilidades nas relações Estado-família e público-privado, que produzem e alimentam o fenômeno da porta giratória, o estudo oferece uma abordagem que integra aspectos macro e micro sociais que conformam as condições de constituição e de vivência desses adolescentes e colabora para o enfrentamento desse fenômeno a partir de seus constituintes. Identificar os elementos desse processo colabora na elaboração de modos de inserção da Psicologia Social na dinâmica de trabalho das RAPS. A institucionalização dos adolescentes que passam por diferentes acolhimentos, abrigos, internações e privações de liberdade tem efeito deletério em suas vidas, gerando maior estigmatização, posicionando-os como “difíceis” e culpabilizado-os pelo fracasso do cuidado.

Sugere-se pesquisas futuras que incluam os familiares e adolescentes como participantes, para observação do fluxo e trajetória desses nos equipamentos da rede de cuidado e os modos como esses sujeitos interpretam os aspectos envolvidos no fenômeno da porta giratória. Também se faz importante analisar o funcionamento das UAis em outros locais do país para investigar aspectos relativos tanto à regionalização do cuidado e aspectos que apareceram neste estudo que se repetem na estruturação mais ampla do fenômeno da porta giratória relacionado ao atendimento das crianças e adolescentes usuários de drogas.

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  • Consentimento de uso de imagem: Não se aplica
  • Aprovação, ética e consentimento: O estudo foi aprovado pelas instituições Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Unidade de Acolhimento infantojuvenil e Centro de Atenção Psicossocial infantil - Álcool e Drogas
  • Financiamento: Bolsa de mestrado da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP (Processo nº 2017/11869-9)

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    10 Out 2019
  • Revisado
    25 Jun 2020
  • Aceito
    27 Jul 2020
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