Acessibilidade / Reportar erro

“RACISMO LINGUÍSTICO: OS SUBTERRÂNEOS DA LINGUAGEM E DO RACISMO” DE GABRIEL NASCIMENTO

"RACISMO LINGÜÍSTICO: LOS FUNDAMENTOS DEL LENGUAJE Y EL RACISMO" POR GABRIEL NASCIMENTO

"LINGUISTIC RACISM: THE UNDERGROUNDS OF LANGUAGE AND RACISM" BY GABRIEL NASCIMENTO

Nascimento, Gabriel. (2019). Racismo linguístico: os subterrâneos da linguagem e do racismo. Letramento.

Percorridas quase duas décadas do maior empreendimento científico de compreensão das relações raciais no Brasil, a partir da investigação dos fenômenos psicológicos que permeiam as relações raciais, compilado por Carone e Bento (2002Carone, I. & Bento, M. A. S. (Orgs.). (2002). Psicologia social do racismo. Vozes.), hoje nos encontramos em um momento em que a psicologia social tem avançado a passos largos no entendimento dos fenômenos psicossociais relacionados às questões raciais e a seus efeitos no contexto social brasileiro. Isso não significa, porém, que os avanços tanto no campo acadêmico quanto no campo dos direitos sociais tenham eliminado o racismo que opera na distribuição desigual dos direitos e na valorização diferenciada nos conhecimentos produzidos por negros e por brancos brasileiros. Compreender as origens, portanto, dessa valorização desigual continua sendo um exercício importante para a psicologia social brasileira, a fim de contribuir com a promoção da igualdade racial por meio da práxis ética e politicamente comprometida com o antirracismo, bem como com uma produção acadêmica que não se furta ao antirracismo.

O livro Racismo linguístico: os subterrâneos da linguagem e do racismo (2019Nascimento, G. (2019). Racismo linguístico: os subterrâneos da linguagem e do racismo. Letramento.), da editora Letramento, composto por seis capítulos, referências e nota sobre o autor, é uma teorização proposta por Gabriel Nascimento sobre a língua a partir da correlação entre esse conceito e o racismo. A escolha de resenhar este livro conecta-se, dessa forma, com o exercício dileto da psicologia social brasileira em sua busca de compreender os mecanismos de construção e reprodução do racismo a partir da colonialidade do ponto de vista branco europeizado. Nesse sentido, a fim de produzir enfretamentos a ele, incorpora-se a dimensão da língua e da linguagem como mais uma dessas formas de produção do epistemicídio negro.

No capítulo 1, ‘“Essa” raça que nos dizem’, mostra o papel da linguagem como objeto usado no ocidente para fortalecer o colonialismo e como ferramenta de dominação do branco. Para tanto, Gabriel Nascimento (2019Nascimento, G. (2019). Racismo linguístico: os subterrâneos da linguagem e do racismo. Letramento.) propõe uma reflexão sobre o passado para justificar a origem do racismo linguístico desde a época colonial. Segundo o autor, a base desse racismo estaria atrelada: ao combate da língua indígena e da africana sob o contorno do linguicídio, ao assassinato das línguas não pertencentes ao grupo hegemônico, eurocêntrico; e ainda ao epistemicídio, que representa o extermínio do conhecimento do outro. Ao mencionar esses fenômenos, o linguicídio e o epistemicídio, dois conceitos novos para o leitor que inicia sua jornada de leitura sobre língua e formas de dominação raça, Nascimento elucida coerentemente não somente a origem das formas de opressão sob a língua do outro estrangeiro como também apresenta as causas o preconceito linguístico, conceito cunhado por Marcos Bagno, por ora, sofrido pelo povo preto. O linguicídio marca a língua como instrumento de poder, de dominação e de humilhação, fazendo jus ao que foi apontado no prefácio do livro, escrito por Lynn M. T. Menezes de Souza, em que este aponta como a língua serve para humilhar, envergonhar e, digamos nós, para dominar grupos minoritários e estratificar grupos sociais. Quanto à noção de epistemicídio tão relevante para a reflexão sobre língua como instrumento de poder e de racismo, há, a partir da página 23, longa explicação sobre esse conceito, “é o epistemicídio (a partir do continente europeu) que decide que as línguas dos brancos são línguas nacionais enquanto as demais não são sequer línguas e são apenas dialetos” (Nascimento, 2019, p. 24Nascimento, G. (2019). Racismo linguístico: os subterrâneos da linguagem e do racismo. Letramento.).

Nesse capítulo, Gabriel Nascimento, ao mencionar o termo “denegrir” e a expressão “cabelo ruim”, os classifica como racistas, mas assume, honestamente, a ausência de estudo diacrônico e etimológico, consequentemente, para remontar como houve uma transformação linguística em algo negativo e racista. Ainda que a intenção do autor tenha sido traçar um panorama teórico e não trazer um sem número de termos e de expressões linguísticas de cunho racista, acreditamos que o leitor demanda, a fim de fazer funcionar a teorização proposta no livro, esses dados da língua. Fica como sugestão para trabalhos futuros do próprio autor ou de outro estudioso o levantamento de expressões linguísticas do período colonial até o período contemporâneo a título de respaldo das ideias levantadas no texto. No capítulo 1, se “negro” é palavra que traz a dor do colonialismo em sua raiz, a palavra “nego” é assumida no livro como à disposição de relações de intimidade e de contextos de resistência do povo negro quando há proximidade entre os interlocutores do processo comunicativo. Sendo assim, é interessante o trabalho de Nascimento no que diz respeito a mostrar o processo de ressignificação da palavra a favor da luta de um povo contra o preconceito, diferentemente do que ocorre com o uso da palavra “moreno”, que parece encenar a negação da negritude por intermédio de um movimento eufemístico da língua.

O capítulo 1 é extenso e denso no que tange às reflexões teóricas para além da reflexão sobre linguicídio e epistemicídio. Sorte a nossa, enquanto leitores, que o autor, de maneira didática, precisa e clara, vai nos situando quanto a alguns marcos teóricos da área de linguística. Ainda sobre a teorização proposta por Nascimento, são trazidos debates sobre o racismo e sua relação com duas correntes linguísticas: o estruturalismo e o pós-estruturalismo. Para o autor, a língua admitiria preconceitos no pós-estruturalismo, isso porque, no estruturalismo de Saussure, a língua não seria perpassada pelo próprio sujeito. O racismo está na estrutura das coisas (estrutural), o que não é uma discussão inédita, ainda que negligenciada por alguns. Como a língua ganha espaço nessa estrutura, logo materializa o racismo. Esse fato é justificado na obra pela presença de um sujeito por trás da língua, sendo ele heterogêneo e não isento, por um sujeito atravessado por relações de poder e por idealizações. Assim, o conceito de linguicídio se efetiva por mostrar como o branco colonizador, dotado de uma ideologia voltada para a dominação e para a imposição de sua visão de mundo tida como civilizada e superior, submete os povos colonizados à morte de seus aspectos culturais, como é o caso da língua. Em resumo, o autor prova que o racismo não é só uma questão de cor, mas sim uma questão de língua, mesmo porque língua não tem cor, é uma abstração, algo forjado.

Dando continuidade ao exposto, no capítulo 2: ‘Frantz Fanon, Achille Mbembe e Lélia Gonzalez: intelectuais negros que falam da relação entre linguagem e racismo’, o autor problematiza o significado de “negro” à luz da resistência por parte dos indivíduos pretos e encerra esse conceito no campo da culpabilização, da desresponsabilização e da discriminação por parte do sujeito branco. Nascimento, então, discute, tendo em vista um emaranhado de referências teóricas consistentes, como a linguagem dá manutenção ao racismo estrutural anteriormente discutido no capítulo 1. Além disso, o autor insere o seu discurso em uma rede dialógica ininterrupta também formada por outros discursos, para lembrarmos Bakhtin (2010Bakhtin, M. (2010). Estética da criação verbal. Martins Fontes.) e o círculo. Para tanto, ele parte da noção de “pretoguês”, de Gonzalez (1982Gonzalez, Lélia (1982). De Palmares às escolas de samba, estamos aí.Mulherio, 2(5), p. 3. http:\\www.fcc.org.br
http:\\www.fcc.org.br...
, 1983Gonzalez, Lélia (1983). “Racismo e sexismo na cultura brasileira”. Ciências Sociais Hoje, 2, 223-244., 1988Gonzalez, Lélia (1988). A categoria político-cultural de amefricanidade.Tempo Brasileiro, 92/93, 69-82. https://negrasoulblog.files.wordpress.com/2016/04/a-categoria-polc3adtico-cultural-de-amefricanidade-lelia-gonzales1.pdf
https://negrasoulblog.files.wordpress.co...
), branqueamento, de Frantz Fanon (2008Fanon, F. (2008). Pele negra, máscara branca. EDUFBA), e de raça enquanto signo, de Mbembe (2014Mbembe, Achille (2014). Crítica da Razão Negra. Antígona.). Notamos que a junção de vários pontos de vista teóricos funciona para entendermos mais ainda as sequelas da racialização em nosso modo de usar a língua.

No capítulo 2, o autor traz à tona a maneira como Gonzalez (1982Gonzalez, Lélia (1982). De Palmares às escolas de samba, estamos aí.Mulherio, 2(5), p. 3. http:\\www.fcc.org.br
http:\\www.fcc.org.br...
, 1983Gonzalez, Lélia (1983). “Racismo e sexismo na cultura brasileira”. Ciências Sociais Hoje, 2, 223-244.,1988Gonzalez, Lélia (1988). A categoria político-cultural de amefricanidade.Tempo Brasileiro, 92/93, 69-82. https://negrasoulblog.files.wordpress.com/2016/04/a-categoria-polc3adtico-cultural-de-amefricanidade-lelia-gonzales1.pdf
https://negrasoulblog.files.wordpress.co...
) cria o conceito de “pretoguês”, “marca de africanização do português falado no Brasil” (Nascimento, 2019, p. 54Nascimento, G. (2019). Racismo linguístico: os subterrâneos da linguagem e do racismo. Letramento.). Essa mescla entre a nossa língua e os resquícios. daquela usada na África é, na prática, a prova de resistência contra um plano de branqueamento desmedido à língua do povo colonizado, mas também motivação para a prática de discriminação linguística e racial, voltada pelo apagamento de vozes. Prova disso é o uso de “framengo”, influência africana, um rotacismo, segundo Bagno (1999Bagno, M. (1999). Preconceito linguístico: o que é, como se faz. Loyola.), em Preconceito linguístico: como é, como se faz, o que gera segregação para aqueles que usam a língua assim, contrariando a “patrulha” da norma que desconsidera a influência africana no nosso idioma.

Fanon (2008Fanon, F. (2008). Pele negra, máscara branca. EDUFBA) é referendado na obra para mostrar como a língua é espaço de colonialidade, como diferencia as pessoas da comunidade e aproxima os gentios. Nesse contexto, a gramática normativa é opressora e avizinha o homem negro do homem verdadeiro (o colonizador), ou seja, um negro manejar a língua sob o viés normativo imposto pelo branco o tornaria mais próximo deste. Aliás, nada novo sob o sol, tendo como referência que, na contemporaneidade, vivemos também essa forma de discriminação linguística. Se na visão de Fanon (2008Fanon, F. (2008). Pele negra, máscara branca. EDUFBA), citado pelo autor, quanto mais imbuído da cultura e da língua do colonizador, mais distante da “selva” o homem colonizado estaria; o homem contemporâneo, imerso no normativismo linguístico, estaria mais próximo do homem branco urbano, o novo homem verdadeiro. Nasce daí a noção de branqueamento para aceitação social.

Por fim, para o usuário da língua mais disperso, o livro presta um importante serviço ao mostrar como a palavra “negro”, enquanto signo, é carregada do que chamamos de semântica negativa por remontar à ideia de propriedade no contexto colonial. O fato que justifica esse lugar negativo do signo “negro” é a ideia de raça imposta pelo colonizador, segundo Mbembe (2014Mbembe, Achille (2014). Crítica da Razão Negra. Antígona.), em que o indivíduo negro é racializado para ser dominado e virar mercadoria. Enquanto isso, a branquitude é desresponsabilizada ao negar o lugar de fala dos negros em espaços privilegiados como afirma Linda Alcoff (1998Alcoff, Linda M. (1998). Epistemology: The Big Questions. John Wiley.). Nascimento (2019, p. 47Nascimento, G. (2019). Racismo linguístico: os subterrâneos da linguagem e do racismo. Letramento.) reforça, a partir disso, a raça como “um lugar de muito sofrimento discursivo” e mostra como, em contraposição ao termo “negro”, surge o signo “preto”, de semântica positiva, carregado pelo olhar do autor da obra.

No capítulo 3, ‘Por um conceito (nosso) de racialização, racialidade e raça’, o autor examina a existência da racialização enquanto enunciação histórica que produz hierarquias de poder, estando inserida na história do colonialismo e do capitalismo. Para analisar a estrutura do signo num mundo colonizado e ainda explicar a relação entre negritude e linguagem, Nascimento (2019Nascimento, G. (2019). Racismo linguístico: os subterrâneos da linguagem e do racismo. Letramento.) retoma os estudos de Frantz Fanon, a fim de elucidar o racismo linguístico. O estudioso aponta a forma como os negros buscaram assimilar a língua dos brancos, a fim de serem supostamente aceitos pela branquitude e sobreviverem. A utilização dessa linguagem a seu favor foi um dos primeiros signos impostos pelo colonialismo. Apresenta que tal assimilação funcionava como forma de sobrevivência e de buscar espaços melhores na sociedade, de assemelhar-se aos brancos, de ser considerado gente, uma vez que o padrão de humanidade associava-se à branquitude, a assimilar os padrões de linguagem dos brancos e imitá-los, mesmo custando deixar de ser negro. Nascimento (2019Nascimento, G. (2019). Racismo linguístico: os subterrâneos da linguagem e do racismo. Letramento.) conclui, destacando como os processos linguísticos, simbólicos e discursivos funcionaram através do colonialismo e fizeram com que o colonizador, ao animalizar o outro, animalizava a si mesmo: desumanizava-se reduzindo o projeto de humanismo apregoado na modernidade.

Falar a língua dos brancos torna os negros mais próximos do padrão branco linguístico, porém, não os tornam, brancos, e, consequentemente, humanos, como nos adverte Nascimento ao refletir sobre o contexto social antilhano e nos fazendo considerar o contexto atual, a partir das injunções embranquecedoras atuantes. O que é superioridade e inferioridade é definido pelo racismo enquanto uma hierarquia global, que estabelece uma linha do que representa ser humano e permite dizer quem está acima e abaixo dessas linhas, quem é digno de prestígio e reconhecimento social, quem merece respeito atitudinal e quem é passível de coisificação. A miscigenação, segundo o autor, pode ser compreendida, assim, a partir do ponto de vista dos negros, como um desejo de ser reconhecido como sujeitos que integram uma sociedade.

Em seguida, o autor, apoiado em Achille Mbembe, discute a construção da identidade a partir da colonialidade, a qual impôs opressões ao longo da história, construindo as noções de raça e de sujeito. Além disso, discute-se o signo negro como uma criação da branquitude, o que pode ser lido na página 76: “Não apenas no nome ou a concepção foram criados, mas também sua configuração na Era Moderna durante enrijecimento e expansão do tráfico negreiro. Nesse contexto, raça se constrói através da língua e da história”. Nascimento defende que, ao contrário do discurso multiculturalista liberal, que preconiza a identidade como um processo reivindicatório, o conceito de raça é fruto de violência, pois os negros são construídos como raça, e os brancos como aqueles não responsabilizados por essa criação. Tal situação, para o autor, mascara os espaços de privilégio da branquitude que não se reconhece como raça. Ao contrário, portanto, de um exercício de autoidentificação, o autor argumenta que a negritude é signo de uma dominação sustentada pela ideia de raça, uma imposição perversa através de sinais negativos, devendo os negros encarná-la como uma verdade biológica. Contudo, ele destaca essa autoidentificação à negritude como uma das estratégias atuais de reagir à identificação inicial contra o colonialismo.

O lugar de fala como negro é demandado no capítulo 4 “O decolonial (preto) fala ao pós-moderno”, pois, de acordo com Nascimento, nem o marxismo europeu, nem o multiculturalismo liberal, enquanto metanarrativas, abordam o racismo e sua linha divisória entre humanos e não humanos, ficando o exercício para o pensamento decolonial, conforme destaca na página 84:

Me posiciono enquanto intelectual e chamo de decoloniais todos aqueles que se preocupam, entre um grande círculo de pensadores e líderes, em descolonizar o pensamento ocidental através da criação de uma transmodernidade decolonial. Sobretudo os pensadores negros, a quem me rendo como pensador.

O autor analisa a noção de práxis como forma de demarcação das ações do mundo por meio da prática perspectivista de uma dada condição material, e propõe rever a sua autoria como supostamente nascida entre os europeus. Ele chama, portanto, de falso discurso da práxis a noção apropriada pelos marxistas e pós-modernos para encontrar saídas para a modernidade e sugere que a revisão do conceito passe pela compreensão dos 388 anos de práxis de luta do povo negro, respeitando sua heterogeneidade expressa em movimentos pró-independência, guerrilhas e quilombos.

Diante da ascensão do multiculturalismo, Nascimento destaca que falar ao pós-moderno exige o direito de poder falar, antes de tudo. Com isso, defende o discurso da interculturalidade ao retomar grandes falas latino-americanas, como o “pretoguês”, ignoradas e silenciadas, mas que devem ser compreendidas como epistemologias distintas da não-civilizada europeia. Tal exercício de homogeneização e o não reconhecimento da heterogeneidade dos não-brancos funciona, segundo o autor, como uma gramática da dominação do branco no mundo. O papel do pensamento decolonial é resistir a esses discursos, como o da África romantizada que dá origem a discursos salvacionistas, ignorando comunidades automotivadas e autodeterminadas, mas que são ignoradas e transformadas em um oco discurso que legitima as práticas de exploração e de silenciamento.

A discussão acerca das dificuldades que as políticas governamentais criam para os negros e indígenas no Brasil, buscando historicizar raça e linguagem como objeto da dominação colonial, é realizada no capítulo 5, “Alguns trechos da história brasileira por uma lente raciolinguística”. Nessa parte, o autor busca reiterar que o branqueamento cultural e social do ensino de línguas no país não se deu sem políticas oficiais. Ele busca destacar, fundamentado no debate sobre a existência de uma língua geral de origem Tupinambá, a dominação através da língua, ou seja, o linguicídio das línguas indígenas, à medida que essa língua foi sendo substituída pelo uso da língua portuguesa, ainda com status de língua estrangeira, no ensino dos índios como política de estado. Analisa ainda que o português só vai adquirir status de língua materna a partir da vinda da família real para o Brasil, em 1808, mas sem perder o caráter de política colonialista de dominação por meio da língua, própria do linguicídio, expandindo, com isso, a visão das línguas indígenas como bárbaras. Nesse ínterim, vai ganhando espaço o ensino do inglês, como língua estrangeira, articulado com a política racista de implantação de cursos de medicina e de direito para atender às elites do país, dentro do projeto expansionista do imperialismo, mostrando a quem se destinava o ensino das línguas estrangeiras. Dessa forma, ele enfatiza que é somente a datar da ‘Era Vargas’ que o ensino de língua estrangeira passa a ser implantado nas escolas regulares públicas, o que fundamenta o pensamento do autor de que o ensino de línguas no Brasil foi feito para os brancos e pelos brancos, seja para a dominação do povo ou para a construção de um projeto de nação.

O caso do ensino da língua inglesa, no nosso país, é tomado como exemplo de manutenção do privilégio da branquitude, especialmente a partir da retirada da sua obrigatoriedade na década de 1960 nas escolas públicas, abrindo-se, então, os inúmeros cursos privados de idiomas acessados, majoritariamente, pelas elites. Da mesma forma, o autor convida o leitor a pensar a não obrigatoriedade do ensino das línguas estrangeiras no ensino médio durante a ditadura militar, a partir do viés da dominação e subalternização racial dos negros, pois naquele momento esse grupo começava a ocupar as escolas públicas e estaria, assim, alijado do aprendizado do inglês. Essa história de racialização através da língua Nascimento (2019Nascimento, G. (2019). Racismo linguístico: os subterrâneos da linguagem e do racismo. Letramento.) nomeia de raciolinguística, apoiado nos autores Nelson Flores e Jonathan Rosa, a fim de mostrar, no caso brasileiro, como os negros foram animalizados e os brancos privilegiados a partir do uso da língua.

No capítulo 6: “O que fazer? Por uma outra perspectiva raciolinguística”, último e mais curto do livro, Nascimento ratifica a ideia central de língua como filha do epistemicídio ocidental e de linguicídio como criação da colonialidade. Também reafirma a noção de racialização produzida pela noção de língua e seus efeitos de negação e desumanização do negro, como bem discutido nos capítulos anteriores, mas lembrando que, mesmo não sendo sua essa língua e essa raça, ele as utiliza para lutar e resistir. Mais uma vez, reforça a criação da ideia de raça pelos brancos e reflete que cabe aos negros resistirem a esse conceito a partir de suas estratégias de existência. É papel do negro, de acordo com Nascimento (2019), abandonar o discurso da desracialização e, com isso, apontar a branquitude como raça, enquanto uma identidade, questionando a sua universalidade e homogeneidade, mostrando o mundo intangível e imutável criado por ela. A partir da noção de outra lógica raciolinguística inclusiva, o autor salienta o crescimento da onda afrocentrada, que revisita o pan-africanismo, segundo a reescrita não da África, mas “do “novo mundo”, enfrentando o conceito de raça como fantasia política” (p. 110). Na crítica negra, dessa forma, a heterogeneidade do discurso negro deve ser aproveitada para ser valorizada: de marxistas africanos e diaspóricos aos pan-africanistas. Essa perspectiva raciolinguística representa transracializar a moral racializante, sem “se esconder por trás dos discursos humanistas que nos negam a humanidade” (p. 113). Assim, é preciso saber quais armas deverá usar por meio da linguagem, por vez dialógica decolonial.

Longe de adotarmos um posicionamento preconceituoso a partir do critério linguístico, conscientes de que a valorização excessiva da norma padrão e da forma sobre o conteúdo é um modo de opressão, não podemos deixar de observar que o livro possui pequenos deslizes no que tange à revisão textual. Na página 15, capítulo 1, no segundo parágrafo, o trecho “Ou seja, não estamos falando de um projeto neutro ...” apresenta erro de digitação, o que se sucede também na página 22 do referido capítulo no trecho “É o caso de denegrir ...”. Trata-se de um descuido do revisor da editora que pode comprometer a tão eficiente rede teórica construída pelo autor, a partir da leitura implacável dos puristas que se prendem aos aspectos formais do texto.

Por se tratar de um livro de abordagens teóricas e conceituais que estão na ordem do dia, no que concerne à raça e à língua, acreditamos que o material é essencial para promover uma revisão de conceitos hegemônicos e, por vezes, equivocados que circulam socialmente, o que daria voz às narrativas daqueles que tanto sofrem preconceito no uso da língua sem, ao menos, desconfiarem das origens históricas que permeiam essa discriminação. O livro colabora com o leitor interessado na temática por desnudar o racismo e o colocar a Linguística a partir da perspectiva do desbranqueamento. Tal atitude decolonial é interessante e libertadora, pois só assim a língua, o sujeito e sua história sairiam da penumbra imposta pelo processo colonialista, o qual tem interesse em manter corpos negros como subalternos. A obra convoca o leitor para a resistência, colocando-se contra a raciolinguística, movimento em prol da exclusão da pessoa negra e de sua língua. Dessa forma, aposta em uma práxis socialmente comprometida com a equidade nas relações raciais.

Referências

  • Alcoff, Linda M. (1998). Epistemology: The Big Questions John Wiley.
  • Bagno, M. (1999). Preconceito linguístico: o que é, como se faz. Loyola.
  • Bakhtin, M. (2010). Estética da criação verbal Martins Fontes.
  • Carone, I. & Bento, M. A. S. (Orgs.). (2002). Psicologia social do racismo Vozes.
  • Fanon, F. (2008). Pele negra, máscara branca EDUFBA
  • Gonzalez, Lélia (1982). De Palmares às escolas de samba, estamos aí.Mulherio, 2(5), p. 3. http:\\www.fcc.org.br
    » http:\\www.fcc.org.br
  • Gonzalez, Lélia (1983). “Racismo e sexismo na cultura brasileira”. Ciências Sociais Hoje, 2, 223-244.
  • Gonzalez, Lélia (1988). A categoria político-cultural de amefricanidade.Tempo Brasileiro, 92/93, 69-82. https://negrasoulblog.files.wordpress.com/2016/04/a-categoria-polc3adtico-cultural-de-amefricanidade-lelia-gonzales1.pdf
    » https://negrasoulblog.files.wordpress.com/2016/04/a-categoria-polc3adtico-cultural-de-amefricanidade-lelia-gonzales1.pdf
  • Nascimento, G. (2019). Racismo linguístico: os subterrâneos da linguagem e do racismo. Letramento.
  • Mbembe, Achille (2014). Crítica da Razão Negra Antígona.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    2022
Associação Brasileira de Psicologia Social Programa de Pós-graduação em Psicologia, Universidade Federal de Pernambuco, Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH), Av. da Arquitetura S/N - 7º Andar - Cidade Universitária, Recife - PE - CEP: 50740-550 - Belo Horizonte - MG - Brazil
E-mail: revistapsisoc@gmail.com