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A cirurgia cardíaca pediátrica sob o olhar dos pais: um estudo qualitativo

Resumos

INTRODUÇÃO: As cardiopatias congênitas podem muitas vezes ser corrigidas por meio de cirurgia, assegurando para os pais a expectativa de uma vida normal, entretanto, a vivência da hospitalização, muitas vezes precoce, ocasiona maior sofrimento, sendo a operação o pior momento. OBJETIVO: O objetivo deste estudo foi analisar a vivência de famílias de crianças submetidas à cirurgia cardíaca, identificando os recursos de enfrentamento utilizados pelos familiares. MÉTODOS: A abordagem qualitativa foi a opção metodológica deste estudo, onde realizou-se seis entrevistas semi-estruturadas e 100 horas de observação participante. Foi utilizada a análise temática para a compreensão dos dados. RESULTADOS: Os resultados foram categorizados em quatro núcleos temáticos: sentimentos e emoções frente ao adoecimento do filho; a doença do coração sob o olhar materno; mãe e filho na dinâmica da unidade de terapia intensiva e recursos de enfrentamento. A fala das mães demonstrou a importância do coração devido a seu simbolismo que, por sua vez, potencializa sua fragilidade emocional diante do adoecimento. A religiosidade e uma consistente rede social de apoio foram fatores contribuintes para a manutenção de comportamentos adaptativos. A presença da mãe em todas as etapas do tratamento da criança contribuiu para a minimização do sofrimento gerado pela internação. CONCLUSÕES: A vivência das famílias foi caracterizada por sentimentos ambivalentes, como medo da morte, culpa e impotência frente às diferentes etapas do tratamento. A angústia e a ansiedade prevaleceram diante de situações desconhecidas, necessidade de informações frente às condutas terapêuticas, rotinas hospitalares e da própria situação de vida das famílias entrevistadas.

Cardiopatias Congênitas; Adaptação Psicológica; Mães


INTRODUCTION: Congenital heart defects can often be corrected through surgery, providing for parents to expect a normal life, but the hospitalization experience often early, causes more pain, for which surgery is the worst moment. OBJECTIVE: The aim of this study was to analyze the experience of families of children undergoing cardiac surgery and to identify the coping resources used by the families. METHODS: A qualitative approach was the metodology of choice for this study, which took place with six semi-structured interviews and 100 hours of observation. Thematic analysis was used to understand the data. RESULTS: The results were categorized into four themes: feelings and emotions facing the illness of the child; heart disease under the watchful mother, mother and child on the ICU and coping resources. The speech of mothers demonstrated the importance of the heart due to its symbolism that enhances their emotional fragility in the face of illness. Religiosity and a solid social network of support were contributing factors for the maintenance of the adaptive behaviors. The presence of mothers in all stages of the child's treatment contributed to minimizing the suffering generated by hospitalization. CONCLUSION: The experience of families was characterized by ambivalent feelings such as fear of death, guilt and helplessness against the different stages of treatment. The anguish and anxiety prevailed in the face of unknown situations when information were required before therapeutic procedures, hospital routines and the actual life situation of the families.

Heart Defects, Congenital; Adaptation, Psychological; Mothers


ARTIGO ORIGINAL

A cirurgia cardíaca pediátrica sob o olhar dos pais: um estudo qualitativo

Christiana Leal SalgadoI; Zeni Carvalho LamyII; Rachel Vilela de Abreu Haickel NinaIII; Lívia Arruda de MeloIV; Fernando Lamy filhoV; Vinicus José da Silva NinaVI

IPsicóloga, Mestre em Saúde Materno-Infantil; Chefe do Serviço de Psicologia do Hospital Universitário da Universidade federal do Maranhão

IIDoutora em Saúde da Mulher e da Criança; Professora Adjunta do curso de Medicina da Universidade Federal do Maranhão

IIIDoutoranda em Saúde Coletiva. Mestre em Saúde Materno-Infantil; Responsável pelo Pós-operatório de Cirurgia Cardíaca Pediátrica do HU-UFMA

IVGraduanda em Medicina pela Universidade Federal do Maranhão

VDoutor em Saúde da Mulher e da Criança; Professor Associado de Pediatria da Universidade Federal do Maranhão

VIDoutor; Diretor geral do Hospital Universitário da Universidade Federal do Maranhão

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Rachel Vilela de Abreu Haickel Nina Rua Matos Carvalho, 28 - Olho d'Água São Luis, MA, Brasil - CEP: 65065-270 E-mail: rachelhaickel@gmail.com

RESUMO

INTRODUÇÃO: As cardiopatias congênitas podem muitas vezes ser corrigidas por meio de cirurgia, assegurando para os pais a expectativa de uma vida normal, entretanto, a vivência da hospitalização, muitas vezes precoce, ocasiona maior sofrimento, sendo a operação o pior momento.

OBJETIVO: O objetivo deste estudo foi analisar a vivência de famílias de crianças submetidas à cirurgia cardíaca, identificando os recursos de enfrentamento utilizados pelos familiares.

MÉTODOS: A abordagem qualitativa foi a opção metodológica deste estudo, onde realizou-se seis entrevistas semi-estruturadas e 100 horas de observação participante. Foi utilizada a análise temática para a compreensão dos dados.

RESULTADOS: Os resultados foram categorizados em quatro núcleos temáticos: sentimentos e emoções frente ao adoecimento do filho; a doença do coração sob o olhar materno; mãe e filho na dinâmica da unidade de terapia intensiva e recursos de enfrentamento. A fala das mães demonstrou a importância do coração devido a seu simbolismo que, por sua vez, potencializa sua fragilidade emocional diante do adoecimento. A religiosidade e uma consistente rede social de apoio foram fatores contribuintes para a manutenção de comportamentos adaptativos. A presença da mãe em todas as etapas do tratamento da criança contribuiu para a minimização do sofrimento gerado pela internação.

CONCLUSÕES: A vivência das famílias foi caracterizada por sentimentos ambivalentes, como medo da morte, culpa e impotência frente às diferentes etapas do tratamento. A angústia e a ansiedade prevaleceram diante de situações desconhecidas, necessidade de informações frente às condutas terapêuticas, rotinas hospitalares e da própria situação de vida das famílias entrevistadas.

Descritores: Cardiopatias Congênitas. Adaptação Psicológica. Mães.

INTRODUÇÃO

Apesar da Política Nacional de Humanização ter sido instituída em grande parte das unidades hospitalares do País, ainda são evidentes as situações onde famílias não são vistas como parte essencial da assistência [1]. As famílias muitas vezes são isoladas do processo de cuidado e tem sua participação limitada pelas regras hospitalares.

Mitre & Gomes [2] apontam que a hospitalização na infância pode se configurar como uma experiência potencialmente traumática, porque afasta a criança de sua vida cotidiana, do ambiente familiar e promove um confronto com a dor, a limitação física e a passividade, aflorando sentimentos de culpa, punição e medo da morte.

Souza et al. [3] descrevem o cenário do hospital como uma realidade que destitui a criança da sua função: ser criança. Os aparelhos computadorizados, as luzes que piscam, os incontáveis números de fios, soros, os tubos e as máscaras de oxigênio limitam seus movimentos e ultrapassam a sua condição de paciente. Acrescenta-se a isso a presença das pessoas que ali trabalham com suas roupas brancas e seus comportamentos estereotipados, que auxiliam a destituir as crianças de suas roupas e de seus brinquedos.

Segundo Finkel [4], o adoecimento e a hospitalização provocam na criança experiências emocionais intensas e complexas. Nesse momento, surge um novo contexto, que exige mobilização de recursos internos para adaptação imposta pela condição de adoecimento. Essa nova condição vai provocar na criança reações que dependem, em grande parte, do nível de desenvolvimento psíquico, do grau de apoio familiar, do tipo de doença e da atitude do médico. Para elaborar essa experiência, torna-se necessário que a criança possa dispor de instrumentos de seu domínio e conhecimento. A presença de um acompanhante interessado, especialmente pai ou mãe, é fundamental para o enfrentamento da situação de internação, especialmente em situações complexas como as cardiopatias congênitas.

As cardiopatias congênitas podem, muitas vezes, ser corrigidas por meio de cirurgia, assegurando para os pais a expectativa de uma vida normal, no entanto, por envolverem a utilização de técnicas invasivas de diagnóstico e tratamento, a vivência da hospitalização, com frequência, precoce, ocasiona maior sofrimento, sendo a correção cirúrgica o pior momento deste processo [5].

Segundo Rathsam e Francé [6], durante a hospitalização ninguém é tão capaz de acalmar as angústias das crianças como os seus familiares, e nesse sentido, é imperioso que as instituições que atendem crianças portadoras de cardiopatia congênita tenham uma política de humanização voltada para oferecer suporte à família. Esse tipo de atenção ajuda as famílias na busca de recursos para o enfrentamento da situação de doença de seus filhos.

Objetivo deste estudo foi analisar a vivência de famílias de crianças submetidas à cirurgia cardíaca em uma Unidade de Terapia Intensiva Cardiológica, identificando os recursos de enfrentamento utilizados pelos familiares.

MÉTODOS

Tipo de estudo

Foi realizada uma pesquisa descritiva, exploratória, qualitativa do tipo Estudo de Caso, considerando a natureza do objeto a ser investigado (as famílias).

Local do estudo

Foram estudadas famílias de crianças portadoras de cardiopatia congênita submetidas à cirurgia cardíaca em uma Instituição Universitária do Nordeste do Brasil, referência estadual em Alta Complexidade Cardiovascular, cuja clientela é composta exclusivamente por usuários do Sistema Único de Saúde (SUS) e presta assistência a crianças procedentes de outros serviços da capital e das cidades do interior do Estado.

Sujeitos da pesquisa

Foram incluídas no estudo famílias de crianças com diagnóstico de cardiopatia congênita, com até 10 anos de idade, atendidas no período do estudo (março/2008 a maio/2008). O limite de 10 anos visou excluir os adolescentes considerando a particularidade deste grupo que traz a necessidade de estudos específicos.

Coleta dos dados

Foram realizadas seis entrevistas, com mães e uma com pai e mãe juntos, o número de entrevistas realizadas foi baseado no critério de saturação que consiste na presença de repetição nos dados que são coletados, configurando-se uma estrutura comum sobre o fenômeno estudado.

Foram utilizados um questionário estruturado onde se buscaram dados sociodemográficos da família da criança pesquisada e uma entrevista semiestruturada onde buscaram-se as falas das famílias para que fossem definidos os núcleos de sentido para a análise de conteúdo, além da observação participante por dois observadores independentes.

As entrevistas foram gravadas mediante autorização das mães e posteriormente transcritas. O roteiro da entrevista cumpriu a finalidade de orientar o estabelecimento de um diálogo entre o pesquisador e o entrevistado, possibilitando que fosse mantida uma direção, no decorrer do processo de coleta de informações de natureza qualitativa.

A observação participante possibilitou ao investigador contato direto com o contexto a ser investigado. A imersão no campo viabilizou a observação direta e pessoal de seu objeto de estudo. Assim, as experiências diárias dos sujeitos foram observadas e tiveram seu significado decifrado.

A observação foi realizada, seguindo um roteiro previamente elaborado com questões orientadas para a compreensão da dinâmica do ambiente de UTI e durante as entrevistas, registrando as impressões do pesquisador. Os dados observados foram registrados em um diário de campo. As observações ocorreram em dois momentos: no ambiente de UTI durante a visita dos pais e sua permanência junto à criança e durante a realização do boletim médico informativo. Foram realizadas ao todo cerca de 100h de observação durante o período do estudo, sendo que destas 22h foram de observação formal.

Análise dos dados

Os dados do trabalho de campo foram analisados por meio da análise de conteúdo que busca os significados manifestos e latentes no material qualitativo, utilizando-se para isso de diversas técnicas, dentre as quais a análise temática.

A análise temática do material ocorreu em três momentos:

Pré-análise:

Após as transcrições das fitas, as falas (entrevistas) foram transformadas em texto com unidades de sentidos e significado. Uma leitura flutuante, exaustiva e interrogativa desse material foi realizada, para apreensão das ideias centrais e determinação das unidades de registro (palavras-chave ou frases) e a constituição do Corpus. Este consiste em todo material estudado, mesmo que seja necessária ampliação, mas que contemple todos os aspectos do roteiro para dar respostas aos objetivos propostos. Foram determinadas as unidades de registros (palavras-chaves) e a unidade de contexto que é a compreensão dessas unidades de registros.

Fase de categorização-exploração do material

Constituiu em explorar o material, numa busca a fim de alcançar o núcleo de compreensão do texto. Para isso, procurou-se encontrar expressões ou palavras significativas em torno das quais as falas se organizaram para a ordenação das categorias empíricas. Estas foram pré-estabelecidas pelo campo teórico em função dos objetivos propostos; a partir daí, foram ordenados os núcleos de sentido que constituíram as categorias analíticas.

Extraíram-se as seguintes categorias de análise:

• Sentimentos e emoções frente ao adoecimento do filho;

• A doença do coração sob o olhar materno;

• A mãe e o filho na dinâmica da UTI;

• Recursos de enfrentamento.

É importante ressaltar que na categoria "A mãe e o filho na dinâmica da UTI", houve a necessidade de se trabalhar com o foco principal nas observações e complementar com os relatos obtidos nas entrevistas, diferentemente das outras categorias, em razão da escassez de falas direcionadas ao tema abordado.

Análise dos resultados e interpretações

Após se encontrarem as categorias analíticas acima descritas, foram realizadas interpretações e inferências, interrelacionando-as com o quadro teórico em estudo, permitindo uma interface entre o estudado e o encontrado como resposta aos objetivos propostos. É importante ser colocado que, durante a discussão das entrevistas, foram utilizados, para a identificação das falas das mães, nomes dados a Nossa Senhora e as falas do pai, um nome bíblico, em substituição aos nomes originais, mantendo assim a ética do anonimato.

Considerações éticas

Esta pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) e seu início foi condicionado à sua aprovação, com protocolo 33104-1191/2007 e parecer 456/2007.

Os entrevistados foram devidamente esclarecidos quanto aos objetivos e metodologia a ser usada na pesquisa, assim como lhes foi assegurado o livre acesso aos seus respectivos depoimentos e total privacidade relativa a todas as informações fornecidas, em qualquer circunstância. Também lhes foi garantido o direito de se retirar do estudo de acordo com sua conveniência e/ou a qualquer momento que fosse do seu interesse.

Todas as entrevistas foram realizadas após a leitura, esclarecimento e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) por parte dos entrevistados. Por questões éticas, foi resguardado o anonimato de todos os sujeitos envolvidos por meio da utilização de nomes fictícios.

RESULTADOS

Minayo [7] destaca que, em uma abordagem qualitativa, o critério de escolha dos sujeitos da pesquisa, para garantir sua representatividade, não é numérico, uma vez que a característica principal dessa abordagem é o aprofundamento e a abrangência da compreensão sociocultural de determinado grupo que esteja sendo investigado.

Os resultados foram categorizados em quatro núcleos temáticos:

1- Sentimentos e emoções frente ao adoecimento do filho;

2- A doença do coração sob o olhar materno;

3- A mãe e o filho na dinâmica da UTI;

4- Recursos de enfrentamento.

Estes núcleos serão apresentados a seguir.

Sentimentos e Emoções Frente à Internação do Filho

O medo de perder o filho foi um sentimento manifestado por todas as mães entrevistadas e pelo pai. Este sentimento vincula-se especialmente a ideia do senso comum da ocorrência de morte durante a realização de procedimentos cirúrgicos e internações em Unidades de Terapia Intensiva (UTI).

"... Ah, sei lá... Eu tenho medo assim de ter uma parada, sei lá..." [Maria das Dores].

"... Quando a gente sabe que tem um filho assim, que pode perder a qualquer momento, tá entendendo..." [Maria de Fátima].

"Eu ficava muito preocupada porque ela cansava muito. Aí eu ficava imaginando ficar sem ela, porque esse problema dela... Eu achava muito grave" [Maria das Graças]

Outro sentimento presente foi a culpa pela doença do filho, influenciando diretamente no exercício da função paterna e materna, como se pode observar na fala de João Batista e de Maria dos Aflitos.

"O curioso é que mesmo com todos os cuidados ela nasceu de sete meses, ela nasceu prematura, mais uma pra deixar a gente assim: Meu Deus o que foi que nós fizemos, E nisso deixava em mim por ser homem, um sentimento de culpa maior... O sentimento de culpa é maior, eu fui muito fraco na época..." [João Batista]

"E nisso ela respirava fundo, ficou quietinha e ele... Está bom agora! A senhora pode ir lá pra fora mãe... Deixa ela aqui que é por nossa conta, Ave-Maria!" [Maria dos Aflitos]

Uma outra questão que emergiu das falas foi a percepção de que hospital não é um lugar bom para criança. Observou-se que aliado ao sofrimento materno de ver o seu filho sendo tocado e "cuidado" por outrem, sem o cuidado da mãe, sentimentos de incerteza, de não saber o que está acontecendo e sentimentos de impotência emergiram.

"Quando ele mandou eu deitar ela: pra colocar o oxigênio, isso dali foi ruim demais! Meio mundo de mulher segurando ela, e ela morrendo aos poucos... Sei lá... Eu perguntava pra eles: O que é isso... Isso está matando minha filha?" [Maria dos Aflitos]

"...Não preparou para aquele momento, a verdade é essa. Fiquei muito revoltada quando vi aquilo..." [Maria dos Aflitos]..

A Doença do Coração Sob o Olhar Materno

As falas das mães nos mostraram que o coração apresenta em seu simbolismo a dualidade vida-morte. E se comparado a doenças de outros órgãos, o valor atribuído é bem maior.

"Eu fiquei muito preocupada, porque eu acho que é um órgão muito importante que a gente tem né, o coração, né?". [Maria das Dores]

"Simples não é, porque em se tratando de coração não é brincadeira, não tem nada de simples, é sempre preocupante". [Maria dos Aflitos]

As falas demonstraram o pavor das mães ao perceberem que havia algo errado com seus filhos e o desconhecimento do que estava causando, dando margem a pensamentos fantasiosos desencadeadores de sentimentos conflitantes e dolorosos; verificou-se também a comparação da criança com outras.

"Eu fiquei apavorada, eu ficava escutando um barulho". [Maria das Dores]

"Quando eu ia banhar ela, percebi assim que do lado do peitinho aqui do coração né, batia assim muito acelerado tu tu tu tu, sabe? Ai eu sempre ficava assim encucada. Um dia eu falei com meu esposo: 'Sabe que o coração da minha filha, bate diferente do coração das outras crianças'? ". [Maria de Fátima]

O discurso das mães abaixo mostrou um diferencial no que se refere ao adoecimento infantil. A superproteção mostrada nele se refere a um momento onde a falta de informação sobre o problema cardíaco gerou sentimento de medo e insegurança.

"Eu acho que é bom evitar estar saindo muito com ela. Eu evito muito levar ela em lugar assim, eu levo, mas é só de vez em quando, não é assim constantemente". [Maria de Fátima]

"A gente não deixava mais ele correr muito, não deixava chorar, ele brincar". [Maria dos Remédios]

"Como ele é uma criança especial, eu sempre tenho os cuidados. Às vezes eu não deixava ele brincar de certas coisas né, com medo". [Maria das Dores]

A Mãe e o Filho na Dinâmica da UTI

Os resultados obtidos direcionados a essa temática mostraram as habilidades que as mães possuem ao lidar com os rituais hospitalares, por meio de comportamentos adaptativos e desadaptativos.

Com relação aos comportamentos adaptativos, percebemos que as mães reagem mais positivamente ao ambiente e à dinâmica estabelecida por ele, quando seu filho não está sentindo dor, está consciente, consegue se comunicar e está sendo bem cuidado pela equipe, como evidenciado nas falas abaixo.

"Ele veio numa boa, eu cheguei, falei com ele numa boa... Cheguei e falei com ele, ele estava sentadinho, ali numa boa e eu disse: 'Meu filho, dá beijinho na mamãe'. Ele deu beijinho, tranquilo". [Maria das Dores]

"Ai eu disse: 'a mamãe vai ficar aqui do lado de fora, bem na porta'. Ele: 'não sai daqui não'. Ai eu disse:' pois tá bom, não vou sair não'. Esperei ele dormir pra poder sair". [Maria da Conceição]

"É insegurança diante desse espaço. A gente se sente um pouco insegura". [Maria de Fátima]

"Só o que me incomoda é a zuada do aparelho, porque eu não entendo, eu não entendo aquilo dali. Então eu fico assustada. Eu não sei que horas ele pode ta passando mal". [Maria da Conceição]

Por outro lado, foi observado que a dificuldade de conseguir exercer a função materna é um fator dificultador de comportamentos adaptativos ao ambiente, contribuindo para a exacerbação de emoções e sentimentos negativos, aliados à percepção do estado da criança pela mãe, mesmo sem esta saber a real condição médica.

Recursos de enfrentamento

O estudo mostrou a mãe como cuidadora principal. Todas as crianças incluídas na pesquisa estavam acompanhadas de suas mães e uma delas acompanhada também pelo pai. Diante da situação de doença de um filho e do ambiente hospitalar, observou-se que as mães utilizam como estratégias para o enfrentamento desta vivência, o apoio da rede social, a religião, o apoio e o acolhimento da equipe de saúde e a sua própria história de vida, podendo determinar um comportamento resiliente.

- Religião: "Eu me assegurei em Deus. Eu falei: 'Não, mas além da Medicina, eu sei que tem um Deus que pode todas as coisas. Então lá na passagem da Bíblia fala: Tudo posso naquilo que me fortalece'". [Maria de Fátima]

- Rede social de apoio: "Ela [a mãe] ficou muito nervosa, não pôde ficar comigo durante a primeira cirurgia dele. Tive o apoio dos meus irmãos. Mas agora é muito bom saber que ela [a mãe] está aqui." [Maria de Fátima]

- Apoio e acolhimento da equipe de saúde: "Eu não sei explicar. Quando eu vi as enfermeiras e os doutores acompanhando ela eu fiquei aliviada. Eu pensei que a criança ficava só, que os doutores ficavam com as outras crianças que chegavam. Mas toda a equipe fica ali junto". [Maria das Graças]

DISCUSSÃO

Oliveira [8] afirma que considerar a família como parte essencial para o cuidado humano é algo que não se pode questionar. A atuação da família como fonte de acolhimento é determinante do tipo de vivência dos pais durante a internação como evidenciado no presente estudo.

O sentimento de medo da perda do filho confundiu-se com a ideia da morte neste estudo, Carvalho [9] refere que o processo do morrer é o horizonte e o limite do futuro, fazendo presente um misto de retomada do passado e de antecipação do futuro. A temporalidade é o sentido da existência.

No ambiente de uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI), as famílias muitas vezes vivenciam todos esses sentimentos simultaneamente. Lima & Santa Rosa [10] chamam a essa confusão de sentimentos de tríade trágica, que é composta pela possibilidade de morte, pelo sofrimento e pela culpa. As mesmas autoras acrescentam a importância da transmissão de segurança e de acolhimento proporcionada pela presença da família na UTI e o sofrimento vivenciado por estes diante da insegurança das condições clínicas do paciente, do prognóstico e possibilidade de morte.

Outro sentimento também observado nos familiares deste estudo e que pode se associar à tríade trágica é a impotência, que é o real sentimento encontrado nas situações onde o limite de atuação da família não coincide com os limites da atuação profissional-tecnológica e com o limiar da existência humana [11].

A hospitalização da criança é um evento potencialmente estressante para a família, pois a insere em um ambiente que frequentemente ameaça seu senso de segurança e competência, gerando sentimentos de impotência e de desamparo [12,13].

A percepção da família, em especial da mãe, sobre a doença da criança é fundamental para entender o funcionamento da relação mãe-criança e planejar de forma adequada as ações terapêuticas.

Helman [14] afirma que o significado de uma enfermidade é determinado, na maioria das vezes, por fatores socioculturais, que por sua vez, emitem sua própria linguagem de sofrimento relacionados à subjetividade de suas experiências. É por meio de fatores socioculturais que os seres humanos determinam quais sinais e sintomas são percebidos como anormais e normais, conforme relatado pelas mães neste estudo, quando reconhecem as alterações causadas pelas cardiopatias congênitas.

A importância da relação da equipe de saúde com a família é fundamental para uma assistência mais eficaz e humanizada. O diálogo claro e simples e a escuta das mães evitam situações estressantes e reduzem comportamentos não adaptativos. Para a família, o recebimento de atenção é um sinal de que os profissionais se preocupam, entendem o que ela está sentindo e precisando naquele momento. As entrevistas mostraram que, quando as orientações e explicações são recebidas pelas famílias nos momentos precisos, suas incertezas e angústias são minimizadas [15].

A família tenta adaptar-se efetivamente às mudanças geradas pela doença e hospitalização da criança, por encontrar significados positivos favorecedores do processo de enfrentamento e da adaptação às demandas adicionadas à sua vida diária. [15].

Por outro lado, foi observado que a dificuldade de conseguir exercer a função materna é um fator dificultador de comportamentos adaptativos ao ambiente, contribuindo para a exarcebação de emoções e sentimentos negativos, aliados à percepção do estado da criança pela mãe, mesmo sem esta saber a real condição médica. Braga et al. [16] apontam que, para a mãe, estar na UTI com seu filho, enquanto deveria estar apropriando-se dos cuidados dele em sua casa, faz com que ela se sinta perdendo sua função de maternagem, tendo dificuldade de reconhecer-se como mãe, pois há uma equipe que se apropria dos cuidados que deveriam ser dela. Mello et al. [17] argumentam que os pais devem ser incentivados a participar ativamente dos cuidados prestados ao seu filho, sendo inicialmente acompanhados pelos profissionais da equipe de enfermagem, passando, progressivamente, a executar cuidados como higiene, conforto e alimentação.

O reconhecimento da mãe como sujeito participante do cuidado, presente neste estudo, ganhou espaço no cenário da assistência em relação à saúde infantil, desde o surgimento do Programa Mãe-Participante, o qual inclui a família no planejamento do cuidado da criança, respeitando inclusive as suas opiniões. Esse objetivo, no entanto, ainda encontra obstáculos relacionados à condição estrutural e à compreensão dos profissionais que atuam na área. Para que os profissionais ofereçam um cuidado eficaz e compatível com as necessidades da criança e da família, é indispensável que considerem as características e particularidades de cada sujeito cuidado, tenham sensibilidade e empatia com os membros da família e sintam-se capazes e motivados para a realização de um trabalho difícil no cotidiano da prática. O diário de observação de campo deste estudo demonstrou que a equipe, apesar de não contar com o programa Mãe-participante, está motivada e mostrou-se disposta, em muitos momentos, a dividir o cuidado.

Um dos recursos de enfrentamento utilizado pelas mães deste estudo foi a rede social de apoio no qual a família é entendida como uma unidade primária do cuidado, sendo o espaço social onde seus membros interagem, trocam informações, apóiam-se mutuamente, buscam e medeiam esforços para minimizar ou solucionar problemas. Nesse sentido, muitos pacientes e familiares acabam por desenvolver no ambiente hospitalar as denominadas "redes internas", com o objetivo de auxilio mútuo e redução de sentimentos de solidão e desamparo [18].

A religiosidade, segundo Fongaro e Sebastiani [19], sempre esteve presente, tentando explicar o desconhecido ou dando sentido às inquietações humanas. E o papel da religião é fundamental no fornecimento de suporte e conforto, conforme constatado na fala das mães deste estudo.

CONCLUSÕES

Os resultados deste estudo permitiram concluir que:

1- A internação de uma criança portadora de cardiopatia congênita para a realização de cirurgia é um momento de crise para o sistema familiar, de sentimentos ambivalentes, mas também representa uma perspectiva de cura e de melhora na qualidade de vida;

2- Os principais sentimentos encontrados durante esse momento de crise foram o medo da morte pela doença cardíaca, pela cirurgia e anestesia, culpa e impotência frente as diferentes etapas do processo de tratamento, desde a marcação de uma consulta com o cirurgião até a alta da Unidade de Terapia Intensiva;

3- Com relação às emoções observadas, a angústia e a ansiedade prevaleceram diante de situações desconhecidas, necessidade de informações diante das condutas terapêuticas, rotinas hospitalares e da própria situação de vida das famílias entrevistadas. Frente a isso foram identificadas iniciativas da equipe de saúde voltadas para a minimização do sofrimento parental.

REFERÊNCIAS

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Artigo recebido em 13 de setembro de 2010

Artigo aprovado em 8 de novembro de 2010

Trabalho realizado no Hospital Universitário da Universidade Federal do Maranhão, São Luis, MA, Brasil.

  • 1. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria Executiva. Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização. Humaniza SUS: visita aberta e direito a acompanhante. Brasília: Ministério da Saúde;2004.
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    Rachel Vilela de Abreu Haickel Nina
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Jun 2011
    • Data do Fascículo
      Mar 2011

    Histórico

    • Recebido
      13 Ago 2010
    • Aceito
      08 Nov 2010
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