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O vínculo intergeracional: o velho, o jovem e o poder

Intergernerational links: the old, the young and power

Resumos

O presente trabalho discute a problemática da comunicação na família à luz das relações vinculares entre filhos, pais e avós, fundamentando-se nos tópicos: interação e poder. Usou-se como base a metodologia da observação participante e da análise dos discursos dos sujeitos (20 mulheres idosas e 10 jovens) ao relatarem, pela comunicação verbal, não verbal e escrita suas trajetórias de vida. Foram abordados elementos vinculados à identidade de gênero e de poder, a partir de pressupostos teóricos e na forma como o gênero se articula no contexto e nos espaços de poder da família, representados como o terreno simbólico do masculino. São evidentes os conflitos entre os papéis tradicionalmente atribuídos à mulher idosa e os novos papéis a ela impostos, na interação com os jovens. Ficou demonstrado que há na prática do cotidiano, a intenção de, incorporando novos saberes, modificar atitudes comunicacionais, buscando a compreensão de papéis e valores conflitantes, através da construção de parcerias entre as gerações mais jovens e as mais velhas.

velho; jovem; poder; vínculo


The present study discusses the problem of communication in the family, focusing on the relationship between children, parents, and grandparents, especially in issues of interaction and power. The methodology used was participant observation and discourse analysis of the life history of 20 elderly and 10 young women, reported either in written, verbal or non-verbal form. Gender identity and power space represented as the male symbolic domain was of major interest. Conflicts between the roles traditionally attributed to women, associated to prejudices regarding elderly women and the new roles imposed on them, in the interaction with the young generation, were evident. It was demonstrated that, in their daily lives, there is the intention, by incorporating new knowledge, to modify communicational attitudes and try and understand the conflicting roles and values, through the construction of partnership between older and younger generations.

elderly; power; youth


O vínculo intergeracional: o velho, o jovem e o poder

Ângela Ester Ruschel1 1 Bolsista da FAPERGS. 2 Endereço para correspondência: UNITI - Rua Ramiro Barcelos, 2600, Sala 101 – Porto Alegre – RS.

Odair Perugini de Castro 2 1 Bolsista da FAPERGS. 2 Endereço para correspondência: UNITI - Rua Ramiro Barcelos, 2600, Sala 101 – Porto Alegre – RS.

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Resumo

O presente trabalho discute a problemática da comunicação na família à luz das relações vinculares entre filhos, pais e avós, fundamentando-se nos tópicos: interação e poder. Usou-se como base a metodologia da observação participante e da análise dos discursos dos sujeitos (20 mulheres idosas e 10 jovens) ao relatarem, pela comunicação verbal, não verbal e escrita suas trajetórias de vida. Foram abordados elementos vinculados à identidade de gênero e de poder, a partir de pressupostos teóricos e na forma como o gênero se articula no contexto e nos espaços de poder da família, representados como o terreno simbólico do masculino. São evidentes os conflitos entre os papéis tradicionalmente atribuídos à mulher idosa e os novos papéis a ela impostos, na interação com os jovens. Ficou demonstrado que há na prática do cotidiano, a intenção de, incorporando novos saberes, modificar atitudes comunicacionais, buscando a compreensão de papéis e valores conflitantes, através da construção de parcerias entre as gerações mais jovens e as mais velhas.

Palavras-chave: velho; jovem; poder; vínculo.

Intergernerational links: the old, the young and power

Abstract

The present study discusses the problem of communication in the family, focusing on the relationship between children, parents, and grandparents, especially in issues of interaction and power. The methodology used was participant observation and discourse analysis of the life history of 20 elderly and 10 young women, reported either in written, verbal or non-verbal form. Gender identity and power space represented as the male symbolic domain was of major interest. Conflicts between the roles traditionally attributed to women, associated to prejudices regarding elderly women and the new roles imposed on them, in the interaction with the young generation, were evident. It was demonstrated that, in their daily lives, there is the intention, by incorporating new knowledge, to modify communicational attitudes and try and understand the conflicting roles and values, through the construction of partnership between older and younger generations.

Key-word: elderly; power; youth

O crescimento da população idosa é uma realidade no Brasil (Magalhães, 1989). Trata-se de uma questão instigante e mobilizadora para o campo da pesquisa, isso porque incorpora fatores que ultrapassam a mera quantificação de dados relativos à população, ao número de instituições ou de leitos hospitalares, às doenças ou à renda. Para Magalhães (1989) é desafiadora a constatação da realidade brasileira:

- onze milhões de sexagenários (um em cada 16 habitantes);

- mais de 7% de pessoas com mais de 60 anos;

- até o final da década de noventa atingiremos 8,3% e em 2.025 estaremos na casa dos 15%, com um contingente de 37 milhões de idosos;

- ocuparemos, em 20 anos, o sexto lugar mundial entre os países com mais pessoas envelhecidas.

Moragas (1997), referindo-se ao status e ao papel cita a idade como dimensão social que historicamente proporcionava maior status, tanto por razões quantitativas (havia menos idosos), como qualitativas (a opinião do idoso era mais ouvida e se valorizava mais a experiência do que a inovação). Hoje, a idade não é determinante de status social: o número de idosos aumentou consideravelmente, diminuindo a importância do papel social do velho; a juventude ganhou destaque tornando-se saliente o seu papel social e seu valor. O autor afirma que o idoso tem um "papel sem papel" – posição social sem obrigações, fonte do papel atribuído às pessoas.

Na família ocorre a estruturação da dinâmica status e papel. Moragas (1997) propõe os conceitos de família de procriação e família de orientação. Família de orientação é a família em que se nasce. Quando os filhos casam, dão origem à própria família de procriação, cujos laços são mais consistentes, pois nela ocorre a maior parte da experiência familiar. Os avós serão a geração mais velha e, contemporaneamente, os laços geracionais podem chegar a quatro ou cinco gerações. A cerimônia, segundo o autor, do casamento (renunciada por casais jovens) modifica as relações seja nas famílias de origem (orientação), como para o novo casal (procriação), que estruturará vínculos de independência e conservação de laços emocionais com os parentes.

A dinâmica vital, estabelecendo essa dupla natureza da família, determina uma complexidade na interação dos diferentes papéis familiares, que são construídos, flexíveis e negociados entre as pessoas implicadas. Ao mesmo tempo, pode-se vislumbrar à luz da Psicossociologia, que os papéis familiares não se realizam, hoje, sem conflitos de poder ou da autoridade ou de uma confusão entre os dois conceitos.

O papel pai/mãe, mais importante em poder, já contempla parcerias, sendo que os momentos decisórios são compartilhados com os filhos. O papel do avô/avó vem experimentando grandes mudanças. Aparece o avô do século XXI com uma imagem ativa, com vida própria, capaz de fazer uma leitura positiva de seu mundo pessoal, independente porque participativa; saudável porque adequada às suas reais possibilidades. O papel do avô/avó começa a ser descoberto por seus protagonistas atuais com as características modernas de quem resiste aceitar o estereótipo de velho assexuado, passivo, sem interesses pessoais (Moragas, 1997).

Nesse contexto, o ideal de família nuclear foi, aos poucos, fragilizando-se na primeira metade deste século. Muitas transformações aconteceram, cujas vertentes, em maior ou menor grau, situam-se na mudança do sistema de valores, nos avanços tecnológicos e na revolução sexual que passou a questionar os papéis do homem e da mulher. A busca de trabalho pela mulher modificou a forma idealizada da figura materna, abrindo espaço para a conveniente participação do pai. Outros fatores como divórcio, abusos sexuais, droga, violência pulverizam a família de hoje. Sendo a amostra estudada nesta pesquisa constituída basicamente por mulheres, cabe considerar momentos significativos e históricos das relações estabelecidas para a mulher e pela mulher na família e na sociedade na regulação de seus papéis, desejos e interações de poder. Trata-se de enfocar as mulheres através das tensões e contradições que se estabeleceram em diferentes épocas entre elas, seu tempo e as sociedades nas quais estavam inseridas. Tenta-se dessa forma, desvendar as intrincadas relações entre a mulher, o grupo e o fato, mostrando como o ser social, que ela é, articula-se com o fato social que ela também fabrica e do qual faz parte integrante (Del Priore, 1997). O processo educativo, segundo o autor, definia técnicas diretas e indiretas para criar a "identidade feminina" e a "identidade masculina", com papéis estereotipados onde as relações de poder/autoridade produziam uma desigualdade de gênero, colocando a mulher numa escala inferior na condução da dinâmica familiar.

A partir dos anos 60 questionam-se as funções de esposa, mãe e dona de casa e instala-se um complexo problema: trata-se de uma vivência dialética – enquanto contesta o papel de "escrava do seu lar" teme abrir mão do seu poder e controle no âmbito familiar. Instala-se nestas mulheres um conflito entre os papéis tradicionalmente atribuídos a elas e os novos papéis que se lhes impõem, porquanto convivem nestes sujeitos, em níveis diferentes de consciência, dois ou mais conjuntos de valores internalizados em momentos distintos de sua formação (Rocha-Coutinho, 1994). A naturalização dos papéis atribuídos às mulheres, diz o autor, tornou invisível a regulação de seus desejos, de sua vida, enfim, a violência simbólica de que são vítimas, ocultando as relações de poder que se estabelecem no interior da sociedade. Dessa forma, o cotidiano foi orientando a mulher para o desenvolvimento de sutis mecanismos de domínio afetivo que elas passam a exercer dentro da família. São estratégias sutis de controle indireto e manipulativo vistas como tipicamente femininas. O autor pondera que a mulher foi educada para usar o poder de forma manipulativa. São escamoteações que levam-na a desenvolver uma auto-imagem distorcida ou negativa de si mesma, confusa entre o parecer e o ser ela mesma. A mulher está, portanto, colocada numa rede de significações e sujeições, na qual estratégias de domínio e de poder nem sempre aparecem claramente.

Para Foucault (1993), todo sujeito humano é colocado em relações de produção e de significação, da mesma forma como é colocado em relações de poder muito complexas. Para o autor, ao contrário das relações de produção e de significação, o poder não oferece instrumentos claros que possibilitem o seu estudo. O que se oferece como recurso são os modelos legais de pensar o poder: como por exemplo o Estado. O poder é constituído historicamente, como prática social. Não existe para Foucault (1993) uma teoria geral sobre o poder, pois ele se exerce, se disputa e funciona em rede. Poder é uma relação. Esse caráter relacional do poder implica que as próprias lutas contra o seu exercício não possam ser feitas de fora, de outro lugar, do exterior, pois nada está isento de poder. Qualquer luta é sempre resistência dentro da própria rede de poder.

Arendt (1994) tem uma concepção de poder referente à faculdade de alcançar um acordo quanto à ação comum, no contexto da comunicação livre de violência. Baseado no modelo comunicativo de ação, a teoria de Arendt diz que o poder resulta da capacidade humana, não somente de agir ou de fazer algo, como de unir-se a outros e atuar em concordância com eles. Trata-se de formar uma vontade alheia para os próprios fins, numa comunicação voltada para o entendimento recíproco e com o objetivo de formar uma vontade comum.

Duarte (1994) afirma que nada é mais recorrente do que a equação que comumente é feita entre os termos poder e violência, na qual as relações de poder traduzem-se na linguagem da "dominação" e da submissão. Há muito tempo se tem definido o poder nas relações de "mando e obediência", estando a questão da violência relegada a um lugar de mera necessidade e conseqüência da mais flagrante manifestação de poder.

Na família, onde o indivíduo reproduz-se e constitui-se como sujeito, as relações de "mando e obediência" também aparecem como estruturantes. (Duarte, 1994). É no grupo familiar que ocorre a internalização do sistema de regras e condutas sociais no campo do relacionamento interpessoal, fornecendo um modelo natural para a estrutura social (Pichón-Rivière, 1986). A família forma um sistema social único, estruturado nos valores culturais da sociedade em que se insere. Sua organização implica o estabelecimento de laços de intensa convivência emocional, além de unidade de cooperação econômica e consumo coletivo. Nesse sentido, a família é um organismo que seleciona e qualifica as experiências do indivíduo, dando-lhe condições para vivência individual e social, por intermédio de noções fundamentais como procriação, cuidado com a saúde, criação e aperfeiçoamento de pautas sociais e culturais. É através da educação que transmitem-se conhecimentos de pais para filhos, sempre permeados por possibilidades psicológicas, determinantes culturais e ideológicos, diz Samara (1986).

As relações intergeracionais são desiguais devido aos diferentes papéis sociais. A característica assimétrica das relações, efetivas na complexidade social, desestabilizam em muitos momentos e aspectos, as relações de poder, desenvolvendo conflitos que alguns autores catalogam como conflitos de gerações.

Os choques nas relações pais/filhos são diferenciados na família de orientação e na família de procriação, onde as relações entre eles, adultos, tendem a ser afetivas, mas autônomas. "Nas relações avós/netos está ocorrendo um fato novo que é um número menor de netos potenciais para entrar em relação com um número crescente de avós: antes muitos avós, de idade avançada e saúde precária; hoje a quantidade de avós, cada vez mais jovens, proporciona maior contexto relacional." (Moragas, 1997, p.131). Entre o velho e o moço a idade é isolada como variável conflituosa, sendo fácil prognosticar maior conflito entre avós e netos.

Na relação pais e filhos há uma dinâmica interna na aquisição de conhecimentos que recebe influências externas, e que, muitas vezes, ocasionam choque de informações. Há, portanto, no relacionamento familiar, um submetimento do indivíduo a leis internas (regras de organização familiar) e externas (decorrência dos sistemas sociais as quais pertence) (Samara, 1986).

A experiência cultural de geração para geração não acontece de forma passiva, assumindo facetas multivariadas como as provocadas pelo distanciamento entre gerações. Há um conflito dos pais com os filhos na tentativa de formar "herdeiros sociais". Esses conflitos não parecem ser algo recente, tendo já sido citados por Loevinger (1959) que coloca o conflito intergeracional como provocado pela resistência natural dos filhos ao processo de socialização imposto pelos pais.

As diferenças nos comportamentos e atitudes parecem originar o drama da sucessão. As velhas gerações reagem às inovações e propostas das gerações emergentes a fim de preservar a continuidade e extensão pessoal no futuro. Os filhos, por outro lado, desenvolvem valores opostos e chegam ao clímax com as mudanças na configuração cultural vigente. Encaminha-se, assim, a luta pela estabilização da identidade. Os pais preocupam-se em transmitir com sucesso seus valores, a fim de justificar a sua vida, enquanto os filhos buscam estabilizar seus próprios valores e recorrem a estratégias compatíveis com as modernidades tecnológicas, demográficas e políticas.

O enfoque geracional se destaca frente a situações de mudança social a fim de evidenciar a consciência oposicional e as alternativas para estabilizar a nova cultura. Geração é um fenômeno de pessoas com idades similares que vivenciam um problema histórico concreto de experiências comuns com o sistema político, social, econômico e cultural (Laufer & Bengston, 1974). De uma perspepctiva psicológica, geração é a expressão coletiva e reflexo de estágios de mudança no desenvolvimento da personalidade, no comportamento e valores, em um grupo de idades num período de tempo (Guardo, 1982).

Nesse aspecto, um grupo de idade (os jovens, por exemplo) torna-se agente de mudança social com alternativas intelectuais e organizacionais para a visão de mundo com sua oposição à sociedade e com o desenvolvimento de teorias alternativas. A mudança social ocasiona descontinuidades, discrepâncias e inconsistências no sistema social que pressiona para a substituição dos antigos valores e padrões de comportamento pelos novos. Esse é também um foco do conflito entre as gerações (Laufer & Bengston, 1974).

Por outro lado, Moragas (1997) afirma que as relações intergeracionais podem ser solidárias, sendo que proporcionam ajuda em certos momentos vitais. Segundo o autor, quando se reconhece a necessidade da compreensão entre gerações e os jovens são educados para praticá-la, fomenta-se a integração entre as diferentes idades e consequentemente reduz-se o conflito social.

Diante disso, é preciso que pensemos na dinâmica da relação entre os sujeitos, ou seja, na articulação das relações interpessoais entre os sujeitos e entre os sujeitos e os objetos internos e externos através da criação do vínculo. Para Pichón-Rivière (1986), o conceito de vínculo é definido como operacional, sendo o papel uma função de chegar ao outro.

Na vida de relação sempre assumimos papéis e atribuímos papéis aos outros. Cada um de nós deve poder assumir vários papéis ao mesmo tempo. Todas as relações interpessoais em um grupo social, em uma família, etc., são regidas por um permanente interjogo de papéis assumidos e adjudicados. É isso o que cria a coerência entre o grupo e os vínculos dentro de tal grupo (Pichón-Rivière, 1986).

Quando uma pessoa atribui e o outro recebe um papel, estabelece-se o vínculo, um interjogo dialético que promove uma síntese dos dois papéis que resultará no comportamento do indivíduo. É o "conceito de espiral". Além do papel, na dinâmica do vínculo considera-se o status, relacionado com o prestígio. Para Pichón-Rivière (1986) os integrantes de um grupo são considerados como estruturas que funcionam em um determinado nível, com determinadas características. O nível é o status e as características são dadas pelo papel.

A comunicação acontece dentro da estrutura vincular. Para que se estabeleça boa comunicação ambos devem assumir o papel que o outro lhe adjudica. Dessa maneira toda a conduta é sempre um vínculo, um precipitado da relação interpessoal; toda conduta refere-se a outro. Na formação da conduta humana não agem estímulos in abstrato, mas sempre estímulos sociais ou interpessoais (Bleger, 1984). Para o autor, há uma validade do vínculo humano na conduta, de forma concreta ou virtual. O sentido de Gestalt é determinante para a qualidade da relação. Esse vínculo virtual e o objeto virtual de todo o vínculo concreto é o que Freud apresentou como conteúdos inconscientes.

As considerações acima conduzem a reflexões sobre a subjetividade. É relevante o pensamento de Buber (1977), teólogo de fundamentos existencialistas que desenvolveu uma verdadeira ontologia da relação humana, onde valoriza a praxis da subjetividade, contrapondo-se ao privilégio e ao caráter etéreo do subjetivismo. Desenvolvendo a noção de atitude, Buber (1977) diz que atitude é antes de tudo ação englobando uma totalidade. Há uma indissociabilidade, pois a realidade consiste numa síntese entre aquele que age e aquele que sofre a ação. Assim, a vida do homem passa a ser uma vida de comunicação com o outro, comunicação esta que estabelece a relação intersubjetiva. Para o autor, encontramos o outro na relação que estabelecemos, que é a relação Eu-Tu. Há uma mutualidade fundamentada na relação intersubjetiva plena do homem que é a liberdade como vivência.

Buber (1977) defende a intersubjetividade como vínculo e como fundamentação dialógica da vida. A consciência do homem de "ser-com-o-outro-no-mundo", envolve uma filosofia existencial. A intersubjetividade conceituada pelo autor é fundamentada pela palavra-princípio Eu-Tu. "O Eu se torna Eu em virtude do Tu. Isso não significa que devo meu lugar a ele, ou que devo renunciar a minha existência e a minha participação no mundo. Eu devo minha relação a ele. Ele é meu Tu somente na relação, pois fora dela ele não existe, assim como o Eu não existo a não ser na relação" (Buber, 1977, p.55).

Face a essas considerações, buscamos nesta pesquisa, identificar qual a atitude da família - avós, pais e filhos - quanto à comunicação e aos vínculos, bem como descrever como o poder transita e permeia essas relações vinculares entre as gerações mais jovens e as mais velhas.

Método

Esta pesquisa foi realizada na Universidade para a Terceira Idade (Uniti), que é um projeto de extensão, ensino e pesquisa desenvolvido no Departamento de Psicologia Social e Institucional do Instituto de Psicologia da UFRGS, nas etapas seguintes:

- Observação e coleta de dados junto ao grande grupo da UNITI (150 sujeitos) e observação participante da dinâmica dos grupos (oficinas);

- Seleção das amostras:

- Grupo de idosos: retirados de uma população de 150 alunos, 20 sujeitos idosos, mulheres com idade entre 60 e 72 anos, classe média, casadas, separadas ou viúvas, que se propuseram a colaborar e que participam da UNITI entre 1 e 7 anos.

- Grupo de jovens: 10 sujeitos entre 16 e 24 anos, de ambos os sexos, com relação de parentesco com alunos da UNITI e a convite dos mesmos. O número de sujeitos jovens (10) deve-se a dificuldade de colaboração dos idosos em indicar pessoas jovens, de seus vínculos familiares, como voluntários da pesquisa.

- Reuniões, usando a temática da "oficina", que se caracteriza pelo trabalho centrado na produção do grupo, onde a partir da problemática trazida pelos participantes ocorre uma discussão sobre as vivências familiares (e grupais) dos mesmos. A dinâmica é proporcionada pelo instrumental que o grupo oferece.

- Com os idosos: 10 reuniões, com a duração de 1 hora e 30 minutos cada uma e com a participação da totalidade das inscritas. - Com os jovens: uma reunião com duração de três horas.

- Aplicação de questionários buscando delinear os vínculos familiares e as relações de poder.

Os dados obtidos nos questionários, nas observações e nas oficinas foram submetidos à análise de conteúdo. Em Bardin (1977), desprezando-se os aspectos quantitativos, buscou-se a questão temática e a elaboração de categorias. Em Severino (1989), buscou-se subsídio para leitura, análise e interpretação de textos, quanto aos aspectos da análise temática. Para melhor compreensão no uso dos depoimentos dos sujeitos, os mesmos foram designados, aleatoriamente, entre S1 e S10 no grupo de jovens e S11 e S31 no grupo de idosos.

Resultados e Discussão

Três categorias principais nortearam a análise dos dados obtidos. Estas categorias foram destacadas pela sua significância na comunicação entre avós e netos, considerando-se os dois eixos principais que articulam os vínculos intergeracionais: interação e poder.

Auto-Estima: Resistência e Impessoalidade

As instituições e a sociedade em geral convivem com a transição de alguns conceitos hoje bem mais clarificados ao entendimento seja da leitura leiga ou da leitura acadêmica. Trata-se da compreensão da velhice e do que é ser idoso. Sabe-se pela psicologia do envelhecimento ou da longevidade que "uma diminuição do potencial ou dos recursos" de uma pessoa ao ingressar na faixa da terceira idade não pode ser visto como impedimento de participação social. Entretanto, os preconceitos históricos são, ainda, consistentes e prejudiciais aos novos conceitos sobre o envelhecer no século XXI.

Vislumbra-se e espera-se que dessa dualidade conceitual, numa outra dimensão, o idoso emergente seja recebido como capaz de auto-realização, com projetos de vida possíveis e adequados que lhe dêem relevância pessoal, com resultados positivos no seu entorno grupal e social. Entretanto, o idoso deste fim de milênio, que suporta a crise da transição, luta contra as representações limitantes e sua repercussões sobre a auto-imagem e auto-estima, ou seja, a representação que a pessoa possui de si própria, referente a valorização de sua condição humana.

Os recortes que seguem poderão testemunhar essa busca de reconhecimento interno, iluminada pela dialética do ser "por dentro" e "por fora".

"...não adianta mudar o outro, temos que nos mudar...1º aceitar o outro, 2º tentar entender, 3º criar uma opção para mudar..." (S12)

"Gritar é coragem? Se impõe pelo grito! Cria um medo?" (S13)

"...o que vai atuar nessa dualidade. Racionalmente, as coisas são objetivas, mas na subjetividade..." (S14)

"...talvez eu não queira desmanchar a minha imagem de boa" (S11)

Mesmo sendo um grupo de iguais, o caráter heterogêneo passa a ser canal para a discussão de crenças, valores, desejos e atribuições. Há uma ampliação do universo cognitivo, verbal e emocional pela troca de saberes.

"...até onde a emoção atrapalha a criatividade? Eu acho que na emoção a gente se prejudica...a emoção tolhe a gente...de vez em quando a gente pensa que não devia ter falado..." (S15)

"...mas daí a gente perde a espontaneidade e a própria criatividade. Eu sou muito emotiva...isso de colocar pra um auditório e depois repensar que podia ser melhor... eu acho que isso é até um crescimento...é um processo..." (S12)

"A gente sempre fica esperando... existem os bloqueios a que a gente se impõe." (S16)

"Eu acho que é de temperamento e se acentua na 3ª idade. Eu sempre fui uma pessoa que falei o que eu achava, não ofendendo. Eu sempre expus... até que, num momento, me censurei e acho que tem a ver com a 3ª idade. Eu não me gostei e os outros também não me gostaram. Essa mudança não me trouxe crescimento. Uma pessoa me disse que eu era brava e que tinha medo de mim... Não é isso que eu quero que os outros pensem de mim...Outra disse que eu era dona de verdade..., mas eu acho que é melhor falar do que me omitir. A gente tem que ser a gente mesma." (S14)

"Eu acho que é uma fase da vida ...Por comodismo ... Pra não me incomodar. Eu tô nesses limites."(S30)

"...A gente tá ficando velha... Estou me identificando contigo."(S29)

Nota-se, no material dos sujeitos, acima transcrito, a flutuação na atribuição de qualidade na representação do sujeito por ele mesmo e conseqüente mudança no vínculo interno.

Pode-se observar a vivência de uma distonia na discussão do próprio comportamento. Há flutuações na vivência da auto-estima, onde o "ver-se" e o "ser visto" parecem provocar conflitos na construção da própria identidade. Percebe-se que há um interjogo de vetores internos e externos na busca de maior autonomia, independência, descoberta ou resgate da real auto-estima ou reconhecimento interno.

Poder: Possibilidades e Desafios

A experiência deste grupo singular, composto basicamente de mulheres idosas (95% dos alunos da Uniti são do sexo feminino), pode ser percebida como busca, desejo de encontrar fora delas uma solução ou resposta às suas inquietações. A observação possibilitou a compreensão da tentativa dos sujeitos, no que se refere as mulheres idosas, de se articularem no contexto das relações sociais, no caso o grupo familiar, diante do poder. No gênero estariam implicados mecanismo sociais internalizados que aparecem em suas representações e que são perceptíveis no seu discurso como limites entre o interno e o externo e que tem a ver com a distribuição do poder e significação de gênero. Estabelece-se uma dualidade entre a biografia pessoal e os limites externos. Esse entrecruzamento, representaria um conflito existencial, transposto para a construção da própria identidade. Estabelece-se uma dicotomia que pode ser definida como "por dentro" e "por fora" e que a mulher busca reconstruir. Há uma gama de variáveis que intervêm no material verbal que poderiam ser significantes na tentativa de romper com as estruturas herdadas na tentativa de redimensionar sua vidas reelaborando o sentido de suas práticas e estratégias de poder.

Registrem-se alguns recortes das intervenções, em forma de diálogo, dos sujeitos participantes:

"A gente tem a impressão que fala muita bobagem pros filhos...a gente discute, troca muito... Eu me sinto com a mesma idade de meus filhos... Por que é tão difícil para eles sentirem o mesmo? Eu acho que eles me vêem como uma concorrente... eu já perguntei...talvez eu esteja competindo com eles..." (S17)

"E, talvez seja bem isso das mães não quererem deixar os filhos crescer...é duro... eu vejo ela falar e fico pensando nisso..."(S18)

"eu sempre dizia pros filhos...mostrava o caminho..." (S13)

"Eu tive que me adaptar a cada um dos meus filhos, são totalmente diferentes. Eu tive um choque com a 2ª remessa de filhos – doze anos depois ... a perda do poder se dá, mas o importante é a adaptação... às vezes S11 (dirigindo-se a colega) eu me comunico por escrito com eles." (S19)

"... o poder é a forma dos pais se perpetuarem nos filho. Eu sou muito boazinha...mas queria escolher a profissão da minha neta... queria que ela fizesse odontologia para me atender... pode até ser egoísmo, mas seria bom..." (S20)

"...como é difícil ter humildade..." (S21 falando sobre a pretensão de exercer poder sobre o filho, nora e neto que está para nascer, percebendo seu equívoco)

"Antes só os mais velhos podiam falar e hoje é diferente..." (S22)

Pode-se retirar da análise destes depoimentos a difícil convivência, consideradas as relações de poder entre a família de procriação, formada por um casal de pessoas de sangue diferente que dará origem a uma descendência comum e a família de orientação, ou a família que se nasce. Na primeira, os laços tendem a ser mais sólidos. Encontramos a instituição familiar assim: a)família de orientação – características de herança, tradição e status atribuído; b) família de procriação – características de originalidade, inovação e status inato.

Nesta área de relações familiares de poder, ou seja, do trânsito da autoridade intergeracional não existem além do que descrições sobre o que acontece. Trata-se, agora, de construir teorias sociais que expliquem os novos fenômenos nas relações familiares. Constata-se que o papel social dos idosos, atualmente, não se assemelha com os de anteriormente. As ciências sociais já começam a produzir conhecimento sobre a longevidade.

O idoso do presente coloca-se como sujeito de experiências pessoais, e procura, assim voltando-se para si mesmo, num trabalho de introversão, alcançar a compreensão de seu papel na modernidade social. Resignificando, ele próprio, as condições de existência no seu tempo e na sua cultura e criando, a cada momento, um novo capítulo de sua história pessoal. É um apelo interior que o idoso vivencia e interpreta na crise de seu tempo e de seu espaço existencial que ele quer compartilhar, nesta era de mudanças.

Os papéis familiares são muito diversificados e por isso mesmo o status e o prestígio transita entre as pessoas e momentos, sob a ótica do poder.

A grande novidade é a relação dos avós com os netos, cujos papéis, na sociedade contemporânea, são muito recentes. O papel de avô/avó hoje é muito mais livre, embora vigorem alguns estereótipos e limitações.

Veja-se alguns recortes dos sujeitos desta pesquisa:

"Há relações difíceis: sogra x nora x netos. Há situações que não agradam...E aí, o que fazer? Sofrer! Não podemos dizer que está tudo bem...." (S14)

"Eu posso dizer que está tudo bem com a minha nora..." (S18)

"Tenho três filhas mulheres... fui criada com liberdade, dona-do-meu-nariz. Os netos me foram dados. Sempre há conflitos, mas o poder foi dado. Eles acham a mãe chata. Acho ótimo tudo o que eles quiserem fazer." (S12)

"Tu não és avó, és mãe. O relacionamento é de mãe e filho... não seria uma forma dos filhos voltarem a depender de ti?" (S23 analisando a fala de S12)

"... é mais difícil o convívio com minha filha. Somos muito parecidas e a relação entra em choque .... a nora acata minhas opiniões, mas acho que é só da boca pra fora..." (S14)

"Com quem me dou pior? com meu filho, mas é difícil admitir isso..." (S11)

Percebe-se a repressão da história de vida pessoal na forma como a mulher idosa institui o poder no seu espaço relacional com filhos, netos e noras. Em cada depoimento se desvela uma forma escolhida como competente para administração do poder mãe/filho/filha. Torna-se relevante registrar que foi inconsistente a referência ao marido ou pai, cúmplice ou parceiro na constituição da família de procriação. Os filhos, filhas, noras e genros, componentes da família de orientação foram sempre objetos de poder matriarcal, visto com aparente naturalidade. Isso levaria à hipótese de tratar-se de estratégia herdada quando a mulher era a heroína e escrava, depositária de total responsabilidade sobre a educação e vida dos filhos.

No que se refere aos jovens, a própria compreensão da palavra poder enfoca aspectos variados. No entanto, podemos afirmar que, para o jovem, pensar em poder remete a uma idéia de saber pela experiência. As coisas que se podem aprender durante a vida e a capacidade que se adquire através da vivências são o que definem o imaginário sobre o poder. De certa forma, a fala do jovem sobre questões de poder remete a uma idade mais avançada.

"Porque com o passar dos anos vamos adquirindo conhecimentos e sabedorias – e isso leva os mais velhos a terem maior poder". (S1)

Em sua definição de poder o jovem abarca palavras que envolvem decisão (20%), experiência (30%) e domínio (40%). Para eles o "mando" se dá através de uma sabedoria adquirida através do tempo vivido. Poder para eles é controlar outras pessoas ou coisas, dominar a situação, ou através da sabedoria, experiência e também do dinheiro.

"Poder é decidir sobre algo" (S2)

"Poder é sabedoria, força, dominação" (S6)

A maioria dos jovens (70%) fala sobre o poder colocando-o nas pessoas de mais idade. Essa idéia de poder é definida por eles como algo positivo. No entanto, no pequeno grupo familiar, ou seja, na família nuclear (pais e filhos), ambos os pais (e muitas vezes apenas a mãe) possuem maior influência nas decisões e são vistos como "donos do poder". E esse poder, mais relacionado a orientação direta na vida dos jovens, como escolha da profissão e namoro, é apontado como algo negativo. Mas nem sempre essa interferência é algo claro, sendo, muitas vezes, constituído nas entrelinhas do convívio familiar.

"Minha avó determina tudo... é sutil. Faz uma chantagenzinha, fica doente... É a matriarca e faz valer a sua vontade."(S4)

S4 diz que, por muito tempo, teve medo desse poder que a avó demonstrava ter. Achava que mandar nos outros era uma coisa negativa e que a própria necessidade de fazer opções para sua vida a fazia pensar que era mandona como a avó.

Por outro lado, percebe-se mais facilmente no discurso dos jovens uma relação de conflito quando se trata do poder entre as gerações próximas (pais/filhos). Apesar de seu entendimento de que "poder é saber", S6 parece incomodar-se pela forma como os pais projetam a sua experiência nela, ou seja, nas decisões que tem a tomar em sua vida.

"... minha mãe me obrigou a fazer o magistério porque ela não fez"

Seu relato é em forma de queixa e o que parece estar incomodando é a impossibilidade de poder decidir sobre sua própria formação, considerando seus interesses e vontades.

"Querem que eu faça do jeito deles porque eles acham que esse caminho é pior ou melhor"

Quando descreve seu sentimento, S6 diz que foi um momento muito ruim, sentindo-se agredida por não poder optar. S6 conta que solicitaria um diploma com o nome da mãe em vez do seu, já que a decisão estava baseada na vida e vontade dela. Podemos dizer que essa situação descreve um conflito de poder, no qual há uma briga para ocupar um mesmo espaço de decisão.

O dinheiro é outra forma de manter o poder sobre os membros da família. Os pais, muitas vezes, procuram manter o jovem fora do mercado de trabalho para assim, continuarem influenciando mais intensamente a vida dos filhos.

"Minha mãe diz que eu não preciso trabalhar, é claro, aí ela pode opinar na minha vida. Ela diz que o bom emprego é um marido".(S10)

Vínculos: Papéis e Prestígio

Viu-se no desenvolvimento desta pesquisa, à luz do estudo do material produzido, que esta categoria selecionada se fez presente e se tornou evidente a cada passo do trabalho.

Evidenciaram-se os vínculos presentes, num processo de desconstrução e construção, caracterizando o instituído e instituinte num espaço relacional de um grupo específico: a família, laboratório dinâmico onde convivem e interagem a autonomia individual e as variáveis sociais capazes de conduzir a novas formas de leitura do mundo contemporâneo, melhores e mais competentes, quando estimuladas adequadamente.

O grupo familiar, através de seus componentes, dos papéis, do status e do prestígio, busca uma Gestalt, na qual "figura e fundo" possam completar-se, isto é, onde os dois campos psicológicos, o interno e o externo, produzem a configuração permanente que é a espiral dialética, com a passagem constante do que está dentro para fora e do que está fora para dentro. Todo o vínculo envolve dois personagens, mas há um terceiro que interfere nas relações humanas. Esse terceiro na mente um do outro, funciona como uma escala de valores, na qual as fantasias inconscientes poderão operacionalizar imagens distorcidas do mundo exterior, particularmente relacionadas com o outro ou seu papel e com a percepção ou reencontro de objetos do mundo interno. Assim, a dinâmica comunicacional e relacional ocorre através dos vínculos externos para a realidade interna determinada pelos vínculos internos que estabelece.

Na análise do material, torna-se difícil isolar a questão do poder, já discutida na categoria anterior. Esse parece atravessar, em muitos momentos, o estabelecimento dos vínculos familiares, sendo denunciado no discurso dos mais jovens.

É curiosa a forma como os avós entram nesse círculo, tomando para si um lugar de destaque no âmbito do poder familiar. Avós e netos parecem criar uma nova forma de relacionar-se, na qual o poder aflora de modo sutil, sendo percebido nas entrelinhas dos discursos dos netos. Os avós mostram-se sempre presentes, querendo que os netos escolham e decidam conforme o olhar que eles, mais velhos, aperfeiçoaram durante sua vida. O curioso, no entanto, é a diferença que existe na forma como é percebida essa influência quando vinda dos pais, geração mais próxima, e quando vinda dos avós. Em muitos relatos, os pais praticamente não ocupam lugar no discurso dos jovens, ou melhor, as figuras que mais aparecem são os avós. Quando a influência é da relação parental direta, parece provocar um maior movimento de resistência dos jovens, sendo entendido como pretensão de apoderamento de um espaço de decisões, caracterizando-se, muitas vezes, como disputa entre pais e filhos.

"... eu queria fazer magistério e a minha mãe foi contra... Minha mãe não deixava que eu namorasse, queira que eu me formasse primeiro, e eu acabava sempre desmanchando os namoros por me sentir culpada..."(S2)

A busca de uma autonomia é, muitas vezes, uma trajetória árdua para o jovem. É preciso que ele busque uma outra alternativa para construir um caminho diferente daquele que os pais pensaram para ele. O trabalho é, em geral, a opção mais próxima, possibilitando uma independentização da vontade e do mando dos pais.

"Decidi trabalhar, casar e daí continuar estudando".(S2)

Os mesmos pais que pareciam tão radicais no que se refere a "permitir a vontade do filhos", reposicionam-se no que diz respeito a educação dos netos. Parece que há uma flexibilidade maior e uma permissividade que não existia com os filhos, como que numa adaptação dos modos de domínio para manter alguma forma de poder na família. Se aos filhos nada era permitido, aos netos tudo é possível.

"A minha mãe faz tudo o que M. (neto) quer e ele gosta disso. Ela quer ter direitos sobre o meu filho."(S 2)

Pode-se pensar que com os netos, os mais velhos adotam novas estratégias de sedução, que não eram necessárias com os filhos. A origem dessa ocorrência pode estar relacionada com um maior tempo livre na vida dos avós, sendo possível ocuparem-se dos netos de modo mais intenso. Por outro lado, é necessário que ponderemos sobre a questão do poder familiar que envolve essa nova organização. Barros (1987) afirma que "a representação do papel de avós está intimamente vinculada à representação dos papéis materno e paterno" (Barros, 1987, p. 113). A relação avós-netos é permeada pela presença de uma geração intermediária. Segundo o autor, pode-se falar em uma construção regida por contrastes, colocando em posições contrárias a liberdade do afeto e a obrigatoriedade da função socializadora e educativa dos pais. Avós e netos desenvolvem uma leve relação jocosa no parentesco, preservando a autoridade dos pais desses netos e estabelecendo uma amizade mais livre entre gerações alternadas. "Na relação jocosa entre avós e netos registram-se, ao mesmo tempo, a conjunção e a disjunção de seus membros. Esse duplo movimento só se realiza na medida em que existe um elemento intermediário entre os pólos dessa relação, que os une pelo parentesco e os separa pela geração intermediária, pela idade e pelo fato de os avós estarem num processo de retirada da participação social efetiva, enquanto que seus netos aos poucos assumem um lugar na vida social." (Barros, 1987, p. 116)

"Sofri muito para sair da submissão dela". (S4)

A dificuldade de separação dos avós aparece também no discurso de S 5 quando diz que:

"quando era pequena só fazia a vontade dos meus avós. Agora tô crescendo... parece que eles sempre querem decidir..."

Tornar-se independente da vontade dos avós parece algo que também precisa de uma alternativa sutil. Os netos sentem-se muito ligados aos princípios dos mais velhos com quem aprenderam a conviver. E em muitos casos, como demonstra o discurso de S3, os netos gostavam mais da casa e do convívio com os avós do que dos próprios pais.

"... eu ficava lá (na casa dos avós) a semana toda, e os meus amigos eram dali. No final de semana queria ficar com eles..."

No relato de outro jovem (16 anos) podemos perceber a diferença entre as formas de poder nos relacionamentos de pais e filhos e avós e netos. Diz que seu avô não lhe impõe nada, ao contrário do que fazia com o seu pai.

"... meu pai parou de estudar e meu avô não gostou. Queria obrigá-lo a continuar e no curso que ele queria... a opção era do meu avô e não do meu pai..." (S7)

Para esse sujeito, a experiência ajudou na forma como os seus pais lidam com o poder em sua família.

"Por isso lá em casa o pai é diferente. A opinião de todos vale ... o poder é dividido, buscamos um consenso..."

Pode-se pensar que a intermediação dos pais, por um lado, e sua função socializadora e disciplinar de outro, contrasta com a "liberalidade" dos avós, criando uma inter-relação menos conflituosa entre netos e avós e na qual, conseqüentemente, as relações de poder acontecem de modo mais natural. Autoridade e afeto misturam-se nessa nova relação, transformando as interações familiares dentro de um novo contexto histórico e cultural. O novo momento de vida dos idosos (avós) busca através dos jovens (netos) uma releitura retrospectiva de sua trajetória pessoal e familiar, ou seja, através dos netos os idosos se inserem no processo de mudanças verificado em seu meio social.

Considerações Finais

Tomando-se por base o objetivo central deste estudo, o de pesquisar o poder em sua dinâmica vincular entre o velho e o jovem, registre-se o seguinte:

1. Este estudo (pesquisa) vem se desenvolvendo por um período de tempo além do programado. Em seu decorrer foram surgindo dificuldades e levantadas muitas questões.

2. Quanto às dificuldades poder-se-ia registrar a resistência dos sujeitos de terceira idade em se desvelarem, em sua privacidade. Esse fato parece ser característica do idoso, que se mostra reticente, desconfiado e impessoal em sua atuação. As dificuldades, no jovem, repousariam no escasso conhecimento da dinâmica, ou processo de envelhecer e de seu próprio papel na interação com o velho.

3. Seu delineamento inicial, em forma de investigação qualitativa em contato com outros estudos, no contexto proposto, apontaram o seu direcionamento no sentido de outras perspectivas analíticas. Muitas delas só poderão ser resolvidas através de uma discussão mais aprofundada que requer investigação mais detalhada e estudos adicionais. Vale lembrar que só recentemente o envelhecimento vem despertando a atenção de cientistas e pesquisadores. Além das dificuldades em se estabelecer seu início, as diferenças inter e intra indivíduos tendem a aumentar no decorrer do desenvolvimento. Convém que se estabeleçam critérios múltiplos de avaliação. Neri (1993) sugere continuidade de papéis familiares e ocupacionais e continuidade de relações informais em grupos primários.

De modo geral, no entanto, pode-se obter dados significativos no que se refere ao estabelecimento dos vínculos e sobre a própria estrutura das relações de poder entre os diferentes grupos de idosos ou gerações. Nota-se que há uma tendência maior de conflito entre pais e filhos, sendo a relação entre avós e netos caracterizada por uma dinâmica menos conturbada. A busca pelo poder, seja pelo "mando" ou por formas mais sutis de dominação, parece estar presente em ambos os casos (pais/filhos e avós/netos). Entretanto, para os jovens, os pais (no casal, principalmente a mãe) são percebidos como mais impositivos em relação as decisões a serem tomadas. Pode-se pensar que essa diferença entre as formas de dominação pais/avós em relação aos mais jovens, ocorre em função de um distanciamento maior entre avós e netos, o que possibilitaria uma outra dinâmica vincular, permitindo, assim, uma comunicação mais fácil e aberta entre as gerações mais distantes.

Ressalte-se também, que para os jovens, a experiência de vida adquirida pelos avós é entendida como forma legítima de poder, ou seja, há um reconhecimento do poder instituído através da gerações. Por outro lado, os avós, perdendo jurisdição (mando) quanto a seus filhos, transferem, ou melhor, direcionam seu poder sobre a geração dos netos, que dialeticamente é exercida com uma suave cumplicidade.

Recebido em 28.08.97

Revisado em 13.03.98

Aceito em 16.09.98

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  • 1
    Bolsista da FAPERGS.
    2
    Endereço para correspondência: UNITI - Rua Ramiro Barcelos, 2600, Sala 101 – Porto Alegre – RS.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      24 Jan 2002
    • Data do Fascículo
      1998

    Histórico

    • Aceito
      16 Set 1998
    • Revisado
      13 Mar 1998
    • Recebido
      28 Ago 1997
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