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Imaginário, simbólico e sincrético: aspectos psicológicos da filiação a novas religiões japonesas

The imaginary, the symbolic and religious syncretism: some psychological aspects of affiliation to new japanese religions

Resumos

Com o auxílio das categorias lacanianas de imaginário e de simbólico, foram analisadas as falas de nove pessoas, brasileiros de origem católica, de ambos os sexos, sem ascendência oriental, filiados a novas religiões japonesas, com o objetivo de esclarecer se a filiação a uma nova religião implica, do ponto de vista psicológico, conversão ou sincretismo religioso. A análise permitiu identificar distintos caminhos individuais: alguns dos filiados demonstraram operar uma substituição do simbólico e, por isso, uma conversão religiosa; outros pareceram manter o simbólico original, acrescentando-lhe imaginariamente alguns elementos da nova religião, o que resultou em sincretismo religioso; alguns dos que se converteram trouxeram imaginariamente alguns elementos de sua antiga fé ao novo sistema simbólico, produzindo um novo sincretismo religioso.

Conversão; imaginário; Psicologia da religião; simbólico; sincretismo


With the help of Lacan’s categories of imaginary and symbolic the discourses of nine people, male and female Brazilians of Catholic origin, with no Oriental descent, affiliated to Japanese new religions, were analyzed, in order to ascertain, from a psychological point of view, whether affiliation to a new religion implies conversion or religious syncretism. The analysis allowed to identify distinct individual trends: some of the affiliates appear to operate a substitution of the symbolic and, accordingly, a religious conversion; other seem to maintain the original symbolic, adding imaginably some elements from the new religion to it, which results in a religious syncretism; some of those who convert bring imaginably some elements of their previous faith into the new symbolic system, producing a new religious syncretism.

Conversion; imaginary; Psychology of religion; symbolic; syncretism


Imaginário, simbólico e sincrético: aspectos psicológicos da filiação a novas religiões japonesas

Geraldo José de Paiva1 1 Endereço para correspondência: Departamento de Psicologia Social e do Trabalho, Universidade de São Paulo/SP, Av. Professor Mello Moraes, 1721, Cidade Universitária, CEP 05508-900, São Paulo, SP. E-mail: gjdpaiva@usp.br

Universidade de São Paulo

Resumo

Com o auxílio das categorias lacanianas de imaginário e de simbólico, foram analisadas as falas de nove pessoas, brasileiros de origem católica, de ambos os sexos, sem ascendência oriental, filiados a novas religiões japonesas, com o objetivo de esclarecer se a filiação a uma nova religião implica, do ponto de vista psicológico, conversão ou sincretismo religioso. A análise permitiu identificar distintos caminhos individuais: alguns dos filiados demonstraram operar uma substituição do simbólico e, por isso, uma conversão religiosa; outros pareceram manter o simbólico original, acrescentando-lhe imaginariamente alguns elementos da nova religião, o que resultou em sincretismo religioso; alguns dos que se converteram trouxeram imaginariamente alguns elementos de sua antiga fé ao novo sistema simbólico, produzindo um novo sincretismo religioso.

Palavras-chaves: Conversão; imaginário; Psicologia da religião; simbólico; sincretismo.

The imaginary, the symbolic and religious syncretism: some psychological aspects of affiliation to new japanese religions

Abstract

With the help of Lacan’s categories of imaginary and symbolic the discourses of nine people, male and female Brazilians of Catholic origin, with no Oriental descent, affiliated to Japanese new religions, were analyzed, in order to ascertain, from a psychological point of view, whether affiliation to a new religion implies conversion or religious syncretism. The analysis allowed to identify distinct individual trends: some of the affiliates appear to operate a substitution of the symbolic and, accordingly, a religious conversion; other seem to maintain the original symbolic, adding imaginably some elements from the new religion to it, which results in a religious syncretism; some of those who convert bring imaginably some elements of their previous faith into the new symbolic system, producing a new religious syncretism.

Keywords: Conversion; imaginary; Psychology of religion; symbolic; syncretism.

Entende-se por sincretismo, a partir da etimologia, a reunião provisória de elementos mutuamente estranhos face a uma ameaça iminente. Sincretismo religioso seria a junção de crenças e ritos de religiões díspares, provocada pela ameaça cultural, política, social ou psíquica à sobrevivência dos aderentes a um determinado sistema religioso. O sincretismo tem sido apontado como característica negativa de grande parte das manifestações religiosas brasileiras. Historicamente, o olhar negativo tem partido do estrato culto da Igreja Católica, mas recentemente outros sistemas religiosos, como o Candomblé, têm condenado a admissão de elementos católicos em seu próprio sistema.

Alguns estudiosos vêm propondo uma apreciação positiva do sincretismo religioso. Para Sanchis (1995), por exemplo, o sincretismo corresponde à capacidade criativa do ser humano. Numa época denominada de pós-moderna, a escolha pessoal de elementos religiosos, ajuntados provisória ou estavelmente, seria uma eficiente maneira de enfrentar o descontrole e restituir à vida pessoal uma âncora, diríamos nós, de salvação. No juízo desse antropólogo da religião, o sincretismo seria a maneira congenial à diversificada população brasileira de lidar com a diferença nas crenças e práticas religiosas. Argumenta, até, que a composição sincrética na pós-modernidade, que inclui o campo religioso, teve um ensaio criativo na pré-modernidade brasileira, a ponto de estudiosos europeus da contemporaneidade religiosa se interessarem pela comprovada dinâmica do sincretismo brasileiro para entenderem o que se passa em seus próprios países.

Se no passado foram principalmente as populações indígenas e africanas que compuseram seus sistemas religiosos com o catolicismo, são hoje católicos de várias gerações que tentam compor seu catolicismo com sistemas religiosos, ou filosofias de vida, de origem indiana, tibetana ou japonesa. Dentre os sistemas religiosos de origem japonesa alguns têm-se destacado precisamente em razão de se constituírem muito mais de adeptos brasileiros não-orientais do que de descendentes dos imigrantes japoneses. É o caso das chamadas "novas religiões" japonesas, de que são expressões a Seicho-no-iê e a Perfect Liberty (PL).

Seria possível estudar a transição de um a outro sistema de referência religiosa com as categorias do imaginário e do simbólico. Apesar da riqueza conceitual dessas categorias, manteremos a atenção ao uso que delas faz a tradição lacaniana (Lacan, 1948; 1966; Kaufmann, 1985; 1993/1996; Laplanche & Pontalis, 1995). Sucintamente pode-se dizer que o imaginário se refere ao semelhante e que o simbólico se refere à cadeia de significantes, entendidos aqui simplesmente como imagens acústicas ou palavras desligadas de conceitos fixados e, por isso mesmo, incompletas e abertas ao Outro (Kaufmann, 1993/1996).

O imaginário, nessa acepção, caracteriza-se pela preponderância do semelhante e reporta-se à fase do espelho, na qual o ego da criança de poucos meses se constitui a partir da imagem do semelhante. A relação intersubjetiva, que aí se inicia, é uma relação imaginária, em que o ego é um outro, e o outro um alter ego (Laplanche & Pontalis, 1995). É próprio do imaginário reduzir o outro a si mesmo, o diferente ao idêntico, o estranho ao semelhante. O imaginário, sempre nessa acepção, se alimenta de sinônimos, analogias, metonímias e isomorfismos.

O simbólico, ao contrário, diz respeito à concatenação de significantes, segundo a qual cada significante adquire essa função enquanto se insere, como elemento, numa ordem que lhe é exterior, de tal forma que, embora como elemento possa permanecer o mesmo, torna-se um significante outro quando inserido em outra cadeia. Nessa acepção, o simbólico transita pela alteridade, pela diferença e pela metáfora e produz um sentido novo.

Sem hierarquizar de nenhuma forma o imaginário e o simbólico, estamos sugerindo que a mudança de religião só se efetuará plenamente se se realizar no plano do simbólico. Se se realizar no plano do imaginário, a mudança de religião será incompleta e, a bem dizer, não ocorrerá: haverá, simplesmente, a expansão da mesma religião por meio de novas imagens e fantasmas da mesma fé. Sugerimos, mais, que o sincretismo se localizaria no plano do imaginário, e a conversão no plano do simbólico.

A Seicho-no-iê (no texto, Seicho) (Paiva, 1990a), fundada no Japão em 1930 por Masaharu Taniguchi, tem como emblema um círculo constituído pelo sol, pela lua e por uma estrela, relativos ao xintoísmo, ao budismo e ao cristianismo.

"A doutrina básica encontra-se na revelação de que a matéria não existe, havendo unicamente a Verdade ou Realidade [Jissô]. Distinguem-se dois planos, a Realidade e o Fenômeno. No plano da Realidade, o homem é filho perfeito de Deus; no do Fenômeno, o homem é atingido pelo pecado, pela morte e pelos vários infortúnios. O Fenômeno, porém, é ilusão e efeito físico da causa mental; a cura desses males está na tomada de consciência do Eu verdadeiro, ou seja, de que o homem é filho perfeito de Deus. Verdade/Realidade, Espírito/Mente, Eu verdadeiro, Deus, Jissô, são termos equivalentes ou muito próximos." (Paiva, 1990a, p.182)

As práticas religiosas compreendem a recitação de sutras, o culto dos antepassados, a purificação do subconsciente, a oração pela harmonia e o exercício da meditação. Na doutrina, nas instruções e no culto, a Seicho-no-iê refere-se muitas vezes, de forma elogiosa, à pessoa de Cristo e à bíblia cristã.

A Perfect Liberty (PL) (Paiva, 1990b), restaurada no Japão em 1946, por Tokuchika Miki, tem como emblema o omitamá, forma circular contendo no centro o sol, donde emanam vinte e um raios, que são os vinte e um preceitos revelados, dos quais o primeiro, que a todos contém, é Vida é Arte. Características doutrinárias da PL são a pessoa do líder supremo e os 21 Preceitos. O líder supremo (Oshieoya-samá que significa Pai dos Ensinamentos; o Patriarca) é não apenas o sucessor do fundador, mas o fundador da PL. Isso porque, em virtude de sua união única com Deus, ele recebe a iluminação apropriada para cada época. É para ele que são transferidos mensalmente os males do mundo, que ele transfere a Deus. Os Preceitos são elaborações da revelação de que Vida é Arte. "Segundo os Preceitos, os homens, iguais perante Deus, manifestam Deus por meio da auto-expressão; as coisas existem em conexão recíproca ou harmonia; a felicidade dos outros e a paz mundial são as metas de uma vida radiante; cada coisa tem sua função e existe um caminho para o homem e outro para a mulher" (Paiva, 1990b, p.188). As práticas religiosas incluem, sempre, a prece do oyashikiri, a que se atribui um poder único, em virtude da união do Patriarca com quem a recita e da infusão, nela, da força espiritual dos fundadores.

Método

Participantes e Instrumento

Paiva e Nakano (1987) e Paiva (1996) estudaram adeptos da Seicho-no-iê e da PL com o fito de esclarecer alguns aspectos psicológicos da filiação de brasileiros de origem não-japonesa a religiões orientais. Reorganização cognitiva do campo religioso, influência de terceiros na nova filiação, xenofilia, impacto cognitivo-afetivo de conceitos e palavras alheios à tradição cultural dos adeptos, organização social do grupo religioso, fatores motivacionais de adesão, diferença na tendência ao equilíbrio cognitivo foram os aspectos estudados.

Neste estudo, examinamos alguns dos dados obtidos por meio de entrevistas semi-estruturadas com doze adeptos da Seicho-no-iê, jovens e adultos de ambos os sexos (Paiva & Nakano, 1987) e com 24 adeptos da PL, jovens e adultos do sexo masculino (Paiva, 1996), todos brasileiros de origem não-japonesa. Os sujeitos da Seicho-no-iê escolhidos para a entrevista foram os que apresentaram maior riqueza de respostas a um questionário inicial aplicado a 60 adeptos. Tanto o questionário como a entrevista estiveram ancorados em itens relacionados com a história pessoal da filiação à Seicho-no-iê: "como a pessoa chegou à Seicho-no-iê, o que lá encontrou, o que não satisfazia na religião de origem, como foi compensada na Seicho-no-iê, como encara M. Taniguchi e seus escritos, o porquê do agradecimento, natureza, forma e percepção das vibrações, reação às palavras em japonês no culto, tendências xenofílicas, com o que não concorda, eventualmente, na Seicho-no-iê e, finalmente, que recomendações a Seicho-no-iê sugere para a crise contemporânea brasileira." (Paiva & Nakano, l987, p.52). Os sujeitos da PL foram sorteados aleatoriamente de uma população de 90 adeptos denominados Assistentes de Mestre. As entrevistas procuravam informação acerca da função de Assistente de Mestre, das dificuldades experimentadas no exercício dessa função, das características que distinguem a PL de outras religiões e, finalmente, do entendimento das relações entre vida, arte e várias formas de harmonia (Paiva, 1996). Das entrevistas realizadas, serão utilizadas nesse estudo 4 com adeptos da Seicho-no-iê e cinco com adeptos da PL, ilustrativas dos processos de composição religiosa relacionados com o sincretismo. Das entrevistas serão explorados apenas os conteúdos que, no seu valor de face, isolada ou, as mais das vezes, organicamente apontam para a assimilação pelo imaginário da experiência religiosa, quer nova quer antiga, ou para a reestruturação simbólica da ordem dos significantes, quer recentes quer anteriores. Para tanto, apresentaremos primeiro um resumo dos conteúdos comunicados e, depois, uma análise desses conteúdos.

Resultados

Entrevistas com Adeptos da Seicho-no-iê

S1, mãe de família, católica, freqüenta a Seicho. Esclarece que não é uma religião, mas "uma filosofia [que] é o ensinamento de nossa religião católica, e nos afirma que somos filhos de Deus, irmãos de Jesus, que poderá ser até nosso Anjo da Guarda". Conversou com o padre do lugar, para quem "é bom a gente freqüentar; nunca falou que é errado". Conhece uma catequista a quem o padre falou que "pode continuar na Igreja, que não tem nada demais". Tem levado à Seicho muitas pessoas, "que continuam católicas, na missa". Na Seicho-no-iê o que mais lhe chama a atenção é "Deus, o Jissô nosso". É lá que aprendeu "a novidade", rezar com concentração: "na nossa religião (católica) não temos a coisa total, de rezar; na Seicho-no-iê a gente reza com toda a atenção concentrada; as pessoas ainda não entenderam o que é religião: vão para passear e reparar o outro". Na Seicho "a gente renasce, porque aprendi muita coisa". Quando, então, volta ao culto católico, volta mais atenta: "a Seicho-no-iê aconselha o católico a ficar católico, porque ela é uma filosofia: lá se aprende a religião católica". Não haveria então diferença significativa entre a Seicho-no-iê e o catolicismo? "O Jissô nosso é o Deus verdadeiro. Cristo, na Igreja Católica, é Deus e na Seicho-no-iê é Jissô: é a mesma coisa, tanto faz". Diz que no primeiro sutra há várias referências a Cristo, que a Seicho manda reverenciar. O canto da Grande Harmonia, em japonês, desperta nela, que foi Filha de Maria, a mesma emoção que os antigos cantos em latim da missa. Mestre Taniguchi "é a segunda pessoa de Deus", e "homem bem favorável na memória dele". Seus livros e a Bíblia, os dois "são descoberta igual", e "entrando na Seicho-no-iê entendo melhor a Bíblia, porque na Igreja Católica não há orientação, alguém que saiba explicar". O primeiro sutra reza que "não existe pecado na Seicho-no-iê. No catolicismo, existe. A Seicho-no-iê explica que não existe pecado, porque o homem é parte de Deus e, por isso, não adoece nem morre". "Hoje não existe mais pecado, porque a evolução modificou: antes, tudo era pecado; hoje ninguém mais fala em pecado, já desapareceu. Não haver pecado é bom para a consciência: acabou o peso. Gravidez fora do casamento, por exemplo...". Apesar de a Seicho levar a um melhor conhecimento do catolicismo, "é provável que o católico o deixe de ser", como os crentes, umbandistas e espíritas, que "eram, mas largaram". Parece que a dupla referência religiosa não ocorrerá no futuro, uma vez que nas reuniões das Senhoras as crianças ficam na escola onde "aprendem a Seicho-no-iê, inclusive os gestos, uma beleza!".

S2, jovem, do sexo feminino, chegou a coordenadora dos jovens na Igreja Católica, mas não mais "se encontrava" do ponto de vista espiritual: ia à missa, mas "sem efeito; via só o lado negativo; encontrar a Deus deve dar satisfação!" Na Igreja Católica "era desarmonia, fuxico, diferença de classe e de raça: não se conseguia ultrapassar". Na Seicho encontrou a harmonia, grande força interior, a reverência ao outro, como filho perfeito de Deus: "não sei o que seria de mim se não tivesse descoberto a Seicho-no-iê". Tem de "reverenciar ainda muito a Igreja Católica, que a preparou para a Seicho-no-iê". Atualmente não vai mais à igreja católica. Diz que "Jesus é o Filho de Deus e é universal, pois no Japão também existe o cristianismo". Mas o Mestre [Taniguchi] é "um enviado de Deus, como Jesus, como Buda, como S.Francisco de Assis. Ele veio para explicar a Bíblia, por exemplo o Pai-nosso. E fala tão bem de Deus e de Cristo!" Entre Cristo e o Mestre "não vejo diferença: são um amor". "Cristo teve uma missão antes: foi crucificado para libertação nossa. O Mestre veio para explicar que Cristo morreu crucificado mas não porque somos pecadores; ele diz que não somos pecadores".

S3, casada, insurge-se contra a acusação de "anti-cristã", que principalmente os católicos fazem à Seicho-no-iê. "Como anti-cristã? O emblema tem a cruz de Cristo. A verdade, a filosofia da Seicho-no-iê é totalmente de Cristo, nada de anti-cristão. As pessoas acham que, por ser filosofia oriental, a Seicho-no-iê não tem nada a ver com Cristo: mas tem tudo a ver! A filosofia de M.Taniguchi é cristã, totalmente cristã. Se vivessem a Seicho-no-iê, muitos católicos seriam mais cristãos". S3 é católica e "sempre assiste à missa", que prefere em Português. Na Seicho prefere a oração em Japonês, porque tem mais força. Antes de encontrar a Seicho, S3 passara por centros espíritas e igrejas de crentes, mas não resolvia os problemas de saúde e de dinheiro: na Seicho tudo mudou com a prática da gratidão. O marido "leva a filosofia da Seicho-no-iê para os subordinados, porque tem a prova em casa".

S4, mãe de família, refere-se à "filosofia da Seicho-no-iê" e afirma que a diferença com as outras religiões, em particular o catolicismo, "é completa", porque na Seicho existe a reverência mútua, isto é, a doação mútua das pessoas: na Igreja Católica, ao contrário, as pessoas, mesmo reunidas no culto, são solitárias, pouco sinceras, não se preocupam com o outro e não sabem agradecer. S4 sempre procurava por alguma coisa mas não sabia o quê. Passou por um período de profunda depressão, durante o qual, além de fazer novenas, foi atrás de outras religiões. Encontrando, casualmente, a Seicho, a procura cessou. O que buscava e encontrou foi a paz, a resposta, em resumo: Deus. Isso não encontrava em sua religião de origem, o catolicismo. Filha de pais fervorosos, "seguia a religião católica, não porque achasse certo mas porque fui criada nela", continua católica, vai freqüentemente à missa, e "se deixar totalmente de ir na igreja católica, não sou seicho-no-iê!". Gosta da Igreja Católica e não lhe pode ser contrária até "porque isso seria deixar de reverenciar os pais", princípio importante da Seicho. Encontra em Jesus e no Mestre Taniguchi um ponto comum: um e outro têm revelação e visão, que procuram ensinar. Mas tem a convicção de que "uma hora todo o mundo vai ser seicho-no-iê, mesmo sendo de outra religião; aí a vibração de amor vai influenciar todas".

Entrevistas com Adeptos da PL

PL1, ex-religiosa católica, mãe de família, tem profunda veneração por Oshieoya-samá, "que é uno com Deus e, por isso, tem acesso fácil a Deus, para responder às consultas do mundo todo". Essa veneração torna-a disposta a "ir para qualquer parte do mundo, a mandado de Oshieoya-samá", pois na PL "aceita-se tudo o que vem dele como obra divina" e "a obediência a ele é parecida com a jesuítica: é obediência intelectual". E resume: "a PL é Oshieoya-samá". Deus é a Força do Universo: "nada de um em três, ou de três em um; nada de Deus se fazer homem; nada de anátema, excomunhão ou condenação". E também "nenhum dogma de infalibilidade", pois "as leis do Universo são infalíveis; o ensinamento divino corresponde à violação indicada pela advertência, e daí é infalível". Assim, "não existe mistério. Mistério é a vida". Adaptada a cada época, "o novo Patriarca já insinuou que no corpo da doutrina poderá haver modificação". O simples peelista "pode conservar sua religião, como forma de auto-expressão. Mas como Assistente de Mestre (intermediário entre o simples fiel e os Mestres) tem de optar pela PL". Foi o caso de uma mãe-de-santo a quem aconselhou deixar a umbanda para tornar-se AM e realizar, ela mesma, o shikiri sobre o filho doente. Mesmo assim, há "o perigo de sincretismo", razão por que foi restringida a permissão de se fazer a prece de oyashikiri, "prece forte (que resolveu) vários casos de granizo, aftosa, lagartas": alguns começaram a "usar o terço da macumba para desfiar a prece de oyashikiri".

PL2, casado, é administrador de uma igreja PL. Foi católico por 40 anos. "É difícil se libertar. E depois, outra: Deus é um só; a diferença está em outro setor, não na fé". Em sua experiência, o que os ensinamentos da PL produzem é "um contato mais direto com Deus, pois começo a valorizar as pequenas coisas; começo a me encontrar e aí vejo Deus, através do pequeno e do pouquinho". Até hoje tem o omitamá e o crucifixo na cama: "não desfazendo de Cristo, o crucifixo hoje é um adorno, respeitado mas não representando mais tanto quanto representava. No começo, depois da prece da PL rezava um Pai-nosso para Cristo. Esses confrontos e choques a gente tem". "Não menosprezo 40 anos de religião católica: fui coroinha, estudei em colégio de padre, confessava, comungava: mas só me encontrei com Deus através dos ensinamentos da PL". A PL é uma religião moderna porque "certos princípios de algumas religiões, dada a evolução da técnica e da humanidade, não cabem mais; o princípio é o mesmo, mas o modo de transmitir tem de se atualizar. O sentido de pecado, por exemplo, tem que modificar: não pode ser o arroz-feijão de séculos atrás. Tabus sobre sexo, procriação, a própria Igreja está revendo. Quanto ao aborto, o princípio se mantém, mas as razões são outras: não se pode falar de pecado, ofensa a Deus. Não se pode continuar falando de pecado, bobaginha (sic), se bem que na PL não tem disso". Em suas atividades na PL, fez vários casamentos: é "santo Antônio casamenteiro". Também fez o que os pais chamam "batizado", embora a PL não tenha batismo: a PL agradece a Deus pela criança e a apresenta a Deus, mas os pais, em sua grande maioria de origem católica, "carregam muitos resquícios da Igreja Católica". A PL é "quase a religião do desesperado, que reclama a salvação, o milagre momentâneo, a graça. A prece de oyashikiri é fortíssima. As pessoas levam para o lado do curandeirismo, e por isso a PL não divulga. Ainda mais com brasileiro... A palavra oyashikiri tem força extraordinária. Só com a palavra oyashikiri 99,99% dos peelistas se salvaram de problemas sérios, e obtêm contato imediato com Deus". "Tudo na PL é orientado pelo ensinamento divino: casamento, gravidez, educação. Numa geração não se eliminam todos os vícios, mas já o filho do peelista é totalmente diferente do não peelista".

PL3, jovem universitário, coloca a diferença entra a PL e outras religiões no nível filosófico. Segundo a PL, "a pessoa é ator, não paciente dos fatos: a pessoa tem a capacidade de, por seu esforço, movimentar os fatos. Mediante a advertência, que lhe interpreta os acontecimentos, e o ensinamento, que lhe indica o que fazer, a pessoa corrige a postura diante dos fatos: isso é fundamentalmente diferente de outras igrejas". Nesse contexto, "a PL não se pronuncia sobre a transcendência"; Deus é "o conjunto de todas as coisas, a Lei Universal; não é antropomórfico, é mais impessoal; não tem sentimentos; é reflexo do íntimo da gente". Esse conceito de Deus "dá posição mais clara para a pessoa". Abstraindo da transcendência, do "descanso eterno" e conceitos semelhantes, a PL ensina que "se houver (a transcendência), a melhor maneira de conduzir-se é a mesma que se não houver". Ele foi católico praticante até os 12 anos: catecismo, coral, missa. Mas parou de freqüentar por causa dos sermões: "o padre não permitia interpretar; não permitia que se buscasse o significado para mim. Há céu, inferno, pecado, perdão, mas não pode ficar extrapolando". O catolicismo é "corretivo, não preventivo". "Na PL não há o fanatismo de só pedir perdão, e tudo bem: posso fazer o que quiser e peço perdão. PL é bom senso". "Outras (quase falou nossa religião) religiões usam textos antigos, bíblicos, e não saem daí; a PL não se remete a textos antigos e coisas perenes" e "ensina o sentido filosófico e religioso-espiritual nas atitudes do cotidiano, atuais", adaptadas aos lugares. Com isso, a PL "oferece aos céticos jovens universitários algo aceitável". Como outras filosofias orientais, a PL "passa a harmonia, um relacionamento baseado no respeito dos limites, próprios e dos outros". "Não mistifico a PL, que também é imperfeita, mas encaro a validade e continuo nela".

Para PL4, gerente de vendas, casado, "a diferença entra a PL e outras religiões é o ensinamento, radiografia espiritual que o Patriarca concede". Segundo ele, "todas as religiões são boas. Eu nasci na Igreja Católica, e acho que um bom padre, um bom bispo, uma comunidade, são coisas interessantes: Mas não sigo mais a religião católica, porque quando tenho um problema particular, a orientação em grupo ou semi-individual não é muito acentuada". Já foi a centros espíritas e outras "coisas com rituais e coisas muito interessantes" neles "sente a presença divina, de algo superior, e pessoas extremamente dedicadas; mas deixam algo a desejar. A PL é diferente por causa do ensinamento. Deus avisa mesmo, quando algo de mau está para acontecer. E mudado o comportamento, as coisas mudam". Explica a modernidade: "é extremamente moderna, porque cada época tem um patriarca, existe um fundador para cada época. Os temas das orientações são atuais". "Não se fica orando a Deus somente seguindo rituais antigos. Os Mestres e suas famílias não são distantes como o padre, isso também é moderno".

PL5, advogado e funcionário público, casado, prepara-se com a prece de oyashikiri para a orientação dos que procuram a PL: é "a fé inabalável no shikiri de Oshieoya-samá" que lhe permite "desligar-se do que vinha fazendo para dedicar-se ao que vai fazer". Ele mesmo não vai solucionar o problema do consulente, mas "pela prece de oyashikiri vai encaminhar a Deus a solução". PL5 foi católico ativo, envolvido em movimentos de noivos, casais e cursilhistas. Voltou-se para a PL quando para suas próprias dificuldades recebeu de seu "líder religioso, um cônego", uma solução infantil. Na PL encontrou o que faz a diferença "entre ela e todas as outras religiões": "a PL explica o porquê", "o Mestre aponta a falha que está acontecendo para ter aquele problema, e como fazer para sair dele". "E isso sem entrar no mérito da advertência e do ensinamento, muito mais profundos". A PL "explica o porquê dos problemas pessoais e também os grandes porquês do Universo", pois "existe a advertência coletiva e universal". Na origem das catástrofes, por exemplo, está a desvirtude não só dos diretamente atingidos mas também de seus antepassados. Outra diferença da PL com as religiões é "não carregar o tradicionalismo" e "adaptar-se seu ensinamento e filosofia ao momento atual".

Análise das Entrevistas

O exame das entrevistas à luz do imaginário e do simbólico permite dividi-las em dois grupos: o que mantém a articulação simbólica de origem (católica), acrescendo-lhe elementos do imaginário (Seicho ou PL), e o que inaugura uma articulação simbólica diferente (Seicho ou PL), retendo, imaginariamente, elementos do catolicismo. Denominamos o primeiro grupo de Imaginário e o segundo de Simbólico. Ao primeiro grupo pertencem as entrevistas S1, S3 e S4. Ao segundo grupo pertencem as entrevistas S2, PL1, PL2, PL3, PL4, PL5.

Grupo Imaginário

S1 mantém claramente o sistema simbólico católico: somos filhos de Deus, irmãos de Jesus, que é Deus. A autoridade do padre e o exemplo da catequista confirmam-na na certeza de que a Seicho é filosofia e não religião. A realidade do pecado é, sem dúvida, esmaecida, mas não com o apoio exclusivo da Seicho, pois a própria evolução dos tempos levou a Igreja a deixar de falar de pecado a propósito de tudo, aliviando as consciências. Mas a Seicho trouxe-lhe a confirmação de sua religião, a aprendizagem da oração, o exercício da gratidão, o renascimento espiritual, o melhor entendimento da Escritura, além de um novo vocabulário, no qual se destaca a polissêmica palavra Jissô. As referências à pessoa e aos escritos de Mestre Taniguchi tendem a encaixar-se no léxico e na semântica da linguagem católica: o Mestre é "homem favorável na memória (de Deus)", é a segunda pessoa de Deus, mas não é o Jissô/Deus, como Jesus o é, e seus escritos esclarecem a Bíblia. Se S1 mantém o catolicismo como núcleo simbólico, os novos conceitos e vocábulos que lhe agrega, principalmente o Jissô, Mestre Taniguchi e os escritos do Mestre, ampliam e conformam esse núcleo segundo o critério da semelhança e, pois, do imaginário. Teríamos aqui não a conversão de uma católica à Seicho mas um sincretismo católico, no qual se amalgamam referências periféricas novas com o cerne antigo. Embora não preveja abandonar a religião católica, S1 sabe de católicos, crentes, umbandistas e espíritas que "eram mas largaram", e observa que as crianças, desde cedo, aprendem a Seicho-no-iê.

S3 refere-se à Seicho-no-iê exclusivamente como filosofia e desdobra-se em argumentos de que essa filosofia não só não é anti-cristã como é totalmente cristã. Segundo S3, que se declara católica e de missa, viver a Seicho-no-iê torna o católico mais cristão. Deixa claro, no entanto, que foi a Seicho-no-iê que resolveu seus problemas de saúde e de dinheiro, com a prática da gratidão. Pode-se, pois, afirmar que S3 mantém o sistema simbólico cristão e católico, e que a admissão da Seicho-no-iê consiste em novas acentuações daquele sistema, em acréscimos do imaginário ao mesmo.

S4 diz que a diferença entre a Seicho e o catolicismo é completa, mas coloca essa diferença no comportamento, não na doutrina. Mesmo o Deus que sempre buscava, que não encontrou no catolicismo e encontrou na Seicho, não é um Deus doutrinal mas um Deus emocional de resposta e paz. Com isso, S4 parece manter o núcleo religioso católico, que não vê ameaçado pela "filosofia" da Seicho, cujas vibrações de amor têm a capacidade de aperfeiçoar todas as religiões. A manutenção do núcleo é confirmada pela declaração de S4 de que continua católica praticante, mesmo porque a Seicho lhe ensina a reverenciar os pais, católicos fervorosos. Sua comparação entre Cristo e Mestre Taniguchi não realça a posição de Cristo, nem tampouco a de Taniguchi. Em função do conteúdo da maior parte de seu discurso, talvez seja mais seguro dizer que S4 vive, atualmente, um catolicismo sincrético, acrescido de elementos de uma outra religião, incorporados à identidade da religião original.

Grupo Simbólico

S2, que não se refere à Seicho como filosofia, parece colocar sua tradição católica sob uma referência mais inclusiva, que lhe dá um novo sentido. A Igreja Católica serviu-lhe como "preparação", pela qual é agradecida, mas que atualmente dispensa, tanto que não vai mais à igreja (católica). Não rejeita a Cristo, que "Filho de Deus" e "universal", mas não vê diferença entre ele e Mestre Taniguchi: "ambos são um amor, ambos enviados de Deus, como também Buda e S. Francisco de Assis". Mas o Mestre veio para explicar a Bíblia, a própria oração de Cristo e principalmente o sentido de sua missão e morte na cruz: libertar-nos, mas não dos pecados, pois não somos pecadores. Se a análise é correta, S2 se pode dizer convertida à Seicho por adotar um sistema simbólico novo, no qual encaixa os conteúdos anteriores. Pode-se, mesmo, dizer que se há sincretismo é na Seicho não no catolicismo de S2.

PL1 compõe toda sua referência religiosa, incluindo a praxis, ao redor dos símbolos articulados da PL: Oshieoya-samá, o ensinamento, a Força do Universo e a infalibilidade de suas leis. Deve-se, pois, evitar a dupla pertinência religiosa e o sincretismo. Quanto à antiga pertença religiosa, PL1 recusa explicitamente o que é essencial nela: a Trindade e a Encarnação. Pode-se suspeitar de elementos do imaginário trazidos da antiga fé: a obediência jesuítica, a infalibilidade papal, os mistérios. Esses elementos comparecem integrados no novo sistema simbólico da PL. É o caso de se dizer que ocorreu uma conversão religiosa, que manteve alguns elementos do imaginário assimilados a um novo sistema simbólico.

PL2 também parece ter abandonado o sistema simbólico católico, quando reconhece que o crucifixo é um adorno, que não representa o que representava, quando deixa de rezar a Oração do Senhor, quando explica que a consagração da criança a Deus não é o batizado, quando não considera o conteúdo da ofensa a Deus no pecado e chega a compará-lo a uma "bobaginha" e, finalmente, quando reconhece que a geração criada na PL não sofre dos mesmos inconvenientes espirituais dos que vêm de outra religião. Digno de nota, também, é o destaque dado por PL2 à prece de oyashikiri, elemento singular da PL. Pode-se, pois, afirmar que PL2 se rege, na referência religiosa, por um único sistema simbólico, distinto do sistema em que nasceu e viveu boa parte da vida. Temos, novamente, do ponto de vista psicológico, um caso de conversão religiosa e não de sincretismo. Elementos do antigo sistema, representados por tentativas de coerência ("Deus é um só; a diferença está em outro setor") e expressões como "Santo Antônio casamenteiro" e "graça", são assimilados à nova identidade, e tornam-se elementos imaginários que gravitam ao redor de um núcleo simbólico diferente.

PL3, para todos os efeitos práticos, abstrai da transcendência e da existência depois da morte, e entende a Deus de maneira impessoal, sem sentimentos, como Lei Universal, conjunto de todas as coisas e reflexo da pessoa. Não se remete a textos antigos, como a Bíblia, nem a coisas perenes. Posiciona-se no cotidiano de forma ativa e preventiva, corrigindo os fatos mediante as advertências divinas e sua interpretação, que recebe da PL. PL3 dá a impressão de que essa é uma posição filosófica e pragmática, inclusive aceitável para quem é cético e de cultura universitária. Mas é nesse nível filosófico que coloca a diferença fundamental entre a PL e o catolicismo de seus primeiros anos. Parece, pois, que PL3, ao menos enquanto "encara a validade (da PL) e continua nela", abandonou o núcleo simbólico de religião católica, no que se refere à transcendência, à pessoalidade de Deus, a sua diferença com a Natureza, às escrituras fundadoras, à existência pós-morte. Teríamos, novamente, do ponto de vista psicológico, uma conversão religiosa, e não um sincretismo. Parece, até, que PL3 nem mesmo transportou para o novo sistema simbólico fragmentos do sistema anterior, que se assimilariam como o novo imaginário.

PL4 concede que todas as religiões são boas mas que deixou de ser católico por causa da radiografia espiritual, o ensinamento, que a PL proporciona. A razão de sua passagem para a PL não é de ordem doutrinal, mas pragmática, o encaminhamento adequado de problemas pessoais. Parece que a adesão de PL4 à PL conserva muitos traços do catolicismo antigo, provavelmente não muito distintos em razão de sua junção pêle-mêle com experiências de vários cultos. Diríamos que, atualmente, PL4 estaria professando um peelismo sincrético, cujo núcleo simbólico parecer ser o ensinamento e a pessoa do Patriarca, "fundador para cada época", rodeado por reminiscências católicas e outras.

PL5 aponta o que faz a diferença entre a PL e o catolicismo: "a PL explica o porquê" dos acontecimentos, no nível tanto do indivíduo como da coletividade. A pessoa do Patriarca, o poder da prece, "a fé inabalável no shikiri de Oshieoya-samá", a profundidade da advertência e do ensinamento, sugerem que o antigo católico engajado se converteu, isto é, abraçou o diferente religioso, passou para uma articulação do religioso propriamente simbólica, embora a conservando lembranças vivas da religião anterior, que insere na nova ordem de significantes.

Discussão

Os dois grupos de entrevistas se deixam, pois, organizar com nitidez segundo os critérios do imaginário ou do simbólico. O imaginário tende a incorporar por semelhança as informações religiosas que o ambiente proporciona no fluxo incessante da vida: a busca do permanente e do idêntico é um dos vetores da organização cognitiva e afetiva. Sanchis (1995) lembra que a inclusão do diferente sob o critério do idêntico foi o modo de o cristianismo incorporar o diferente grego e o diferente bárbaro. O imaginário não tem conteúdo privilegiado: organiza-se em reciprocidade com o simbólico. Por isso é que S1, S3 e S4 incorporam as novas religiões ao catolicismo mantido, ao passo que S2, PL1, PL2, PL3, PL4 e PL5 incorporam o catolicismo respectivamente à Seicho-no-iê e à PL.

O simbólico, quanto à manutenção ou mudança, enseja algumas considerações. Em primeiro lugar, a solidez cognitivo-afetiva de um simbólico difere de pessoa para pessoa, e essa é uma variável na probabilidade de se alterar o sistema simbólico. O simbólico, além disso, está sujeito à fragilização da pessoa. É clássico associar-se a conversão religiosa a uma crise acompanhada de stress emocional. Nessa circunstância, a substituição de um sistema simbólico por outro é semelhante à substituição de um quadro de referência perceptual profano por um religioso (van der Lans, 1977). Verificaram-se, com efeito, entre os entrevistados, vários casos de carência capazes de levar à aceitação de uma nova referência simbólica. Em terceiro lugar deve-se levar em conta o acaso para a determinação concreta do simbólico: a escolha da Seicho-no-iê ou da PL dependeu do acaso dos contatos, e não se registrou nenhum caso de passagem de uma para outra. Poder-se-ia, finalmente, discutir a concomitância de vários simbólicos no mesmo sujeito, em seqüela ao estilhaçamento do self kantiano a que se refere Sanchis (1995) e ao estabelecimento dos múltiplos selves da Psicologia Social pós-moderna (Shot-ter & Gergen, 1989). Concedemos que a vida real é muito mais complexa do que qualquer modelo psicológico, porém se se mantiver o modelo do simbólico/imaginário discriminado pelo critério da diferença/semelhança, é-se forçado a admitir, relativamente a um determinado tema, um único simbólico, ao qual são incorporados todos os conteúdos. Não se incluem na análise possíveis casos de personalidade múltipla que, aliás, não se revelaram nas entrevistas.

Chama a atenção, no entanto, a distribuição dos entrevistados: os adeptos da Seicho-no-iê tendem a manter o simbólico católico, os da PL a assumir o simbólico peelista. A razão fundamental dessa diferença parece residir no conteúdo doutrinal dessas duas novas religiões.

A Seicho-no-iê refere-se explícita e simpaticamente a Cristo, a sua missão e às escrituras cristãs. A PL não tem nenhuma palavra acerca de Cristo ou das escrituras bíblicas. O contato com a Seicho-no-iê, ao criar um conflito de interpretações, permite ao adepto a manutenção da referência simbólica católica "atualizada"; o contato com a PL, se bem encaminhado, leva à adoção de uma referência simbólica sem lugar para o simbólico cristão, a ponto de PL3, um dos mais articulados depoentes, não apresentar sequer a tentativa de assimilação, pelo imaginário, de elementos católicos.

Quanto à Seicho-no-iê, não estamos sugerindo que se tenha transformado numa simples "espiritualidade": há elementos dissonantes do simbólico católico, principalmente a negação do pecado e a conseqüente reinterpretação da missão de Cristo. Essa dissonância tem produzido na linguagem dos adeptos uma cisão da pessoa de Cristo, "o Cristo da Igreja Católica" e "o Cristo da Seicho-no-iê" (Paiva & Nakano, 1987). O que se tem observado algumas vezes foi o que denominamos "esmaecimento": ao invés de procurar combinar as duas interpretações, os adeptos substituem a dimensão substantiva do pecado pela insistência na "filiação perfeita". É possível, então, manter o eixo simbólico católico porque não se demora na discussão do caráter redentor ou do caráter liberador da morte de Cristo, e destaca-se o dado positivo, também presente no corpus católico, da filiação divina. Nessa linha, o esvaziamento do pecado chega a ser atribuído à própria Igreja, cujo discurso contemporâneo não insiste no pecado e, por extensão, no caráter redentor de Cristo.

Além desse elemento crucial, Cristo e a Bíblia, a Seicho-no-iê facilita a manutenção do simbólico católico por outras características: referência ao espiritual como o mais importante, ao corporal como ilusório, à alma mais que ao mundo. A PL, ao contrário, abstrai de discursos acerca da transcendência, endereça a atividade para esse mundo, não insiste no eu mas em suas expressões, não fala de pecado e insiste na ética como estética. Mesmo o conceito de transferência, que poderia evocar a mediação de Cristo, não foi lembrado por nenhum dos entrevistados, como tampouco por Fujikura (1992), em seu estudo da inculturação da PL no Brasil.

Essa diferença, dir-se-ia de papel, ilustrada por PL2 pela oposição entre o Pai-nosso e a prece de oyashikiri, permite à PL instaurar uma ordem simbólica alternativa ao cristianismo mais amarrada do que a da Seicho-no-iê, o que contribui para entender a maior taxa de mudança do simbólico, e da conversão, da PL.

Seria, finalmente, o sincretismo, essa forma de "declinar-se no plural" (Sanchis, 1995, p.96), um processo criativo no empenho em abrir um caminho religioso pessoal entre tantas solicitações alternativas? Do ponto de vista psicológico diríamos que a resposta deve ser buscada no indivíduo, e não na coletividade: é no indivíduo que se poderia perceber a articulação da atitude religiosa, distinguindo entre o simbólico estruturante e a assimilação dos múltiplos elementos instigadores com que o meio acena. Haverá casos em que a assimilação pelo imaginário será indolente e outros em que requererá esforço. Com efeito, "o mesmo" pode ficar na superfície ou descer a profundezas, ser repetitivo ou desabrochar em virtualidades insuspeitadas. Haverá, pois, sincretismos exangues e sincretismos criativos. A "declinação no plural" poderá, então, ser criativa em alguns casos e em outros não. Ao contrário, a conversão entendida como mudança do simbólico, é quase tautologicamente criativa. Não será, porém, no indivíduo, uma declinação no plural, mas a mudança de uma declinação para outra. Essa mudança não elimina as referências do conhecimento, do afeto e da memória, mas as inclui numa nova ordem de reciprocidade.

Sobre o autor:

Geraldo José de Paiva é Livre-Docente em Psicologia Social, com Pós-Doutoramento em Psicologia da Religião na Universidade Católica de Louvain-la-Neuve (Bélgica) e Professor no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.

Recebido em 20.10.98

Revisado em 04.02.99

Aceito em 04.03.99

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    Endereço para correspondência: Departamento de Psicologia Social e do Trabalho, Universidade de São Paulo/SP, Av. Professor Mello Moraes, 1721, Cidade Universitária, CEP 05508-900, São Paulo, SP.
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Dez 1999
    • Data do Fascículo
      1999

    Histórico

    • Aceito
      04 Mar 1999
    • Recebido
      20 Out 1998
    • Revisado
      04 Fev 1999
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