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Auto-conceito em crianças com e sem obesidade

Self-concept of obese and non-obese children

Resumos

A preocupação e interesse pela obesidade infantil e aspectos psicológicos associados conduziram ao presente estudo. Este estudo, transversal, teve como objectivo comparar o auto-conceito em crianças obesas e não obesas. Administraram-se um questionário sócio-demográfico e clínico e o Perfil de Auto-Percepção da versão Portuguesa de Martins, Peixoto, Mata e Monteiro (1995) do Self-Perception Profile for Children de Harter (1986) a uma amostra de 100 crianças (n=58 do género feminino), entre os 8 e os 12 anos (M=10,19; DP=1,26), maioritariamente residentes em meio urbano (n=54) e com NSE médio (n=78), das quais 45 eram obesas. Verificou-se que os sujeitos não obesos apresentavam valores médios significativamente mais elevados nas subescalas Competência Atlética e Aparência Física, enquanto que os sujeitos obesos apresentavam valores médios significativamente mais elevados na subescala Atitude Comportamental. Os resultados corroboram parcialmente a literatura revista, sublinhando a necessidade de replicação e ampliação futura do presente estudo.

Auto-conceito; obesidade infantil; auto-percepção


The present study was motivated by the concern and interest for childhood obesity and the psychological aspects associated with it. This transversal study aimed to compare the self-concept of obese and non-obese children. A socio-demographic and clinical questionnaire and the Portuguese version by Martins, Peixoto, Mata and Monteiro (1995) of the Self-Perception Profile of Harter's Self-Perception Profile for Children (1986) were administered to a sample of 100 children (n=58 female), between 8 and 12 years of age (M=10,19; SD=1,26), mainly living in a urban context (n=54) and of median Socio-Economical Level (n=78), 45 of which were obese. Non-obese children had significantly higher mean scores in the subscales Athletic Competence and Physical Appearance. Obese children had significantly higher mean scores in the subscale Behavioural Attitude. The results partially support the literature, emphasizing the need to replicate this study with a bigger sample.

Self-concept; childhood obesity; self-perception


Auto-conceito em crianças com e sem obesidade

Self-concept of obese and non-obese children

Daniela SimõesI, II; Rute F. MenesesI,* * Endereço para correspondência: Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (FCHS), Universidade Fernando Pessoa, Praça 9 de Abril, 349, Porto, Portugal, 4249-004. Fone: +351-22-5071300. Fax: +351-22-5508269. E-mail: rmeneses@ufp.pt

IFaculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Fernando Pessoa, Porto, Portugal

IIHospital Santa Maria Maior E. P. E, Barcelos, Portugal

RESUMO

A preocupação e interesse pela obesidade infantil e aspectos psicológicos associados conduziram ao presente estudo. Este estudo, transversal, teve como objectivo comparar o auto-conceito em crianças obesas e não obesas. Administraram-se um questionário sócio-demográfico e clínico e o Perfil de Auto-Percepção da versão Portuguesa de Martins, Peixoto, Mata e Monteiro (1995) do Self-Perception Profile for Children de Harter (1986) a uma amostra de 100 crianças (n=58 do género feminino), entre os 8 e os 12 anos (M=10,19; DP=1,26), maioritariamente residentes em meio urbano (n=54) e com NSE médio (n=78), das quais 45 eram obesas. Verificou-se que os sujeitos não obesos apresentavam valores médios significativamente mais elevados nas subescalas Competência Atlética e Aparência Física, enquanto que os sujeitos obesos apresentavam valores médios significativamente mais elevados na subescala Atitude Comportamental.

Os resultados corroboram parcialmente a literatura revista, sublinhando a necessidade de replicação e ampliação futura do presente estudo.

Palavras-chave: Auto-conceito; obesidade infantil; auto-percepção.

ABSTRACT

The present study was motivated by the concern and interest for childhood obesity and the psychological aspects associated with it. This transversal study aimed to compare the self-concept of obese and non-obese children. A socio-demographic and clinical questionnaire and the Portuguese version by Martins, Peixoto, Mata and Monteiro (1995) of the Self-Perception Profile of Harter's Self-Perception Profile for Children (1986) were administered to a sample of 100 children (n=58 female), between 8 and 12 years of age (M=10,19; SD=1,26), mainly living in a urban context (n=54) and of median Socio-Economical Level (n=78), 45 of which were obese. Non-obese children had significantly higher mean scores in the subscales Athletic Competence and Physical Appearance. Obese children had significantly higher mean scores in the subscale Behavioural Attitude. The results partially support the literature, emphasizing the need to replicate this study with a bigger sample.

Keywords: Self-concept; childhood obesity; self-perception.

A procura de um "corpo perfeito" simboliza um dos atributos mais importantes da sociedade contemporânea e ter um corpo imperfeito é sinónimo de não ter força de vontade, ausência de restrições, ser-se preguiçoso e não saber auto-controlar-se (Barskey, 1988, Brownell, 1991, Glassner, 1988, Rodin, 1992, citados por Barlow, 1993/1999). Deste modo, a sociedade tende a reagir negativamente aos indivíduos que não conseguem alcançar os padrões preponderantes, provocando nestes um grande sofrimento tanto a nível social como psicológico (Barlow, 1993/1999). Consequentemente, as questões psicológicas, nomeadamente emocionais, relacionadas com a obesidade são cada vez mais citadas na literatura (Campos, Sigulem, Moraes, Escrivão, & Fisberg, 1996; Jelalian & Mehlenbeck, 2002).

Numa investigação em que se pretendeu avaliar a idade em que se adquirem crenças acerca da obesidade, Lerner e Gellert (1969, citados por Ogden, 1998/1999) mostraram desenhos de indivíduos adultos de diferentes tamanhos (magros, "normais" e gordos) a um grupo de crianças entre os cinco e os dez anos, pedindo-lhe que descrevessem o tipo de cada pessoa. Os autores verificaram que as crianças associavam indivíduos de tamanho médio a qualidades positivas e os magros e gordos a qualidades negativas.

Num outro estudo, Lerner e Gellert (1969, citados por Ogden, 1998/1999) apresentaram às mesmas crianças cinco desenhos de meninos: um com deficiência, um desfigurado na face, uma criança com muletas e com uma tala na perna, uma criança cujo antebraço esquerdo tinha sido amputado e uma criança obesa. Quando se perguntava às crianças de quem gostavam menos, respondiam que era da criança obesa. Os autores concluíram que a obesidade era vista como culpa da criança e resultado de voracidade, fraqueza e preguiça. Também Barlow (1993/1999) refere que as crianças tendem a classificar crianças com incapacidade física e deformações faciais como mais agradáveis comparativamente às crianças obesas. O autor acrescenta que os indivíduos adultos, perante gravuras de pessoas obesas, tendem a atribuir a estas características negativas, classificando-as como preguiçosas e desleixadas.

Sendo vários os estudos que revelam a estereotipia em relação aos indivíduos obesos, verifica-se que na cultura Ocidental a pressão para ser magro é bastante intensa: os indivíduos são lembrados constantemente, através dos meios de comunicação social, que a forma ideal do corpo deve ser extremamente magra (Barlow, 1993/1999; Bell & Morgan, 2000, citado por Israel & Ivanova, 2002; Kimm et al., 1997). Ora, as reacções e atitudes da sociedade em relação à obesidade reflectem-se nas reacções e atitudes dos indivíduos obesos, que tendem a fazer auto-declarações depreciativas em relação a si próprios e a apresentar um auto-conceito comprometido (Barlow, 1993/1999; Schwatz & Brownell, 2004).

Os dados sugerem que, de facto, existe uma realidade social de discriminação que influencia o funcionamento psicológico do indivíduo obeso, existindo como que uma aversão à gordura, que contribui para o comprometimento da auto-estima e auto-imagem, quer em crianças, quer em adultos (Almeida, Loureiro, & Santos, 2002; Bell & Morgan, 2000, citado por Barbosa, 2001; Barlow, 1993/1999; Bosch, Stradmeijer, & Seidell, 2003; Buela-Casal & Caballo, 1991; Israel & Ivanova, 2002; Kimm et al., 1997). Analogamente, Jay (2004) e Muller (1999, citados por Barbosa, 2001) referem que as crianças e adolescentes obesos estão em risco de desenvolverem sintomatologia depressiva, assim como um baixo auto-conceito e auto-estima, levando ao seu isolamento social. Hibert e Hibert (1974/1975) acrescentam que em muitos casos a criança obesa tem dificuldade em aceitar-se tal como é, na medida em que tem receio de que os outros a achem ridícula, assim como sente dificuldade em aceitar a sua própria imagem, e rapidamente começa a desconfiar que os seus amigos fazem troça dela, que os professores a lastimam e que os pais lhe dizem mentiras a respeito do seu estado de saúde, contribuindo para que a criança se feche em si mesma, tornando-se uma criança apática, que não se interessa por nada, embora, na maior parte dos casos, as suas capacidades intelectuais sejam tão boas ou até superiores às das outras crianças. Campos et al. (1996) fazem ainda referência ao facto da exigência familiar e a falta ou diminuição de disponibilidade da criança obesa em relação às informações do meio ambiente poderem contribuir para a avaliação negativa do comportamento, levando-a a pensar que não se comporta de acordo com o que esperam dela.

Um outro aspecto com componentes psicológicos associado à obesidade é a inactividade física. Para Mello, Luft e Meyer (2004), por exemplo, o exercício físico é considerado uma actividade planeada, estruturada e repetitiva, que requer do indivíduo alguma aptidão física, que engloba potência aeróbica, força e flexibilidade. Segundo estes autores, de uma forma geral, a criança obesa é pouco hábil no desporto, não se destacando, levando muitas vezes à sua desistência e desmotivação. Apfeldorfer (1992/1997), por seu turno, refere que o peso do corpo é sentido pelos indivíduos obesos de uma forma mais intensa, o seu corpo cansa-se e alguns movimentos são difíceis, por vezes impossíveis, quer por razões anatómicas, quer pelo esforço que requerem. Assim, o excesso de peso constitui para a criança obesa um incómodo em quase todas as suas actividades, tais como correr ou saltar, e tal aspecto faz com que esta se sinta inferior em relação aos amigos, já que estes são mais ágeis do que ela (Hibert & Hibert, 1974/1975).

Assim, o auto-conceito do indivíduo obeso, i.e., o conhecimento que o indivíduo tem de si, englobando aspectos cognitivos, afectivos e comportamentais (Sisto, Bartholomeu, Rueda, & Fernandes, 2004), está ameaçado, merecendo atenção acrescida. Mais concretamente, a criança interioriza muito cedo que ter excesso de peso é indesejável, vendo o seu corpo como uma fonte de embaraço e vergonha (Barlow, 1993/1999; Ricciardelli & McCabe, 2001), carregando consigo o estigma de ser "gorda", fazendo-a sentir-se inferior às outras crianças (Campos et al., 1996; Ricciardelli & McCabe, 2001). Tal é tanto mais importante quando se sabe que o bem-estar e o sentido de valor pessoal, a construção da auto-imagem e a capacidade de identificar e desenvolver as capacidades da criança são influenciados pela forma como se desenvolve o auto-conceito (Correia, 1991).

De facto, o estudo do auto-conceito parte do pressuposto de que a sua compreensão pode facilitar a promoção de outras dimensões da personalidade, assim como permitir predizer, descrever e explicar o comportamento humano (Veiga, 1995). Vaz Serra (1988) refere mesmo que o auto-conceito ocupa um papel importante em todas as áreas de funcionamento do indivíduo. Fontaine, Campos e Musitu (1992) partilham da mesma ideia, ao considerar que o conceito de si próprio ocupa um papel fundamental no desenvolvimento da pessoa e que, de uma forma parcial, dele dependem o nível de bem-estar do sujeito, a sua motivação para agir e mesmo a orientação da acção nos vários domínios da sua existência. É, assim, de sublinhar que um aspecto importante do auto-conceito diz respeito ao impacto que este exerce na orientação do indivíduo, influenciando a sua motivação para a acção (Markus & Wurf, 1987, citados por Ferreira, 2004).

Na presente investigação, o auto-conceito é entendido numa perspectiva multidimensional (Harter, 1986; Veiga, 1995), que abrange um conjunto de dimensões de vida do sujeito, salientando-se o potencial impacto que a obesidade infantil terá sobre este(s) construto(s).

Assim, o objectivo do presente estudo é analisar a relação entre auto-conceito e obesidade infantil, comparando o auto-conceito numa amostra clínica de crianças obesas com uma amostra não clínica de crianças não obesas.

Método

Participantes

A amostra é constituída por 100 participantes, dos 8 aos 12 anos (M=11,09, DP=1,33), sendo 58 do género feminino, a frequentar do 3º ao 6º ano de escolaridade (M=5,27, DP= 1,12), residentes na zona de Barcelos (interior Norte de Portugal), maioritariamente em meio urbano e do NSE médio (cf. Tabela 1). Constituíram-se dois grupos distintos: o grupo das crianças obesas é constituído por utentes da Consulta de Obesidade Juvenil do Hospital Santa Maria Maior, S.A. (actualmente E. P. E.) de Barcelos (n=45); o grupo de crianças não obesas é constituído por crianças que freqüentavam o 4º ano do primeiro ciclo numa escola de Barcelos (n=55).

Foram estabelecidos como critérios de exclusão: (a) do grupo de crianças não obesas - a existência de doença física; (b) do grupo de crianças obesas - a existência de outra doença e a participação na Consulta de Psicologia do Hospital Santa Maior, S.A. (actualmente E. P. E.) de Barcelos (por forma a evitar o viés dos resultados).

Material

Foi elaborada uma folha de rosto, que funcionou como introdução aos dois questionários utilizados, que se lhe seguiam, onde era explicado aos participantes a natureza do estudo, a natureza voluntária da sua participação e a confidencialidade inerente ao estudo. Foi clarificado verbalmente o carácter anónimo do instrumento.

Foi também elaborado um questionário sócio-demográfico e clínico, com o objectivo de caracterizar os participantes em termos de idade, género, ano de escolaridade, residência e NSE, bem como discriminar os sujeitos obesos (através da consulta dos processos clínicos de cada criança, teve-se acesso ao valor do Índice de Massa Corporal, calculado através da divisão entre o peso em quilogramas e o quadrado da altura em metros) dos não obesos (através do peso e altura foi possível calcular o Índice de Massa Corporal - Rodríguez, Gómez, Martínez, & Pérez, 2003). Pretendeu-se ainda controlar a existência de doenças, daí as questões "És seguido em alguma outra consulta no hospital?" (no caso da amostra clínica) ou "És seguido em consulta por algum profissional de saúde?" (no caso do grupo de comparação) e "Tens algum problema de saúde?" (em ambos os grupos).

Recorreu-se ainda ao Self-Perception Profile for Children (SPPC), construído por Susan Harter a partir da Perceived Competence Scale for Children (Harter, 1982). O SPPC destina-se a sujeitos entre 8 e os 12 anos e é constituído por duas escalas: a Escala de Importância e o Perfil de Auto-Percepção; esta última apresenta seis subescalas separadas, cada uma composta por 6 itens, perfazendo um total de 36 itens, sendo que cinco dessas subescalas se referem a domínios específicos (Competências Escolar, Aceitação Social, Competência Atlética, Aparência Física e Atitude Comportamental) e uma outra destina-se à avaliação da Auto-Estima Global (Martins, Peixoto, Mata, & Monteiro, 1995).

Os conteúdos de cada domínio são: (a) Competência Escolar – tenta mostrar a forma como a criança se percepciona relativamente à sua performance escolar; (b) Aceitação Social – pretende avaliar o grau de aceitação da criança pelos seus colegas/como é que ela se sente em termos de popularidade; (c) Competência Atlética – refere-se ao modo como a criança se percepciona ao nível das suas actividade desportivas ou jogos ao ar livre; (d) Aparência Física – pretende verificar o grau de satisfação da criança relativamente ao seu aspecto, peso, tamanho, etc.; (e) Atitude Comportamental – refere-se à forma como a criança se sente em relação ao modo como age, se faz as coisas correctamente, se age de acordo com o que esperam dela, se evita problemas, etc.; e (f) Auto-Estima Global – pretende analisar se a criança gosta dela enquanto pessoa, se é feliz, se se sente feliz com aquilo que é (Martins et al., 1995).

A escala utilizada no presente estudo foi adaptada para a população Portuguesa por Martins et al. (1995) e tem como principal objectivo analisar a forma como os sujeitos percepcionam a sua competência, em diferentes domínios, assim como avaliar a sua auto-estima (Martins et al.). De facto, optou-se pelo Perfil de Auto-Percepção, por permitir uma avaliação multidimensional do auto-conceito.

Os itens são apresentados de forma a que metade reflicta uma alta competência e a outra metade reflicta uma baixa competência; os itens de cada subescala não se apresentam consecutivamente, sendo apresentados de forma alternada (Martins et al., 1995). O formato da escala permite uma opção dupla, dando assim oportunidade ao sujeito de tomar duas decisões: é-lhe pedido que escolha o tipo de criança com que se assemelha mais, assim como o grau de acordo com a afirmação escolhida ("Sou tal e qual assim" ou "Sou um bocadinho assim") (Martins et al.). Desta forma, segundo Martins et al., minimiza-se a tendência para respostas socialmente desejáveis. No que diz respeito à cotação, os itens são cotados de 1 a 4, indicando este último valor uma alta competência percebida (Martins et al.). Posteriormente, somam-se os valores obtidos em cada subescala, sendo possível obter seis resultados diferentes que variam de 6 a 24 pontos, permitindo assim traçar o perfil do sujeito nos diferentes domínios avaliados (Martins et al.).

Procedimento

A opção (unicamente) pelo Perfil de Auto-Percepção prendeu-se com o objectivo do estudo (por si só avaliava o que se pretendia) e a extensão da avaliação (a redução do número de itens visava evitar que os participantes perdessem a concentração, evitando a possibilidade de viés dos resultados, e rentabilizar o tempo permitido para a ocupação dos consultórios no Hospital).

Após a selecção do instrumento, obtiveram-se as autorizações necessárias (dos autores da versão Portuguesa do SPPC, Conselho Executivo da Escola, docentes, Presidente do Conselho de Administração do Hospital Santa Maria Maior, S.A. (actualmente E. P. E.) – Barcelos e responsáveis pela Consulta de Obesidade Juvenil), bem como os consentimentos informados (participantes e seus encarregados de educação).

Os participantes do grupo de comparação responderam, voluntariamente, aos questionários em ambiente natural (sala de aula), tendo lugar a auto-administração colectiva. Os professores estiveram presentes durante as administrações, contribuindo para um ambiente conveniente de administração. Os participantes da amostra clínica também preencheram os instrumentos voluntariamente, no horário das consultas de Pediatria e Nutrição, sendo que os seus encarregados de educação aguardaram no exterior do consultório onde decorriam as administrações (individuais), para que a criança se sentisse mais à vontade, evitando a introdução de viés.

Todos os instrumentos foram administrados segundo a mesma ordem: primeiro o questionário sócio-demográfico e clínico e depois o Perfil de Auto-Percepção do SPPC adaptado por Martins et al. (1995). Foram retiradas todas as dúvidas expressas. O tempo total das administrações foi de aproximadamente 35 minutos.

Ainda que as características da amostra clínica pretendida prolongassem o período de recolha de dados (a não adesão às consultas é elevada), nenhuma das crianças ou encarregados de educação que compareceram à consulta recusaram participar no estudo.

Resultados

A análise da Tabela 2 permite verificar que as crianças obesas deste estudo percepcionavam-se como menos competentes ao nível das actividades desportivas, de forma mais negativa em relação ao seu aspecto físico, mas de forma mais positiva em relação à forma como agem, do que as crianças não obesas.

Relativamente às dimensões Competência Escolar, Aceitação Social e Auto-Estima Global, não se verificaram diferenças estatisticamente significativas entre os dois grupos de crianças avaliados.

É ainda de sublinhar a variabilidade interindividual constatada. Assim, no que toca ao grupo de crianças obesas, foram atingidos os valores mínimo na dimensão Competência Atlética e máximo nas dimensões Competência Escolar, Aceitação Social, Atitude Comportamental e Auto-Estima Global. No que concerne o grupo de crianças não obesas, o valor mínimo foi atingido nas dimensões Competência Atlética e Aparência Física e o máximo nas dimensões Competência Atlética, Aparência Física, Atitude Comportamental e Auto-Estima Global.

Discussão

Os resultados do presente estudo relativos à Competência Atlética e Aparência Física estão de acordo com o que está descrito na literatura. De facto, a evidência empírica tem revelado as dificuldades que as crianças obesas têm em se sentirem em igualdade de condições para competir com crianças do seu meio (Campos et al., 1996). A criança obesa é frequentemente desencorajada a participar em jogos e em actividades desportivas (Apfeldorfer, 1992/1997; Hibert & Hibert, 1974/1975; Mello et al., 2004), na medida em que este tipo de actividades exige força e flexibilidade (Mello et al.), sendo o excesso de peso sentido pela criança obesa como um incómodo em quase todas as suas actividades, contribuindo para que ela se sinta menos competente ao nível das actividades físicas (Hibert & Hibert, 1974 -1975).

Por outro lado, a criança obesa tende a sentir-se menos satisfeita com a sua aparência física. Assim, vários estudos realizados no contexto da obesidade (infantil) revelam uma tendência dos indivíduos obesos para se percepcionarem de forma negativa em relação à sua aparência física (Barlow, 1993/1999; Bell & Morgan, 2000, citado por Barbosa, 2001; Bosch et al., 2003; Buela-Casal & Caballo, 1991; Israel & Ivanova, 2002; Kimm et al., 1997). Os resultados obtidos em relação à Competência Atlética e Aparência Física poderão estar relacionados com sentimentos de insatisfação e depreciação, causados pelas imposições de uma sociedade que cultiva um ideal de magreza, acabando por estigmatizar a criança, fazendo-a acreditar que ela é diferente e inferior às outras crianças (Barlow, 1993/1999; Campos et al., 1996; Ricciardelli & McCabe, 2001; Schwatz & Brownell, 2004).

No que respeita ao resultado relativo à Atitude Comportamental, este não corrobora a evidência descrita na literatura: de acordo com Campos et al. (1996), a acentuada exigência familiar e a falta ou diminuição de disponibilidade da criança obesa em relação às informações do meio ambiente podem levá-la a pensar que o seu comportamento está aquém das expectativas. Este resultado poderá dever-se ao "facto" da criança obesa poder sentir-se mais desvalorizada em determinados domínios em vez de outros, ou "esforçar-se" mais relativamente a certos domínios, melhorando a sua percepção de competência neles, de forma a "equilibrar" outros domínios em que a sua percepção (influenciada pelos outros) é mais negativa. Este resultado, bem como os resultados relativos à Competência Escolar, Aceitação Social e Auto-Estima Global, carece de exploração futura, até porque não está de acordo com a literatura consultada (cf. Barlow, 1993/1999; Bell & Morgan, 2000, citado por Barbosa, 2001; Bosch et al., 2003; Buela-Casal & Caballo, 1991; Campos et al., 1996; Hibert & Hibert, 1974/1975; Israel & Ivanova, 2002; Kimm et al., 1997; Muller, 1999, citado por Barbosa, 2001; Ogden, 1998/1999).

Ainda que os valores médios alcançados pelos dois grupos ao nível da Competência Escolar, Aceitação Social e Auto-Estima Global não sejam estatisticamente diferentes, é curioso verificar que os valores médios nas subescalas Competência Escolar e Aceitação Social são mais elevados no grupo de crianças obesas. Inversamente, o valor médio na subescala Auto-Estima Global é mais elevado no grupo de crianças não obesas. Mesmo que as diferenças entre os grupos tivessem atingido a significância estatística, continuariam a não ser na direcção esperada (de acordo com a literatura consultada e com a prática clínica). Mais uma vez se coloca a hipótese (a testar futuramente) da existência de mecanismos cognitivos compensatórios nas crianças obesas, que não tem, contudo, reflexo em termos afectivos (auto-estima).

No presente estudo, existem, porém, pontos críticos que impõem limites a uma ampliação da análise dos dados. A composição da amostra, com um número reduzido de participantes e desequilibrada relativamente às variáveis sócio-demográficas consideradas, exige cuidados na interpretação dos dados. O facto de se ter recorrido a escalas e questionários pode ter conduzido a respostas defensivas, em que os inquiridos atribuem valores considerados socialmente desejáveis. Mais especificamente, o facto de se ter optado por administrar apenas o Perfil de Auto-Percepção, podendo, desta forma, dificultar, do ponto de vista clínico, a planificação da intervenção ao nível do auto-conceito, constitui uma outra limitação do presente estudo. Ainda no que toca ao procedimento, o diferente contexto de recolha dos dados e a presença ou não de outro(s) significativo(s) podem ter enviesado os relatos dos participantes. Relativamente à análise dos dados, não é possível estabelecer relações de causa e efeito, devido às provas efectuadas, podendo outros factores não medidos contribuir para as relações encontradas (e não encontradas).

Posto isto, sugere-se a replicação deste estudo com uma amostra mais vasta e mais equilibrada (com estratificação em termos sócio-demográficos), bem como o planeamento de estudos longitudinais. Considera-se também importante a utilização de outros instrumentos de avaliação (multidimensional) do auto-conceito, permitindo um melhor conhecimento de outros domínios. Seria pertinente, em futuros estudos, administrar, juntamente com o Perfil de Auto-Percepção, a Escala de Importância, para que fosse avaliado o grau de importância que a criança atribui a cada um dos domínios específicos do auto-conceito, facilitando assim a planificação da intervenção ao nível do auto-conceito. O recurso à Escala de Importância poderia também ajudar a fazer (um outro) sentido dos resultados. Seria interessante associar a questionários e a escalas outros métodos de avaliação (por exemplo, observação, relatos de outros significativos) e analisar o grau de acordo entre as metodologias. Também seria potencialmente útil (em termos de investigação e clínicos) conhecer as atribuições dos sujeitos subjacentes às suas auto-percepções.

Seria também interessante analisar até que ponto o contexto de avaliação influencia os resultados dos indivíduos. E, porque não, tentar clarificar a direcção da (possível) relação: é o auto-conceito (/seus componentes) que é influenciado pela obesidade ou é ele que influencia o comportamento dos indivíduos colocando-os em maior risco de desenvolver este quadro clínico (cf. estratégias de coping inadaptadas)?

Propõe-se que, em trabalho conjunto, por exemplo, com professores (no caso de crianças não obesas) e com profissionais de saúde (no caso de crianças obesas), se procure ensaiar a promoção do auto-conceito e analisar os efeitos ocorridos, tendo em conta as variáveis sócio-demográficas, permitindo desta forma detectar oscilações dos resultados atribuíveis à intervenção. Neste contexto, é de sublinhar a variabilidade interindividual verificada, que relembra que as crianças não obesas podem ter um baixo auto-conceito (em alguns domínios) e que as crianças obesas podem ter um auto-conceito bastante elevado (em alguns domínios).

Actualmente, é cada vez mais reconhecida a necessidade de implementar estratégias preventivas, o mais cedo possível, pois prevenir a obesidade infantil (e o seu agravamento) é uma forma de promover a saúde física e psíquica da criança. Neste contexto, urge avaliar o auto-conceito enquanto recurso para a compreensão dos aspectos psicológicos relativos à obesidade.

Recebido: 10/04/2006

1ª revisão: 14/09/2006

Aceite final: 23/10/2006

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Dez 2007
    • Data do Fascículo
      2007

    Histórico

    • Aceito
      23 Out 2006
    • Revisado
      14 Set 2006
    • Recebido
      10 Abr 2006
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