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Homoparentalidade masculina: revisando a produção científica

Homoparenthood: a review of scientific production

Resumos

Este estudo teve por objetivo compreender de que modo a parentalidade homossexual masculina vem sendo investigada na literatura científica nacional e internacional. Por meio de uma revisão sistemática nas bases MedLine, SciELO, PsycINFO e CINAHL, de 2000 a 2011, foram recuperados 12 artigos. No contexto internacional, os estudos se concentram em delineamentos empíricos focalizando casais homossexuais e seus filhos. No Brasil, predominam estudos teóricos sobre a família homoparental. A Psicanálise emerge como principal referencial teórico. São necessárias pesquisas empíricas no contexto brasileiro, haja vista a aprovação da união estável entre pessoas do mesmo sexo e abertura de jurisprudência para adoção por esses casais. Outras abordagens teóricas são requeridas para que se possa compreender o contexto desenvolvimental das famílias e casais de mesmo sexo com crianças em um cenário social em permanente transformação.

Parentalidade; paternidade; homoparentalidade; homossexualidade; literatura de revisão


This study aimed to understand how homoparenthood has been investigated in national and international scientific literature. We carried out a systematic literature review in MedLine, SciELO, PsycINFO and CINAHL from 2000 to 2011 and 12 articles were retrieved. Most of the international production consists of empirical studies with gay couples and their children. In Brazil theoretical studies about homoparental family are dominant. Psychoanalysis emerges as the main theoretical reference used. It is highlighted that empirical studies are required in the Brazilian context given the recent recognition of stable unions between same-sex people and the legal context that makes adoption possible by same-sex couples. Other theoretical approaches seem to be required for understanding the developmental context of same-sex families or same-sex couples with children in a constantly changing social setting.

Parenting; parenthood; homoparenthood; homosexuality; literature review


PSICOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO

Homoparentalidade masculina: revisando a produção científica

Homoparenthood: a review of scientific production

Yurín Garcêz de Souza SantosI,* * O presente estudo recebeu apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado de São Paulo (FAPESP), por meio da concessão de bolsa de Iniciação Científica ao primeiro autor ( processo nº 2012/11082) , sob orientação do terceiro autor, que é bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq. ; Fabio Scorsolini-CominII; Manoel Antônio dos SantosI

IUniversidade de São Paulo, Ribeirão Preto, São Paulo, Brasil

IIUniversidade Federal do Triângulo Mineiro, Uberaba, Minas Gerais, Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Yurín Garcêz de Souza Santos Departamento de Psicologia, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo Monte Alegre, Ribeirão Preto, SP, Brasil 14040-901 E-mail: yuringarcez@yahoo.com.br e masantos@ffclrp.usp.br

RESUMO

Este estudo teve por objetivo compreender de que modo a parentalidade homossexual masculina vem sendo investigada na literatura científica nacional e internacional. Por meio de uma revisão sistemática nas bases MedLine, SciELO, PsycINFO e CINAHL, de 2000 a 2011, foram recuperados 12 artigos. No contexto internacional, os estudos se concentram em delineamentos empíricos focalizando casais homossexuais e seus filhos. No Brasil, predominam estudos teóricos sobre a família homoparental. A Psicanálise emerge como principal referencial teórico. São necessárias pesquisas empíricas no contexto brasileiro, haja vista a aprovação da união estável entre pessoas do mesmo sexo e abertura de jurisprudência para adoção por esses casais. Outras abordagens teóricas são requeridas para que se possa compreender o contexto desenvolvimental das famílias e casais de mesmo sexo com crianças em um cenário social em permanente transformação.

Palavras-chave: Parentalidade, paternidade, homoparentalidade, homossexualidade, literatura de revisão.

ABSTRACT

This study aimed to understand how homoparenthood has been investigated in national and international scientific literature. We carried out a systematic literature review in MedLine, SciELO, PsycINFO and CINAHL from 2000 to 2011 and 12 articles were retrieved. Most of the international production consists of empirical studies with gay couples and their children. In Brazil theoretical studies about homoparental family are dominant. Psychoanalysis emerges as the main theoretical reference used. It is highlighted that empirical studies are required in the Brazilian context given the recent recognition of stable unions between same-sex people and the legal context that makes adoption possible by same-sex couples. Other theoretical approaches seem to be required for understanding the developmental context of same-sex families or same-sex couples with children in a constantly changing social setting.

Keywords: Parenting, parenthood, homoparenthood, homosexuality, literature review.

As noções de família e sexualidade são categorias socialmente construídas e, em consequência dessa injunção, carregam historicamente as tensões e marcas dos embates teóricos e metodológicos que acompanham os processos sociais, culturais e políticos. Nesse cenário mutável, a homossexualidade é uma das categorias que mais têm gerado debates e possibilitado a assunção de diferentes discursos e sentidos na contemporaneidade (Andrade & Ferrari, 2009; Mello, 2005; Passos, 2005; Perelson, 2006; Salomé, Espósito, & Moraes, 2007; Tavares, Souza, Ferreira, & Bomtempo, 2010; Toledo, 2008; Zambrano, 2006). Um dos desdobramentos mais notáveis da crescente visibilidade que a homossexualidade vem adquirindo nas últimas décadas é o questionamento do conceito tradicional de família.

A família nuclear, modelo inspirador da sociedade ocidental, está se tornando cada vez mais uma experiência minoritária (Uziel et al., 2006), dado o aparecimento de arranjos familiares distintos na atualidade. Apesar dessa evidência, a ideia tradicional de famílias formadas a partir do casamento heterossexual, monogâmico e procriador, ainda figura como norma instalada no imaginário coletivo, sendo as demais configurações familiares geralmente classificadas a partir dessa referência. Além disso, a noção moderna de família pressupõe a existência de crianças em seu processo de legitimação moral, social e jurídica (Souza, 2006), o que deu origem ao modelo da família nuclear. Tal configuração de família tende a ser vista como imutável, inequívoca e natural, o que a descaracteriza como instituição social e historicamente construída, assim como ocorre com a compreensão dominante que se tem frente à homossexualidade (Santos & Moscheta, 2006).

De acordo com Perroni e Costa (2008), essa concepção excludente, que privilegia um modelo único de família, é fonte geradora de conflitos, preconceitos e estigmatizações em relação a qualquer outro arranjo que destoe desse padrão considerado "natural" e "correto". Dentro dessa visão de mundo e levando-se em consideração a luta dos movimentos sociais em busca da legitimação de sua condição, Souza (2006) afirma que a homossexualidade vem se tornando um lugar de paródia contestadora do caráter natural da heterossexualidade, sendo também uma "modalidade" do modelo idealizado.

Ainda hoje o Código Civil brasileiro (Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002) reconhece a entidade familiar como uma união estável ou em matrimônio entre um homem e uma mulher, ou como uma comunidade que tenha em sua formação qualquer um dos pais e seus descendentes. Contudo, a entidade familiar reconhecida por esse ordenamento jurídico apresenta uma enumeração simplesmente exemplificativa, que não permite excluir qualquer arranjo que figure dentro dos quesitos de afetividade, estabilidade e ostensividade. Nos últimos anos, a jurisprudência no Brasil passou a atentar para a realidade vivencial, atribuindo importância aos laços afetivos, o que produz uma nova figura política: a filiação socioafetiva (Manzi-Oliveira, 2009).

No início de 2011, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu, por unanimidade de votos, a união estável entre pessoas do mesmo sexo no Brasil. Depois do pedido do governador do estado do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral (PMDB), para que os funcionários públicos do estado que se autodeclaravam homossexuais pudessem ter seus benefícios estendidos a seus companheiros e de uma ação da Procuradoria Geral da República para que se passassem a admitir casais homoafetivos como "entidade familiar", pela primeira vez o STF se manifestou quanto ao tema e aprovou a união civil entre pessoas do mesmo sexo, em sessão histórica de cinco de maio de 2011. Ainda em 2011, uma decisão histórica do Supremo Tribunal de Justiça reconheceu o casamento civil entre duas mulheres. Em outros países, como na Argentina, em 2010, foi aprovado o casamento de homossexuais, decisão tomada também em Portugal no mesmo ano e já reiterada em outros países desde 2001, quando o País Baixo tomou a mesma decisão, tornando-se o primeiro país no mundo a permitir o casamento entre pessoas do mesmo sexo.

A partir do cenário desenhado por esses marcos contemporâneos, discutiremos de que modo a categoria paternidade vem sendo abordada em face dos recentes embates em prol dos direitos dos homossexuais à parentalidade.

Repensando a Paternidade no Cenário Contemporâneo

Como pontuado por Zornig (2010), parentalidade é um termo relativamente recente, que começou a ser utilizado na literatura psicanalítica francesa a partir da década de 1960 com o intuito de marcar a dimensão de processo e construção no exercício da relação entre pais e filhos. Ademais, de acordo com Zambrano (2006), quatro elementos não necessariamente concomitantes se desdobram quando são pensados os laços familiares que ligam um adulto a uma criança: o vínculo biológico referente à concepção e origem genética; o parentesco, que diz respeito ao vínculo estabelecido entre dois indivíduos com relação a uma genealogia e que determina seu pertencimento a um grupo; a filiação, que se refere ao reconhecimento jurídico desse pertencimento de acordo com as leis sociais estabelecidas no grupo; e a parentalidade, que diz respeito ao exercício da função parental, ou seja, os cuidados básicos com alimentação, vestuário, educação e saúde, reproduzidos no cotidiano das famílias.

Amparados nas ideias de Foucault (1982), Madlener e Dinis (2007) afirmam que a homossexualidade não pode ser definida como uma prática estritamente sexual, o que excluiria quaisquer outros sentimentos que, supostamente, seriam próprios apenas dos relacionamentos heterossexuais. Frequentemente, somente pelo fato de se assumir homossexual a pessoa já se vê submetida a processos de rejeição e discriminação social, como descrito nos estudos de Foucault sobre a construção histórica das estratégias de controle a partir das práticas de disciplinarização. Os discursos contemporâneos acerca das classificações/categorias sexuais envolvem ações de um conjunto de agências responsáveis pelas intervenções normalizadoras, como família, igreja e escola. Essas instituições normalizadoras se esmeram na tarefa de disciplinarização dos corpos e subjugação das subjetividades, a partir das tecnologias de autogoverno, que se desdobram em todas as esferas da vida social (Foucault, 1999). Há, ainda, outras agências, como o discurso acadêmico-científico, incumbidas de produzir e sistematizar um saber em torno da patologização daqueles a quem as instituições normalizadoras excluíram (Medrado, Lyra, Azevedo, & Noca, 2010), como os homossexuais. Ao tomar a decisão de viver uma vida conjugal, o preconceito pode se tornar ainda mais acentuado, pois não é dado ao par homossexual o direito de ser reconhecido como um casal, uma vez que o conceito jurídico de "casal", pelo menos até a referida resolução do STF de 2011, envolve uma parceria entre um homem e uma mulher.

Saffioti (1987) mostra que o pai deve, ou pelo menos deveria, ir além da função de provedor. E mais ainda: que o homem deveria refletir sobre essa dimensão da vida, que não se resume apenas ao trabalho de alimentar, banhar ou trocar as fraldas do bebê, por exemplo, mas inclui também atividades extremamente prazerosas, como conviver com os filhos, observar e contribuir para o seu processo de desenvolvimento, apreender a perspectiva peculiar da criança, seus medos, ansiedades e carências, assim como sua espontaneidade, sua maneira direta de expressar emoções e demonstrar suas necessidades. Isso possibilita ao homem pai repensar a sua própria vida, "experenciar" seus afetos e reavaliar os valores que pautam sua vida. Dessa forma, o convívio entre pais e filhos deve ser entendido como benéfico não apenas para as crianças, mas, sobretudo, para o homem empenhado no exercício da função paterna. Esta atitude não é apenas um dever, mas, antes, um direito do homem.

A maneira pela qual um homem se relaciona com seus filhos é moldada por elementos culturais, econômicos, sociais, de gênero e etnia, que estabelecem e atestam o que é ser homem, qual sua função e seu papel dentro de um determinado contexto sócio-histórico. Essas questões têm sido consideradas em diferentes produções, notadamente no cenário brasileiro, também destacando que o saber científico produz diferentes sentidos sobre as paternidades, o que possibilitaria a produção de rupturas e transformações no modo de se compreender essa noção (Hennigen, 2010; Staudt & Wagner, 2008; Valente, Medrado, & Lyra, 2011). No marco definido por esses elementos, a paternidade pode ser descrita como função masculina, "coisa de homem", que delineia a identidade no sentido de que, se esse homem é pai, ele é, de fato, homem. Outro aspecto a ser considerado quando nos propomos a delinear a noção de pai é o caráter polissêmico da paternidade, o que nos remete aos diferentes discursos socialmente disponíveis sobre o que ser pai, além das considerações acerca de como as identidades paternas vão se modelando ao longo do tempo por não estarem associadas unicamente ao aspecto biológico, mas a um repertório de sentidos em constante revisão (Beltrame & Bottoli, 2010; Bruschini & Ricoldi, 2012; Costa & Rossetti-Ferreira, 2009).

Do ponto de vista sociocultural, é preciso ter cuidado para não reproduzir, involuntariamente, certas dicotomias consagradas pela reiteração, que associam o homem à cultura e a mulher à natureza. Essa concepção está presente em alguns estudos sobre a construção das masculinidades, que sustentam que a paternidade afirmaria e confirmaria a masculinidade, na medida em que oferece um dos caminhos mais legitimados para se conduzir um homem ao universo masculino adulto, enquanto que, na mulher, a condição feminina seria reafirmada pela maternidade. Uma das consequências dessa crença é a de que, por ser contestado com certa facilidade no caso do homem, esse caminho de mostrar ao mundo que se é homem via paternidade seria um tanto quanto mais complexo (Moris, 2008). Por essa visão, o imperativo de ter filhos teria, para os homens, o valor de reafirmar, perante a coletividade, o exercício da masculinidade.

Essas construções teóricas acerca da masculinidade são fundamentais para a discussão presente na literatura sobre a parentalidade homossexual, justamente por questionarem de modo contundente os sentidos sobre o ser homem na contemporaneidade (Medrado et al., 2010; Nolasco, 2001). A família homoparental sugere o incremento da flexibilização nas relações e papéis sociais de gênero, suscitando questionamentos sobre os modos de ser feminino e masculino, ao lado das profundas alterações operadas no conceito consagrado de família. Essa flexibilização de papéis também pode ser encontrada em outras configurações familiares contemporâneas. A parentalidade, tanto quanto a filiação, é construída no âmbito do relacionamento estabelecido entre pais e filhos. Nas novas configurações familiares, observa-se cada vez mais que a parentalidade tem sido exercida por várias pessoas, instaurando diversos "pais" e "mães" (Garbar & Theodore, 2000).

A discussão sobre homoparentalidade masculina necessita ser confrontada com uma questão de fundo, que é a do dever e do direito de ser pai. Novos questionamentos têm emergido no Direito de Família, ao se propor a aplicação aos homossexuais dos mesmos direitos concedidos aos heterossexuais, como o reconhecimento de suas relações socioafetivas como entidades familiares e o direito à homoparentalidade. Na perspectiva do discurso jurídico, a família homoafetiva não pode sofrer limitações no que concerne ao seu reconhecimento ou direito de proteção pelo Estado, por ter o mesmo grau de dignidade de outros arranjos familiares (Lima, 2011). Como a ciência jurídica estabelece que a todo direito corresponde um dever, a possibilidade legal - ainda não consolidada - de adoção de crianças por casais homoafetivos também implica em idêntico cortejo de deveres impostos a todos os pais adotivos. A partir dessa linha argumentativa, apresentaremos, a seguir, como a questão da parentalidade homossexual tem sido abordada na literatura científica.

A (In)Visibilidade da Parentalidade Homossexual na Literatura Científica

Diante da visibilidade crescente que é conferida aos sujeitos homossexuais que se empenham na organização de outras possibilidades de configurações familiares diferentes daquela considerada "natural", o conceito de família parece se encontrar na iminência de ser repensado e reavaliado (Grossi, 2003; Mello, 2005; Moris, 2008; Souza, 2006). As novas configurações familiares se apresentam como um desafio para áreas do conhecimento como a Psicologia e a Antropologia, que têm um de seus campos de estudos mais fecundos na área de gênero e parentesco; a Psicanálise, que discute o registro simbólico como formado a partir da significação atribuída à diferença entre os sexos; e o Direito, que também tem o papel de não deixar à margem do Estado as novas realidades encontradas e constantemente reinventadas no cotidiano (Zambrano, 2006).

Os estudos científicos produzidos no contexto nacional têm aumentado nos últimos anos, embora sua expressão no cenário internacional ainda seja restrita. O estudo de Vecho e Schneider (2005) confirmou que a maior parte dos estudos sobre a temática provém dos Estados Unidos, seguido pelo Reino Unido, Bélgica, Dinamarca, França e Canadá, sendo que o Brasil não é mencionado na produção científica dos últimos 30 anos. Essa lacuna impõe a necessidade de que pesquisas sejam conduzidas por pesquisadores brasileiros, a exemplo do que pode ser vislumbrado no cenário internacional (Dortier, 2002; Langouët, 1998; Pennings, 2011; Solis-Ponton, 2002).

Corroborando essa informação, Grossi (2003) afirma que a temática de filiação de pessoas homossexuais tem sido alvo de muitas pesquisas em países de primeiro mundo. Entretanto, esse tema tem comparecido apenas esporadicamente em estudos acadêmicos no Brasil. Ainda no que diz respeito aos estudos publicados no país, Moris (2008) alega que investigações nas quais o foco é colocado no exercício da paternidade, e que investiguem os sentimentos e significados que os pais atribuem ao seu papel, são escassas e pouco têm chamado a atenção da comunidade científica nacional.

O conceito de homoparentalidade é relativamente novo, sendo um neologismo criado pela Associação de Pais e Futuros Pais Gays e Lésbicas, em Paris, no ano de 1997, que se refere ao fato de um adulto que se reconhece homossexual ser ou pretender ser pai ou mãe de uma criança (Zambrano, 2006). No que concerne ao conhecimento científico relacionado especificamente ao tema, é reconhecida a escassez de literatura. Contudo, nos últimos anos tem crescido o interesse em pesquisas sobre a homossexualidade, seja o enfoque dado a comportamentos de pessoas homossexuais, à compreensão de valores específicos do universo das relações homoafetivas ou à investigação de campos de luta política e de direitos humanos, ou ainda a constituição dos processos de subjetivação e identidade desses indivíduos (Prado & Machado, 2008; Uziel et al., 2006).

Nesse sentido, algumas questões têm emergido recentemente como perguntas de investigação que demandam a atenção dos pesquisadores do campo da diversidade sexual, tais como: "qual o sentido outorgado por casais homossexuais masculinos e femininos ao seu papel de pai/mãe?"; "como esses pais homossexuais vivenciam o exercício da parentalidade no cotidiano?". No caso da homossexualidade masculina, de acordo com Manzi-Oliveira (2009), as pesquisas dedicadas ao reconhecimento dos modos pelos quais é exercido o papel de pai em diferentes configurações familiares são relativamente escassas e têm, na maioria das vezes, seu foco colocado em um grupo social mais amplo ou mesmo familiar, e não especificamente na construção da paternidade.

A partir dos argumentos expostos e considerando a necessidade de promover um delineamento da produção acerca do tema, este estudo teve por objetivo compreender de que modo a homoparentalidade masculina vem sendo investigada na literatura científica nacional e internacional, destacando as principais contribuições das pesquisas, bem como as lacunas existentes nessa área do conhecimento.

Método

Tipo de Estudo. Trata-se de uma revisão integrativa, que busca oferecer uma leitura crítica da literatura científica, na qual são identificados e selecionados estudos com rigor e método científico (Mendes, Silveira, & Galvão, 2008). O propósito é delinear um perfil das pesquisas publicadas. Esse tipo de revisão contribui para a discussão acerca dos resultados de pesquisa disponíveis e para o desenvolvimento de investigações futuras. Possui tanto uma dimensão de categorização, de caráter descritivo, como uma faceta de análise crítica, ou seja, que ultrapassa a simples explicitação daquilo que já se produziu, possibilitando uma leitura atenta da realidade que aponta lacunas e necessidades de investigação ainda não suficientemente contempladas pelos pesquisadores, tanto no contexto nacional como internacional. Estudos de revisão integrativa são importantes formas de promover diálogo entre diferentes áreas do conhecimento, de modo a potencializar pesquisas futuras (Creswell, 2010; Trzesniak & Koller, 2009).

Bases Indexadoras. Este estudo envolveu uma busca sistemática nos seguintes indexadores eletrônicos: Med-Line, SciELO, PsycINFO e CINAHL. Os descritores utilizados foram: homossexualidade, paternidade e homoparentalidade, e seus correspondentes em inglês: homosexuality, parenthood e homosexual parenting. É importante esclarecer que o termo homosexual parenting foi utilizado por ser o descritor, em inglês, que mais se aproxima do termo homoparentalidade. Há que se destacar que o termo homoparentalidade ainda não faz parte das terminologias em Psicologia e nas Ciências da Saúde, conforme busca no portal da Base Virtual em Saúde. Foram realizados todos os cruzamentos possibilitados pela combinação dos termos utilizados, a partir do operador booleano "and" (homossexualidade "e" paternidade; homossexualidade "e" homoparentalidade; paternidade "e" homoparentalidade).

Critérios de Inclusão. Os critérios estabelecidos para a inclusão dos estudos foram: (a) artigos indexados; (b) redigidos nos idiomas português, inglês ou espanhol; (c) publicados no período de janeiro de 2000 a julho de 2011; (d) com temática pertinente ao objetivo da revisão. A seleção apenas de artigos indexados visou a cotejar produções que passam, necessariamente, por um processo de avaliação por pares, com rigoroso controle de qualidade. A adoção desse critério baseou-se em outras revisões, com semelhante grau de rigor, que indicaram a necessidade de se tomar esse cuidado como balizador de uma condição de produção em dado período (Mendes et al., 2008). A seleção de artigos publicados entre 2000 e 2011 visou a abarcar apenas publicações recentes, a fim de traçar um retrato mais fiel da produção contemporânea, bem como apontar possíveis lacunas e aberturas para novos estudos. Não foram feitas restrições em relação ao tipo de delineamento metodológico (estudos teóricos, empíricos, de revisão, estudos de caso ou outros), nem em relação às abordagens teóricas ou às áreas nas quais as pesquisas foram desenvolvidas. Assim, foram incluídas publicações de áreas como Psicologia, Antropologia, Direito e Sociologia.

Critérios de Exclusão: (a) livros, capítulos de livro, resenhas, cartas, notícias, dissertações e teses; (b) temática distante do objetivo do trabalho; (c) artigos publicados antes de 2000. Como exemplo de publicações muito distantes do tema investigado, podem ser mencionados estudos que traziam apenas tangencialmente a questão da paternidade em pessoas homossexuais, sem investigá-la como um dos objetivos propostos, pois tratavam prioritariamente de outras temáticas.

Procedimento. O levantamento bibliográfico ocorreu em julho de 2011. Em um primeiro momento, foi realizada uma leitura minuciosa dos resumos encontrados a partir dos unitermos utilizados e da combinação dos mesmos, excluindo-se os trabalhos que não se enquadravam nos critérios de inclusão elencados. Após uma primeira seleção realizada pelo exame dos resumos, os estudos selecionados foram recuperados, examinados e lidos na íntegra. Posteriormente, em função da maior ou menor proximidade com o tema de interesse, uma nova seleção foi realizada, restringindo-se a revisão apenas aos artigos diretamente relacionados à parentalidade homossexual. Foram incorporadas à revisão apenas as publicações recuperadas nessa última seleção, que constituíram o corpus de análise do presente estudo.

Foram encontrados 43.625 resumos, que correspondiam à somatória de todas as buscas realizadas, seja com os descritores tomados isoladamente ou a partir de suas combinações, nas quatro bases indexadoras utilizadas para este estudo. Posteriormente, segundo os critérios de inclusão/exclusão adotados e levando-se em consideração as combinações de descritores, a maior parte desse montante foi descartada por não ser condizente com o assunto ou por tratarem da temática apenas tangencialmente. Desse modo, muitos artigos foram excluídos por não abordarem o tema ou por estarem mais preocupados com questões colaterais, como a assunção da homossexualidade, o avanço e tratamento da infecção por HIV-aids, ou ainda, estudos focados na orientação sexual dos filhos, mas não sobre os pais homossexuais, entre outros motivos de exclusão. Isso justifica boa parte da redução no número de artigos selecionados. Outra parcela dos estudos foi excluída por constituírem artigos repetidos ou por não terem sido encontrados nos cruzamentos dos unitermos utilizados na pesquisa bibliográfica, o que mostra que não tratavam da intersecção dos dois temas investigados: parentalidade e homossexualidade masculina. Sendo assim, foram excluídos artigos que tratavam apenas da paternidade como categoria heterossexual e também aqueles que não mencionavam, em pesquisas sobre a homossexualidade, a questão da parentalidade. Também foram excluídos muitos capítulos e outros tipos de publicações correlatas. Estudos encontrados em mais de uma base indexadora foram computados uma única vez.

A partir do exposto, foram selecionados, recuperados e analisados na íntegra os artigos que, após merecerem análise criteriosa, foram categorizados. Essa categorização favoreceu a reflexão crítica sobre as dimensões cruciais que caracterizam a produção científica sobre a temática.

Resultados e Discussão

A presente revisão de literatura foi composta por 12 artigos, sendo nove obtidos a partir do cruzamento realizado entre todos os descritores elencados para a busca. Os outros três artigos foram selecionados por meio da busca com os unitermos em português na base SciELO. A base que ofereceu resultado mais expressivo foi a PsycINFO, com cinco artigos selecionados, seguida por SciELO e MedLine, com três estudos destacados em cada uma, e CINAHL, com apenas um artigo recuperado. Dos artigos encontrados e selecionados, quatro são de autores nacionais, sendo um publicado em inglês; sete têm sua origem nos Estados Unidos e apenas um na Inglaterra, corroborando os resultados obtidos por Vecho e Schneider (2005). Apenas dois artigos foram publicados antes de 2005 e, em 2011, apenas uma publicação foi encontrada. Os únicos autores que tiveram mais de uma publicação selecionada nesta revisão são pesquisadores estadunidenses da Clark University e da University of Massachusetts, que aparecem como coautores de duas publicações, e da University of Virginia, também com duas publicações selecionadas.

Com relação às abordagens teóricas privilegiadas nos estudos, predominaram referenciais relacionados à Psicanálise, à Antropologia e ao Direito. Um dos estudos apresentava uma abordagem ecológica. Quanto ao tipo de estudo, dos 12 artigos selecionados, quatro eram teóricos e discutiam questões referentes às formas de constituição das famílias homoparentais (Telingator & Patterson, 2008; Zambrano, 2006), à mudança no principal paradigma da família, que é a diferenciação sexual (Passos, 2005; Perelson, 2006) e à necessidade de revisão dos pressupostos psicanalíticos, centrados na diferenciação sexual como condição precípua para o acesso dos filhos à simbolização (Passos, 2005; Perelson, 2006; Zambrano, 2006); dois estudos eram revisões de literatura e seis artigos eram empíricos. Cabe ressaltar que todos os artigos de revisão e os estudos empíricos foram publicados em inglês, tendo sua origem nos EUA e na Inglaterra. A maior parte dos artigos em português aborda discussões de cunho teórico sobre a temática investigada, à exceção do estudo de Uziel (2001).

Os objetivos dos estudos revisados foram variados, mas apresentam duas tendências salientes. A primeira é o foco nos casais homossexuais e a segunda é a avaliação desses casais na função de pais e as possíveis repercussões dessa condição atípica sobre o processo de desenvolvimento das crianças e adolescentes. Esses objetivos não são óbvios e isentos de pressupostos acerca do que é ser homossexual e do que é ser educado por um casal de homens. Observa-se, desse modo, uma tentativa de definição da homoparentalidade ou da parentalidade exercida por um casal homossexual a partir do modelo heteronormativo de família e de desenvolvimento infantil centrado nas figuras parentais de complementaridade entre pai e mãe. Os objetivos e resultados dos estudos estão sumarizados na Tabela 2.

Tabela 1

Para a análise crítica das contribuições encontradas, os estudos revisados foram agrupados em três núcleos temáticos, que serão apresentados a seguir.

Discussões Teóricas

Nota-se, a partir da análise dos artigos selecionados, a importância conferida à Psicanálise e, mais ainda, ao seu pressuposto básico quanto à diferenciação sexual: a ideia de que a formação do simbólico se dá a partir da articulação da diferença entre os sexos encarnada por pai e mãe, seja alinhando autores que corroboram esse posicionamento, seja se posicionando contra essa interpretação. Nesse sentido, nos artigos publicados no contexto brasileiro, Passos (2005), Perelson (2006) e Zambrano (2006), ainda que perseguindo objetivos diferentes em seus estudos, afirmam a relevância do postulado psicanalítico nas discussões sobre a homoparentalidade, sendo que os três estudos correspondem a discussões teóricas sobre o tema.

Zambrano (2006) advoga a necessidade de revisão das concepções básicas da Psicanálise, assim como de outras áreas, como Antropologia e Direito, uma vez que pressupostos dessas áreas do conhecimento estão, segundo a autora, fortemente relacionados à concepção hegemônica de família. Já Perelson (2006) apresenta uma apreciação dos debates psicanalíticos ocorridos na França na virada do século 20, a partir da liberação do Pacto Civil de Solidariedade (PACS), mostrando concepções de vários autores psicanalíticos contra e a favor da formação de famílias homoparentais. Enquanto isso, Passos (2005) busca a desconstrução desse ideal psicanalítico, afirmando que, mais importante do que os papéis de gênero dos pais na formação do simbólico da criança, está o movimento do afeto na relação pais-filhos, o que independe do sexo biológico de cada um dos pais.

No estudo de Telingator e Patterson (2008), os autores discutem achados da literatura sobre famílias gays (constituídas por casais parentais masculinos ou femininos) e oferecem sugestões para o trabalho clínico com crianças de pais gays ou lésbicas. Um dado interessante encontrado nessa revisão é o fato de que os achados da literatura apontam para o fato de que as dificuldades enfrentadas por famílias homoparentais estão sempre postas em relação ao enfrentamento do preconceito advindo de fora do núcleo familiar e não decorrem da formação homoparental em si. Além disso, a revisão mostra que são poucos os estudos que analisam de forma significativa a família homoparental a partir do entendimento das próprias famílias homoparentais, sendo estas sempre colocadas em comparação com as famílias nucleares heterossexuais. Esse viés, que colore boa parte da produção científica contemporânea dedicada à investigação da homoparentalidade, limita o alcance dos resultados produzidos, configurando uma importante limitação dos estudos.

Estudos Empíricos: O que os Casais e as "Novas" Famílias têm a Dizer?

Os artigos empíricos, todos publicados em periódicos dos Estados Unidos, visam a caracterizar a dinâmica das famílias homoparentais, seja para examinar a hipótese de possíveis problemas emocionais e comportamentais dos filhos adotados por casais gays, para identificar os desejos de pais gays referentes à parentalidade, para verificar a presença de ansiedade e/ou depressão em pais gays durante o processo de adoção de crianças ou para identificar a visão de profissionais de diferentes áreas acerca do tema (Averett et al., 2009; Goldberg & Smith, 2009, 2011; Riskind & Patterson, 2010; Stacey, 2006).

Averett et al. (2009) compararam o desenvolvimento de crianças adotadas por casais gays com as adotadas por casais heterossexuais, concluindo que são idênticos os desafios quanto a fatores de risco que podem desencadear problemas comportamentais nos filhos, seja em famílias homoparentais ou heteroparentais. Já Riskind e Patterson (2010) analisaram os dados obtidos pelo NSFG, sigla em inglês para Pesquisa Nacional de Crescimento Familiar, para visualizarem as intenções, desejos e atitudes de lésbicas, gays e heterossexuais quanto à parentalidade. A questão central, segundo os autores, era verificar se gays e lésbicas são menos propensos que os heterossexuais a expressarem seu desejo de serem pais, o que foi confirmado pelos dados obtidos na pesquisa.

Goldberg e Smith (2011) conduziram o primeiro estudo a examinar as mudanças nos sintomas de depressão e ansiedade em casais homoafetivos - sejam eles constituídos por dois homens ou duas mulheres - na transição para a parentalidade. Os resultados encontrados apontam que o local de trabalho, a melhor percepção da qualidade do suporte aos filhos, o apoio familiar e de outros relacionamentos dos casais podem estar relacionados à redução dos sintomas depressivos e ansiosos no momento da adoção. Os mesmos autores publicaram anteriormente um artigo no qual analisaram as mudanças referentes às habilidades parentais, percebidas no decorrer da transição para a parentalidade, comparando a autoavaliação de casais gays e casais heterossexuais (Goldberg & Smith, 2009). Os autores concluíram que a orientação sexual não interfere na autopercepção dessas habilidades, ou seja, tanto pais gays quanto pais heterossexuais se avaliaram como cada vez mais capazes de cuidar de seus filhos ao longo do tempo.

A partir de uma pesquisa etnográfica realizada em Los Angeles, EUA, Stacey (2006) analisou narrativas de homens gays quanto ao desejo de serem pais e suas consequentes tomadas de decisão a partir desse desejo. De acordo com a autora, existiria um continuum na denominada "paixão pela paternidade", no qual os homens, independentemente de sua orientação sexual, estariam em uma zona intermediária que os levaria à paternidade situacional, ou seja, a concretização da paternidade estaria estritamente relacionada aos seus relacionamentos íntimos. Em estudo pioneiro no Brasil, Uziel (2001), a partir de informações coletadas em documentos de tribunais da cidade do Rio de Janeiro entre 1995 e 2000, e de entrevistas realizadas com dois juízes, cinco psicólogos e quatro assistentes sociais que participaram de processos de adoção, colocou em discussão a controvérsia quanto à adoção de crianças por homens homossexuais.

Revisões da Literatura

Dentre os artigos selecionados, dois são revisões da literatura científica. O primeiro deles (Armesto, 2002) foi publicado nos Estados Unidos e o segundo (Tasker, 2005) foi produzido na Inglaterra. Para Tasker (2005), os achados de sua revisão mostraram que, ainda que exista uma grande variação nas configurações familiares, sejam elas formadas por pais gays, mães lésbicas ou casais heterossexuais, não há diferenças significativas entre os filhos criados por qualquer uma dessas famílias no que se refere a questões de desenvolvimento psicossocial. As diferenças encontradas, segundo a autora, se referem a como as crianças podem aprender a lidar com a homofobia, com sua consciência mais aguçada com relação à homosse-xualidade, e com o heterossexismo presente na sociedade ocidental. Já Armesto (2002) apresenta uma discussão de como a assunção da homossexualidade pode influenciar no desejo de homens gays tornarem-se pais. De acordo com o referido autor, o fato de homens gays fazerem parte de um grupo socialmente estigmatizado parece influenciar sua capacidade de conciliar as ideias de ser homossexual e pai em uma sociedade heterossexista. Tais considerações, no entanto, necessitam ser alicerçadas em outros estudos, que visem a compreender não apenas as motivações para o exercício da parentalidade, como também o modo como as famílias homoafetivas se desenvolvem, seus conflitos, frustrações e modos de vinculação.

Os estudos que comparam arranjos heterossexuais e homossexuais são predominantes nos Estados Unidos. No entanto, esse movimento pouco contribui para o entendimento das possibilidades e desafios colocados pelos arranjos homoafetivos, pois evocam a tradição heteronormativa, não ajudando a perceber como esses formatos auxiliam a transformar o conceito tradicional de família. A simples diferenciação entre hetero e homossexual pode levar a reduções e preconceitos em relação aos arranjos ditos não tradicionais. Esse tipo de viés permeia os estudos, por exemplo, que investigam famílias de camadas médias e populares, pressupondo que estas últimas tenham configurações que possam, de algum modo, ser prejudiciais ao desenvolvimento dos filhos, como criticado por autores como Romanelli (2003), Sarti (1996) e Sawaia (2010). Assim como houve, nas últimas décadas, o deslocamento do que deve ser investigado em famílias monoparentais ou em famílias compostas por pais recasados, movimento análogo deve influenciar novos estudos na área da homoparentalidade, levando os pesquisadores a privilegiarem a perspectiva dos atores sociais envolvidos nesses arranjos, de modo a resguardar suas especificidades.

Considerações Finais

Pelos achados desta revisão, fica clara a necessidade de elaboração de investigações empíricas no contextonacional. É preciso considerar, ainda, que o período selecionado também tem impacto nos resultados alcançados pelos estudos de revisão, já que a ampliação do recorte temporal poderia enriquecer as perspectivas de avaliação das pesquisas sobre a parentalidade homossexual no cenário internacional. Considerando que o tema é recente nas pesquisas realizadas no cenário brasileiro, é preciso destacar a existência de teses e dissertações, livros e capítulos de livros que abordam o tema da homoparentalidade. Como se trata de uma produção científica não arbitrada, em termos do formato internacionalmente aceito do peer review, mostra-se incompatível com o método de revisão integrativa utilizada no presente estudo (Mendes et al., 2008). Por essa razão, sugere-se que investigações futuras abarquem essa produção acadêmica não indexada nas bases consultadas, a fim de dimensionar sua relevância no contexto dos estudos da homoparentalidade e suas possíveis contribuições para esse campo.

Com a aprovação da união estávl entre pessoas do mesmo sexo no ano de 2011, abre-se a possibilidade de que o exercício da homoparentalidade possa ser investigado como legítima reivindicação dos casais homoafetivos, bem como ser fomentado pela expectativa de regulamentação da adoção por casais homossexuais. No exterior, os estudos já abordam os casais homossexuais de modo mais direto, havendo um movimento no sentido de dar voz e incluir as opiniões desses arranjos familiares no debate científico, rompendo com uma abordagem exclusivamente teórica e tantas vezes calcada em dogmas que mascaram posições heteronormativas. A esse respeito, destaca-se que a psicanálise ainda é o referencial mais evocado tanto para "explicar" o que é a homossexualidade e a parentalidade, como para fundamentar reflexões sobre as consequências da criação dos filhos por pares homossexuais. Autores como Perelson (2006) e Zambrano (2006) apontam para a necessidade de revisão de teorias até hoje predominantes na sociedade ocidental, como as que circulam no campo da Psicanálise e da Antropologia, a fim de que estas deem conta dos atuais desafios e das recentes discussões, que não mais são pautadas apenas no universo doméstico da família nem na ideia de transmissão de papéis de gênero. Progressivamente, essa discussão tem se deslocado para o campo dos direitos humanos, produzindo uma reformulação da legislação de família em diversos países ocidentais.

Uma das conclusões mais relevantes encontrada na maior parte dos estudos e que se contrapõe a leituras reducionistas que apregoam apenas a reedição dos modelos parentais em termos do paterno e do materno ou dos papéis de homem e de mulher, é que não existem diferenças significativas no desenvolvimento de famílias homoparentais ou heteroparentais (Averett et al., 2009; Goldberg & Smith, 2009; Riskind & Patterson, 2010; Tasker, 2005), seja no que se refere ao desenvolvimento psicossocial dos filhos ou do desejo e da habilidade dos pais quanto à parentalidade. Ademais, como apresentado por Telingator e Patterson (2008), os achados da literatura sugerem que o preconceito que, geralmente, manifesta-se fora do núcleo familiar, é o que acarreta as dificuldades enfrentadas pelas famílias homoparentais, e não a formação homoparental em si. Desse modo, fica clara a necessidade de investimentos em estudos que se baseiem nas especificidades da formação da família homoparental, de modo a não compará-las às famílias heteroparentais em termos do que cada uma possuiou do que cada uma carece. É cada vez mais premente a demanda por reflexões que rompam com a lógica da pura e simples comparação entre modelos e arranjos distintos, que pressupõe a existência do "certo" e do "errado" ou de um "mais adequado" em contraposição a um "menos adequado". Abre-se, desse modo, a possibilidade de que a pluralidade de orientações, arranjos e modos de vinculação seja concebida como uma contribuição positiva para a reconstrução do conceito de família, que deve estar permanentemente aberto à audição de novas vozes que incluam sentidos alternativos. Pondera-se, com isso, que as pesquisas futuras devem considerar esse novo paradigma, priorizando a ampliação de contextos de investigação e de abordagens que contribuam para a compreensão das transformações contemporâneas, em um contexto de crescente visibilidade e busca de legitimação das uniões homoafetivas e das famílias homoparentais.

Recebido: 17/01/2012

1ª revisão: 21/05/2012

Aceite final: 11/07/2012

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  • Endereço para correspondência:
    Yurín Garcêz de Souza Santos
    Departamento de Psicologia, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo
    Monte Alegre, Ribeirão Preto, SP, Brasil 14040-901
    E-mail:
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    O presente estudo recebeu apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado de São Paulo (FAPESP), por meio da concessão de bolsa de Iniciação Científica ao primeiro autor ( processo nº 2012/11082) , sob orientação do terceiro autor, que é bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      18 Nov 2013
    • Data do Fascículo
      2013

    Histórico

    • Recebido
      17 Jan 2012
    • Aceito
      11 Jul 2012
    • Revisado
      21 Maio 2012
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