Acessibilidade / Reportar erro

International relations and the problem of difference

RESENHA

International relations and the problem of difference

Carolina Moulin

Mestranda em Relações Internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (IRI/PUC-Rio)

O trabalho de Naeem Inayatullah e David L. Blaney apresenta uma interessante perspectiva a respeito do problema da diferença e sobre as razões pelas quais teorias e práticas sociais, dentre elas as Relações Internacionais, têm ignorado, ou simplesmente procrastinado, o tratamento do "outro".

Inserida nos debates críticos sobre as Relações Internacionais (na linha dos trabalhos de R.B.J. Walker,1993;no prelo)e com forte influência de estudos pós-coloniais, como os de Ashis Nandy (1983; 1987), o aspecto original da obra reside no realce concedido ao movimento de verticalização da diferença no plano temporal, ou seja, da separação entre tradição e modernidade, iniciada nos séculos XVI e XVII. Embora os autores não ignorem a importância dasquestões referentes à soberania e ao estabelecimento de fronteiras espaciais rígidas que delimitam o lugar da política, a ênfase recai sobre a economia política internacional e as teorias de modernização, sendo as Relações Internacionais entendidas como uma de suas vertentes. Nesse sentido, os autores mostram-se mais preocupados com a incapacidade das Relações Internacionais em lidar com aspectos e relações culturais que tendem a subsumir as "formas de vida"1 1 . O termo "forma de vida" remete o leitor aos trabalhos de Wittgenstein, em especial às suas Investigações Filosóficas (1984), em que parece associar o termo ao conjunto de relações estabelecido por uma comunidade, à cultura subjacente às práticas sociais de um determinado grupo de autores. não ocidentais.

Da mesma maneira, a proposta aqui resumida parece fornecer linhas de discussão centrais para se repensar o lugar dos países em desenvolvimento na política mundial, sobretudo por tornar explícita a necessidade de se reimaginar o lugar do "encontro" e do outro na construção do próprio self. Assim, o resgate do passado, por meio da releitura dos engajamentos entre os europeus e os índios no Novo M undo e dos "mitos fundadores" da disciplina, como a Paz de Vestfália, permite identificar o discurso prevalecente e as alternativas que foram subjugadas e "esquecidas" ao longo do processo de construção de uma cultura eminentemente "ocidental". Trata-se, portanto, de examinar o passado para criticar as práticas de memória e de esquecimento que contribuíram para a formação de uma "sociedade internacional" hostil à alteridade.

Os autores dividem a obra em duas grandes partes, com três capítulos cada uma. A primeira tem por objeto a diferença como fenômeno essencial à construção das Relações Internacionais, enquanto teoria e prática política. A segunda analisa os desdobramentos mais recentes da economia política internacional e traça as principais alternativas possíveis ao problema da diferença, em contraposição à solução tradicional proposta pelas Relações Internacionais. Poder-se-ia, então, dizer que a obra em sua primeira parte trata das origens da separação entre dentro/fora (movimento espacial) e entre tradição/modernidade (movimento temporal), e, na última parte, do impacto das fronteiras espaço-temporais sobre o problema da diferença nas Relações Internacionais, em particular na economia política internacional, e da construção de uma idéia alternativa de subjetividade na política mundial.

No que tange à separação espacial, o argumento central dos autores é que o surgimento do Estado moderno, assentado no princípio da soberania, representou não uma solução para o problema da diferença e do encontro entre o eu e o outro, mas sim um diferimento do tratamento da questão. Ao retomar o contexto conflituoso das divergências religiosas na Europa durante os séculos XVI e XVII, Inayatullah e Blaney mostram que a Paz de Vestfália representou a tentativa de domesticar a diferença por meio da encarnação no "corpo político" (ou seja, no Estado) de um todo harmonioso e unitário. A soberania produz a "mágica" de transferir a diferença para o plano anárquico internacional, ao mesmo tempo que a encapsula dentro do Estado, onde ela poderia ser contida, assimilada ou exterminada pela autoridade do soberano e por práticas, em geral, violentas. A crença subjacente a esse processo (e que ainda ecoa na política internacional) é que uniformidade e homogeneidade produzem estabilidade e ordem. Tratar o diferente torna-se fundamental para a ordem doméstica e internacional, mesmo que esse tratamento envolva violência, aniquilação e extermínio.

Dessa maneira, o adiamento implica a transferência do problema da diferença para o plano internacional. Tal questão se resume, na visão dos autores, a uma "diferença entre Estados", na qual o outro é percebido como ameaça a ser contida pelas práticas de balanço, dissuasão ou pela via da colonização2 2 . A prática de balanço constitui-se em mecanismo básico de equalização das forças no sistema internacional, segundo a leitura realista. Estados estariam dispostos, por exemplo, a investir em armamentos ou promover alianças a fim de evitar o surgimento de um Estado ou grupo de Estados capaz de se impor aos demais. A dissuasão envolve, em geral, o uso de instrumentos capazes de inibir práticas agressivas por parte de um Estado em direção aos demais. Exemplo corrente é o recurso às armas nucleares como forma de conter potenciais agressores. . A diferença dentro do Estado é gerenciada pelas relações de autoridade, contratualmente estabelecidas. Assim, inibem-se outras formas de lidar com o outro e de trabalhar o que os autores chamam de "zona de contato" ou "espaço do encontro". O que se verifica na política contemporânea é a ampliação e a flexibilização dessas zonas de contato, que "tornaram muito mais difícil acreditar na mágica de linhas/fronteiras retas/fixas" (:187)3 3 . Todas as citações foram traduzidas pela autora [tradução livre]. . Deriva daí a necessidade premente de criar alternativas às soluções tradicionais dadas ao problema da diferença.

A análise da solução tradicional tem como base o trabalho de Tzvetan Todorov (1984), que a caracteriza como um "duplo movimento". Primeiramente, procede-se à separação absoluta entre o eu e o outro, entre o familiar e o estranho, sendo este último percebido como uma entidade "inferior". Posteriormente, efetua-se a equalização da diferença pela assimilação ou erradicação do outro. Segundo Inayatullah e Blaney, esse movimento que caracteriza as origens do problema nos séculos XVI e XVII reproduz-se por meio de práticas modernas "neocoloniais". As Relações Internacionais, por conseguinte, mostram-se incapazes de lidar com a herança colonial porque são resultado e instrumento das práticas associadas a esse legado.

Vestfália sinaliza a passagem de um mundo medieval, marcado por uma rede de autoridades sobrepostas, para um mundo moderno, formado por Estados soberanos. O movimento espacial derivado desse processo procrastinou a solução do problema da diferença, deslocando-a para o plano internacional, bem como indicou um caminho teórico e prático extremamente hostil à diversidade. "As Relações Internacionais são a tentativa de adiar o genuíno reconhecimento e engajamento com o outro, sob a suposta veste da tolerância entre as comunidades políticas" (:44). A divisão dentro/fora realiza um ato de "splitting", de separação, absolutizando a diferença e purificando o "outro" como oposição ao self, em vez de identificar a necessária inter-relação e sobreposição entre o eu e o outro.

Uma vez estabelecidas as linhas gerais da argumentação, os autores passam à releitura de estudos comparativos produzidos nos séculos XVI e XVII. A preocupação é salientar como o "duplo movimento" se processa na produção do conhecimento sobre culturas e opera o movimento de separação temporal. Ademais, ressaltam-se aspectos alternativos presentes nas obras de autores como Jean de Léry (:65-73) que, embora escrevendo no século XVI, fornecem subsídios para a reimaginação da política contemporânea. Como todo conhecimento é comparativo, torna-se fundamental esclarecer os critérios da comparação e identificar os perigos necessariamente envolvidos nessa prática. Logo, o cotejamento entre culturas produziu, em geral, respostas que propugnavam a completa assimilação do outro com a conseqüente repressão da diferença, ou a completa exclusão do outro enquanto uma oposição absoluta ao self. Separados o eu e o outro, segue-se o processo de inferiorização do diferente, identificado como reflexo de um momento histórico anterior de barbárie, imaturidade e degeneração. O outro é percebido como uma forma prévia e menos avançada do próprio eu, tal como se infere das leituras européias sobre as populações indígenas nas Américas. Essa estratégia temporal concede ao self a tarefa pedagógica de civilizar a barbárie, de educar a "criança" representada pelo outro. Épossível, no entanto, identificar alternativas a essa concepção, mesmo em trabalhos que procuram justificar o caráter civilizatório da colonização européia. É o caso de Jean de Léry (1534-1613) que, em seus escritos sobre os canibais das Américas, em particular sobre as tribos Tupi no Brasil, procura representá-los como um outro, ao mesmo tempo externo e interno ao próprio colonizador. Isto quer dizer que há nos indígenas um "eco" do colonizador que permite encontrar no que lhe é estranho algo de familiar, isto é, o outro passa a ser uma fonte de crítica e reflexão sobre as tensões que constituem o self.

Essa verticalização temporal do problema da diferença fornece a matriz para o surgimento das teorias de modernização, nas quais a história se converte em estágios de desenvolvimento "representativos do progresso ao longo do tempo" (:87). As Relações Internacionais, como teoria da modernização, assumem um papel fundamental nesse processo evolutivo linear e global. Ao mesmo tempo que promovem a separação espacial, dividindo o mundo em unidades autônomas e similares, "projetam uma seqüência de desenvolvimento, natural e universal, pela qual todas as culturas e sociedades devem passar" (:94). A assistência e a ajuda internacionais transformam-se em instrumentos vitais para a aceleração do processo de desenvolvimento em escala global.

De acordo com os autores, as Relações Internacionais equalizam as diferenças pela forma, abstraindo-se das múltiplas substâncias nelas contidas; o que significa que os Estados, enquanto forma, são tidos como unidades similares e em condições de igualdade, independentemente dos diferentes arranjos e conteúdos (políticos, econômicos, sociais e culturais) neles consubstanciados. A solução hobbesiana (Hobbes, 1984, esp. caps. de I a XIV) do problema da autoridade pelo recurso à forma em detrimento da substância é, nesse sentido, reproduzida pela teoria de Relações Internacionais. A modernização no plano internacional marca, portanto, a passagem da anarquia para a integração funcional, para os direitos humanos universais e para o pluralismo liberal (:108). A tendência nas Relações Internacionais é apagar as diferenças, seja pela assimilação do particular à "forma moderna" (representada pelo Estado), seja pelo recurso à violência contra a ameaça do outro (representada pela guerra4 4 . Note-se que a prática de violência contra o outro envolve o uso de violência contra o próprio eu, pois, como vimos, os autores defendem uma leitura, nos moldes de Léry, que privilegia o outro como elemento externo e interno ao self. ). O duplo movimento ocorre nas Relações Internacionais na medida em que

"[...]o reconhecimento de um jogador na cena mundial - o momento da eqüidade e do comum - demanda sua assimilação ao conjunto das políticas civis dos Estados soberanos e às práticas sociais modernas (ciência, mercado). Tentar assegurar uma identidade distinta da identidade moderna - momento da diferença - leva ao risco da fragmentação interna, de 'progresso material limitado'e, como conseqüência, à sua designação como Estado inferior e atrasado (ou, em termos mais contemporâneos, como Estado falido ou quase-Estado)" (:114).

Mesmo os trabalhos que se mostram, a priori, mais tolerantes com relação ao outro, procurando flexibilizar as fronteiras, acabam por reproduzir um processo de liberalização global, no qual o sujeito deixa de ser o Estado soberano e passa a ser o indivíduo. Assim, os autores criticam os teóricos da sociedade civil global por serem incapazes de reimaginar a política mundial de forma a permitir não só a alteridade, mas também a possibilidade de mudança do self como decorrência do encontro com o outro. Além disso, esses teóricos parecem ignorar a possibilidade de diferentes "existências" que não podem ser simplesmente transcendidas tendo como base uma "cosmópolis global". A saída para o problema da diferença, para além da "quadratura hegemônica a partir da qual todas as outras formas de vida cultural devem ser julgadas" (:123), parece ser tratar o outro como fonte de auto-reflexão e crítica, e trabalhar com um sistema de relações que permita modos múltiplos de existência humana. A ênfase deve, portanto, sair do internacional e passar para as relações.

Na segunda parte, como vimos, Inayatullah e Blaney enfatizam o impacto da separação espaço-temporal sobre a economia política internacional e constroem uma argumentação em prol de uma economia política etnológica e da defesa de um sistema de soberanias múltiplas. A economia política, nos moldes atuais, reproduz o duplo movimento de Todorov. Transforma indivíduos, cuja forma é similar, em produtores em condições de igualdade, situando as diferenças em uma estrutura hierárquica. Uma cultura da competição emerge como a única solução possível para alocar os recursos do mercado entre indivíduos iguais e, por conseguinte, naturalizar as diferenças de riqueza e distribuição que daí derivam. A competição de mercado fornece resposta, embora problemática e insatisfatória, para o problema da diferença. Os grandes marcos dessa literatura seriam Adam Smith e Friedrich Hayek, para quem o "problema da diferença na sociedade moderna - seja diferença de trabalho ou de conhecimento - é resolvido pelas operações de mercado" e pelo impulso de purificar a divisão entre o primitivo e o moderno (:140). Não há nenhuma relação entre as partes e o todo: os indivíduos são atomizados como local único da produção e do conhecimento - individualismo ontológico - e o contexto perde qualquer função social. Da necessidade da separação entre homem e natureza decorre que a submissão ao todo social nada mais é do que a "estrada para a servidão" (:141). Tal individualismo ontológico se transpõe para as Relações Internacionais, já que os Estados são percebidos como bolas de bilhar, como entidades política e economicamente isoladas. Os Estados adentram um mercado global altamente competitivo com o objetivo de garantir as "formas de vida" dentro de suas fronteiras e as "cotas de mercado de suas firmas na economia mundial" (:150). Nesse processo, revela-se uma hierarquia - natural - entre as diferentes "formas de vida", umas mais aptas à cultura competitiva da economia política internacional do que outras. Ao primeiro movimento de equalização sobrepõe-se o movimento de verticalização da diferença, no qual alguns Estados definem os "termos" da ordem e os demais ou se adaptam (isto é, copiam as "melhores práticas") ou são eliminados do jogo. A alternativa do desenvolvimento torna-se a única solução para o problema da diferença: o outro menos desenvolvido deve assimilar as práticas do eu desenvolvido. É por essa razão que Inayatullah e Blaney afirmam que "os processos de competição estratégica fazem menos pela realização e expressão dos valores da soberania e mais pela sua transgressão" (:153).

A alternativa a essa cultura da competição reside na necessidade de resistir ao projeto totalizante do desenvolvimento moderno, e, portanto, de repensar a economia política internacional etnologicamente. Para isso, seria preciso que:

"[...] todos os três elementos - autoconhecimento, conhecimento do outro e esperança de diálogo - sejam partes igualmente necessárias no processo ético e político, informado pelo sofrimento comum, mas que almeja o estabelecimento de um horizonte relativamente comum, ao redor do qual a luta contra a opressão possa ser organizada" (:168).

Os autores procuram em Karl Polanyi (1957) a possibilidade de resistência ao discurso da necessidade da economia moderna. Segundo Polanyi, não se trata de diferentes estágios de desenvolvimento econômico, mas sim de economias diferentes cujas formas alternativas podem indicar outros caminhos possíveis. Uma economia política etnológica envolveria, portanto, a desnaturalização da economia de mercado e a historicização da diversidade econômica, o que implicaria avaliar as diferenças partindo não só de prerrogativas particulares, mas abrindo a particularidade e suas categorias a um processo de reflexão e potencial alteração oriunda do encontro com a alteridade.

Os efeitos perversos da economia de mercado, demonstrados pelos índices de pobreza e desigualdade social presentes no mundo contemporâneo, evidenciam a importância de reler a história e repensar a sociedade em termos e bases diferentes, como propõem os autores. Isto não implica, contudo, uma espécie de "primitivismo" ou retorno a formas anteriores de produção, já que "não há um estado natural ao qual possamos retornar" (:177). Por isso, o engajamento na sociedade tal como ela hoje se apresenta é essencial: a auto-reflexão das práticas econômicas e políticas faz parte desse processo.

Mas como produzir esse engajamento?Como alavancar esse proces-so?Na parte final da obra, Inayatullah e Blaney procuram traçar as linhas gerais que poderiam abrir caminho para respostas a essas perguntas. Não se trata de rejeitar a soberania, mas de rearticulá-la de modo a garantir a sobrevivência e a coexistência de "múltiplas e sobrepostas identidades", de criar um "modo misto de organização" da propriedade, da produção e da distribuição das riquezas. O recurso a exemplos históricos funciona como uma pequena mostra das diversas "portas" a serem abertas por uma análise desse tipo, bem como denota o caráter provisório da obra como efetiva proposta alternativa. Os processos econômicos e políticos e as relações de alteridade devem ser sempre vistos como um livro aberto, e não como uma via de mão única.

O primeiro exemplo retrata a época do domínio Mugal na Índia, entre os séculos XIII e XVIII. Neste período, prevalecia uma concepção que vinculava homem e natureza. As riquezas provenientes da terra eram percebidas como uma doação e as relações de propriedade se intercruzavam e se sobrepunham através de diversas conexões entre o rei, os agricultores e a classe intermediária dos zamindar. Havia uma separação conceitual entre a propriedade da terra, compartilhada por todos os habitantes da vila, e a propriedade sobre as receitas dela provenientes, compartilhadas também com os governantes. Inexistia, portanto, a idéia de propriedade absoluta, atribuída a apenas um indivíduo. Ademais, a vida na comunidade local era regulada e organizada pelos seus próprios habitantes, com base em suas tradições e costumes, sem a interferência da autoridade central. Apesar da existência de relações hierarquizadas, verifica-se um elevado grau de flexibilidade normativa. Com a chegada dos britânicos à Índia, altera-se substancialmente o sistema de relações, com a introdução da propriedade privada e de mecanismos mais claros e rígidos de estratificação social. A resposta do colonizador a uma agricultura atrasada e tradicional veio sob a forma de políticas de "desenvolvimento" com a finalidade de ampliar as receitas do Império e diminuir o impacto das calamidades naturais sobre a produção.

O segundo exemplo analisa a cidade de Jerusalém como representação da "zona de contato" entre diferentes culturas e, por conseguinte, como espaço para possíveis visões alternativas ao problema da diferença. As diversas experiências históricas na região demonstram que as tentativas de solucionar o conflito entre grupos, através da atribuição de propriedades exclusivas e da delimitação de fronteiras rígidas, mostraram-se inócuas e, dado o recurso massivo à violência, tendem a recrudescer o ódio e a busca pelo "império da uniformidade". Os autores afirmam que os entendimentos entre Yossi Beilin e Abbas Abu Mazen, realizados em Taba e fora da esfera de mediação dos norte-americanos, representam uma possibilidade alternativa à solução do conflito, com diretivas similares às por eles propostas no livro. Os acordos de Taba seriam uma "colcha de retalhos" com múltiplas e sobrepostas relações de autoridade sobre o território de Jerusalém (:209). Enquanto um órgão comunitário seria responsável pelos aspectos mais gerais da administração da cidade, as sub-regiões teriam autonomia para gerenciar e manter os serviços e políticas públicas no âmbito local, observado o princípio de manutenção da coesão do município. Assim, palestinos poderiam manter escolas e recorrer a mecanismos de solução de controvérsia baseados na Sharia, ao mesmo tempo que a moeda israelense continuaria a ser o meio de troca primordial. Verificam-se, desse modo, múltiplas relações de autoridade que se cruzam e interpenetram sem necessariamente estarem vinculadas a noções de propriedade territorial absoluta e a princípios de exclusão e assimilação do outro. O reconhecimento do outro dentro do próprio self abre caminho para alternativas de compartilhamento mais eqüitativo de direitos e deveres entre diferentes grupos sociais.

Se as fronteiras rígidas não são mais capazes de explicar a complexidade das relações sociais contemporâneas, afirmam Inayatullah e Blaney, o mundo seria mais parecido com Jerusalém do que com o sistema de Estados vestfaliano. Isto significa que o mundo é antes uma "zona de contato" ou "espaço de encontro", do que uma "fronteira cartográfica" (:210). Construir relações entre múltiplas soberanias implicaria uma redução do recurso à violência e às políticas de domínio, características das relações internacionais contemporâneas. A soberania seria, assim, "dividida e distribuída de forma a criar complexos arranjos jurisdicionais, envolvendo acordos que têm de ser constantemente renegociados e incertezas que devem ser resolvidas através do diálogo" (:213).

Embora haja um privilégio do aspecto relacional e dialógico, os autores mostram-se atentos à necessidade de evitar a reprodução de um "diálogo de desiguais". Apesar da literatura de relações internacionais conceder cada vez maior ênfase ao papel das redes, da interdependência e dos movimentos sociais, há também uma clara percepção de que grande parte desse discurso perpetua condições de domínio características da ordenação espaço-temporal moderna. Os autores citam, por exemplo, o fato de os movimentos sociais contemporâneos ainda privilegiarem enormemente os cidadãos dos países desenvolvidos, que detêm recursos para transitar entre as fronteiras e financiar a participação dos "subdesenvolvidos" no processo - o que denotaria, de certa forma, um processo de cooptação. A esperança é, portanto, que "tais engajamentos críticos possam ajudar a informar criativamente os esforços de imaginação do futuro, não como um simples desdobramento do presente, mas como um processo de redescoberta e reimaginação" (:217).

A obra de Inayatullah e Blaney fornece uma crítica importante à teoria e à prática das Relações Internacionais enquanto espaços onde ainda se reproduzem os legados coloniais. Por essa razão, verifica-se uma incapacidade interna à disciplina em lidar com o problema da diferença. A emergência de relações sociais cada vez mais complexas tornou evidente a tensão entre culturas e "formas de vida" e a completa inadequação das respostas correntes, centradas no uso indiscriminado da violência e na demonização do "outro". Os exemplos são por demais óbvios, e a análise em perspectiva histórica fornecida pelos autores demonstra que essas práticas acompanham a trajetória da modernidade, tanto em seus mitos fundadores, quanto em seus principais teóricos. Isto não impede, contudo, que sejam abertas outras alternativas e que a releitura de momentos históricos e de autores clássicos permita "relembrar" o que o discurso hegemônico na teoria de Relações Internacionais tentou fazer esquecer.

Esse ato de resgate da memória é fundamental para o pensar das Relações Internacionais a partir do mundo em desenvolvimento. Não só porque os conceitos e teorias tradicionais da área se mostram pouco ou nada aptos para lidar com nossas realidades, mas porque nos colocam no lugar de objeto a ser pedagogicamente doutrinado. Repensar as relações entre o mundo em desenvolvimento e as Relações Internacionais envolve necessariamente repensar o problema da diferença e reimaginar as respostas a ele dadas. A criatividade é a peça fundamental capaz de transformar a equação moderna da alteridade excludente e de superar o duplo movimento. A obra de Inayatullah e Blaney pode ser vista como um primeiro passo nesse esforço criativo, ainda incipiente nas respostas, mas rica em perguntas e possibilidades de pesquisa para os analistas de Relações Internacionais no Terceiro Mundo.

Notas

Resenha recebida em julho e aceita para publicação em agosto de 2004.

  • HOBBES, Thomas. (1984), Leviatã São Paulo, Abril Cultural (Coleção Os Pensadores).
  • NANDY, A. (1983), The Intimate Enemy: Loss and Recovery of Self under Colonialism Delhi, Oxford University Press.
  • ____. (1987), Traditions, Tyrannyand Utopias: Essays in the Politics of Awareness Delhi, Oxford University Press.
  • POLANYI, Karl. (1957) [1944], The Great Transformation: The Political and Economic Origins of Our Time Boston, Beacon.
  • TODOROV, Tzvetan. (1984), The Conquest of America: The Question of the Other New York, Harper and Row.
  • WALKER, R. B. J. (1993), Inside/Outside: International Relations as Political Theory Cambridge, Cambridge University Press.
  • ____. (no prelo), After the Globe/Before the World Cambridge, Cambridge University Press.
  • WITTGENSTEIN, Ludwig. (1984), Investigações Filosóficas São Paulo, Abril Cultural (Coleção Os Pensadores).
  • 1
    . O termo "forma de vida" remete o leitor aos trabalhos de Wittgenstein, em especial às suas
    Investigações Filosóficas (1984), em que parece associar o termo ao conjunto de relações estabelecido por uma comunidade, à cultura subjacente às práticas sociais de um determinado grupo de autores.
  • 2
    . A prática de balanço constitui-se em mecanismo básico de equalização das forças no sistema internacional, segundo a leitura realista. Estados estariam dispostos, por exemplo, a investir em armamentos ou promover alianças a fim de evitar o surgimento de um Estado ou grupo de Estados capaz de se impor aos demais. A dissuasão envolve, em geral, o uso de instrumentos capazes de inibir práticas agressivas por parte de um Estado em direção aos demais. Exemplo corrente é o recurso às armas nucleares como forma de conter potenciais agressores.
  • 3
    . Todas as citações foram traduzidas pela autora [tradução livre].
  • 4
    . Note-se que a prática de violência contra o outro envolve o uso de violência contra o próprio eu, pois, como vimos, os autores defendem uma leitura, nos moldes de Léry, que privilegia o outro como elemento externo e interno ao
    self.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      19 Ago 2010
    • Data do Fascículo
      Dez 2004
    Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Instituto de Relações Internacionais Rua Marques de São Vicente, 225 - Casa 20 , 22453-900 Rio de Janeiro - RJ - Brasil, Tel.: (55 21) 3527-2284, Fax: (55 21) 3527-1560 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
    E-mail: cintjournal@puc-rio.br