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Identidade como fonte de conflito: Ucrânia e Rússia no pós-URSS

Identity as a source of conflict: Ukraine and Russia in the post-USSR

Resumos

O objetivo principal deste artigo é mostrar que o processo de interação entre Ucrânia e Rússia no pós-URSS origina a identidade social de inimigo, que é a fonte dos conflitos de interesse entre os dois países. Para sustentar o argumento, propõe-se um modelo teórico com base na importância das idéias para a constituição dos interesses e na crença de que os interesses são determinados pelas identidades. Depois, demonstra-se por que a identidade entre os dois países é de inimigo. A reação destes à expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) é utilizada para ilustrar as conseqüências da inimizade. Como as identidades determinam os interesses, as relações entre Estados amigos envolvem interesses comuns, e, entre inimigos, interesses divergentes. Assim, a percepção de ameaça é compartilhada entre amigos e, entre inimigos, o amigo de um se torna o inimigo de outro. Por isso a Ucrânia coopera com a OTAN em busca de proteção, enquanto a Rússia não aceita sua expansão. A fim de evitar que os conflitos entre Ucrânia e Rússia representem uma ameaça à segurança da Europa, é necessário que a identidade construída na interação entre eles seja transformada.

Segurança Internacional; Construtivismo; Ucrânia; Rússia


The main argument of this paper is that the process of interaction between Ukraine and Russia generates a social identity of enmity, which is the source of the conflict of interests between the two countries. In order to defend the argument, a theoretical model is proposed based on the importance of ideas to the constitution of interests and on the belief that interests are determined by identities. The next task is to demonstrate why the identity between the two countries is one of enmity. The reaction of both countries towards NATO expansion is used to illustrate the consequences of enmity. Because identities determine interests, the relationship between friend States involves common interests and between foes divergent interests. So the perception of a threat is shared by friends while between enemies the friend of one becomes the enemy of the other. That is why Ukraine cooperates with NATO and Russia does not accept its expansion. In order to avoid that the conflicts between Ukraine and Russia become a threat to Europe's security, it's necessary to change the identity constructed in through their interaction.

International Security; Constructivism; Ukraine; Russia


Identidade como fonte de conflito: Ucrânia e Rússia no pós-URSS* * Este artigo é uma versão resumida de Mielniczuk (2004).

Identity as a source of conflict: Ukraine and Russia in the post-USSR

Fabiano Mielniczuk

Mestre em Relações Internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (IRI/PUC-Rio) e professor e coordenador da pesquisa Rússia e Segurança Internacional na Unilasalle - RJ

RESUMO

O objetivo principal deste artigo é mostrar que o processo de interação entre Ucrânia e Rússia no pós-URSS origina a identidade social de inimigo, que é a fonte dos conflitos de interesse entre os dois países. Para sustentar o argumento, propõe-se um modelo teórico com base na importância das idéias para a constituição dos interesses e na crença de que os interesses são determinados pelas identidades. Depois, demonstra-se por que a identidade entre os dois países é de inimigo. A reação destes à expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) é utilizada para ilustrar as conseqüências da inimizade. Como as identidades determinam os interesses, as relações entre Estados amigos envolvem interesses comuns, e, entre inimigos, interesses divergentes. Assim, a percepção de ameaça é compartilhada entre amigos e, entre inimigos, o amigo de um se torna o inimigo de outro. Por isso a Ucrânia coopera com a OTAN em busca de proteção, enquanto a Rússia não aceita sua expansão. A fim de evitar que os conflitos entre Ucrânia e Rússia representem uma ameaça à segurança da Europa, é necessário que a identidade construída na interação entre eles seja transformada.

Palavras-chave: Segurança Internacional - Construtivismo - Ucrânia -Rússia

ABSTRACT

The main argument of this paper is that the process of interaction between Ukraine and Russia generates a social identity of enmity, which is the source of the conflict of interests between the two countries. In order to defend the argument, a theoretical model is proposed based on the importance of ideas to the constitution of interests and on the belief that interests are determined by identities. The next task is to demonstrate why the identity between the two countries is one of enmity. The reaction of both countries towards NATO expansion is used to illustrate the consequences of enmity. Because identities determine interests, the relationship between friend States involves common interests and between foes divergent interests. So the perception of a threat is shared by friends while between enemies the friend of one becomes the enemy of the other. That is why Ukraine cooperates with NATO and Russia does not accept its expansion. In order to avoid that the conflicts between Ukraine and Russia become a threat to Europe's security, it's necessary to change the identity constructed in through their interaction.

Key words: International Security - Constructivism - Ukraine - Russia

Com o fim da URSS, as ex-repúblicas socialistas adquirem o status de países independentes e dão início à construção de uma nova ordem no leste da Europa. A instabilidade é esperada, pois a falência da autoridade central soviética introduz os novos países no reino da anarquia. Nesse sentido, a emergência de Estados soberanos traz à tona uma série de conflitos de interesses que permaneceram latentes durante o regime comunista e nos quais a Rússia está envolvida por causa de sua extensão territorial, o tamanho de sua população e sua importância militar. Além disso, algumas disputas envolvem as aspirações de autonomia das antigas repúblicas, as quais passam a enxergar a Rússia como sucessora da União Soviética no papel de opressor. Por isso a postura russa em relação a seus vizinhos é crucial para a viabilidade da nova ordem regional.

O presente artigo trata da relação entre Rússia e Ucrânia nesse contexto. Mais especificamente, sugiro que os conflitos que emergem entre os dois países têm origem no modo como suas identidades são construídas a partir do fim da URSS. O texto está dividido em quatro partes. Na primeira, algumas contribuições teóricas sobre os conflitos entre Ucrânia e Rússia são comentadas. Na segunda, um modelo construtivista para ser aplicado no caso em questão é sugerido. A terceira parte consiste na aplicação deste modelo, a partir da análise da interação entre Ucrânia e Rússia no imediato pós-URSS. Na quarta, a relação entre a Ucrânia, a RússiaeaOrganização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) é analisada tendo em vista o que é apresentado nas seções anteriores. Algumas considerações finais concluem o artigo.

Os Conflitos entre Ucrânia e Rússia no Pós-URSS

No pós-URSS, a intensidade e a abrangência dos conflitos da Rússia com as demais ex-repúblicas socialistas variam de acordo com os países em questão. O conflito principal entre os três países do Báltico e a Rússia diz respeito ao estatuto das minorias na região. A Rússia receia que o resgate dos valores nacionais na Letônia, Lituânia e Estônia resulte em discriminação contra as minorias russas. Por sua vez, os três países temem que a situação dos russos em seus territórios seja utilizada por Moscou como pretexto para justificar a ingerência da Rússia nos seus assuntos internos (Lieven, 1999).

Já o conflito entre Rússia e Bielo-Rússia é econômico. A maior parte do petróleo e do gás natural consumidos pela Bielo-Rússia é fornecida pela Rússia. Porém, por causa das precárias condições econômicas do país, o governo de Minsk tem dificuldades em pagar suas dívidas. Todavia, o problema é facilmente administrado e as divergências econômicas não afetam a cooperação em outras áreas (Burant, 1995).

A indisposição entre Rússia e Moldávia é militar. Durante o processo de dissolução da URSS é criada a Frente Popular da Moldávia, um movimento político que busca a união do país com a Romênia. Com medo das conseqüências de uma provável anexação à Romênia, a população eslava que habita a região entre o rio Dniester e a fronteira com a Ucrânia inicia uma guerra de secessão. Imediatamente, as forças armadas russas localizadas na região rebelde apóiam abertamente o movimento. Desde então, Moscou e Chisinau têm um relacionamento pouco amistoso (Garnett e Lebenson, 1998).

A relação da Ucrânia com a Rússia é mais complexa. Quase todas as disputas envolvendo os dois países no pós-URSS são tratadas em um ambiente de conflito. Assim como os países bálticos, a Ucrânia também teme que a preocupação com o status da minoria russa que vive em seu território seja utilizada pela Rússia como pretexto para interferir na política interna ucraniana. Porém, a presença russa na Ucrânia tem um potencial de desestabilização muito maior. Dos 50 milhões de habitantes do país, 25 milhões falam russo como primeiro idioma e mais de 10 milhões são originários da Rússia. Essa "grande" minoria russa se concentra nas regiões leste e sul da Ucrânia, exatamente na parte que faz fronteira com a Rússia. Na Península da Criméia, por exemplo, 70% da população é de origem russa. As manifestações da Rússia sobre sua diáspora são consideradas pela Ucrânia como uma estratégia para incentivar o início de uma guerra civil entre russos e ucranianos. Desse modo, seria mais fácil para a Rússia incorporar as regiões ucranianas habitadas por russos ao seu território (Garnett, 1997).

Assim como ocorre com a Bielo-Rússia, a Ucrânia também enfrenta problemas com a Rússia na esfera econômica. Aproximadamente 70% do petróleo e 90% do gás natural consumidos no país são fornecidos pela Rússia. Em situação econômica frágil, a Ucrânia nem sempre tem condições de efetuar os pagamentos em dia. A Rússia utiliza sua condição de credora como trunfo nas negociações que envolvem outras disputas com o país. Caso a Ucrânia não aceite suas diretrizes, a Rússia ameaça cortar o fornecimento de energia - o que é feito geralmente durante o inverno. Os ucranianos temem que a interrupção do fornecimento mergulhe o país no caos econômico. Nesse cenário, é difícil manter a lealdade da minoria russa à Ucrânia1 1 . Vale lembrar que a minoria russa permanece na Ucrânia após sua independência por causa da promessa de que a prosperidade econômica do país viria antes e seria mais duradoura do que a da Rússia. . Na tentativa de dissuadir a Rússia, a Ucrânia lança mão do único recurso que possui nesse âmbito: sua localização geográfica. O país aumenta as taxas de passagem do petróleo e do gás russos, exportados para a Europa pelos dutos localizados em território ucraniano. A medida força o restabelecimento do diálogo, mas não soluciona o problema. O círculo vicioso é reiniciado, e a cooperação torna-se ainda mais difícil (Balmaceda, 1998a; Smolanski, 1995).

Ucrânia e Rússia também enfrentam problemas na esfera militar. A participação russa na guerra da Moldávia - que ocorre na fronteira ocidental da Ucrânia - demonstra a disposição da Rússia em garantir pela força seus interesses no "estrangeiro próximo". Com essa percepção, a Ucrânia obstrui as negociações sobre seu desarmamento nuclear com a Rússia, e exige a participação dos EUA como garantidor dos Tratados (Papadiuk, 1996). No momento em que os acordos são firmados, o país quer salvaguardas da comunidade internacional sobre a sua integridade territorial após a desnuclearização. Além dis-so, a Ucrânia procura integrar-se à OTAN, o que é visto pela Rússia como um ato de provocação, uma vez que a Rússia não aceita a expansão da Aliança para os países do leste europeu. Mas os conflitos mais intensos ocorrem por causa do estatuto de Sevastopol e da divisão da Frota do Mar Negro (FMN). Depois de anos de difíceis negociações e de algumas ameaças de uso da força, as partes aceitam uma solução provisória. Por não ser definitiva, é mantida a possibilidade de que conflitos militares irrompam entre os dois países no futuro (Sherr, 1997).

Conclui-se que o relacionamento entre a Ucrânia e a Rússia no pós-URSS beira uma conflagração geral, pois há divergência de interesses em quase todos os seus aspectos. Por isso, é difícil formular uma hipótese que dê conta da permanência do conflito entre os dois países. Mesmo assim, algumas delas são sugeridas.

Para Morrison (1993), o relacionamento entre Rússia e Ucrânia é afetado pelo caráter inaudito da situação pós-URSS, dado que ambos jamais haviam coexistido como Estados totalmente independentes. Por isso, os países recorrem à própria história a fim de definir a maneira como proceder na interação. Segundo o autor, é o Tratado de Pereyaslav (1654) que melhor representa a utilização de mitos do passado para orientar a ação dos Estados no presente. Os ucranianos o assinam como um acordo de responsabilidades mútuas, no qual receberiam proteção contra os poloneses em troca da lealdade ao czar. Na visão russa, trata-se do início de mais uma anexação do império. Em conseqüência, os sentimentos atuais em relação a Pereyaslav variam. Para os ucranianos, ele ensina que não se deve confiar na Rússia, porque sua aparente boa vontade esconde o desejo de conquista. Para os russos, o Tratado representa a união da Rússia com seus "irmãos menores," e repara uma separação artificial ocorrida no século XIII, quando os mongóis conquistam a região. Assim, no momento da independência, tanto a Ucrânia quanto a Rússia não se consideram interlocutores legítimos. O resultado são os conflitos entre os dois países a partir de então.

Uma outra explicação é oferecida por Kuzio (2001). Os conflitos entre Rússia e Ucrânia têm origem na crise de identidade que assola os dois países com o fim da URSS. Definida em termos territoriais, étnicos e culturais, a identidade é construída em um processo de disputa entre as elites, internamente, e tem como ponto de referência um outro Estado. A elite da Rússia não aceita a identidade da Ucrânia como país independente. Essa postura acirra a disputa entre a elite ucraniana, que se divide entre os que apóiam a vinculação com a Rússia e os que preferem o afastamento. De acordo com o autor, a inabilidade das elites russas em aceitar a separação da Ucrânia é responsável pela ênfase dada pela elite ucraniana no governo à diferenciação em relação à Rússia. Esse processo origina os conflitos entre os dois países.

De acordo com Kincade e Melnyczuk (1994), os conflitos entre Ucrânia e Rússia são conseqüência da crise de legitimidade que assola a URSS durante seu fim, que acaba ficando como herança para as repúblicas sucessoras. A lógica de seu argumentoéaseguinte: com a legitimidade em baixa, os líderes políticos utilizam a estigmatização do adversário como um recurso para aumentar o seu prestígio. Nesse sentido, os problemas entre Ucrânia e Rússia são causados por ex-comunistas recém convertidos aos ideais nacionais. Formados por membros da antiga nomenklatura, esses políticos não avaliam os riscos da prática agressiva empregada na defesa de seus interesses. A "guerra fria" entre Ucrânia e Rússia que se segue após o final da URSS decorre dessa situação. Em ambos os países, os líderes buscam diminuir a contestação sobre sua legitimidade criando crises políticas para distrair a atenção da população.

As três explicações contribuem muito para o entendimento das relações entre Ucrânia e Rússia. A ênfase dada por Morrison (1993) ao papel da história nas relações entre os dois países é válida, mas a história é utilizada por ele de modo inadequado. Ao privilegiar um evento ocorrido há 350 anos, o autor reifica o significado que o episódio tem na época e o transporta para o final do século XX. Assim, as diferenças entre o contexto original de Pereyaslav e o contexto atual não são respeitadas. Isso implica a menor capacidade de indicar alternativas ao padrão de conflito existente pós-URSS. Uma abordagem complementar deve privilegiar o papel da história respeitando a maneira como ela é interpretada em perspectiva. Dessa maneira, a ênfase recai sobre o modo como o passado dá origem a novos significados no presente. Para alcançar esse objetivo, é necessário priorizar o estudo da interação entre Ucrânia e Rússia na atualidade.

A ênfase dada ao papel da identidade estatal é a maior contribuição de Kuzio (2001), que indica o processo de construção das identidades da Rússia e da Ucrânia como fonte do conflito entre os dois países. Todavia, a identidade é entendida como um sentimento comum compartilhado por setores da elite dentro da Ucrânia, os quais lutam pelo poder estatal com o objetivo de impor a sua identidade sobre os demais. Nesse processo, a percepção que se tem sobre a Rússia é fundamental. Assim, a abordagem do autor não permite entender por que a Ucrânia não se fragmenta em vários Estados, com limites estabelecidos em congruência com as diferentes identidades em disputa. A partilha da Ucrânia seria muito mais cômoda e menos custosa do que as disputas pelo governo de um Estado com várias identidades. O problema sugere a existência de uma identidade mais ampla que mantém unidos os diferentes setores da elite ucraniana. Uma abordagem complementar deve considerar essa identidade na análise.

O mérito de Kincade e Melnyczuk (1994) está em ressaltar a importância das representações a respeito do outro para o início e, posteriormente, a manutenção dos conflitos entre Ucrânia e Rússia. Entretanto, o modo como a representação é construída em sua abordagem é problemático. É facultada aos políticos a capacidade de estigmatizar um outro Estado para aumentar seu prestígio e desviar a atenção sobre seu déficit de legitimidade. Assume-se que estão em jogo apenas os interesses desses líderes, sendo difícil explicar por que os russos que vivem na Ucrânia aceitam a representação negativa da Rússia feita pela elite ucraniana. Essa falha pode ser superada por uma abordagem que privilegie os interesses do Estado, em vez dos interesses de grupos que atuam dentro do Estado. Por um lado, seria possível substituir a visão instrumental segundo a qual a elite da Ucrânia manobra a política externa a fim de se manter no poder. Por outro, a abordagem permitiria entender por que a maior parte dos russos da Ucrânia deseja a manutenção da soberania do país e aceita a representação da Rússia como uma ameaça.

No presente artigo, propõe-se que a origem dos conflitos entre Ucrânia e Rússia no pós-URSS seja buscada a partir de uma abordagem construtivista. Nela, a história da interação entre Rússia e Ucrânia imediatamente após o final da União Soviética é crucial para a definição da representação que um país tem do outro. A partir dessa interação, são construídas as identidades estatais de ambos, que não podem ser reduzidas às identidades das elites que disputam o poder político dentro dos Estados. Essas identidades dão origem a interesses, que também não podem ser reduzidos aos interesses das elites de Ucrânia e Rússia. As identidades demonstram o que os Estados "são," e os interesses indicam o que os Estados "querem". Logicamente, não é possível "querer" algo sem "ser" alguma coisa. Portanto, a abordagem teórica pressupõe a determinação dos interesses pelas identidades dos Estados.

O Construtivismo Social de Wendt

Pós-modernos e pós-estruturalistas consideram o Estado uma narrativa. Para Campbell (1992), a ameaça externa é o pretexto para se escrever constantemente a história da identidade estatal. Em McSweeney (1999), são os indivíduos que a recontam por intermédio de suas escolhas a fim de satisfazer seus interesses. Ambas as abordagens são nominalistas. Como as ações dos Estados só são percebidas por intermédio das ações individuais, os nominalistas tendem a igualar o Estado ao governo (Wendt, 1999:219). Para Wendt (idem), isso é um erro. O autor afirma que os Estados são reais, mesmo que não observáveis, pois sua estrutura gera efeitos que podem ser observados com clareza (idem:216). Contra o nominalismo, são apresentados dois argumentos. O primeiro é que os indivíduos são socializados às estruturas sociais e as reproduzem em suas ações. Por isso elas persistem ao longo do tempo, mesmo que os indivíduos não sejam mais os mesmos. O segundo afirma ser impossível atribuir legitimidade aos indivíduos que se dizem governo sem considerar o papel constitutivo da estrutura estatal sobre eles.

A partir dos efeitos observáveis, Wendt (1999:198) infere que existe um Estado essencial que é caracterizado por ter uma ordem institucional-legal, soberana e detentora do monopólio legítimo do uso da violência organizada sobre a sua sociedade, em um determinado território (idem:213). Entretanto, considerá-lo dessa maneira não implica negar a importância dos discursos. Os Estados só são o que são porque possuem uma base material e um grupo de indivíduos capaz de vinculá-la a uma narrativa. Todavia, trata-se de uma narrativa inerente ao Estado, que não depende da interação com outros Estados para se constituir. Juntas, base material e narrativa, dão origem à identidade corporativa que é a responsável por definir quem é o Estado, sendo que a sobrevivência estatal depende de sua preservação. Por isso a necessidade de preservação gera interesses objetivos para a reprodução da identidade corporativa. Estes são a sobrevivência física, a autonomia para fazer escolhas e alocar recursos, o bem-estar econômico e a auto-estima coletiva. Se esses objetivos não forem alcançados, o Estado deixa de existir (idem).

A identidade corporativa é uma plataforma para a constituição de um outro tipo de identidade: a identidade social que é definida como o significado que o Eu se atribui ao enxergar a si mesmo pela perspectiva do Outro (Wendt, 1994:385). Nesse sentido, as identidades sociais são narrativas que podem ser contadas apenas no processo de interação entre o Eu e o Outro e por isso adquirem múltiplas formas. Elas também originam interesses objetivos necessários à sua reprodução, cujo conteúdo varia conforme o tipo de identidade. Assim como em relação à identidade corporativa, erros repetidos na maneira de interpretar os interesses necessários à reprodução podem resultar na "morte" de determinada identidade social (Wendt, 1999:232).

Limites à ação estatal também são impostos pela estrutura do sistema de Estados. Analiticamente, ela é formada por dois níveis, o micro e o macro. A microestrutura refere-se à interação entre as unidades que compõem uma parte do sistema, e nela, as propriedades dos atores contribuem para a constituição da natureza da interação, mas é a estrutura da situação que determina os resultados. Nesse nível, é possível explicar tanto o comportamento de um ator isoladamente, quanto o dos outros atores que interagem na mesma situação. Por sua vez, as práticas ocorridas na microestrutura são responsáveis pela produção e reprodução da macroestrutura. Porém, por ser realizável de múltiplas maneiras, a macroestrutura não é determinada pela micro. A relação entre ambas é de superveniência: as macroestruturas não são reduzíveis às micro, mas dependem delas para existir. Uma análise feita a partir desse nível permite explicar o comportamento agregado dos atores no sistema (idem:148-156).

Em termos sociais, a microestrutura é constituída por conhecimento comum. Neste, cada ator conhece as crenças dos demais, e o aspecto intersubjetivo limita as preferências dos envolvidos. Mas o conhecimento comum também é subjetivo, pois as crenças que sustentam a interação dependem dos atores. É o tipo de conhecimento presente, por exemplo, no dilema do prisioneiro. Já a macroestrutura é constituída por conhecimento coletivo que também é intersubjetivo, porém não pode ser reduzido a crenças individuais, pois é um tipo de representação coletiva. A principal diferença entre conhecimento comum e coletivo está na forma como eles se relacionam com as crenças individuais. O conhecimento comum é reduzível ao que está na "cabeça" dos atores. Sem as crenças, ele não existe. Por outro lado, a relação com o conhecimento coletivo é de superveniência. Ele depende das "cabeças," mas não é determinado por elas.

Na abordagem construtivista, a estrutura só existe porque é sustentada pelas práticas sociais dos atores nos processos de interação. Porém, tais processos precisam criar padrões de comportamento estáveis a fim de que possam ser identificados como estrutura (idem). Nesses termos, a macroestrutura do sistema é entendida como uma estrutura de papéis que comporta a existência de várias lógicas de anarquia, cada uma regida por diferentes princípios ideacionais.

Wendt apresenta três tipos de macroestrutura: a cultura hobbesiana, cujo princípio é a inimizade; a cultura lockeana, cujo princípioéarivalidade; e a cultura kantiana, baseada no princípio da amizade. Nelas, os papéis que definem a relação entre o Eu e o Outro são os de inimigo, rival ou amigo, respectivamente. Porém, esses papéis não são reificações. Eles são reproduzidos ou transformados em um processo de permanente definição do Eu e do Outro, no plano da microestrutura.

Nesse processo, a definição das identidades ocorre por meio da seleção cultural, constituída pelos mecanismos da imitação ou do aprendizado social. A imitação corresponde à maneira como os atores reproduzem padrões culturais de sucesso que ditam o comportamento adequado entre eles. O aprendizado social é a forma pela qual as identidades são aprendidas em resposta ao modo como o Eu é tratado por um Outro significativo (idem:325-327).

A seleção cultural é duplamente condicionada. Por um lado, tanto a imitação quanto o aprendizado social são maneiras pelas quais os Estados definem o Eu em conformidade com sua identidade corporativa. Por outro, por ocorrerem na microestrutura, as práticas sociais são condicionadas pela macroestrutura. Entretanto, reconhecer o condicionamento não é o mesmo que afirmar a determinação, pois a interação entre as unidades afeta suas propriedades, e não apenas seu comportamento. Assim, as práticas de representação do Outro no processo de redefinição das fronteiras cognitivas do Eu são variáveis. Elas vão do extremo da realpolitik, na qual o Outro é tratado como inimigo, ao extremo pró-social, no qual o Outro é amigo. Sua variação é explicada pela relevância da própria ação estatal, pois as práticas sociais atreladas a um tipo de identidade podem dar origem a uma identidade diferente2 2 . "Os atores podem fazer coisas mesmo que eles ainda não possuam as identidades que essas práticas originariam. Os Estados podem, inicialmente, se engajar em práticas pró-sociais por motivos egoístas, por exemplo [...], mas, se sustentadas ao longo do tempo, tais práticas erodem as identidades egoístas e criam identidades coletivas." (Wendt, 1999:342). .

Em resumo, o construtivismo social de Wendt afirma a dependência dos interesses em relação às identidades, pois assume que os Estados possuem uma identidade corporativa anterior à interação com outros Estados3 3 . Diferindo de Wendt (1987), Wendt (1999:198) afirma que os Estados são entidades anteriores ao sistema. . Por ser uma plataforma para as identidades sociais, a identidade corporativa condiciona os interesses dos atores, não sendo possível manter o argumento de que os indivíduos são livres para fazer as escolhas que desejarem em política internacional. Além disso, são propostos modelos de estrutura que condicionam a interação entre os atores a partir de três princípios: a inimizade, a rivalidade e a amizade. Eles correspondem, respectivamente, à cultura hobbesiana, à cultura lockeana e à cultura kantiana. A existência de tais culturas depende das práticas de representação do Outro, as quais são estabelecidas a partir do processo de interação entre as unidades.Éaênfase nas práticas sociais que garante a possibilidade de mudança.

Um modelo de construção da identidade estatal

Conforme Wendt (idem), a interação entre dois Estados é fundamental para a constituição de suas identidades. Por sua vez, estas dão origem aos interesses implementados pela prática da política externa. Se as identidades forem cooperativas, é bem provável que os interesses decorrentes não sejam conflituosos. Porém, mesmo que tenham interesses contraditórios, dois países amigos irão resolver as disputas de forma amigável. Por outro lado, identidades construídas em oposição ao Outro dão origem, com maior freqüência, a interesses conflitantes. Para entender as causas que levam a relações amistosas ou beligerantes, é necessário um modelo que explique a formação das identidades. Com base no construtivismo social, sugere-se o seguinte.

A formação da identidade social do Estado é abordada a partir da noção de "avaliações refletidas". Na interação, o Eu projeta no Outro a representação que o Outro faz do Eu. Esse processo pode ser compreendido da seguinte maneira. O Eu traz consigo alguns preconceitos anteriores ao início da interação com o Outro. Se o Eu e o Outro fazem parte da mesma cultura, as duas fontes de preconceito são a identidade corporativa dos Estados e a própria experiência anterior de interação entre eles (idem:328). Como a identidade corporativa dos Estados impõe as mesmas restrições a ambos, ela não é considerada. Resta a experiência anterior. Com base nela, o Eu define o seu papel na interação, e, ao mesmo tempo, acaba definindo o papel do Outro. Assim, Eu e Outro definem a situação de interação (idem).

A interação pode ser dividida em quatro atos. No primeiro, o Eu age para demonstrar o papel que está conferindo ao Outro. Essa primeira interação é vista como a tentativa do Eu de ensinar sua definição da situação para o Outro. No segundo ato, o Outro pondera a ação do Eu e avalia se aceita ou não ocupar o papel que lhe foi oferecido. O terceiro corresponde à ação do Outro, tendo em vista sua ponderação sobre a ação do Eu. O quarto é a avaliação do Eu no que diz respeito à ação do Outro. E assim sucessivamente até que a interação termine. No final do processo, Eu e Outro terão reforçado ou transformado os papéis de cada um na interação e, conseqüentemente, as suas identidades (idem).

Suponha que a definição da situação seja dada pelo Eu que representa o Outro como uma ameaça. Portanto, o Eu assume uma atitude inimiga, de desrespeito em relação ao Outro. No segundo ato, o Outro avalia o papel que lhe fora concedido pelo Eu. Por sentir sua identidade corporativa em risco, o Outro responde ao Eu de acordo com a prática da avaliação refletida, ou seja, projeta o Eu também como inimigo. O terceiro ato, portanto, é a ação do Outro em relação ao Eu. No quarto, a atitude do Outro confirma a expectativa do Eu, e reforça o papel de inimigo que havia sido estabelecido na definição da situação. Desse modo, cria-se entre os dois a identidade de inimigo e os interesses decorrentes de tal identidade, por serem conflitantes, contribuirão para que ambos reproduzam as fronteiras cognitivas da inimizade. Quando a interação entre Eu e Outro é recorrente, a definição prévia das práticas representacionais funciona como um "estoque" de conhecimento, e contribui para a reprodução da estrutura de interação (idem).

Nesses casos, o conceito de articulação proposto por Weldes (1996) é de grande valia. A articulação é a maneira como diferentes recursos lingüísticos são relacionados em cadeias de significados com objetivo de criar representações do mundo. Estas são contextuais e contingentes e têm como alvo objetos, eventos ou relações sociais. Assim como na definição das identidades, os significados precisam ser continuamente reproduzidos. Caso isso não ocorra, a cadeia de elementos lingüísticos associados a um significado pode ser desfeita e rearticulada, dando origem a outros significados. Porém, Weldes (idem) reconhece que a realidade impõe restrições à construção de representações pelo processo de articulação, o que permite utilizar o conceito de articulação em conformidade com a identidade corporativa dos Estados.

Em suma, o modelo sugere que a interação entre Eu e Outro é fundamental para a construção das identidades. Por sua vez, o processo de formação das identidades é regido pelo princípio das "avaliações refletidas". No início, os atores trazem consigo identidades definidas em interações anteriores e a partir delas é definida a situação de interação. Durante o processo interativo, as identidades são reproduzidas ou transformadas, dependendo do quanto os atores aceitam os papéis conferidos pelo Outro. Subjacente à interação está a lógica da articulação, que explica como as práticas de representação do Outro são construídas a partir dos recursos lingüísticos disponibilizados pela cultura.

A Identidade Social entre Ucrânia e Rússia no Pós-URSS

No caso em questão, as estratégias de interação adotadas a partir do desmembramento da URSS são cruciais para a construção da relação entre as ex-repúblicas socialistas, pois é de acordo com elas que a situação de interação é definida. A falta de reconhecimento da soberania de um país afeta a sua auto-estima coletiva, na medida em que esta depende de imagens positivas ou negativas que um outro país faz dele. Assim, quando o reconhecimento ocorre de imediato, é provável que as relações entre os países sejam mais cooperativas e menos competitivas, pois as identidades não são constituídas em oposição uma à outra (Wendt, 1999:237). Como será visto, não é isso que ocorre na relação entre Ucrânia e Rússia.

A fim de facilitar a aplicação do modelo, a avaliação e a ação são reunidas em um único ato. Desse modo, é possível identificar quatro etapas no processo de construção da identidade social na relação entre Rússia e Ucrânia. Assume-se que a Rússia incorpora o papel de Eu e a Ucrânia o papel do Outro.

Primeira etapa: a Ucrânia como parte da Rússia

Após o fim da URSS, a Rússia não aceita a independência da Ucrânia, pois considera que, junto com a Bielo-Rússia, os três países compõem uma mesma nação eslava (Rumer, 1994). Nesse sentido, a declaração de independência da Ucrânia é respondida com uma nota emitida pelo escritório de imprensa da Presidência da Rússia, segundo a qual o país se reservava o direito de questionar as fronteiras com os demais países da antiga URSS, menos com as Repúblicas do Báltico (Tolz, 2002). A atuação russa no âmbito da Comunidade dos Estados Independentes (CEI) é reflexo dessa postura (D'Anieri et alii, 1999).

Nesse sentido, a criação da Comunidade "[...] foi, indubitavelmente, motivada pelo desejo da Rússia de defender seus interesses e influência nas partes-chave da antiga União" (Rakowska-Harmstone, 1992:545). Sob pressão russa, o documento que dá origem à CEI prevê a manutenção de um espaço econômico e militar unitário, englobando as Repúblicas da antiga URSS, menos a Letônia, a Lituânia e a Estônia. O acordo também prevê uma política exterior comum a todos os países (Morrison, 1993:689). Todavia, é o princípio da transparência das fronteiras dentro da Comunidade que afasta a Ucrânia das estruturas da organização. Tal princípio significa, na prática, que os países da CEI não têm direito ao reconhecimento de sua integridade territorial pelos outros membros (Tolz, 2002).

Segunda etapa: a "doença imperial" da Rússia

A intenção de se afastar da influência russa é anunciada logo no discurso de posse de Kravchuk, no dia 5 de dezembro de 1991, no qual o presidente ucraniano se refere ao seu país como o mais novo Estado europeu, o que busca se integrar às estruturas européias (Solchanyk, 1991). Essa vontade se faz sentir ao longo do mês, por causa da postura ucraniana em relação à CEI. A Comunidade é percebida pela Ucrânia como instrumento capaz de proporcionar um "divórcio civilizado" entre os antigos membros da URSS, no âmbito da qual apenas as decisões referentes ao desarmamento nuclear devem ser consideradas com zelo.

Algumas medidas ilustram essa posição. Uma semana após o encontro de Minsk, o parlamento ucraniano ratifica a criação da CEI com uma emenda que enfatiza o direito da Ucrânia de abandonar a estrutura de defesa comum da Comunidade após o desarmamento nuclear do país (Mihalisko, 1991). No dia 17 de dezembro de 1991, o então presidente da Comissão de Relações Exteriores do parlamento ucraniano e conselheiro de Kravchuk, Dmitrii Pavlychko, reforça essa postura ao definir a CEI como um sistema temporário que poderia ser descartado após a destruição dos armamentos nucleares (Sheehy, 1991). O próprio presidente manifesta suas reservas quanto à CEI. Às vésperas do encontro de Alma-Ata, realizado no dia 21 de dezembro, Kravchuk reitera que a Ucrânia só faria parte da Comunidade se ela não se transformasse em um Estado (Nahaylo, 1991). Nesse sentido, além do ingresso das outras ex-repúblicas soviéticas, o encontro de Alma-Ata traz resultados positivos apenas na questão do desarmamento nuclear. Ucrânia, Bielo-Rússia e Cazaquistão comprometem-se a entregar suas ogivas nucleares para que sejam desmontadas na Rússia, sob supervisão conjunta (Clarke, 1991).

Por considerar a CEI dessa forma, a Ucrânia trata de assegurar uma postura independente em relação às suas próprias forças convencionais de defesa. No dia 13 de dezembro de 1991, Kravchuk assina um decreto criando as forças armadas do país a partir das instalações militares soviéticas, inclusive da FMN (Mihalisko, 1991). Tal medida, porém, não é aceita pelos membros da CEI, pois a FMN é equipada com armamentos estratégicos. Na polêmica acerca da FMN, três posições se destacam: a Ucrânia defende sua legitimidade em reclamar o controle da FMN, uma vez que esta está localizada em seu território; a Rússia também alega ter direito à FMN, reafirmando a importância histórica de Sevastopol para o passado russo; já o comando militar da CEI afirma que a Frota deve ficar sob sua jurisdição, pois os acordos militares firmados em Alma-Ata estabelecem que armamentos estratégicos fiquem sob controle conjunto dos países-membros da Comunidade.

Nesse contexto, no dia 8 de janeiro de 1992, a Agência Nacional de Informação da Ucrânia divulga um protesto contra a tendência de alguns membros da CEI a transformar a Ucrânia em bode expiatório para os problemas existentes entre seus membros. De acordo com a nota, a Ucrânia estaria sendo acusada de violar os acordos da CEI na esfera militar, especificamente no que se referia à FMN. Pela primeira vez, líderes russos são acusados de tentar recriar estruturas militares imperiais, ao exigirem que forças militares estacionadas em território ucraniano não obedecessem ao comando de Kiev (Mihalisko, 1992a).

No dia 10 de janeiro, Kravchuk afirma que Boris Yeltsin e outros líderes russos deveriam "abandonar o hábito de pensar imperialmente", referindo-se às pretensões russas sobre a FMN (Nahaylo, 1992a). Poucos dias depois, em um comunicado veiculado pela TV e pelo rádio à população ucraniana, o presidente avisa que os interesses imperiais russos haviam chegado ao limite do desrespeito ao Estado ucraniano (Solchanyk, 1992a). Quando as pretensões russas em relação à FMN incluem a discussão sobre o estatuto da Criméia, Kravchuk refere-se à postura da Rússia como "doença imperial" (Solchanyk, 1992b).

Terceira etapa: pretensões russas sobre a Criméia

No momento em que a Ucrânia reafirma sua vontade de controlar a FMN, o parlamento russo inicia o debate acerca da legitimidade da transferência da Criméia da URSS para a Ucrânia, ocorrida em 1954. Já em tramitação pelas comissões parlamentares, o assunto é reintroduzido na pauta de discussão como resposta às assertivas ucranianas. Caso a Criméia não fosse considerada parte da Ucrânia, o argumento ucraniano de que a FMN deveria ser controlada por ela por estar localizada em seu território perderia a validade. Assim, no dia 23 de janeiro de 1992, o parlamento russo instrui as comissões de relações exteriores e de legislação para que se manifestem sobre a legitimidade da transferência até o início de fevereiro. Na mesma sessão, os deputados russos pedem ao parlamento ucraniano que também se debruce sobre o tema. Além disso, um outro pedido é feito: os russos queriam que o processo de negociação sobre a FMN fosse acelerado pelos colegas da Ucrânia (Sheehy, 1992a).

A vinculação entre os dois temas não havia sido fruto do acaso. Conforme relatado pelo Toronto Globe and Mail, uma carta secreta enviada pelo presidente da comissão de relações exteriores do parlamento russo, Vladimir Lukin, para o presidente da Casa, Ruslan Khasbulatov, sugeria que os dois assuntos fossem tratados simultaneamente. Assim, seria possível pressionar a Ucrânia a escolher entre o controle da FMN ou a manutenção da Criméia como parte de seu território (Sheehy, 1992b).

Não é apenas no parlamento russo que a discussão ganha destaque. A importância dessas questões para a política externa fica evidente no dia 30 de janeiro de 1992, quando o ministro das Relações Exteriores da Rússia emite uma nota sobre o assunto. Esta afirma que a decisão do parlamento de rever a transferência da Criméia para a Ucrânia não tem a intenção de incentivar o confronto entre os dois países. Para o chanceler russo, a atitude é construtiva, o que fica claro com a solicitação para que o parlamento ucraniano também aprecie a questão. Por fim, a nota afirma a disposição do governo russo em resolver as questões bilaterais com a Ucrânia por meios pacíficos, citando que a ausência de diálogo estaria atrasando a resolução das disputas sobre a Criméia e a Frota do Mar Negro (Solchanyk, 1992c).

O tom apaziguador da declaração russa não surte o efeito esperado, pois na Criméia (o pomo de discórdia entre os dois países) tem início outra campanha de coleta de assinaturas para a realização de um referendo sobre a independência da região (Solchanyk, 1992d). Organizada pelo Movimento Republicano da Criméia (MRC), composto majoritariamente por russos nacionalistas, a campanha obtém resultados significativos em um curto espaço de tempo. Em dez dias, mais de 20 mil assinaturas são coletadas (Solchanyk, 1992e). No parlamento da Criméia, o MRC pressiona para que medidas afastando a República do controle ucraniano sejam adotadas. Nesse sentido, o parlamento inicia a discussão de uma nova Constituição e altera o nome da República, que passa a se chamar apenas República da Criméia. A mudança implica a omissão da referência ao seu caráter de república "autônoma" dentro da Ucrânia (Solchanyk, 1992f).

Quarta etapa: a questão nuclear

A resposta ucraniana às pretensões imperiais russas é dramática. De acordo com o estabelecido em Alma-Ata, as armas nucleares localizadas na Ucrânia deveriam ser transportadas para a Rússia a fim de que fossem desmanchadas. Esse processo tivera início em janeiro, com encerramento previsto para julho de 1992. Porém, no dia 12 de março, a Ucrânia anunciou que a transferência havia sido cancelada. Segundo Kravchuk, uma vez em território russo, não existiam garantias de que as armas seriam realmente destruídas, de que estariam sob o controle adequado, ou mesmo de que não cairiam em mãos erradas (Mihalisko, 1992b). A incerteza sobre esses pontos, bem como a crescente instabilidade política na relação entre os dois países são os aspectos citados pelo presidente ao justificar sua decisão.

A Ucrânia teme que a Rússia esteja estocando as armas nucleares ao invés de desmanchá-las, o que enfraqueceria o país caso fosse necessário recorrer ao "equilíbrio do terror" para se contrapor às pretensões territoriais russas. Mykola Mykhalchenko, assessor presidencial para assuntos de segurança, afirma que a transferência das armas para a destruição só seria reiniciada caso o Ocidente pudesse monitorar seu destino em território russo. De acordo com ele, a Ucrânia tem "todos os motivos para não confiar nos líderes da Rússia" (Nahaylo, 1992b).

Os eventos ocorridos em abril ilustram bem esses motivos. No dia 4, durante visita à Criméia, o vice-presidente da Rússia, Aleksandr Rutskoi, afirma que a FMN havia sido e iria continuar sendo russa (Clarke, 1992a). Dois dias depois, o presidium do Soviete Supremo ucraniano acusa o vice-presidente russo de interferência direta nos assuntos internos da Ucrânia. No mesmo dia, Kravchuk emite um decreto afirmando que todas as formações militares em território ucraniano deveriam obedecer ao ministro de Defesa do país (Clarke, 1992b). No dia seguinte, um decreto assinado por Yeltsin transfere a FMN para a jurisdição da Rússia. O ministro da Defesa russo argumenta ao parlamento que o documento era uma resposta direta ao decreto de Kravchuk do dia anterior (Mihalisko, 1992c), pois com ele a Ucrânia passaria a controlar a FMN. O presidente da Ucrânia acusa a Rússia de tratar o seu país como um inimigo e defende-se afirmando que seu decreto havia sido necessário para garantir o controle sobre as armas nucleares em território ucraniano (Mihalisko, 1992d).

No dia 8 de abril, o parlamento ucraniano emite um comunicado afirmando que o decreto de Yeltsin deveria ser entendido como "uma verdadeira declaração de guerra contra a Ucrânia independente" (Mihalisko, 1992e). Um dia depois, o Soviete Supremo da Ucrânia ratifica a suspensão da transferência de armamentos nucleares da Ucrânia para a Rússia (Mihalisko, 1992f).

A relação entre o comunicado do parlamento e a ratificação das medidas de Kravchuk é evidente: a fim de proteger a sua integridade territorial, a Ucrânia reforça sua posição para garantir que os armamentos nucleares permanecessem sob seu controle. Desse modo, o fator nuclear deveria ser levado em conta pelos russos antes que qualquer ameaça contra o país pudesse ser concretizada.

Com a iminência de uma guerra, Kravchuk e Yeltsin concordam em anular seus decretos sobre a FMN e em estabelecer uma comissão parlamentar conjunta para resolver a disputa (Clarke, 1992c). Após o entendimento, e em grande parte por causa da forte pressão internacional, a Ucrânia reinicia a transferência das armas nucleares para o desmonte na Rússia, no dia 17 de abril (Clarke, 1992d). Porém, a insegurança quanto ao país vizinho permanece. No dia 28, Kravchuk pede ao Ocidente que garanta a integridade territorial ucraniana quando esta não contar mais com as armas nucleares, pois o presidente temia que a Ucrânia acabasse vítima de "chantagem nuclear" da Rússia. Segundo ele, as pretensões da Rússia sobre o território ucraniano seriam motivos suficientes para o receio (Mihalisko, 1992g).

Ucrânia, Rússia e OTAN

A expansão da OTAN é vista com receio por alguns analistas. Segundo eles, o maior perigoéadivisão entre países-membros e países não-membros, e as implicações que tal diferenciação pode ter para a segurança do continente (Garnett, 1997). A suposta linha divisória cria duas categorias de Estados. Os outsiders são os Estados que não fazem parte da organização e os insiders são os seus membros efetivos. O risco está nos efeitos que o sentimento de exclusão pode exercer sobre a percepção que os outsiders têm a respeito de sua segurança (Light et alii, 2000).

Nesse contexto, a oposição da Rússia à expansão da Aliança é fundamental. Em decorrência da postura russa, Estados localizados entre a OTAN e a Rússia receiam os efeitos que as medidas adotadas pelo país para contrabalançar o avanço da organização possam ter sobre eles. Por isso, o ingresso da Polônia, da Hungria e da República Tcheca, em 1999, e dos países do Báltico, da Romênia, da Eslováquia e da Bulgária, em 2004, afeta diretamente as percepções de segurança da Bielo-Rússia e da Ucrânia. Diante desse quadro, esses países podem optar por uma política externa orientada para o ingresso na OTAN, ou por uma política externa voltada para o estreitamento dos laços militares com a Rússia no âmbito da CEI. Dada sua importância regional, a opção por uma dessas alternativas reflete o modo como a identidade social desses Estados é construída na relação com a Rússia.

Duas posturas são esperadas. Os Estados que não percebem sua identidade corporativa ameaçada pela Rússia tendem a desenvolver relações amistosas com o país. A partir destas, consolida-se uma identidade social regida pelo princípio da amizade. Como as identidades determinam os interesses, as relações entre amigos envolvem interesses comuns. Desse modo, a percepção de ameaça à identidade corporativa por parte da Rússia é compartilhada por um Estado amigo e ambos tomam precauções para se proteger do perigo. O Estado amigo alinha-se à Rússia e busca fortalecer os interesses comuns no âmbito da CEI. Por sua vez, os Estados que enxergam a Rússia como uma ameaça interagem com ela a partir do princípio da inimizade. Nesses casos, a identidade social construída na interaçãoéadeinimigo. Identidades conflitantes originam interesses divergentes, o que explica por que a opção dos países que temem a Rússiaéabusca de laços mais estreitos com a OTAN.

A relação entre Ucrânia e Rússia enquadra-se no segundo caso, pois a identidade social construída entre os países no pós-URSS é regida pelo princípio da inimizade. Por isso a aproximação da Ucrânia com a OTAN é paulatina. Ao declarar sua independência, o país anuncia sua adesão ao princípio da neutralidade em questões militares. Por um lado, o princípio é utilizado para não despertar maiores temores na Rússia em relação a um possível ingresso imediato da Ucrânia na organização. Por outro lado, a posição de neutralidade impede um acordo militar no âmbito da CEI, o que resguarda o país da influência russa (Balmaceda, 1998b). Desse modo, a Ucrânia supera um momento delicado, protegendo-se da Rússia, ao mesmo tempo que fortalece seus laços com a Aliança sem aderir formalmente a ela. Na época da independência, os custos de uma adesão imediata à OTAN poderiam superar os benefícios, uma vez que os países ocidentais reagem com apreensão ao fim da URSS (Arel, 1999).

A Ucrânia é o primeiro país da CEI a integrar o projeto Parceria para Paz (PfP, em inglês)4 4 . O PfP foi criado em 1994 com o objetivo de promover a cooperação entre os antigos membros do Pacto de Varsóvia e a OTAN. . Esse feito ilustra bem sua estratégia. Ingressar no PfP é ter a garantia de que ameaças ao país são discutidas na Aliança por intermédio de consultas com seus membros. Embora os membros que ingressaram no projeto não façam parte formalmente de um mecanismo de segurança coletiva, o envolvimento das partes dá origem a um compromisso moral. De fato, um ano após o ingresso da Ucrânia no PfP, o Conselho do Atlântico Norte (NAC, em inglês) manifesta o apoio a sua soberania, a sua independência política e a sua integridade territorial. Ao mesmo tempo, o Conselho pressiona o país para estabelecer relações harmoniosas com seus vizinhos. A ameaça da Rússia de se retirar do Tratado sobre Forças Convencionais na Europa (CFE, em inglês) e de não ratificar o Tratado para Redução de Armamentos Estratégicos (START II, em inglês) é uma reação a esse tipo de relacionamento. Com sutileza, os participantes do PfP estabelecem vínculos com a OTAN que superam a pretensa neutralidade dos chamados "mecanismos de consulta".

No começo de 1997, o "Conceito de Segurança Nacional" é aprovado pelo parlamento ucraniano. O documento indica o abandono do princípio da neutralidadeeavontade do país de pertencer a estruturas de segurança internacional (Balmaceda, 1998b). Em vez de represálias russas, a Ucrânia é brindada com um tratado em que ambos os países reconhecem a integridade de seus territórios. A reação inesperada ocorre porque as negociações sobre o Ato Fundador das Relações Mútuas com a RússiaeaParceria Distinta com a Ucrânia estão em curso com a OTAN. Para que estes acordos bilaterais sejam concluídos, é necessário que Rússia e Ucrânia reconheçam a inviolabilidade de suas fronteiras, pois a organização não se compromete com países envolvidos em disputas territoriais (Arel, 1999). Assim, a Aliança acaba sendo um fator-chave para a assinatura do tratado. No ano em que a Ucrânia abandona a neutralidade, a Rússia reconhece sua integridade territorial.

À proporção que os laços entre OTAN e Ucrânia se fortalecem, o comprometimento moral consolida-se. Com o tempo, a relação tende a institucionalizar-se. Um exemplo desta institucionalização é a Carta sobre Parceria Distinta. Nela, a garantia buscada pela Ucrânia é enunciada em um de seus princípios. De acordo com ele, Ucrânia e OTAN concordam que é inaceitável a existência de esferas de influência no continente. A defesa desse princípio é uma maneira de a Ucrânia se opor aos interesses russos na Europa do Leste. Portanto, a Carta representa um avanço em direção ao que a Ucrânia espera da OTAN: proteção contra a ameaça russa. Por isso, após sua assinatura, as relações com a organização deslancham. Outros exemplos de institucionalização compreendem o I Programa Nacional de Cooperação da Ucrânia com a Aliança (em 1998), a designação da Área Militar de Yaroviv como Centro de Treinamento do PfP (em 1999) etc.

O contraste com a relação entre a OTAN e a Rússia é nítido. O país aproxima-se da Aliança para tentar interferir nas decisões que afetam seus interesses, e não para se proteger de algum perigo. De fato, o Ato Fundador das Relações Mútuas indica que a maior ameaça às partes são elas próprias. Nele, em um dos princípios que regem suas relações, Rússia e OTAN comprometem-se a não utilizar a força contra elas mesmas. Em outro, ambas aceitam que haja transparência na criação e implementação de doutrinas militares e políticas de segurança. Por se basear na desconfiança mútua, a estrutura criada a partir do Ato Fundador torna-se ineficaz em momentos de crise, conforme demonstrado nas operações militares da organização no Kosovo.

Em 2001, o terrorismo global surge como uma ameaça capaz de estreitar os laços entre a Rússia e a Aliança. Nesse sentido, os atentados de setembro dão impulso para a cooperação. Com a nova situação, a estrutura obsoleta do Conselho de Parceria Conjunta (JPC, em inglês) é substituída pelo Conselho OTAN-Rússia (NRC, em inglês). Porém, as ressalvas da Rússia quanto à organização persistem. A condição de que os países do Báltico devem aderir ao CFE antes do ingresso na OTAN é um sinal de que a velha percepção russa sobre a expansão da Aliança ainda persiste.

Em resumo, a identidade social na relação entre Ucrânia e Rússia é a de inimigo. Nesse sentido, as percepções sobre seus interesses divergem: ambas vêem a expansão da OTAN de modo diferente. No caso da Ucrânia, a percepção da Rússia como ameaça leva o país a estreitar os laços com a OTAN e a apoiar sua expansão, em busca de proteção à sua identidade corporativa. Implementada de modo gradual, a estratégia de aproximação dá resultados na medida em que o compromisso moral entre a Ucrâniaeaorganização se fortalece. Aos poucos, o comprometimento moral institucionaliza-se em atos de cooperação. Por outro lado, a Rússia percebe a expansão da OTAN como uma ameaça, pois a organização é capaz de garantir a identidade corporativa dos antigos membros da URSS. Isso vai de encontro aos interesses russos, principalmente em relação aos países com os quais a Rússia não tem bom relacionamento. Sua desconfiança sobre as intenções da Aliança determina a fragilidade dos vínculos com a organização.

Considerações Finais

Quando ocorre a declaração de independência da Ucrânia, a Rússia nega a existência autônoma desta. A postura russa fundamenta-se na existência de uma suposta "nação eslava", constituída pela Rússia, a Ucrânia e a Bielo-Rússia. Em virtude disso, a Ucrânia é considerada como uma parte da Rússia, sem direito à independência. O fato de 25% da população ucraniana ser de etnia russa e de 50% da população do país falar russo como primeira língua contribui para essa percepção. A Ucrânia denuncia a "mentalidade imperial" russa e boicota os acordos da Comunidade dos Estados Independentes (CEI), considerada um instrumento para a promoção dos desígnios da Rússia. Os documentos que dão origem à Comunidade prevêem a manutenção de um espaço econômico e militar unitário, bem como a elaboração de uma política exterior comum. Para a Ucrânia, aceitar essas condições é abandonar o desejo de independência. Em resposta à postura ucraniana, a Rússia inicia o processo de revisão da transferência da Criméia para a Ucrânia. Na região, cuja população russa chega a 70%, russos nacionalistas coletam assinaturas visando à realização de um referendo sobre sua independência. A Rússia também expressa sua decisão de manter a posse da FMN. Com medo das pretensões russas, a Ucrânia assegura temporariamente a posse de seu arsenal nuclear para se defender, o que implica romper com os acordos sobre a remoção das armas nucleares da Ucrânia para a Rússia a fim de que fossem desmanchadas. Esta decisão é ratificada pelo parlamento ucraniano em meio a uma "guerra de decretos" entre os dois países sobre a posse da FMN. Na iminência de uma guerra real, a Ucrânia reforça sua posição para garantir que os armamentos nucleares permaneceriam sob seu controle.

Definida nesse processo, a identidade social construída na interação entre Ucrânia e Rússia é de inimigo. A afirmação é ainda mais relevante quando a segurança de ambos está em jogo. Esse é o motivo pelo qual a reação dos dois países à expansão da OTAN é utilizada para ilustrar o argumento central do artigo. Todavia, a aplicação do modelo não deve se restringir a essa análise. Estudar as relações entre Ucrânia e Rússia a partir da perspectiva proposta implica localizar as causas dos conflitos das áreas militar, econômica, social e política no modo como as identidades são construídas. Algumas considerações sobre um episódio recente entre Ucrânia e Rússia ilustram as possibilidades aceitas pelo modelo.

De setembro de 2003 a janeiro de 2004, Ucrânia e Rússia enfrentam uma de suas piores crises após a tumultuada década de 1990. Nesse período, a Rússia inicia a construção de uma represa entre a costa russa de Krasnodar e a Ilha de Tuzla, pertencente à Ucrânia. Para a Rússia, a construção da represa é justificada para evitar a erosão da costa no lado russo. A Ucrânia envia tropas à Ilha, pois a represa afetaria a navegação no Estreito de Kerch, que liga o Mar Negro ao Mar de Azov, de onde o país retira algumas receitas ao cobrar taxas de passagem dos navios russos. Apenas em janeiro de 2004 a Rússia ordena que a construção da represa seja paralisada. Isso ocorre depois que um incidente entre navios russos e ucranianos obriga o presidente da Ucrânia a interromper uma viagem que fazia pelo Brasileoforça a voltar imediatamente para Kiev a fim de se encontrar com o presidente russo. Na época, é cogitada a possibilidade de um conflito militar localizado entre os dois países. Felizmente, este é contornado. Porém, as causas do incidente em Tuzla revelam que as relações entre Ucrânia e Rússia continuam marcadas pela desconfiança. Moscou utiliza a construção da represa como pretexto para controlar o Estreito de Kerch, pois os russos temem que a Ucrânia aprove uma lei conferindo ao Mar de Azov o mesmo status conferido ao Mar Negro, no que diz respeito às fronteiras da Ucrânia com a Rússia. No Mar Negro, a fronteira marítima entre os dois países é separada por uma zona neutra de águas internacionais. Isso permite que qualquer tipo de embarcação, inclusive navios de guerra da OTAN, naveguem pela região. A possibilidade de navios da OTAN em águas tão próximas faz a Rússia tomar medidas para controlar o Estreito de Kerch, na expectativa de que o governo da Ucrânia aceite um acordo fronteiriço favorável aos interesses russos. Aparentemente, os princípios de um acordo político alcançado após o incidente favorecem os dois países. A vantagem da Ucrânia é que as fronteiras do Mar de Azov serão finalmente demarcadas, após anos de protelação russa. Para satisfação russa, não haverá uma zona neutra de águas internacionais, e o Estreito de Kerch ficará sob o controle conjunto dos dois países. Assim, a Rússia pode vetar a passagem de navios de guerra da OTAN pelos canais de navegação (Krushelnicky, 2004).

O incidente demonstra que o princípio de inimizade ainda rege as relações entre os dois países, pois nas formas de negociação convencional a pressão militar não é usada para forçar o outro a fazer concessões. Recorrendo a esses expedientes, os dois países reconhecem que sua relação é diferente daquelas envolvendo países amigos ou rivais.

Desse modo, acabam reproduzindo o padrão de inimizade característico de seu relacionamento. Romper com esse ciclo implica introduzir novas práticas entre os dois países, o que, por sua vez, depende dos novos significados que algumas práticas sociais adquirem ao longo da interação. Só assim será possível transformar a identidade social da relação entre eles. Só assim Ucrânia e Rússia deixarão de ser inimigas para se tornarem rivais e, talvez algum dia, amigas.

Notas

Artigo recebido em outubro de 2004 e aprovado para publicação em janeiro de 2006.

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  • 1
    . Vale lembrar que a minoria russa permanece na Ucrânia após sua independência por causa da promessa de que a prosperidade econômica do país viria antes e seria mais duradoura do que a da Rússia.
  • 2
    . "Os atores podem fazer coisas mesmo que eles ainda não possuam as identidades que essas práticas originariam. Os Estados podem, inicialmente, se engajar em práticas pró-sociais por motivos egoístas, por exemplo [...], mas, se sustentadas ao longo do tempo, tais práticas erodem as identidades egoístas e criam identidades coletivas." (Wendt, 1999:342).
  • 3
    . Diferindo de Wendt (1987), Wendt (1999:198) afirma que os Estados são entidades anteriores ao sistema.
  • 4
    . O PfP foi criado em 1994 com o objetivo de promover a cooperação entre os antigos membros do Pacto de Varsóvia e a OTAN.
  • *
    Este artigo é uma versão resumida de Mielniczuk (2004).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      12 Ago 2010
    • Data do Fascículo
      Jun 2006

    Histórico

    • Aceito
      Jan 2006
    • Recebido
      Out 2004
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