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O processo de institucionalização da condicionalidade política na União Européia e sua eficácia como um instrumento de promoção da democracia

The process of institutionalization of political conditionality in the European Union and its eficacy as an instrument of democracy

Resumos

Pode-se verificar, desde o final da década de 1990, uma tendência de institucionalização da condicionalidade política em diversas instituições internacionais. Estas instituições têm tornado explícita a importância do respeito, por parte dos Estados participantes, ao Estado de direito, aos direitos humanos e à democracia; têm também criado mecanismos de controle, supervisão e promoção destes princípios. A forma como tais princípios têm sido institucionalizados, os instrumentos disponíveis para garantir sua aquiescência, a aquiescência efetiva e seu efeito sobre os Estados-membros variam de acordo com cada instituição. Este artigo analisa o caso da União Européia. Apesar do consenso sobre os valores democráticos entre seus membros fundadores, foi somente em 1997, com o Tratado de Amsterdã, que eles se tornaram uma condição formal para a participação no processo de integração. O presente artigo procura responder, primeiramente, como, e por que, a condicionalidade política tem sido institucionalizada na União Européia, explorando dois fatores em particular: 1) o processo de ampliação do processo de integração e 2) crises políticas específicas que ocorreram nos Estados-membros. Adicionalmente, o artigo indaga se a condicionalidade pode ser considerada um instrumento efetivo de promoção da democracia. Busca-se analisar se a intervenção a favor da democracia tem um efeito qualitativo sobre os regimes domésticos, ou seja, explora-se os limites do uso da condicionalidade política como um instrumento de promoção e defesa da democracia.

Integração Regional; União Européia; Áustria; Condicionalidade Democrática


Promotion Political conditionality has been institutionalized in many international institutions since the end of the 1990s. These institutions have been making it more explicit the importance of the respect, on the part of its participants, of the Rule of Law, Human Rights and Democracy, and have been creating mechanisms of control and promotion of these principles. The form how these principles have been institutionalized, and the available instruments to guarantee their compliance, the effective compliance, and its effects upon Member-States varies with each institution. The present article analyses the case of the European Union. Despite the consensus about democratic values among its founding members, it was only in 1997, with the Treaty of Amsterdam, that they became a formal condition to participate in the process of integration. This article addresses firstly, how, and why political conditionality has been institutionalized in the European Union, exploring two factors in particular: the process of enlargement, and specific political crises. In addition, the article inquires whether political conditionality can be considered an effective instrument of democracy promotion. It analyses whether interventions in favor of democracy have a qualitative effect upon domestic governments, in other words, it explores the limits of the use of the political conditionality as an instrument of defense and promotion of democracy.

Regional Integration; European Union; Austria; Democratic Conditionality


ARTIGO

O processo de institucionalização da condicionalidade política na União Européia e sua eficácia como um instrumento de promoção da democracia

The process of institutionalization of political conditionality in the European Union and its eficacy as an instrument of democracy

Andrea Ribeiro HoffmannI; Danilo Marcondes de Souza NetoII

IDoutora pela Universidade de Tuebingen (Alemanha), professora-assistente e coordenadora da Graduação do Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (IRI/PUC-Rio)

IIBacharel em Relações Internacionais pelo IRI/PUC-Rio

RESUMO

Pode-se verificar, desde o final da década de 1990, uma tendência de institucionalização da condicionalidade política em diversas instituições internacionais. Estas instituições têm tornado explícita a importância do respeito, por parte dos Estados participantes, ao Estado de direito, aos direitos humanos e à democracia; têm também criado mecanismos de controle, supervisão e promoção destes princípios. A forma como tais princípios têm sido institucionalizados, os instrumentos disponíveis para garantir sua aquiescência, a aquiescência efetiva e seu efeito sobre os Estados-membros variam de acordo com cada instituição. Este artigo analisa o caso da União Européia. Apesar do consenso sobre os valores democráticos entre seus membros fundadores, foi somente em 1997, com o Tratado de Amsterdã, que eles se tornaram uma condição formal para a participação no processo de integração. O presente artigo procura responder, primeiramente, como, e por que, a condicionalidade política tem sido institucionalizada na União Européia, explorando dois fatores em particular: 1) o processo de ampliação do processo de integração e 2) crises políticas específicas que ocorreram nos Estados-membros. Adicionalmente, o artigo indaga se a condicionalidade pode ser considerada um instrumento efetivo de promoção da democracia. Busca-se analisar se a intervenção a favor da democracia tem um efeito qualitativo sobre os regimes domésticos, ou seja, explora-se os limites do uso da condicionalidade política como um instrumento de promoção e defesa da democracia.

Palavras-chave: Integração Regional – União Européia – Áustria – Condicionalidade Democrática

ABSTRACT

Promotion Political conditionality has been institutionalized in many international institutions since the end of the 1990s. These institutions have been making it more explicit the importance of the respect, on the part of its participants, of the Rule of Law, Human Rights and Democracy, and have been creating mechanisms of control and promotion of these principles. The form how these principles have been institutionalized, and the available instruments to guarantee their compliance, the effective compliance, and its effects upon Member-States varies with each institution. The present article analyses the case of the European Union. Despite the consensus about democratic values among its founding members, it was only in 1997, with the Treaty of Amsterdam, that they became a formal condition to participate in the process of integration. This article addresses firstly, how, and why political conditionality has been institutionalized in the European Union, exploring two factors in particular: the process of enlargement, and specific political crises. In addition, the article inquires whether political conditionality can be considered an effective instrument of democracy promotion. It analyses whether interventions in favor of democracy have a qualitative effect upon domestic governments, in other words, it explores the limits of the use of the political conditionality as an instrument of defense and promotion of democracy

Keywords: Regional Integration – European Union – Austria – Democratic Conditionality

Introdução

Pode-se verificar, principalmente a partir do final da década de 1990, que várias instituições têm tornado explícita a importância do respeito, por parte dos Estados participantes, ao Estado de Direito, direitos humanos e democracia, e criado mecanismos de controle, supervisão e promoção destes princípios. Emoutras palavras, é possível identificarumprocesso de institucionalização da condicionalidade política no âmbito internacional. Como exemplo, podem ser citadas organizações regionais como o Conselho da Europa e a Organização dos Estados Americanos (OEA), organizações de integração regional tais como a União Européia (UE) e o Mercosul, acordos bilaterais como os da União Européia com vários parceiros, e até mesmo a Organização das Nações Unidas, com a criação do Fundo para a Democracia (United Nations Democracy Fund – Undef), em julho de 2005. A forma como estes princípios têm sido institucionalizados, os instrumentos disponíveis para garantir sua aquiescência, a aquiescência efetiva, e seu efeito sobre os Estados-membros variam de acordo com cada instituição.

Este artigo analisa o caso da União Européia.1 1. Para simplificação, o termo União Européia será usado também em referência às Comunidades Européias. Apesar do consenso sobre os valores democráticos entre seus membros fundadores, foi somente em 1997, com o Tratado de Amsterdã, que tais valores se tornaram uma condição formal para a participação no processo de integração. O presente artigo procura responder primeiramente como, e por que, a condicionalidade política tem sido institucionalizada na União Européia. Uma série de fatores pode explicar a institucionalização de normas no nível internacional. Perspectivas neo-institucionalistas referem-se aos interesses racionais dos atores envolvidos (neo-institucionalismo racional), a fatores históricos e contextos institucionais (neo-institucionalismo histórico) e às estruturas ideacionais e identidade dos atores (neo-institucionalismo sociológico).2 2. Sobre as perspectivas neo-institucionalistas, ver, por exemplo, Pollack (2004) e Aspinwall e Schneider (2001). No que se refere à União Européia, vários analistas destacam a importância das normas e práticas de outras instituições internacionais das quais os Estados-membros da União Européia participam, principalmente o Conselho da Europa e os acordos europeus de direitos humanos tais como a Convenção Européia de Direitos Humanos de 1950, a Carta Social Européia de 1989 e a Carta sobre os Direitos Fundamentais da União Européia de 2001 (PEVENHOUSE, 2002; SCHIMMELFENNIG et al., 2003). Outros analistas defendem que o processo de institucionalização da condicionalidade política no âmbito internacional só foi possível após o fim da Guerra Fria e a priorização da promoção da democracia sobre a estabilidade pelas grandes potências, especialmente os Estados Unidos (PEVENHOUSE, 2002). Este artigo não testa hipóteses alternativas, mas explora, a partir de uma lógica indutiva, dois fatores em particular: 1) a ampliação do processo de integração e 2) crises políticas específicas que ocorreram nos Estados-membros. Não se defende que estes dois fatores sejam capazes de explicar o processo de institucionalização da condicionalidade política em sua totalidade, mas sim que são fatores necessários para a compreensão deste processo.

Além de buscar explicar o processo de institucionalização da condicionalidade política na União Européia, o artigo indaga se a condicionalidade pode ser considerada um instrumento efetivo de promoção da democracia. Busca-se analisar se a intervenção a favor da democracia tem um efeito qualitativo sobre os regimes domésticos, ou seja, exploram-se os limites do uso da condicionalidade política como um instrumento de promoção e defesa da democracia.

Com esta finalidade, o artigo apresenta, na próxima seção, um histórico do processo de institucionalização da condicionalidade política na União Européia, destacando o papel da ampliação, e da crise ocorrida na Áustria em 1999/2000. A terceira seção analisa a efetividade da cláusula democrática como um instrumento de promoção de democracia, e algumas reflexões finais são apresentadas na última seção.

O Processo de Institucionalização da Condicionalidade Política na União Européia

Apesar do fato de que os membros fundadores da União Européia compartilhavam a importância dos valores democráticos, os Tratados de Paris e Roma, assinados em 1952 e 1957, respectivamente, não continham referências aos princípios democráticos, nem em seus preâmbulos, nem no artigo 237, que tratava de novos membros e vislumbrava a adesão de qualquer Estado europeu. O Ato Único Europeu, assinado em 1986, mesmo ano da adesão de Portugal e Espanha, incluiu pela primeira vez referência à democracia, mas somente no seu preâmbulo, que não possui poder vinculante:

Decididos a promover conjuntamente a democracia, com base nos direitos fundamentais reconhecidos nas Constituições e legislações dos Estados-membros, na Convenção de Proteção dos Direitos do Homem e das liberdades Fundamentais e na Carta Social Européia, nomeadamente a liberdade, a igualdade e a justiça social,

Convencidos de que a idéia européia, os resultados adquiridos nos domínios da integração econômica e da cooperação política, bem como a necessidade de novos desenvolvimentos, correspondem aos anseios dos povos democráticos europeus, para quem o Parlamento Europeu, eleito por sufrágio universal, é um meio de expressão indispensável,

Conscientes da responsabilidade que cabe à Europa de procurar falar cada vez mais em uníssono e agir com coesão e solidariedade, para defender com maior eficácia os seus interesses comuns e a sua independência e fazer valer muito especialmente os princípios da democracia e do respeito pelo Direito e pelos Direitos do Homem, aos quais estão ligados, para dar em conjunto o seu próprio contributo à manutenção da paz e da segurança internacionais, de acordo com o compromisso que assumiram no âmbito da Carta das Nações Unidas (UNIÃO EUROPÉIA, 1986, ênfase nossa).

O entendimento compartilhado entre os Estados-membros da União Européia em relação à democracia foi explicitado no processo de negociação da adesão da Grécia, Portugal e Espanha. Um dos primeiros documentos que fez referência à condicionalidade política na União Européia foi o Relatório Birkelbach do Parlamento Europeu, de 1962. De acordo com Whitehead (1996), o relatório teria adotado condições políticas claras e vinculantes para adesão, que excluíam a aceitação da Espanha de Franco e Portugal de Salazar. Naquele momento, no entanto, as negociações não envolviam critérios precisos para se julgar a democracia. A condicionalidade política era, portanto, informal e implícita. À medida que as negociações com esses países avançaram, as preocupações com a democracia tornaram-se mais explícitas. Em 1976, a Comissão Européia condicionou uma resposta favorável à adesão da Grécia com a consolidação de um novo regime democrático (VERNEY, 2006).

Philippe Schmitter (1996) chama atenção para o fato de que essas provisões a respeito da condicionalidade não definiram critérios precisos para analisar o nível ou a qualidade das democracias. Geoffrey Pridham (1991) sugere que esses critérios seriam, na prática, os definidores do conceito liberal de democracia, ou seja, a condução de eleições livres, o direito aos resultados eleitorais e a governos estáveis, liderança por parte de uma figura crível e a criação de uma constituição democrática liberal.

Quase vinte anos depois da adesão de Portugal e Espanha, a possibilidade de ampliação para os países da Europa Central e do Leste trouxe novamente à tona a questão da institucionalização do princípio de que os Estados-membros da União Européia deveriam ser democracias (MERLINGEN et al., 2001). Em seu estudo sobre a política externa da União Européia para estes países, Karen Smith (2004) mostra como o conceito e o uso da condicionalidade política foram sendo progressivamente incluídos nos programas de cooperação e nos sucessivos tratados assinados pela União Européia com esses Estados. Segundo a autora, essa progressão está ligada ao nível de compromisso com a adesão, e levou a uma mudança do tipo de tratado concluído com os parceiros.3 3. Sobre os diferentes tipos de acordos assinados pela União Européia com terceiros países, ver também Torrent (1998, capítulo 8). Os primeiros tratados assinados com os países da Europa Central e do Leste eram acordos-padrão de "Comércio e Cooperação", a adesão não era o objetivo, e a condicionalidade não era formalmente declarada. Já os acordos de "Associação" apresentavam o conceito de condicionalidade articulado de maneira clara, embora não significassem uma garantia da adesão. Na década de 1990, a Comissão Européia propôs um novo tipo de acordo para os países do centro e leste europeu, os chamados "acordos europeus", para marcar a importância da iniciativa política que eles representavam. Os acordos europeus assinados em 1992 e 1993 eram bastante semelhantes, todos expressavam em seus preâmbulos cinco condições que deveriam ser preenchidas pelos signatários (Estado de direito, direitos humanos, sistema multipartidário, eleições livres e justas, economia de mercado) e afirmavam que o objetivo final era a adesão. Mesmo assim, a adesão não era ainda certa, e não havia previsões temporais para a adesão.

Foi somente no Conselho Europeu de 1993 que os Estados-membros da União Européia afirmaram de forma explícita que, para os Estados da Europa Central e do Leste poderem aderir ao bloco, alguns critérios deveriam ser preenchidos. Estes critérios, conhecidos como "Critérios de Copenhague", incluíam: a existência de instituições democráticas estáveis, estado de direito, direitos humanos e o respeito e a proteção de minorias, uma economia de mercadoemfuncionamento e a capacidade de lidar com pressões competitivas e forças de mercado dentro da União, além da capacidade de desempenhar as obrigações de membro do bloco, incluindo a adesão aos princípios de união política, econômica e social (SMITH, 2004).

O Tratado de Maastrich, concluído em 1992, antes, portanto, do Conselho Europeu de Copenhague, mas já no contexto de discussões concretas sobre a condicionalidade política e a possibilidade de ampliação para o centro e leste europeu, incluiu, pela primeira vez, uma referência à democracia no corpo de seu texto (artigo F), e não apenas no preâmbulo. A referência, no entanto, ainda não era tão enfática:

1. A União respeitará a identidade nacional dos Estados-membros, cujos sistemas de governo se fundam nos princípios democráticos.

2. A União respeitará os direitos fundamentais tal como os garante a Convenção Européia de Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma em 4 de Novembro de 1950, e tal como resultam das tradições constitucionais comuns aos Estados-membros, enquanto princípios gerais do direito comunitário.

3. A União dotar-se-á dos meios necessários para atingir os seus objetivos e realizar com êxito as suas políticas (UNIÃO EUROPÉIA, 1992, ênfases nossas).

O primeiro tratado a definir de maneira clara e precisa a manutenção do regime democrático como condição de participação no bloco foi o Tratado de Amsterdã, assinado em 1997 (Parte I, emendas substantivas 8 e 9), quando a maioria dos países da Europa Central e do Leste já eram candidatos formais, e a ampliação já era considerada praticamente certa:

8. O artigo F é alterado do seguinte modo:

a) O no 1 passa a ter a seguinte redação:

"1. A União assenta nos princípios da liberdade, da democracia, do respeito pelos direitos do Homem e pelas liberdades fundamentais, bem como do Estado de direito, princípios que são comuns aos Estados-membros.";

b) O atual nº 3 passa a ser o nº 4 e é inserido um novo nº 3, com a seguinte redação:

"3. A União respeitará as identidades nacionais dos Estados-membros."

9. No final do Título I é inserido o seguinte artigo:

"Artigo F.1

1. O Conselho, reunido a nível de chefes de Estado ou de governo e deliberando por unanimidade, sob proposta de um terço dos Estados-membros, ou da Comissão, e após parecer favorável do Parlamento Europeu, pode verificar a existência de uma violação grave e persistente, por parte de um Estado-membro, de algum dos princípios enunciados no nº 1 do artigo F, após ter convidado o governo desse Estado-membro a apresentar as suas observações sobre a questão.

2. Se tiver sido verificada a existência dessa violação, o Conselho, deliberando por maioria qualificada, pode decidir suspender alguns dos direitos decorrentes da aplicação do presente Tratado ao Estado-membro em causa, incluindo o direito de voto do representante do governo desse Estado-membro no Conselho. Ao fazê-lo, o Conselho terá em conta as eventuais conseqüências dessa suspensão nos direitos e obrigações das pessoas singulares e coletivas.

O Estado-membro em questão continuará, de qualquer modo, vinculado às obrigações que lhe incumbem por força do presente Tratado." (UNIÃO EUROPÉIA, 1997, ênfase nossa).

O Tratado de Nice, assinado em 2001, após a crise na Áustria, que é analisado a seguir, adicionou um parágrafo contendo um procedimento de aviso prévio à condicionalidade política:4 4. Em Nice, foi também proclamada a Carta da União Européia de Direitos Fundamentais, que, contudo, não possui poder vinculante. A Carta terá poder vinculante se o Tratado Constitucional for aprovado, já que está incluída no corpo do Tratado. Este também contém muitas outras disposições diretamente relacionadas a condicionalidade política, tais como os títulos I, II, VI e IX.

1. Sob proposta fundamentada de um terço dos Estados-membros, do Parlamento Europeu ou da Comissão, o Conselho, deliberando por maioria qualificada de quatro quintos dos seus membros, e após parecer favorável do Parlamento Europeu, pode verificar a existência de um

risco manifesto de violação grave

de algum dos princípios enunciados no nr.1 do artigo 6º por parte de um Estado-membro e dirigir-lhe recomendações apropriadas. Antes de proceder a essa constatação, o Conselho deve ouvir o Estado-membro em questão e pode, deliberando segundo o mesmo processo, pedir a personalidades independentes que lhe apresentem num prazo razoável um relatório sobre a situação nesse Estado-membro. (UNIÃO EUROPÉIA, 2001, ênfases nossas).

A crise política na Áustria refere-se à participação do Freiheitliches Partei Osterreich (FPO)5 5. Partido Austríaco da Liberdade. no governo eleito em outubro de 1999. As origens do FPO datam do extinto partido Verband der Unabhangigen, 6 6. Associação dos Independentes. criado em 1949 por antigos soldados que haviam lutado na Segunda Guerra Mundial e antigos nazistas, que receberam de volta seus direitos políticos naquele mesmo ano. Em 1956, o Verband foi substituído pelo FPO, que é considerado um partido de extrema-direita. Analistas do discurso do partido identificam elementos de extremismo de direita, tais como críticas à democracia, o conceito de Volksgemeinschaft,7 7. Um conceito étnico de nação. o desejo de um Estado forte, a crença em uma liderança autocrática e xenofobia (LUTHER, 2000, p. 427). De acordo com um relatório da Freedom House, nazistas são bem vindos no FPO apesar do fato de que organizações nazistas são ilegais na Áustria e de que, de acordo com um tratado de 1955, nazistas não podem exercer liberdade de associação e de assembléia na Áustria (FREEDOM HOUSE, 2002).

No referendo de 1994 sobre a adesão da Áustria na União Européia, o FPO foi bastante crítico à entrada do país no bloco, e após a adesão da Áustria, em 1995, o partido começou uma campanha ressaltando a ameaça aos trabalhadores austríacos de uma potencial ampliação do bloco para o Leste Europeu (LUTHER, 2000, p. 430). O FPO acabou por se isolar dentro do contexto europeu, tendo sido o único partido austríaco que não se filiou a nenhum grupo político no Parlamento Europeu após a adesão da Áustria (PELINKA, 2002, p. 214).

Nas eleições parlamentares de 1999, o mais destacado político do FPO, seu líder desde 1986, era Jorg Haider, então governador da província da Caríntia. Apesar de seu perfil controverso, o FPO conseguiu 27% dos votos, tornando-se a segunda força política no país, atrás apenas do Sozialdemokratischen Partei Österreichs (SPO).8 8. Partido Austríaco Socialdemocrata. Após uma tentativa fracassada do SPO de formar uma coalizão com o Osterreichs Volks Partei (OVP),9 9. Partido Austríaco do Povo. uma coalizão foi formada entre o SPO e o FPO (FALKNER, 2000). O fato de Thomas Lestil, o então presidente da Áustria, ter feito ambos os partidos assinarem uma declaração afirmando seu compromisso com o respeito aos direitos humanos e reconhecendo a responsabilidade histórica da Áustria em relação ao nazismo mostra que havia uma preocupação doméstica em relação ao FPO (MARKOVITS, 2002). Mitten (2002, p. 203) aponta para a importância deste documento ao afirmar que a violação de algum dos princípios afirmados na declaração poderia ser usada para conseguir a renúncia de ministros, a mudança de governo e até mesmo novas eleições.

A participação do FPO no governo da Áustria também criou uma apreensão em Bruxelas. No dia 31 de janeiro de 2000, António Guterres, primeiro-ministro de Portugal, país que ocupava a presidência da União Européia, declarou que, se o FPO participasse do governo austríaco, os catorze membros da União iriam impor sanções contra a Áustria (o décimo quinto Estado-membro era a Áustria). Apesar disso, Wolfgang Schussel, do OVP, e Jorg Haider, do FPO, assumiram o poder no dia 1º de fevereiro. No dia 3 de fevereiro, Guterres anunciou a decisão tomada pelos catorze Estados-membros da União Européia de implementar sanções contra a Áustria, afirmando que, naquele momento, estavam em risco valores que formavam a base da civilização européia. Bantekas (2000, p. 2) destaca que, poucos meses antes da decisão sobre as sanções, em novembro de 1999, a Organização para Cooperação e Segurança na Europa havia adotado a Carta de Istambul sobre Segurança Européia (Istambul Charter for European-Security), que proclamou, em seu artigo 19, a importância da erradicação de todo tipo de nacionalismo agressivo, racismo, chauvinismo, xenofobia e anti-semitismo. O sentimento da necessidade de contra-atuação em relação aos movimentos de extrema-direita na Europa era, portanto, forte.

As sanções consistiram nas seguintes medidas: congelamento das relações bilaterais entre os catorze Estados-membros e a Áustria; retirada do apoio às candidaturas de cidadãos austríacos a cargos em organismos internacionais; recebimento dos embaixadores austríacos por parte dos catorze somente no nível técnico; e suspensão de visitas de chefes de Estado ou governo dos catorze à Áustria.

É importante notar que estas medidas não foram aplicadas pela União Européia. As decisões não foram tomadas pelo Conselho Europeu; foram iniciativas bilaterais dos catorze Estados-membros (MERLINGEN et al., 2001). Como visto anteriormente, de acordo com o Tratado de Amsterdã, o Conselho só poderia agir após ter sido provada a existência de uma grave e persistente quebra de princípios como democracia e direitos humanos, o que não havia ocorrido. As medidas foram, portanto, uma decisão bilateral coordenada entre os catorze países-membros do bloco, mas que, de fato, acabou transformando a Áustria em um Estado-pária dentro do bloco. Ainda assim, a presidência da União Européia solicitou à Corte Européia de Direitos Humanos que realizasse um relatório para monitorar a situação na Áustria em relação aos direitos humanos. Para tal, foi instituída uma Comissão de Notáveis, composta pelo ex-ministro das Relações Exteriores da Espanha Marcelino Oreja, o ex-presidente da Finlândia Martti Ahtisaari e o advogado alemão Jochen Frowein.

Além da presidência, outras instituições européias também manifestaram sua opinião: o Parlamento Europeu aprovou uma série de resoluções (B5-0101, 0103, 0106, 0107/2000) condenando a formação de um governo que incluísse o FPO. A Comissão Européia desaprovou a prática de decisões concertadas fora das instituições da União, mas afirmou que iria acompanhar a situação na Áustria e que, se houvesse uma violação dos princípios da União, tomaria providências para a aplicação das medidas previstas no Tratado de Amsterdã, que incluiriam o cancelamento da participação da Áustria no Conselho Europeu, um primeiro passo que poderia levar à expulsão da Áustria da União (MERLINGEN et al., 2001).10 10. Ramon Torrent (1998, capítulo 5) chama essa prática de 4º Pilar da União Européia.

A reação imediata da população austríaca foi positiva em relação às sanções: o povo austríaco foi às ruas repudiar a coalizão, afinal 73% da população austríaca não havia votado no FPO (WISTRICHT, 2000; MUSNER, 2000). Uma pesquisa de opinião realizada em fevereiro de 2000 indicou que 25% dos austríacos acreditavam que as sanções eram justificáveis e 40% entendiam por que os europeus rejeitavam o FPO (LECONTE, 2005). No dia 1º de maio, Jorg Haider renunciou como líder do FPO a favor da vice-chanceler Susanne Ries- Passer. Segundo analistas como Nowotny (2000, p. 414), a renúncia não teria sido motivada pelas sanções, mas por um cálculo político de Haider, em deixar um governo ineficiente, para tentar se tornar chefe do governo federal austríaco em eleições futuras. Ainda em abril do mesmo ano, em visita ao Conselho das Regiões em Bruxelas, Haider ameaçou cortar as contribuições austríacas ao orçamento da UE, assim como ameaçou a retirada do país do bloco, caso as sanções não fossem levantadas (MUSNER, 2000, p. 85).

No dia 12 de setembro de 2000, os catorze Estados-membros suspenderam as sanções, com a justificativa de que elas tinham sido um sucesso. É importante ressaltar que, no comunicado feito pelos catorze países-membros sobre o fim das sanções, foi reiterado que os princípios defendidos pelo FPO continuavam sendo incompatíveis com os da UE, e que a UE continuaria a debater sobre como agir em situações semelhantes à que ocorreu na Áustria, enfatizando, assim, como colocam Merlingen et al. (2001, p. 73), a natureza construtiva das sanções, em vez da natureza punitiva.

Críticos das sanções, no entanto, apontam que não foi comprovado que o governo austríaco havia violado os princípios da União. Heinisch (2003, p. 274) afirmou que as sanções contra a Áustria de fato não foram tomadas contra nenhum desrespeito por parte da Áustria de nenhuma norma européia, tendo sido uma medida de precaução para demonstrar desaprovação coletiva da entrada do FPO no governo. Nowotny (2000, p. 414) também defendeu que, entre as motivações que teriam levado a UE a impor as sanções, estavam o fato de o FPO apresentar uma ameaça aos valores democráticos europeus e o passado histórico da Áustria, que confere ao país uma responsabilidade especial; sendo assim, o temor representado pelo FPO teria legitimidade e credibilidade, mas não havia sido cometida nenhuma infração.

O relatório final da Comissão de Notáveis convocada pela Corte Européia de Direitos Humanos também reconheceu que o governo austríaco não havia violado nenhuma norma de direitos humanos e constatou que a situação do respeito aos direitos humanos no país era boa, tendo inclusive avançado mais do que em alguns outros países do bloco. O relatório também enfatizou que o efeito das sanções foi misto, tendo acirrado sentimentos nacionalistas mesmo por parte da população que não havia votado no FPO, e destacou que sanções foram criticadas pelas forças políticas de oposição ao FPO e a Jorg Haider na Áustria. Ainda assim, este importante relatório criticou o comportamento do FPO, que foi acusado de fomentar sentimentos xenófobos. O relatório também não considerou a intervenção da União Européia como desnecessária ou excessiva em si, tendo inclusive sugerido o estabelecimento de mecanismos institucionais que permitissem a reação de forma mais adequada e eficiente para conter os desafios trazidos por partidos extremistas (AHTISAARI et al., 2000; MÉNENDEZ, 2002).

A Eficácia da Condicionalidade Política como um Instrumento de Promoção da Democracia11 11. Deve ser enfatizado que esta seção somente avalia a eficácia das condicionalidades políticas sobre os Estados-membros da União Européia, e não sobre países candidatos à adesão. Para a eficácia da condicionalidade política nos processos de adesão, existe uma literatura mais ampla, como, por exemplo, Pevehouse (2002), Zielonka (2006) e Schimmelfennig, Engert e Knobel (2003).

A condicionalidade política tem sido abordada diretamente na literatura sobre promoção de democracia. Tradicionalmente, analistas de política comparada ressaltam a importância de fatores domésticos na transição para e na consolidação de regimes democráticos, negligenciando ou negando o aspecto "internacional". A necessidade de se reavaliar o papel do "internacional" está presente na agenda de comparativistas e de teóricos de Relações Internacionais (WHITEHEAD, 1996; PEVENHOUSE, 2002; STEIN, 2001; ANDERSON, 1999).

Laurence Whitehead (1996) desenvolveu um projeto com o objetivo de rever a importância da dimensão internacional sobre os processos de redemocratização inspirados pelos encontros de cúpula que ocorreram em 1994 em Essen (União Européia), Miami (Área de Livre Comércio das Américas (ALCA)) e Ouro Preto (Mercosul), que enfatizaram valores democráticos como parte dos processos de integração regional em consideração. Em particular, o autor propôs-se a reconsiderar a principal conclusão de outro projeto do qual havia participado anteriormente (O'DONNELL et al., 1988a; 1988b), que afirmava que fatores internacionais tiveram um papel pouco significativo na transição para regimes democráticos no sul da Europa e na América Latina. De acordo com Whitehead (1996), novas evidências empíricas pareceram sinalizar para um novo estágio de promoção de democracia por meio da cooperação regional. Este tipo de promoção de democracia corresponde ao que o autor define como "hipótese consensual" (consent hypothesis), uma concepção sofisticada de processo de democratização, que leva em consideração as ações e as intenções de grupos domésticos relevantes no país que está promovendo a democracia, e no país alvo, e a interação entre os processos interno e internacional.12 12. Outras hipóteses sobre a promoção da democracia são o contágio e o controle. Amplamente falando, o contágio refere-se à difusão da democratização em virtude da proximidade a democracias. Essa hipótese não considera as motivações dos atores e os canais de transmissão, somente uma simples correlação. A hipótese controle é baseada em abodargens realistas, e afirma que a democratização irá ocorrer quando imposta por poderes hegemônicos por meio de suas inciativas unilaterais de política externa (WHITEHEAD, 1996, capítulo 1). Esta hipótese afirma que os processos internacionais podem contribuir (ou impedir) a geração de consenso para a formação de novas democracias das seguintes maneiras: ao interferir com o estabelecimento e estabilização das fronteiras nacionais, ao apoiar atores democráticos nacionais específicos, ao ter um efeito de demonstração – quando países vizinhos procuram imitar o estilo de vida associado às democracias capitalistas liberais – e, finalmente, ao criar instrumentos que irão reforçar o consentimento para a democracia em países candidatos a se juntar a um bloco regional, como, por exemplo, a condicionalidade política.

Em relação ao caso da Europa Mediterrânea, por exemplo, que pode ser visto com mais detalhes abaixo, Whitehead (1996) conclui que a União Européia foi um catalisador poderoso para democratização, mas enfatiza as relações complexas entre fatores domésticos e internacionais em um processo de democratização:

[...] os incentivos para consolidação advindos da expectativa ou efetiva adesão à Comunidade Européia representaram uma série de estímulos para a redefinição dos regimes políticos na Europa setentrional (uma condição poderosa do processo de democratização). Não importa classificar esses estímulos como externos ou internos, dado que eles operaram em vários níveis, e redefiniram os cálculos e o comportamento de vários atores políticos tanto no âmbito doméstico como no internacional (WHITEHEAD, 1996, p. 272, tradução nossa).

Na sua contribuição para o projeto coordenado por Whitehead, Phillipe Schmitter (SCHMITTER, 1996) também reconhece a necessidade de se reconsiderar o impacto do que ele chama de contexto internacional sobre os processos de democratização. No entanto,

Schmitter não considera o impacto dos processos de integração regional sobre a democracia somente como parte de iniciativas voluntárias apoiadas por atores privados, como coloca Whitehead, mas também (e principalmente) como uma iniciativa coercitiva apoiada por governos de Estados poderosos. Contudo, diferentemente da categoria "controle" de Whitehead, em que democracia é buscada de maneira unilateral, ela é buscada, para Schmitter, no contexto de instituições regionais. Este autor considera a condicionalidade, definida nesses termos, o subcontexto em mais rápida expansão para o exercício da influência internacional sobre democracia. Ele chama atenção para o fato de que o uso da condicionalidade em assuntos monetários e econômicos tem sido praticado desde o período do pós-guerra, pelo FMI, mas que o atrelamento a objetivos políticos seria uma novidade. Ele acrescenta ainda que, apesar do fato de o uso da condicionalidade multilateral ter começado com as transições na Europa Mediterrânea, ela aumentou consideravelmente com as transições na América do Sul, Ásia, Europa Oriental e África em função da maior vulnerabilidade desses países em relação ao comércio, investimentos e endividamento no contexto da globalização e da acumulação de precedentes e capacidade organizacional nos níveis regional e global do sistema internacional.

Uma das formas de se analisar o efeito da cláusula democrática da União Européia, e sua invocação no caso da crise da Áustria, seria comparar a qualidade do regime doméstico neste país antes e depois da intervenção. A mensuração da qualidade democrática é uma questão amplamente discutida na literatura, e bastante controversa (ANDREEV, 2005). Este artigo se restringe a contrapor argumentos encontrados na literatura secundária, e a utilizar como indicador complementar os índices publicados pela World Audit, uma ONG internacional que publica tabelas e resultados baseados em informações da Freedom House, Transparência Internacional, Anistia Internacional, Human Rights Watch e da Comissão Internacional de Juristas.13 13. Para detalhes sobre a metodologia e avaliações da World Audit, ver < http://www.worldaudit.org/democracy.htm>.

Com base nos índices da World Audit, pode-se dizer que, apesar da crise de 1999, a Áustria pode ser considerada uma democracia estável. Em 2005, o país recebeu 11 pontos em uma escala de 1 a 150 (sendo 1, em uma escala de 1 a 7 para direitos políticos e liberdades civis, 25 em uma escala de 0 a 100 para liberdade de imprensa, e 9 em uma escala de 0 a 100 para corrupção), estando na primeira divisão e sendo classificado como inquestionavelmente livre, um resultado excelente.

Após o sucesso nas eleições de 1999, o FPO sofreu uma série de derrotas. Como visto anteriormente, Haider renunciou à liderança do partido em 2000 e se tornou governador da Caríntia. Quando Haider tentou interferir em nível nacional novamente em setembro de 2003, agravou divisões internas no FPO, levando ao colapso da coalizão e a um pedido para a realização de eleições antecipadas em novembro. Desta vez, o FPO obteve apenas 10% dos votos, 17% a menos do que em 1999. O partido pretendia entrar no governo, mas como um parceiro minoritário. Nas eleições locais de 2003, seu declínio nas pesquisas foi confirmado. O FPO também obteve maus resultados nas eleições para o Parlamento Europeu em 2004.

O papel desempenhado pela condicionalidade política da União Européia parece ter sido positivo na manutenção da democracia austríaca; contudo, não pode ser dito que a retirada de Haider da política nacional austríaca e a queda da popularidade do FPO se deram apenas pela condicionalidade política do bloco. Alguns analistas, tais como Thomas Nowotny (2000), defendem que as sanções impostas contra a Áustria foram mais baseadas em questões políticas do que em questões jurídicas, e que o principal alvo das sanções não foi o FPO e Jorg Haider, mas sim o OVP e Wolfgang Schussel. Para o autor, as sanções foram um alerta da UE a todos partidos políticos que estivessem dispostos a permanecer no poder fazendo aliança com partidos de extrema-direita (NOWOTNY, 2000, p. 419). Nowotny sugere ainda que o sucesso do FPO em 1999 pode ser mais bem explicado pela frustração com as coalizões entre o OVP e o SPO, que duraram até 1986, do que por um apelo pela plataforma do FPO. Logo que a população percebeu as conseqüências de ter o FPO no governo, seu apoio diminuiu. De acordo com esta visão, o declínio do FPO teria acontecido de qualquer forma, até mesmo sem a intervenção da União Européia. Neste caso, o papel da condicionalidade política como instrumento de promoção da democracia foi positivo, mas não seria necessário, já que fatores domésticos teriam alcançado os mesmos efeitos.

Apesar do efeito quase desnecessário, ou até mesmo contraprodutivo, da condicionalidade política sobre o regime austríaco, deve-se destacar a importância da crise sobre o desenvolvimento de uma identidade européia. Cecile Leconte (2005) enfatizou o significado do esforço dos países-membros em quebrar com o princípio de neutralidade ideológica e cegueira em relação à filiação política dos governos dos Estados-membros prevalecente até então. A autora afirma também que a decisão dos catorze países-membros é um marco na determinação do que é politicamente aceitável dentro da União Européia, e dos imperativos normativos que emergem da adesão de um Estado ao status de membro do bloco, que a autora classifica como lealdade aos princípios democráticos. Mas a autora vê também que a postura dos países-membros em relação à Áustria serve ainda para fortalecer o discurso dos "eurocéticos", que afirmam que a União Européia está tentando impor uma identidade multicultural sobre os Estados nacionais, contrária à vontade dos cidadãos europeus.

Este ponto também foi destacado por Gerda Falkner (2000), que afirmou que, se por um lado, os atores europeus atuaram buscando fortalecer os valores e a identidade européia, por outro, adotaram um instrumento punitivo pouco adequado e um critério discriminatório por base na nacionalidade: os austríacos foram penalizados como um todo, não apenas os de extrema-direita ou xenófobos. Segundo a autora, cidadãos austríacos teriam sido discriminados em eventos esportivos e culturais, taxistas teriam se recusado a transportá-los, e escolas teriam suspendido programas de intercâmbio (FALKNER, 2000, p. 5).

Conclusões

Este artigo buscou explicar o processo de institucionalização da condicionalidade política na União Européia. Foi analisado o papel das ampliações do bloco, principalmente a ampliação para o Centro e Leste Europeu, e de crises políticas nos Estados-membros, especificamente a ocorrida na Áustria nos anos de 1999 e 2000. Embora não seja defendido que estes dois fatores possam explicar o processo de institucionalização em sua totalidade, eles são considerados fatores necessários para a compreensão deste fenômeno.

Também não foi defendido que a mera existência de normas institucionalizadas implica necessariamente que elas sejam invocadas, ou respeitadas. Seria prematuro, no entanto, conduzir uma análise acerca das motivações para a invocação da cláusula democrática na União Européia, já que, até o presente momento, houve somente um caso positivo de intervenção, a Áustria, e nenhum caso em que tivesse sido constatada uma ruptura (ou risco de ruptura) de princípios democráticos de Estados-membros, sem que ela tivesse sido invocada. Uma possível exceção seriam as críticas ao controle de informações durante o governo de Silvio Berlusconi, na Itália, mas que, no entanto, não chegaram a se tornar uma crise política, nem doméstica nem européia.

Outra questão tratada no artigo foi o impacto qualitativo da condicionalidade política sobre o regime doméstico do Estado onde ocorreu a intervenção. No que se refere ao caso da Áustria, foi visto que este país podia ser considerado uma democracia plena, tanto antes como depois da crise. A crise não se referiu a uma ruptura democrática, mas a uma potencial ameaça, que, afinal, não foi concretizada. Durante a crise, houve grande mobilização por parte de atores domésticos, além dos atores "europeus". Esses atores domésticos, se, por um lado, sentiram-se respaldados pela reação européia, por outro, foram críticos em relação aos critérios e instrumentos utilizados na reação dos Estados-membros, que puniram os austríacos como um todo, contribuindo para o acirramento do sentimento nacionalista da população. Pode-se dizer, neste sentido, que o efeito da condicionalidade política foi misto, e que esta não foi, necessariamente, o principal determinante da restauração da normalidade na Áustria. Ainda assim, a crise na Áustria e a reação européia proporcionaram uma discussão abrangente sobre questões profundas na União Européia, tais como os limites do compartilhamento da soberania entre os Estados-membros e a existência de uma identidade comum entre suas populações, tendo contribuído, desta forma, para a consolidação de um espaço público comum.

Notas

SCHMITTER, Philippe. The influence of the international context upon the choice of national institutions and policies in neo-democracies.

Artigo recebido em dezembro de 2006 e aprovado para publicação em abril de 2007.

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  • ZIELONKA, Jan. Europe as empire The nature of the enlarged European Union. Oxford: Oxford University Press, 2006.
  • 1.
    Para simplificação, o termo União Européia será usado também em referência às Comunidades Européias.
  • 2.
    Sobre as perspectivas neo-institucionalistas, ver, por exemplo, Pollack (2004) e Aspinwall e Schneider (2001).
  • 3.
    Sobre os diferentes tipos de acordos assinados pela União Européia com terceiros países, ver também Torrent (1998, capítulo 8).
  • 4.
    Em Nice, foi também proclamada a Carta da União Européia de Direitos Fundamentais, que, contudo, não possui poder vinculante. A Carta terá poder vinculante se o Tratado Constitucional for aprovado, já que está incluída no corpo do Tratado. Este também contém muitas outras disposições diretamente relacionadas a condicionalidade política, tais como os títulos I, II, VI e IX.
  • 5.
    Partido Austríaco da Liberdade.
  • 6.
    Associação dos Independentes.
  • 7.
    Um conceito étnico de nação.
  • 8.
    Partido Austríaco Socialdemocrata.
  • 9.
    Partido Austríaco do Povo.
  • 10.
    Ramon Torrent (1998, capítulo 5) chama essa prática de 4º Pilar da União Européia.
  • 11.
    Deve ser enfatizado que esta seção somente avalia a eficácia das condicionalidades políticas sobre os Estados-membros da União Européia, e não sobre países candidatos à adesão. Para a eficácia da condicionalidade política nos processos de adesão, existe uma literatura mais ampla, como, por exemplo, Pevehouse (2002), Zielonka (2006) e Schimmelfennig, Engert e Knobel (2003).
  • 12.
    Outras hipóteses sobre a promoção da democracia são o contágio e o controle. Amplamente falando, o contágio refere-se à difusão da democratização em virtude da proximidade a democracias. Essa hipótese não considera as motivações dos atores e os canais de transmissão, somente uma simples correlação. A hipótese controle é baseada em abodargens realistas, e afirma que a democratização irá ocorrer quando imposta por poderes hegemônicos por meio de suas inciativas unilaterais de política externa (WHITEHEAD, 1996, capítulo 1).
  • 13.
    Para detalhes sobre a metodologia e avaliações da World Audit, ver <
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      08 Fev 2008
    • Data do Fascículo
      Dez 2007

    Histórico

    • Aceito
      Abr 2007
    • Recebido
      Dez 2006
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