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Qual o lugar da democracia nas Relações Internacionais?: Uma narrativa teórica

What is the role of democracy in International Relations?: A theoretical narrative

Resumos

Este trabalho tem dois objetivos fundamentais. O primeiro deles é verificar, valendo-se da narrativa tradicional da evolução disciplinar, como os regimes políticos, mais especificamente o caráter democrático de certos Estados, foram incorporados no debate teórico das RI, especialmente na tradição sistêmica-positivista norte-americana. A ideia é realizar uma leitura crítica da forma como as correntes teóricas de Relações Internacionais encaram este elemento particular, bem como suas diferenças e suas implicações. Argumenta-se, nesse sentido, que a consideração da variável regime político nas relações entre Estados foi perdendo força à medida que se consolidaram as abordagens de "terceira imagem" no centro do debate disciplinar. O segundo objetivo, atrelado ao primeiro, é sugerir que a consideração da democracia como variável não é incompatível com as abordagens sistêmicas da política internacional, especialmente ao olharmos para o conceito de identidades do construtivismo wendtiano. Pelo contrário, ao considerar clivagens como democracia versus autoritarismo no plano relacional, as teorias podem ganhar poder explicativo na compreensão dos fenômenos correntes.

Democracia; Sistema Internacional; Teorias de Relações Internacionais; Identidade Coletiva


This article has two fundamental aims. The first is to evaluate how political regimes, and most notably the democratic character of some states, have been incorporated in debates on IR theory. We will evoke the traditional narrative of disciplinary evolution, with a specific focus on the systemic-positivist North-American tradition. The idea is to offer a critical reading of the way theoretical strands of International Relations face this 'democratic' element, as well as its peculiarities and implications to the debate at large. We argue, in this sense, that the 'political regime' variable loses explanatory power as the 'third-image' approaches reach the center of the disciplinary debate. The second aim, linked to the first one, is to suggest that considering democracy as a relevant political variable in relations between states is not incompatible with systemic approaches to international politics, especially when looking at the concept of identity in the Wendtian constructivism. On the contrary, cleavages such as democracy versus autocracy may enhance the explanatory power of theories when facing current phenomena.

Democracy; International System; International Relations Theories; Collective Identity


ARTIGOS

Qual o lugar da democracia nas Relações Internacionais? Uma narrativa teórica

What is the role of democracy in International Relations? A theoretical narrative

Guilherme Stolle Paixão e Casarões

Doutorando em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP) e professor de Relações Internacionais das Faculdades Integradas Rio Branco (FIRB) e da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC/FGV). E-mail: casaroes@gmail.com

RESUMO

Este trabalho tem dois objetivos fundamentais. O primeiro deles é verificar, valendo-se da narrativa tradicional da evolução disciplinar, como os regimes políticos, mais especificamente o caráter democrático de certos Estados, foram incorporados no debate teórico das RI, especialmente na tradição sistêmica-positivista norte-americana. A ideia é realizar uma leitura crítica da forma como as correntes teóricas de Relações Internacionais encaram este elemento particular, bem como suas diferenças e suas implicações. Argumenta-se, nesse sentido, que a consideração da variável regime político nas relações entre Estados foi perdendo força à medida que se consolidaram as abordagens de "terceira imagem" no centro do debate disciplinar. O segundo objetivo, atrelado ao primeiro, é sugerir que a consideração da democracia como variável não é incompatível com as abordagens sistêmicas da política internacional, especialmente ao olharmos para o conceito de identidades do construtivismo wendtiano. Pelo contrário, ao considerar clivagens como democracia versus autoritarismo no plano relacional, as teorias podem ganhar poder explicativo na compreensão dos fenômenos correntes.

Palavras-chave: Democracia - Sistema Internacional - Teorias de Relações Internacionais - Identidade Coletiva

ABSTRACT

This article has two fundamental aims. The first is to evaluate how political regimes, and most notably the democratic character of some states, have been incorporated in debates on IR theory. We will evoke the traditional narrative of disciplinary evolution, with a specific focus on the systemic-positivist North-American tradition. The idea is to offer a critical reading of the way theoretical strands of International Relations face this 'democratic' element, as well as its peculiarities and implications to the debate at large. We argue, in this sense, that the 'political regime' variable loses explanatory power as the 'third-image' approaches reach the center of the disciplinary debate. The second aim, linked to the first one, is to suggest that considering democracy as a relevant political variable in relations between states is not incompatible with systemic approaches to international politics, especially when looking at the concept of identity in the Wendtian constructivism. On the contrary, cleavages such as democracy versus autocracy may enhance the explanatory power of theories when facing current phenomena.

Keywords: Democracy - International System - International Relations Theories - Collective Identity

Se analisarmos com atenção o discurso corrente da política internacional, perceberemos que a democracia1 1 . Aqui entendida no sentido liberal do termo, em que se possua uma Constituição que garanta as liberdades fundamentais, e cuja disputa política apresente liberdade de organização e oposição ao governo. Em linhas gerais, a maneira como o termo é usualmente empregado na literatura se assemelha ao conceito de poliarquia (DAHL, 1997). tem ocupado espaço significativo na forma como Estados interagem, constituem seus interesses e moldam sua política externa. Alguns, como Kagan (2008), vão mais longe ao argumentar que a clivagem dos conflitos internacionais do século XXI será dada pelo regime político dos Estados. As democracias tenderão a se unir, em uma espécie de "liga dos Estados democráticos", para lutar contra as autocracias irresponsáveis que ainda subsistem e que se organizam para desbancar a supremacia ocidental (KAGAN, 2008). Uma breve análise da evolução democrática nos últimos dois séculos, contudo, mostra-nos que instituições democráticas não são novidade. Houve momentos na história recente, especialmente na passagem do século XIX para o século XX, em que metade do mundo independente era democrática (e mais da metade do mundo colonial era comandada por potências democráticas). Por que a consideração tardia do impacto do regime político para as relações internacionais? Mais ainda, como a questão democrática, em particular entendida como variável explicativa de determinados fenômenos sistêmicos, é tratada pelas principais teorias?

Este trabalho possui dois objetivos fundamentais. O primeiro deles é verificar, valendo-se da narrativa tradicional da evolução disciplinar, como os regimes políticos, mais especificamente o caráter democrático de certos Estados, foram incorporados no debate teórico das Relações Internacionais (RI), especialmente na tradição sistêmica-positivista norte-americana. A ideia é realizar uma leitura crítica da forma como as correntes teóricas de Relações Internacionais encaram esse elemento particular, bem como suas diferenças e suas implicações. Argumenta-se, nesse sentido, que a consideração da variável regime político nas relações entre Estados foi perdendo força à medida que se consolidaram as abordagens de "terceira imagem" no centro do debate disciplinar.

O segundo objetivo, atrelado ao primeiro, é sugerir que a consideração da democracia como variável não é incompatível com as abordagens sistêmicas da política internacional, especialmente ao olharmos para o conceito de identidades do construtivismo wendtiano. Pelo contrário, ao considerar clivagens como democracia versus autoritarismo no plano relacional, as teorias podem ganhar poder explicativo na compreensão dos fenômenos correntes.

O texto é dividido em cinco partes. Em primeiro lugar, argumenta-se que a disciplina de Relações Internacionais nasceu a partir de uma inspiração democrática no pós-guerra, tanto acadêmica quanto política, e busca-se mostrar como a prevalência do paradigma realista, após o chamado Primeiro Grande Debate da disciplina, contribuiu para a afirmação da política do poder em detrimento de questões consideradas valorativas, como o regime político. Em segundo lugar, quer-se demonstrar que as rupturas metodológicas observadas a partir dos anos 1950, em particular nas ciências sociais norte-americanas, acirraram ainda mais a marginalização da democracia, em particular por meio de dois dispositivos: a separação funcional entre análise de política externa e política internacional, por um lado, e a defesa da "terceira imagem" na busca das causas da guerra, por outro. Em terceiro lugar, explora-se a vertente da interdependência e como elas se apropriaram, de maneira marginal, do elemento democrático em seu argumento. Em quarto lugar, demonstra-se como a emergência das teorias sistêmicas nas décadas de 1970 e 1980, em particular o neorrealismo e o institucionalismo neoliberal, sepultaram em definitivo a consideração democrática, tratada como um problema de "segunda imagem". Por fim, discorre-se sobre a teorização feita por Wendt (1996; 1999) sobre identidades na busca de um ponto de contato entre essa vertente sistêmica e o papel da democracia como variável relevante.

Da Fundação da Disciplina à Ruptura Metodológica

Embora sejam temas correlatos e, dentro do pensamento político ocidental, bastante próximos, democracia e relações internacionais caminharam separadas (conquanto que paralelamente, como se pode argumentar) durante grande parte do século XX. No início, os pontos de contato eram mais evidentes: o nascimento das Relações Internacionais como campo autônomo do conhecimento, imediatamente após a Primeira Guerra Mundial (SMITH, 1987), está relacionado ao alvorecer de uma mentalidade democrática em direção à paz (BULL, 2000). Afinal, os primeiros adeptos de uma "escola de pensamento internacional" encontravam sua motivação básica na crença de que as questões internacionais não poderiam permanecer sob o monopólio de generais, estadistas e diplomatas.2 2 . É importante enfatizar que a narrativa que descreve o nascimento de uma disciplina fundada em princípios liberais-idealistas, como sustenta Carr (2001) e Bull (2000), não é consensual. Na década de 1990, veio à tona um conjunto consistente de obras que, relendo a historiografia do pensamento internacional do entreguerras, questiona a existência de um consenso idealista e refuta, inclusive, a existência do chamado "Primeiro Grande Debate" (WILSON, 1998; SCHMIDT, 1998). O caos testemunhado nos quatro anos anteriores ao redor de toda a Europa se relacionava, sem grandes dificuldades, a um conjunto de "más decisões" tomadas pelas partes beligerantes em instâncias opacas, distantes do público, que haviam conduzido a uma guerra indesejada.

O raciocínio segundo o qual o controle democrático poderia impedir, ou ao menos reduzir, a incidência de arroubos de violência internacional, ao refrearem-se as paixões de uns poucos líderes, parecia assentar-se em uma lógica irretocável, herdeira dos escritos liberais do século anterior (SCHMIDT, 1998). Ademais, como forma de destituir tais lideranças do monopólio sobre a guerraeapaz, bemcomo retomar a harmonia de interesses que reinara no século XIX, era necessário que a educação popular fosse estimulada. É compreensível, pois, que grandes filantropos como David Davies ou Montague Burton - que fundaram a criação das cátedras de Relações Internacionais em Aberystwyth e Oxford, respectivamente - acreditassem que a promoção do estudo das relações internacionais seria uma forma inequívoca de sustentar a causa da paz (BROWN, 2001; ROOT, 1937).

O elogio à democracia no imediato pós-guerra ganhou espaço não somente na academia, onde as transformações foram notáveis, mas especialmente no âmbito político. No mundo anglo-saxão, que saíra triunfante do conflito mundial, consolidava-se a ideia de que os mesmos mecanismos democráticos e liberais que eram aplicados à esfera doméstica poderiam ser estendidos à busca global pela paz. A perspectiva liberal-internacionalista 3 3 . Denominada, alternativamente, de utópica ou idealista. desenvolvida na Grã-Bretanha pelos radicais liberais em órgãos como o Union for Democratic Control (BROWN, 2001, p. 22) e enunciada, nos Estados Unidos, pelo presidente Woodrow Wilson em seu discurso "Mensagem de guerra" ao Congresso norte-americano, em abril de 1917 - parte do princípio de que é necessário fazer do mundo um lugar "seguro para a democracia", pois somente em regimes abertos à opinião pública a agressão se torna impraticável, e um "estável concerto para a paz" faz-se possível (WILSON, 1917). Com efeito, a transformação da política doméstica dos Estados seria precondição, segundo este raciocínio, para evitar que o mundo sofresse uma catástrofe militar como havia ocorrido em 1914.

A lógica liberal-internacionalista engendrou sobre o "mundo real" dois impactos significativos. O primeiro deles foi a busca da gestão democrática das relações internacionais. A questão, aqui, não diz respeito somente à organização interna do Estado, mas às instituições internacionais que são eleitas para fomentar a cooperação e a adesão ao direito internacional (RÉMOND, 1994; MILZA, 1995; BROWN, 2001). Nas palavras de Chris Brown, as reformas sugeridas das estruturas institucionais internacionais identificavam-se com o liberalismo na medida em que "incorporavam a crença de que o governo constitucional e o Estado de Direito eram princípios de aplicabilidade universal tanto para todos os regimes domésticos quanto para o sistema internacional como tal" (BROWN, 2001, p. 23, ênfases nossas). Seu resultado mais evidente foi a criação da Sociedade das Nações (SDN), imediatamente após a Primeira Guerra.4 4 . O auge deste processo se identifica na proliferação de tratados internacionais de alcance universal e particularmente ambiciosos, como o Pacto Briand-Kellogg de 1928, assinado em Paris por Estados Unidos, Japão e diversos países europeus como a Alemanha, o Reino Unido e seus domínios ultramarinos, a França e a Itália, que visava nada menos do que banir o recurso à força da relação entre Estados (RÉMOND, 1994; MILZA, 1995). A respeito deste ponto, vale recuperarmos a opinião de Pierre Milza (1995, p. 32, ênfases nossas), para quem "o princípio de uma 'Sociedade das Nações', funcionando segundo as regras de uma instituição democrática e representativa dos membros da comunidade internacional, é o acabamento final do edifício ideológico que os burgueses liberais tinham edificado desde o século XVIII". René Rémond (1994, p. 298) é ainda mais enfático, alegando que, diante da vitória da Entente, "[a] democracia atinge [...] as próprias relações internacionais [...]. A Sociedade das Nações estendeu às relações internacionais princípios e práticas que, pouco a pouco, se generalizaram no interior dos Estados: discussão pública, deliberação parlamentar, solução das questões através da maioria dos sufrágios".

A esperança alimentada pela democratização das nações - das europeias em particular - fortaleceu, ao longo da década de 1920, o pensamento idealista, na medida em que se consolidou a crença nos governos constitucionais e liberais e em seus impactos positivos em direção à paz (RÉMOND, 1994; MILZA, 1995). Da mesma maneira, a reversão do processo democrático e a adesão de países como Itália, Alemanha, Portugal e Espanha a regimes fascistas - movimento que foi potencializado pela crise de 1929 - abriu um flanco importante aos críticos do idealismo, o mais importante deles sendo o historiador britânico Edward H. Carr.

Em sua obra Vinte Anos de Crise 1919-1939, Carr (2001) busca desconstruir, valendo-se de uma mistura de argumentos filosóficos e históricos, a crença utópica que marcou a evolução política do entre-guerras. Elenca, para tal empreitada, uma série de argumentos, dois dos quais são importantes para nosso propósito. O primeiro deles é o de que a democracia não é a mesma para todos os Estados: embora a escolha de instituições liberais aparentemente tenha levado à prosperidade econômica em um limitado número de países, nos quais "a democracia liberal do século dezenove teve um brilhante sucesso", a aplicação irrestrita da fórmula democrática alhures, na crença de que se obteriam resultados semelhantes, "foi essencialmente utópica" (CARR, 2001, p. 39). O autor prossegue, em uma passagem que vale ser citada em toda sua extensão:

Quando as teorias da democracia liberal foram transplantadas, por um processo puramente intelectual, a um período e a países cujo estágio de desenvolvimento e cujas necessidades práticas eram tremendamente diferentes dos da Europa ocidental do século dezenove, esterilidade e desilusão foram a sequela inevitável. A razão pode criar a utopia, mas não pode torná-la real. As democracias liberais espalhadas pelo mundo, devido ao acordo de paz de 1919, foram o produto da teoria abstrata, não lançaram raízes no solo e rapidamente murcharam (CARR, 2001, p. 39).

O segundo argumento de Carr que remete à questão democrática é enunciado quando o autor ressalta a importância do poder na política internacional. A lógica é composta por duas partes: (1) o poder é mais importante que valores na interação entre os Estados; (2) nas três dimensões do poder na política internacional - militar, econômico e sobre a opinião -, a distinção entre democracias e autocracias é diluída. Nas duas primeiras esferas, essa alegação é patente. Mas não o deveria ser na dimensão do poder sobre a opinião. Afinal de contas, é justamente a opinião pública nos Estados democráticos que opera como um limite claro às vontades dos tomadores de decisão. Na política internacional, contudo, Estados democráticos são tão hábeis quanto seus pares autoritários (mas talvez não tão eficazes) em manipular a opinião pública. "As democracias, ou os grupos que as controlam", sustenta Carr, "não são totalmente inocentes nas artes de moldar e dirigir a opinião das massas" (CARR, 2001, p. 174), seja pela educação pública ou por meios mais modernos, como o rádio, o cinema ou a imprensa. Ainda que as condições de controle de tais meios variem, sendo visivelmente mais estritas nos países totalitários, mesmo nos países democráticos "há uma visível tendência na direção do controle centralizado" (CARR, 2001, p. 175).

O que se desprende desse duplo argumento, do ponto de vista metodológico, é a progressiva marginalização da variável "regime político" para explicar os movimentos da política internacional. Por essa razão, a menção ao termo "democracia" vai ficando cada vez mais rara nos trabalhos anglo-saxões da área. Hans Morgenthau (2003, p. 12), em sua obra que se tornou canônica do campo, A política entre as nações, rejeita de antemão qualquer possibilidade de regimes democráticos serem um fator determinante na política internacional, por se tratarem de "resquícios de uma obsoleta ordem legal e institucional" do século XIX que devem ser suplantados pela aceitação de uma ordem racional marcada pela desigualdade de poder e interdependência de interesses. A democracia, nesse sentido, seria um dos elementos que desviam a política exterior de seu caminho objetivo e racional:

Particularmente nos casos em que a política externa é conduzida sob as condições de controle democrático, a necessidade de conquistar emoções populares em apoio a essa política

não pode deixar de toldar a racionalidade da política exterior

. Não obstante, uma teoria de política externa que aspire à racionalidade terá, nesse ínterim, como que

abstrair esses elementos irracionais

e buscar pintar um quadro de política externa mediante o qual se comprove que a essência racional se baseou na experiência [...]. (MORGENTHAU, 2003, p. 10, ênfases nossas).

A predominância do paradigma realista nas Relações Internacionais ao longo das décadas do pós-Segunda Guerra, cujas múltiplas facetas garantiram a supremacia de conceitos considerados fundamentais, como poder e segurança (SMITH, 1987; BROWN, 2001), teve como consequência indireta a permanente marginalização do diálogo entre teoria democrática e política internacional. É até cabível sustentar que grande parte desse processo de marginalização encontra correspondência na história do período. Diferentemente do início daquele século, em que a expansão democrática (interna e externa) era vista como a única forma de obter a paz entre nações, as divergências ideológicas suplantaram o debate sobre a escolha institucional doméstica. Por mais simplificadora que seja essa observação, no início da Guerra Fria era plausível falar de democracias capitalistas versus autocracias socialistas. O capitalismo democrático vivenciou uma expansão considerável nos anos que se seguiram à vitória dos Aliados - a chamada "segunda onda" de Huntington. As exceções - como Portugal e Espanha, cuja redemocratização só ocorreria três décadas mais tarde - eram países, àquela altura, de pouca relevância internacional.

Em qualquer hipótese, diante da ordem bipolar, o instrumento discursivo de oposição internacional deixou, paulatinamente, de ser o regime político per se (Truman, no anúncio de sua doutrina de política externa em março de 1947,5 5 . O texto integral da mensagem do presidente Truman ao Congresso norte-americano, em 12 de março de 1947, está disponível em: < http://avalon.law.yale.edu/20th_century/trudoc.asp>. Acesso em: 30 jun. 2012. ainda insiste na dicotomia entre regimes livres e regimes totalitários) e passou a ser o modo de produção, uma vez que a ideia de contenção que pautou a política exterior norte-americana envolvia, entre outras coisas, o apoio a regimes fechados que estivessem engajados no combate ao comunismo (RÉMOND, 1994). A ordem internacional era sustentada por dois pilares que se complementavam, o equilíbrio de poder entre a União Soviética e os Estados Unidos, e o medo constante de uma catástrofe nuclear. Considerações sobre as instituições domésticas de cada país, para o mainstream da teoria de Relações Internacionais, não pareciam fazer muita diferença.

Behaviorismo, Níveis de Análise e o Quebra-cabeça Metodológico

A "virada behaviorista" de meados dos anos 1950 nas ciências sociais norte-americanas acabou por atingir o campo das RI de duas maneiras fundamentais. O primeiro impacto do movimento behaviorista foi a distinção clara entre "científicos", que advogavam pelo observável, mensurável, quantificável, e "tradicionalistas", que optavam, aos moldes das primeiras obras canônicas da disciplina, por uma abordagem que privilegiasse o método dedutivo, filosófico e histórico. Essa querela metodológica, representada pelo embate entre Kaplan (1990) e Bull (1990) na edição de 1966 da World Politics, acabou gerando impactos mais profundos, desmontando o consenso anglo-saxão que havia guiado a disciplina, ao menos do ponto de vista do método de investigação, desde seu nascimento (BULL, 2000). Dessa forma, do lado norte-americano, quase todo o campo se aproximou do behaviorismo, sustentando a primazia do método e abandonando as preocupações ontológicas que marcaram o que se convencionou chamar - embora de maneira discutível, como sustentam Schmidt (1998) e Wilson (1998) - de "Primeiro Grande Debate" nos anos 1930 (SMITH, 1987). Do outro lado do Atlântico, a rejeição da linguagem quantitativa e da esterilidade valorativa criou um senso de identidade, calcado no tradicionalismo, que daria origem a uma nova matriz teórica, a Escola Inglesa.6 6 . Em função do escopo limitado deste trabalho, não desenvolveremos o argumento da tradição inglesa no debate de valores, entre os quais os valores liberal-democráticos, na transformação do sistema internacional para a sociedade internacional. É importante deixar claro, não obstante, que trabalhos como o de Bull (2002), ainda que não falem especificamente em democracias, conferem ampla margem de interpretação para que a questão democrática seja incorporada ao argumento, sobretudo no debate sobre a viabilidade do estabelecimento de uma justiça mundial ou cosmopolita (cf. capítulo 4). A dificuldade dá-se pelo fato de que aceitar a primazia da Escola Inglesa, neste ponto, é remover sentido do restante dessa empreitada. Por isso, o recorte foi feito, em grande medida, na teorização norte-americana e nas teorias sistêmicas positivistas que nascem dessa tradição.

A preocupação com as questões metodológicas que guiara o novo debate disciplinar trouxe um segundo impacto para o campo, de alcance mais amplo, que redundou na tentativa constante de refinar metodologicamente o estudo das Relações Internacionais. A saída encontrada estava na perspectiva sistêmica, primeiramente enunciada por Waltz em sua obra de 1959 Man, the State, and War (WALTZ, 2004). De acordo com o autor, três níveis analíticos (ou três "imagens") coexistiram na evolução do pensamento político ocidental na tentativa de dar conta do fenômeno da guerra. A primeira imagem busca relacionar o comportamento humano à ocorrência de conflitos internacionais. "A maldade do homem, ou seu comportamento impróprio, leva à guerra; a bondade individual, se pudesse ser universalizada, significaria paz: eis o enunciado conciso da primeira imagem" (WALTZ, 2004, p. 50). A segunda imagem remete às características de organização interna dos Estados nas quais as causas da guerra poderiam ser buscadas. Diversos autores liberais, especialmente a tradição utilitarista do século XIX, evocavam concepções como a harmonia de interesses para compreender o mundo. Estados bons, ou que agregassem determinadas instituições e valores de liberdade e justiça, levariam à paz; Estados maus causariam guerra. Afirmações maniqueístas dessa natureza, segundo o autor, podem levar a conclusões enganosas (WALTZ, 2004, p. 152). Afinal, observar exclusivamente a construção institucional ou valorativa dos Estados sem compreender a relação por eles estabelecida com os demais, em um contexto de razoável liberdade de ação, não conduz a respostas satisfatórias. Por isso, Waltz sugere a consideração de um nível de análise superior, a terceira imagem, que atribui à distribuição de poder e à característica anárquica do sistema internacional as causas dos conflitos. Não é dizer que a terceira imagem ratifica uma ou outra abordagem teórica, tratando-se, antes de tudo, de uma percepção metodológica. Em todo caso, uma observação no nível do sistema parece ser a chave para a compreensão das causas da guerra, em primeiro lugar, e dos processos internacionais de um modo mais amplo.

A terceira imagem descreve a estrutura da política mundial, mas sem a primeira e a segunda imagens não pode haver conhecimento das forças que determinam a política; a primeira e a segunda imagens descrevem as forças presentes na política mundial, mas sem a terceira é impossível avaliar a importância ou prever os resultados dessas forças (WALTZ, 2004, p. 295).

Ao fim e ao cabo, o que se percebe na construção de Waltz é a tentativa de estruturar um debate metodológico até então marginal ao campo, no qual se sugere a importância de uma perspectiva sistêmica, em que pese a necessidade de se considerarem as "forças" que interagem na primeira e segunda imagens. Em qualquer hipótese, ao minimizar o poder explicativo das características internas ao Estado e da natureza humana, o autor acabou por reforçar a marginalização do regime político como variável. Quando a prática se universalizou, com a predominância das abordagens sistêmicas ao fim dos anos 1970, pode-se até pensar em uma desconsideração total da questão democrática, tema que será exposto a seguir.

A Emergência das Abordagens Sistêmicas em um Mundo Interdependente

As transformações observadas na década de 1970, decorrentes da maturação do processo de descolonização e do início da distensão entre as superpotências, contribuíram para o enfraquecimento do paradigma realista, que até então pautara o debate disciplinar (SMITH, 1987). O campo das Relações Internacionais vê nascer um novo debate - o debate interparadigmático -, que, ao contrário dos anteriores, não pressupunha um vencedor, mas a convivência da pluralidade teórica (WÆVER, 1996, p. 155). Tratava-se de um debate triangular, no qual se inscreviam, para além do realismo e suas derivações, as vertentes marxistas ou estruturalistas, em um vértice, e uma diversidade de escritos de corte liberal, no outro (BANKS, 1985; WÆVER, 1996). A despeito da inegável importância da produção inspirada no marxismo clássico, ela se desenvolveu às margens do campo (notadamente nos Estados Unidos), sendo frequentemente identificada com temas e leituras muito específicos das Relações Internacionais, como o imperialismo ou a dependência (BANKS, 1985, p. 18). Os liberais/pluralistas, por sua vez, aproveitaram-se de uma crescente retórica (política e acadêmica) de interdependência, no alvorecer daquela década, que refletia "um sentimento mal-compreendido, mas generalizado, de que a natureza da política mundial está mudando" (KEOHANE; NYE, 2001, p. 3).

Dentro do contexto de uma globalização incipiente, o aumento significativo dos fluxos internacionais - de bens, capitais, ideias e pessoas, como argumentam Keohane e Nye (2001, p. 7-8) - e cujo impacto político assume o nome de interdependência complexa, engendrou duas transformações significativas do ponto de vista do debate teórico. A primeira delas, mais importante, é a perda sensível de relevância do paradigma realista. Uma análise crua do poder e dos interesses de segurança na política internacional perdia poder explicativo em um mundo que testemunhava a aproximação relativa das duas superpotências e do abandono, ao menos temporário, da lógica da força e de sua tradução mais clara, a corrida armamentista. Nas palavras dos autores, "as premissas dos realistas políticos, cujas teorias dominaram o período pós-guerra, são frequentemente bases inadequadas para analisar a política da interdependência" (KEOHANE; NYE, 2001, p. 20).

A segunda transformação tem a ver com o número de atores da política mundial e a forma como eles se organizam internamente. Não se trata de olhar para o Estado de dentro para fora, a partir de suas instâncias decisórias, como fazem os analistas de política externa. Trata-se, ao contrário, de questionar a dupla máxima realista que considera os Estados (1) os entes exclusivos das relações internacionais e (2) atores que interagem de forma absolutamente coerente no plano mundial. Com o aumento dos fluxos econômicos e o surgimento de empresas transnacionais de dimensões impressionantes, os advogados da interdependência complexa passaram a relativizar a concepção estadocêntrica. O tipo ideal ontológico da interdependência complexa trata de um mundo, portanto, "em que atores além dos Estados participam diretamente da política mundial, em que uma clara hierarquia entre os assuntos [da agenda internacional] não existe, e em que a força é um instrumento não efetivo de política" (KEOHANE; NYE, 2001, p. 21). Os próprios autores assumem, contudo, que a realidade política se situa em algum lugar entre o modelo ideal realista e aquele por eles formulado, embora as transformações do mundo sejam mais bem captadas pela lógica da interdependência.

Pois bem, resta saber se o novo modelo dá conta da questão democrática e, em caso positivo, como realiza essa incorporação. Já foi dito anteriormente que a consolidação do realismo como paradigma dominante do pensamento internacional anglo-saxão foi responsável por marginalizar o contato entre a teoria democrática e a política mundial. Quanto maior o foco no poder, menor a consideração por valores como variáveis explicativas, mesmo quando essa consideração não implicasse a adesão a qualquer tipo de viés normativo. Parte da literatura do período, principalmente aquela tributária da teoria dos sistemas (EASTON, 1953; KAPLAN, 1957; ver especialmente DEUTSCH, 1982), encontrou uma solução ambígua: aceitar como premissa a estrutura democrática de uma sociedade genérica para fins analíticos, com instituições políticas independentes e articuladas, mesmo se o objeto da análise fosse um Estado autocrático.7 7 . Uma tentativa de sistematizar as estruturas políticas de tipos diferentes de regimes, valendo-se de uma vertente behaviorista denominada "teoria de sistemas", é dada por Kaplan (1957). Sua obra lógica sistêmica acabou, contudo, sendo substituída pela noção waltziana de sistema a partir dos anos 1980 (WALTZ, 2002, esp. capítulo 3).

Keohane e Nye recorrem a artifício semelhante, mas de maneira menos sistemática. Assumem que a política internacional pode ser pensada em três níveis: o das relações interestatais, que mantém a sintonia com a matriz realista; o das relações transgovernamentais, que relaxa a hipótese do "Estado coerente" e pondera que elites governamentais podem manter contatos informais com outras elites ou mesmo com agentes não governamentais; e o das relações transnacionais, que questiona o estadocentrismo e inclui na equação atores transnacionais, como empresas e bancos privados. Os dois níveis mais complexos só fazem sentido, a rigor, em um mundo que seja liberal em termos tanto institucionais (democracias) quanto de mercado. Novamente, a democracia entra como uma espécie de pressuposto tácito.

Por ter sido escrita uma década após o livro de Deutsch, a obra de Keohane e Nye é mais bem-sucedida na apropriação da democracia como o padrão institucional dos Estados. Afinal, estamos tratando de um contexto de renascimento democrático, caracterizado por Huntington (1994) como "terceira onda de democratização", iniciada com a Revolução dos Cravos, em Portugal, no ano de 1974. Mais para o final daquela década, muito embora as mudanças ainda não fossem visíveis nas "fortalezas socialistas" soviética e chinesa, virtualmente todo o mundo ocidental já se encaixava naquele padrão. Os impactos dos diferentes regimes políticos para as relações internacionais, contudo, permaneceriam à espera de problematização.

Apesar de ter sido bem recebido no meio acadêmico, atingindo rapidamente o estatuto de clássico do campo, Power and interdependence não atendeu plenamente a um critério caro à ciência social norte-americana, o rigor metodológico. O conceito de interdependência ainda não havia ficado claro como chave analítica, e a abordagem, que se dizia baseada em modelos sistêmicos com foco nos processos internacionais, abre flancos ao buscar construir, em paralelo à explicação sistêmica e reconhecendo as limitações desta, uma teorização da política doméstica e da liderança (KEOHANE; NYE, 2001, p. 132-139, p. 205-211). Em todo caso, como já dito, percebe-se com clareza a pressuposição de que os processos internacionais ocorrem em um contexto sistêmico aberto, de livre mercado, o que deixa de fora parte significativa do universo de análise.

O Neorrealismo e o Sepultamento da Democracia

Baseando-se na defesa de uma teorização sistêmica pura, Waltz (2002) resgata os preceitos realistas de poder e segurança na tentativa de, a um só tempo, ampliar seu universo de análise (valendo-se do argumento, cada vez mais plausível, de que a União Soviética ainda importava) e construir um modelo elegante e universal, à semelhança da microeconomia. Partindo da premissa de que a estrutura do Sistema Internacional é descentralizada e anárquica, além de considerar que as unidades (Estados) componentes dessa estrutura não apresentam qualquer diferenciação funcional (executando as mesmas funções básicas com vistas a preservar sua sobrevivência), o autor considera que a única variável que distingue os Estados na política internacional são seus recursos ou capacidades materiais (capabilities). A distribuição de recursos entre os países determina, no limite, as escolhas estatais e os resultados da política internacional (WALTZ, 2002).

O estabelecimento de um construto teórico a-histórico, com variáveis bem definidas e baseado na distribuição de recursos materiais, surtiu dois efeitos imediatos no campo. O primeiro deles foi o ganho de poder explicativo e preditivo, conquistado em função da simplicidade do modelo. Existiriam, de acordo com o autor, padrões recorrentes de comportamento estatal no nível da "terceira imagem". Qualquer explicação científica deveria, pois, ser buscada nas interações estatais dentro do sistema internacional, e somente lá. "As continuidades e as repetições derrotam os esforços para explicar as relações internacionais ao seguir a fórmula familiar de dentro para fora [...]. Se uma condição indicada parece ter causado uma dada guerra, devemos perguntar-nos o que explica a repetição das guerras mesmo quando as causas variam" (WALTZ, 2002, p. 97).

O segundo efeito, decorrente do primeiro, é o sepultamento de qualquer variável que não o poder material, e em particular o poder militar, para a compreensão da política internacional, bem como a desconsideração de qualquer interesse que não fosse a sobrevivência estatal. Contra a perspectiva liberal de Keohane e Nye, Waltz (2002) tece uma longa crítica à ideia de interdependência complexa, relegando à margem qualquer sugestão de que as sociedades que constituem seu objeto de análise sejam liberais e democráticas - e demonstrem, pois, qualquer grau de interação entre Estados e sociedades. O autor resgata, portanto, a dupla consideração ontológica do realismo sobre o papel do Estado: sua plena coerência interna e seu papel como ator único das relações internacionais. Sepultava-se, assim, o regime político como variável explicativa, com base no argumento de que se tratava de questões de ordem interna ao Estado, não pertinentes ao modelo. Nenhuma tentativa de avançar no programa de pesquisa neorrealista ao longo dos primeiros anos do debate (WALT, 1985; 1987) ou nas formulações mais recentes (WALTZ, 1993; MEARSHEIMER, 2001; WOHLFORTH; 1999) buscou tratar dessa incorporação.8 8 . Waltz (1993), por exemplo, refuta veementemente a tese da paz democrática. Ao lidar com a questão, pondera: "Mas o que dizer sobre a noção, agora amplamente difundida, de que somente porque poderá haver mais Estados democráticos no futuro, e menos Estados autoritários, a visão wilsoniana de uma ordem internacional pacífica, estável e justa transformou-se na visão apropriada? Estados democráticos, como outros, têm interesses e vivenciam conflitos [...]. Estados democráticos, como outros, estão preocupados com perder ou ganhar mais na competição entre nações" (WALTZ, 1993, p. 77-78).

Em todo caso, a despeito de sua evolução interna, a matriz teórica neorrealista foi contestada duplamente, dentro do mainstream norte-americano, ao longo da década de 1980. O primeiro contendor, que já havia sido alvo de algumas críticas do próprio Waltz, foi Robert Keohane, que decide explorar diversos pontos deixados em aberto em seus escritos anteriores, já em uma roupagem mais científica e assumidamente estadocêntrica, em After hegemony (KEOHANE, 1984). Dentro do debate teórico norte-americano, pode-se dizer que esta obra representa para a análise de economia política internacional o que o neorrealismo representa para a análise das relações militares e de poder. Ademais, é clara sua inclinação epistemológica positivista, o que permitiu estabelecer, desde o início, amplo debate com a tradição waltziana a respeito de uma série de questões conceituais e suas implicações práticas, como a natureza da anarquia, as possibilidades de cooperação internacional, o papel das instituições e dos regimes e ganhos absolutos versus ganhos relativos (BALDWIN, 1993). Ainda assim, como havia se inspirado em uma matriz claramente liberal, a ideia da democracia como pano de fundo é retomada. Como o próprio autor afirma, seu estudo "foca nas relações entre os países de avançada economia de mercado", que "detêm visões sobre a própria operação de suas economias que são relativamente similares - pelo menos em contraste com as diferenças que existem entre essas e países menos desenvolvidos, ou as economias planificadas não orientadas para o mercado" (KEOHANE, 1984, p. 6). Nas entrelinhas, contudo, percebe-se que são as diferenças de modelo econômico características de cada regime político que importam, e não o regime em si - além de, como visto, ele não representar uma variável, e sim premissa analítica.

A outra vertente que buscou medir forças com o neorrealismo foi o liberalismo, macrocorrente teórica herdeira do idealismo fundador da disciplina, que tomou progressivo vulto no período terminal da Guerra Fria (DOYLE, 1986; MORAVCSIK, 1997). A diferença entre esse "liberalismo" e o chamado "neoliberalismo", inaugurado por Keohane (1984), é dada tanto em termos da característica dos atores estatais (racionais, para o neoliberalismo, e movidos por interesses definidos ideologicamente, para o liberalismo) quanto, e principalmente, pelo nível de análise teórico. Enquanto o neoliberalismo é sistêmico, à semelhança do neorrealismo,9 9 . A convergência do nível analítico pode ser considerada um dos fatores que constituiu o mainstream do debate acadêmico norte-americano desde a publicação de Theory of International Politics, de Waltz (2002). o liberalismo enfoca características de organização institucional dos Estados para tirar determinadas conclusões sistêmicas. O pano de fundo encontra suas bases nos autores liberais clássicos. Michael Doyle, por exemplo, propõe uma revisão de três cânones da tradição liberal do ocidente - Schumpeter, Maquiavel e Kant - para demonstrar a validade, tanto epistemológica quanto empírica, da tradição liberal nas Relações Internacionais.

Nesse contexto, evoca uma característica fundamental dos Estados liberais-democráticos do século XX: bem como advogavam pensadores pretéritos, em particular na tradição kantiana, tais Estados demonstram conduta pacífica para com seus pares - ainda que estivessem prontos a arcar com a guerra contra governos autocráticos (DOYLE, 1986). Nascia a corrente da paz democrática na política internacional, fonte de frutíferos debates nos anos que se seguiram, e que seguramente informou o componente democratizante/wilsoniano que marcou o neoconservadorismo da política externa de Reagan e todo o seu legado ideológico à política externa norte-americana. É importante realizar a distinção, contudo, entre a consideração da variável regime político realizada de modo geral pelos liberais e sua incorporação sistêmica. Ao concentrarem-se na "segunda imagem", os liberais escapam do debate com os teóricos sistêmicos. Apesar de, hoje, representar uma tese dominante nas Relações Internacionais dos EUA, a paz democrática desenvolveu-se de forma marginal às formulações de Waltz (2002) ou Keohane (1984).

Tomando as abordagens sistêmicas como o eixo fundamental do debate teórico das RI até os dias atuais (LAMY, 2008; LAYNE, 2009), constata-se que a democracia não encontrou o seu devido lugar como variável explicativa relevante, a despeito de sua crescente importância como instrumento político nas relações entre Estados (CAROTHERS, 1997; 2006; KAGAN, 2008; DIAMOND, 2008a; FUKUYAMA; MCFAUL, 2007; GOODHART, 2008) e como parte da dinâmica global do pós-Guerra Fria (FUKUYAMA, 1992; 2012; DIAMOND, 2008b). Na próxima seção, discutiremos, à luz do construtivismo, como seria possível a incorporação da variável democrática no plano sistêmico.

Da Janela dos Fundos para a Porta da Frente: Perspectivas Teóricas para a Democracia

Ao analisar a evolução teórica da disciplina de RI até a consolidação do mainstream norte-americano (dada pelo debate neorrealismo versus neoliberalismo), percebemos que a variável regime político foi sendo paulatinamente relegada a segundo plano, e definitivamente enterrada pelas abordagens sistêmicas pela crença geral de que elementos internos ao Estado não importavam para o estudo da política internacional. Acreditamos, contudo, que o construtivismo de matriz wendtiana - que também é uma abordagem sistêmica - pode preencher essa lacuna, a partir dos conceitos de identidades coletivas. Uma análise da teorização das identidades feita por Wendt (1996; 1999) pode nos servir como entrada para a consideração da democracia como variável relevante da política internacional, do ponto de vista relacional. A consideração é relevante porque resgata a importância da democracia, ou dos regimes políticos, sem o emprego de soluções que excedam o escopo das teorias sistêmicas - como, por exemplo, a consideração de variáveis de "segunda imagem" em teorizações de "terceira imagem", como fez Walt (1985; 1987).

O construtivismo wendtiano é uma teoria estrutural de política internacional respaldada pelas seguintes premissas: em primeiro lugar, os Estados são os atores principais do sistema internacional; segundo, as estruturas-chave de um sistema de Estados são intersubjetivas, ao invés de materiais; por fim, as identidades e interesses do Estado são, em grande parte, constituídos por tais estruturas, e não apresentados de uma forma exógena ao sistema pela natureza humana ou política doméstica (WENDT, 1996, p. 48).

Atenção especial deve ser concedida às propriedades dos agentes (no caso, os Estados) que os diferenciam entre si. Na seara material, temos como claro exemplo as capacidades militares ou econômicas. No campo das ideias, isto é, dos elementos intersubjetivos que constituem as principais estruturas do sistema, ressalta-se o papel das percepções, identidades e demais componentes ideacionais da relação de um ator com ele mesmo e com os demais. Assim, da mesma forma que Waltz (2002) atribui à distribuição de poder (isto é, das capacidades materiais) papel essencial na conformação do sistema de Estados, Wendt (1996) argumenta que esse sistema é informado por uma estrutura cultural em vez de material, que não pode ser reduzida aos atores e que consiste no estoque de crenças, ideias, entendimentos, percepções e identidades interligadas (WENDT, 1996, p. 49).

Neste contexto, é fundamental destacar o conceito de identidade social, definido como "conjuntos de significados que o ator atribui a si próprio enquanto toma a perspectiva de outros" (WENDT, 1996, p. 51). Em sua principal obra, Social theory of international politics, Wendt (1999) subdivide a chamada identidade social em três diferentes componentes: tem-se, então, "quatro tipos de identidade: (1) pessoal ou corporativa, (2) tipo, (3) papel e (4) coletiva" (WENDT, 1999, p. 224). As identidades tipo, papel e coletiva são prioritariamente sociais na medida em que se baseiam na forma como o ator é visto pelos demais, em um contexto em que interações existam.

A identidade corporativa relaciona-se às estruturas e elementos de auto-organização que permitem a distinção de um Estado com relação aos demais. Para sua existência, a inserção do Estado em um sistema não é necessária, já que ela antecede ontologicamente o sistema (WENDT, 1996, p. 51). Por a identidade estar ligada à questão "corporal" do Estado, ou seja, os fundamentos materiais - no caso, população e território -, o ator só pode possuir uma identidade dessa natureza (WENDT, 1999, p. 225). Ela permite que o Estado, ou agente, perceba-se como tal, conferindo a ele a noção do "eu", isto é, do "self" observado por ele próprio, e não pautado pela ideia de "self" a partir do "outro".10 10 . A discussão fundamental do interacionismo simbólico, a partir da qual Wendt constrói grande parte de sua argumentação, relaciona-se com as formas como o "self" e o "outro" interagem e se relacionam. O que distingue a abordagem de Mead (1962) da de Wendt (1999) nessa discussão é que, para as pessoas, não faz sentido falar da percepção do "eu" - isto é, do "self" observado por ele mesmo, em um vácuo relacional - para além da percepção do corpo. Justamente por isso, Mead (1962) foca sua análise no "mim", ou seja, na percepção do "self" como objeto, a partir das percepções do "outro", em um meio de interação. Wendt atribui à identidade corporativa a possibilidade de se compreender o "eu" - como já dito, contudo, em um momento ontologicamente anterior ao que ele pretende tratar - e, portanto, constrói seu modelo já considerando a identidade corporativa como dada, não problematizada. "Se um processo constitutivo é auto-organizador, então não há qualquer 'outro'particular ao qual o 'self' está relacionado" (WENDT, 1999, p. 225). Ainda que a identidade corporativa seja "um sítio ou plataforma para outras identidades" (WENDT, 1999, p. 225), Wendt (1999) não estende sua explanação sobre esse elemento particular para além de uma mera descrição, como se tomasse por suposta sua existência - portanto, não problemática.

Categorias sociais, ou características compartilhadas por um grupo específico de pessoas e reconhecidas socialmente, são chamadas identidades tipo (WENDT, 1999, p. 225-226). Um ator pode possuir diversas dessas identidades de uma só vez, e cada uma delas informa ao "outro" como agir em função da identidade portada pelo "self" (WENDT, 1999, p. 226). No caso dos Estados, as identidades tipo referem-se, ou correspondem, aos regimes ou formas de governo que cada unidade adota para si (capitalista, monárquico, socialista, fascista, autoritário etc.). Elas são, ao mesmo tempo, sociais (já que podem ser compartilhadas por um grupo que detenha as mesmas características, bem como orientar a relação entre as unidades) e auto-organizáveis, já que não dependem dos demais para ocorrerem (WENDT, 1999, p. 226). Um país pode possuir um governo que se fundamente, por exemplo, em premissas religiosas, e ser teocrático por si só. Esse é o elemento de auto-organização, já que essa escolha é essencialmente intrínseca ao ator. No entanto, quando o ator está inserido em um sistema de Estados e os demais tomam a característica de "Estado teocrático" como algo significativo, ela passa a ter uma conotação social, e torna-se, assim, uma identidade tipo.

Identidades papel, por sua vez, existem somente com relação aos "outros". Diferentemente das identidades tipo, elas não se relacionam com características pré-sociais - operando, portanto, em função de atributos relativos, não absolutos. Se um Estado adota um sistema econômico capitalista, ele é capitalista em um sentido absoluto, e essa característica constituirá uma identidade tipo caso os demais a tomem como significativa. Por outro lado, um Estado só pode ser amigo, hegemon ou rival se imerso em um sistema social. Essas características dependem fundamentalmente dos outros, e estabelecem a diferença entre o "eu", do "self" visto pelo próprio fora de um contexto social, e o "mim", quando o "self" se percebe a partir da perspectiva do "outro" (WENDT, 1999, p. 227).

As identidades coletivas, finalmente, "levam a relação entre 'self' e 'outro' à sua conclusão lógica, a identificação" (WENDT, 1999, p. 229). A identificação atenua a linha entre "self" e "outro", uma vez que o "self" é categorizado como o "outro", e o processo envolve estender as fronteiras do primeiro para incluir o último. A percepção do "mim" é semelhante àquela estabelecida nas identidades papel; a diferença é que, no caso das identidades coletivas, "self" e "outro" assumem uma identidade única, compartilhada.

Se retomarmos a categorização de níveis de análise realizada por Waltz (2004), podemos contrastá-la com a formulação de Wendt da seguinte maneira: a "primeira imagem" não encontra qualquer entrada no argumento wendtiano; o âmbito da "segunda imagem" é onde habitam a identidade corporativa (por isso mesmo, em uma abordagem sistêmica, ela deixa de ser problematizada) e a identidade tipo, que diz respeito a elementos organizados na seara do Estado, mas que possuem determinados impactos relacionais. A "terceira imagem", por fim, ou o nível sistêmico, é o palco para a construção e afirmação das identidades papel e coletiva.

Os regimes políticos seriam, nessa lógica, identidades tipo, na medida em que são auto-organizáveis. Entre os requisitos considerados por Dahl (1997) para que se tenha uma democracia para um grande número de pessoas, todos eles são determinados, exclusivamente, pelas instituições mediadoras entre o governo e seus cidadãos.11 11 . São eles: liberdade de formar e aderir a organizações; liberdade de expressão; direito de voto; direito de líderes políticos disputarem apoio; fontes alternativas de informação; eleições livres e idôneas; elegibilidade para cargos políticos; e instituições para fazer com que as políticas governamentais dependam de eleições e de outras manifestações de preferência (DAHL, 1997, p. 27). Opróprio autor considera, contudo, que "os regimes variam enormemente na amplitude com que as [...] condições institucionais estão abertamente disponíveis, são publicamente utilizadas e plenamente garantidas ao menos para alguns membros do sistema político que queiram contestar a conduta do governo" (DAHL, 1997, p. 27), o que faz da democracia um tipo ideal.

Em situações concretas, seria possível tão somente falar de poliarquias, isto é, regimes políticos que possuam considerável grau de liberalização, medida pela possibilidade de contestação pública, e de inclusividade, determinada pelo nível de participação popular - sendo, portanto, "regimes relativamente (mas incompletamente) democratizados" (DAHL, 1997, p. 31). Isso outorga tanto a analistas quanto a tomadores de decisão um elevado grau de arbítrio a respeito de que países são democráticos ou não. Não à toa, são diversas (e muitas vezes divergentes) as classificações globais sobre regimes políticos, os chamados índices de democracia.12 12 . Dentre os mais utilizados índices de democracia, podemos destacar o Polity IV ( http://www.systemicpeace.org/polity/polity4.htm), o Democracy Index, da Economist Intelligence Unit ( http://www.eiu.com/democracyindex2011), o Freedom in the World, da ONG Freedom House ( http://www.freedomhouse.org/report/freedom-world/freedom-world-2012), e o Index of Economic Freedom, da Heritage Foundation ( http://www.heritage.org/index/).

Justamente por não haver consenso a respeito de quais países são realmente democráticos, tem-se que as democracias dependam em um grau muito elevado do reconhecimento por parte dos "outros", podendo ser identificadas (ou ignoradas) como tais de acordo com interesses acadêmicos, mas sobretudo políticos. Por essa razão, seria plausível falar de regimes democráticos não como identidade tipo, mas como identidade papel, cujo sentido é dado pela identificação mútua, e cuja inclusão/exclusão possui implicações cada vez mais relevantes na política internacional contemporânea.

Um exemplo que pode nos apontar nessa direção é o caso venezuelano. As transformações institucionais observadas na Venezuela nos últimos anos (como a emenda constitucional que elimina os limites à reeleição para cargos majoritários, aprovada em referendo popular em 2009), levadas a cabo pelo presidente Hugo Chávez, fizeram-na distanciar da concepção mais comum de regime democrático - que envolveria, entre outras coisas, alternância de poder, eleições regulares e transparentes etc. (HAWKINS, 2010). Ainda que o tratamento que os Estados Unidos têm dado ao regime venezuelano seja de condenação categórica em função desse distanciamento, dentro da América Latina não parece haver consenso quanto ao estatuto democrático da Venezuela - e, em menor grau, da Bolívia e do Equador -, como se pode ver, por exemplo, no debate a respeito do ingresso venezuelano no Mercosul (MONTEIRO, 2007). Ainda mais sintomática do caráter relacional da democracia foi a querela em torno da suspensão do Paraguai do Mercosul, em junho de 2012, e a concomitante entrada da Venezuela - suscitando um caloroso debate sobre a utilização da "cláusula democrática" pelas organizações regionais e a respeito do próprio conceito de democracia no continente (MILANI, 2012; LAGOS, 2012; MERCOSUL..., 2012).

Por fim, não se pode deixar de mencionar o emprego seletivo da democracia como instrumento de política externa, em particular dos Estados Unidos, nas últimas duas décadas. Muito provavelmente inspirada por noções como a do fim da história (FUKUYAMA, 1992), em que se vivenciaria o triunfo dos valores democráticos e liberais, a política exterior de George H. W. Bush em diante se calcou na promoção da democracia como um instrumento fundamental de inserção internacional. A sinergia que marcou as relações entre os EUA e as Nações Unidas no imediato pós-Guerra Fria culminou, por exemplo, no conhecido documento "Uma agenda para a paz" (junho de 1992), relatório do então secretário-geral da ONU, Boutros Boutros-Ghali, que evoca a construção e sedimentação de valores democráticos como um dos princípios norteadores da ação da organização internacional diante de um novo contexto global (UNITED NATIONS, 1992).

A partir da eleição de Bill Clinton à Presidência, a promoção da democracia tornou-se uma grande estratégia da política exterior norte-americana, inserida na tradição democrática/wilsoniana do país (CAROTHERS, 1995; COX, 2000). Não obstante, a coerência de tal estratégia sempre foi prejudicada por imperativos econômicos, como a necessidade de garantir a influência e as vantagens comerciais com relação a países como Arábia Saudita e, de maneira muito visível a partir da década de 1990, a República Popular da China (COX, 2000; THINK..., 2000), contra cujos regimes as administrações norte-americanas nunca se posicionaram claramente. No governo de George W. Bush, a promoção da democracia foi associada ao combate ao terrorismo (CAROTHERS, 2006) e assumiu proporções ainda maiores, respaldando e culminando na invasão e ocupação do Afeganistão em novembro de 2001, e do Iraque, em março de 2003. Se, por um lado, as ações nesse sentido perpetradas pelo governo Bush 43 foram referendadas por uma matriz ideológica neoconservadora, na qual a democracia liberal é um de seus principais temas e sustenta o excepcionalismo norte-americano em política externa (TEIXEIRA, 2007), por outro, as iniciativas daquele presidente foram duramente criticadas até mesmo por defensores históricos da democracia liberal (FUKUYAMA; MCFAUL, 2007). Um dos pontos mais contundentes de crítica foi exatamente o da seletividade dos alvos de promoção da democracia (MCFAUL, 2004-2005), que garantiu ao governo Bush uma margem expressiva de arbítrio em política externa, muitas vezes deletéria à própria imagem dos Estados Unidos no exterior - justamente pela relativização do conceito de democracia e por sua transformação de identidade tipo em identidade papel.

Que implicações isso traz, do ponto de vista teórico? A possibilidade de consideração de democracias como identidades de "terceira imagem" e não de "segunda imagem" pode permitir, do ponto de vista sistêmico, que se entenda a dinâmica das interações internacionais - em direção da cooperação ou do conflito - em função dos regimes políticos. Para utilizarmos um termo mais próximo ao jargão do mainstream, poderíamos pensar em uma distribuição de identidades políticas que, ao lado das capacidades e das ideias de um modo geral, servem-nos de instrumento para a compreensão das relações internacionais contemporâneas.

Considerações Finais

A ideia deste estudo foi dupla. Em primeiro lugar, quis-se realizar um mapeamento de razoável abrangência de como a evolução do campo das Relações Internacionais - mais especificamente, na academia norte-americana - incorpora ou rejeita a validade dos regimes políticos como variáveis explicativas, com vistas a pensar o papel da democracia nas relações internacionais. O que se pode perceber, de um modo geral, é que a democracia sofreu abandono progressivo no pensamento internacional, desde a emergência do realismo como paradigma dominante, e encontrou dificuldades de entrada nas formulações teóricas do mainstream, agravadas (1) pela ideia de primazia do poder na relação entre Estados; (2) pela excessiva preocupação metodológica da disciplina a partir da virada behaviorista, que acomodou com dificuldade a polissemia conceitual envolvendo o debate sobre regimes políticos e a própria ideia de democracia; e, mais importante, (3) pela consideração, quase consensual, da "terceira imagem" como palco da política internacional a partir da década de 1970.

Diante da consideração de que o mundo hoje é proporcionalmente mais democrático do que em qualquer outro período da história recente, contando com 117 democracias (60% do total) em contraste com as 29 do imediato pós-Primeira Guerra (45% do total) (HUNTINGTON, 1994, p. 35; FREEDOM HOUSE, [s.d.]), torna-se urgente, em segundo lugar, uma reflexão sobre os impactos dos regimes políticos sobre a dinâmica da política internacional, tanto do ponto de vista teórico-conceitual quanto em suas implicações práticas. O que se percebe é um crescente descompasso entre as avaliações, cada vez mais numerosas, da importância da democracia para a política internacional contemporânea - seja como instrumento político nas relações entre Estados ou como parte da dinâmica global do pós-Guerra Fria - e o debate teórico das Relações Internacionais, que continua relegando aos regimes políticos poder explicativo limitado.

Deseja-se, aqui, fazer uma aposta teórica na centralidade da democracia sem perder de vista todo o acumulado epistemológico e metodológico que posicionou as abordagens sistêmicas no centro da disciplina nas últimas três décadas. Crê-se plausível ponderar sobre os potenciais efeitos sistêmicos causados, por exemplo, pela última "onda de democratização" - que, a um só tempo, "universalizou" a democracia em termos de abrangência geográfica, mas criou, concomitantemente, discrepâncias essenciais quanto à qualidade da democracia. No limite, a própria ideia de regime democrático transformou-se em um conceito vago, por muitas vezes arbitrário e, sobretudo, um formidável instrumento político que os Estados detêm em suas relações com os demais - seja afirmando o estatuto democrático de alguns, seja negando a outros tal prerrogativa. Os exemplos trabalhados na última seção do texto, embora não sejam exaustivos, apontam para possíveis situações-problema em que a questão democrática é trazida à baila, com todas suas implicações políticas no plano das palavras e das ações no sistema internacional.

Por isso mesmo, de uma perspectiva sistêmica, faz-se fundamental a incorporação da variável regime político pelo construtivismo wendtiano - que nos parece a única dessas teorias capaz de problematizar tais variáveis a partir de uma dimensão relacional. Essa incorporação demanda uma transposição da identidade democrática de "tipo" para "papel", o que permitiria teorizar a democracia no nível relacional e não corporativo. Acredita-se na possibilidade da abertura de um duplo espaço em agendas de pesquisa futuras, um que estabeleça um diálogo mais consistente entre teoria democrática e abordagens de Relações Internacionais, e outro que avance na aplicação empírica da teorização construtivista a partir das sugestões aqui contidas.

Notas

Artigo recebido em 23 de setembro de 2011 e aprovado para publicação em 27 de agosto de 2012.

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  • WOHLFORTH, William C. The stability of a unipolar world. International Security, v. 24, n. 1, 1999.
  • 1
    . Aqui entendida no sentido liberal do termo, em que se possua uma Constituição que garanta as liberdades fundamentais, e cuja disputa política apresente liberdade de organização e oposição ao governo. Em linhas gerais, a maneira como o termo é usualmente empregado na literatura se assemelha ao conceito de
    poliarquia (DAHL, 1997).
  • 2
    . É importante enfatizar que a narrativa que descreve o nascimento de uma disciplina fundada em princípios liberais-idealistas, como sustenta Carr (2001) e Bull (2000), não é consensual. Na década de 1990, veio à tona um conjunto consistente de obras que, relendo a historiografia do pensamento internacional do entreguerras, questiona a existência de um consenso idealista e refuta, inclusive, a existência do chamado "Primeiro Grande Debate" (WILSON, 1998; SCHMIDT, 1998).
  • 3
    . Denominada, alternativamente, de utópica ou idealista.
  • 4
    . O auge deste processo se identifica na proliferação de tratados internacionais de alcance universal e particularmente ambiciosos, como o Pacto Briand-Kellogg de 1928, assinado em Paris por Estados Unidos, Japão e diversos países europeus como a Alemanha, o Reino Unido e seus domínios ultramarinos, a França e a Itália, que visava nada menos do que banir o recurso à força da relação entre Estados (RÉMOND, 1994; MILZA, 1995).
  • 5
    . O texto integral da mensagem do presidente Truman ao Congresso norte-americano, em 12 de março de 1947, está disponível em: <
  • 6
    . Em função do escopo limitado deste trabalho, não desenvolveremos o argumento da tradição inglesa no debate de valores, entre os quais os valores liberal-democráticos, na transformação do sistema internacional para a sociedade internacional. É importante deixar claro, não obstante, que trabalhos como o de Bull (2002), ainda que não falem especificamente em democracias, conferem ampla margem de interpretação para que a questão democrática seja incorporada ao argumento, sobretudo no debate sobre a viabilidade do estabelecimento de uma justiça mundial ou cosmopolita (cf. capítulo 4). A dificuldade dá-se pelo fato de que aceitar a primazia da Escola Inglesa, neste ponto, é remover sentido do restante dessa empreitada. Por isso, o recorte foi feito, em grande medida, na teorização norte-americana e nas teorias sistêmicas positivistas que nascem dessa tradição.
  • 7
    . Uma tentativa de sistematizar as estruturas políticas de tipos diferentes de regimes, valendo-se de uma vertente behaviorista denominada "teoria de sistemas", é dada por Kaplan (1957). Sua obra lógica sistêmica acabou, contudo, sendo substituída pela noção waltziana de sistema a partir dos anos 1980 (WALTZ, 2002, esp. capítulo 3).
  • 8
    . Waltz (1993), por exemplo, refuta veementemente a tese da paz democrática. Ao lidar com a questão, pondera: "Mas o que dizer sobre a noção, agora amplamente difundida, de que somente porque poderá haver mais Estados democráticos no futuro, e menos Estados autoritários, a visão wilsoniana de uma ordem internacional pacífica, estável e justa transformou-se na visão apropriada? Estados democráticos, como outros, têm interesses e vivenciam conflitos [...]. Estados democráticos, como outros, estão preocupados com perder ou ganhar mais na competição entre nações" (WALTZ, 1993, p. 77-78).
  • 9
    . A convergência do nível analítico pode ser considerada um dos fatores que constituiu o
    mainstream do debate acadêmico norte-americano desde a publicação de
    Theory of International Politics, de Waltz (2002).
  • 10
    . A discussão fundamental do interacionismo simbólico, a partir da qual Wendt constrói grande parte de sua argumentação, relaciona-se com as formas como o "self" e o "outro" interagem e se relacionam. O que distingue a abordagem de Mead (1962) da de Wendt (1999) nessa discussão é que, para as pessoas, não faz sentido falar da percepção do "eu" - isto é, do "self" observado por ele mesmo, em um vácuo relacional - para além da percepção do corpo. Justamente por isso, Mead (1962) foca sua análise no "mim", ou seja, na percepção do "self" como objeto, a partir das percepções do "outro", em um meio de interação. Wendt atribui à identidade corporativa a possibilidade de se compreender o "eu" - como já dito, contudo, em um momento ontologicamente anterior ao que ele pretende tratar - e, portanto, constrói seu modelo já considerando a identidade corporativa como dada, não problematizada.
  • 11
    . São eles: liberdade de formar e aderir a organizações; liberdade de expressão; direito de voto; direito de líderes políticos disputarem apoio; fontes alternativas de informação; eleições livres e idôneas; elegibilidade para cargos políticos; e instituições para fazer com que as políticas governamentais dependam de eleições e de outras manifestações de preferência (DAHL, 1997, p. 27).
  • 12
    . Dentre os mais utilizados índices de democracia, podemos destacar o Polity IV (
    http://www.systemicpeace.org/polity/polity4.htm), o Democracy Index, da Economist Intelligence Unit (
    http://www.eiu.com/democracyindex2011), o Freedom in the World, da ONG Freedom House (
    http://www.freedomhouse.org/report/freedom-world/freedom-world-2012), e o Index of Economic Freedom, da Heritage Foundation (
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      07 Jan 2013
    • Data do Fascículo
      Jun 2012

    Histórico

    • Recebido
      23 Set 2011
    • Aceito
      27 Ago 2012
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