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O sistema interamericano de direitos humanos e a lei de justiça e paz na Colômbia: política doméstica e influência de normas internacionais

The inter-american human rights system and the justice and peace law in Colombia: domestic politics and the influence of international norms

Resumos

O objetivo deste artigo é analisar a influência da normatividade do sistema interamericano de direitos humanos em um caso de justiça de transição envolvendo a Lei de Justiça e Paz na Colômbia. O argumento defendido é o de que a dinâmica e o caráter da interação entre juízes e organizações não governamentais (ONGs) domésticas de direitos humanos foram os fatores que moldaram o impacto do sistema interamericano.

Colômbia; Direitos Humanos; Organizações Não Governamentais; Judiciário


The aim of this article is to analyze the influence of the norms produced by the Inter-American Human Rights System in a case of transitional justice involving the Justice and Peace Law in Colombia. The author argues that the dynamics and character of the interaction between judges and domestic human rights non-governmental organizations (NGOs) were the factors that shaped the impact of the Inter-American system.

Colombia; Human Rights; Nongovernmental Organizations; Judiciary


ARTIGOS

O sistema interamericano de direitos humanos e a lei de justiça e paz na Colômbia: política doméstica e influência de normas internacionais* * Este trabalho contou com o apoio financeiro de bolsas de Doutorado e de Estágio de Pesquisa no Exterior da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

The inter-american human rights system and the justice and peace law in Colombia: domestic politics and the influence of international norms

Bruno Boti Bernardi

Doutorando em Ciência Política pelo Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo e pesquisador visitante do Institute of the Americas do University College London (UCL). E-mail: brunoboti@gmail.com

RESUMO

O objetivo deste artigo é analisar a influência da normatividade do sistema interamericano de direitos humanos em um caso de justiça de transição envolvendo a Lei de Justiça e Paz na Colômbia. O argumento defendido é o de que a dinâmica e o caráter da interação entre juízes e organizações não governamentais (ONGs) domésticas de direitos humanos foram os fatores que moldaram o impacto do sistema interamericano.

Palavras-chave: Colômbia – Direitos Humanos – Organizações Não Governamentais – Judiciário

ABSTRACT

The aim of this article is to analyze the influence of the norms produced by the Inter-American Human Rights System in a case of transitional justice involving the Justice and Peace Law in Colombia. The author argues that the dynamics and character of the interaction between judges and domestic human rights non-governmental organizations (NGOs) were the factors that shaped the impact of the Inter-American system.

Keywords: Colombia – Human Rights – Nongovernmental Organizations – Judiciary

Introdução

No decorrer das últimas décadas, a Colômbia tem sido palco de graves e sistemáticas violações de direitos humanos, resultantes de um dos conflitos armados internos mais longos em todo o mundo. Diante de um contexto político marcado por tensões e enfrentamentos domésticos tão vultosos, poderíamos ser induzidos a pensar que não haveria nesse caso muito espaço para a influência de normas internacionais de direitos humanos na condução de políticas internas.

Como bem lembra Cardenas (2007), em conformidade com um consenso emergente na literatura sobre esse tema (cf. LANDMAN, 2005; NEUMAYER, 2005; POWELL; STAT ON, 2009; SIMMONS, 2009; HAFNER-BURTON, 2012), qualquer análise sobre as perspectivas de impacto e cumprimento de regras e sentenças internacionais de direitos humanos pelos Estados deve atentar para os fatores domésticos que condicionam a influência das normas internacionais e que medeiam, ademais, as pressões internacionais nessa matéria. Nesse sentido, a preocupação das elites político-institucionais colombianas com o tema da segurança nacional, as percepções compartilhadas sobre as supostas ameaças terroristas representadas por grupos guerrilheiros e outros atores antiestatais, bem como o papel importante desempenhado pelas forças armadas na cena política e o fato de que existam muitas vezes vínculos estreitos entre as elites políticas e econômicas, por um lado, e os grupos paramilitares e outros atores armados, por outro, seriam fatores (e fontes) que contribuiriam para a persistência das violações de direitos humanos a despeito das pressões internacionais que emanam de organizações regionais como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e a Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Contextos políticos dessa natureza, permeados por questões que envolvem temas percebidos como ameaças à segurança nacional, podem induzir à mobilização de constituencies pró-violações e aumentar seu acesso ao processo de tomada de decisão, uma vez que tais ameaças, ao gerarem um maior grau de incerteza política doméstica, "desafiam os interesses de vários grupos pró-violação, incluindo a própria razão de ser do aparato coercitivo e o bem-estar da elite econômica" (CARDENAS, 2007, p. 27).1 1 . Esta e as demais citações de originais em língua estrangeira foram livremente traduzidas para este artigo. Como consequência, os custos do cumprimento de regras internacionais, em especial os de alteração de certas políticas repressivas, aumentam drasticamente, diminuindo sobremaneira as chances das mudanças necessárias de comportamento para a adequação aos padrões e normas internacionais.

No entanto, contraintuitivamente, é possível observar graus de influência do sistema interamericano que, embora sejam muitas vezes parciais, são relevantes e de nenhuma forma desprezíveis, implicando custos financeiros, simbólicos e de policymaking para a Colômbia. Como explicar essa realidade e mudanças de políticas em um tema tão sensível como, por exemplo, o da justiça de transição, com a alteração do marco legal de desmobilização dos paramilitares consubstanciado na Lei de Justiça e Paz?2 2 . Segundo Teitel (2011, p. 57), a justiça de transição pode ser definida como "respostas sistemáticas aos erros e injustiças do regime anterior, ou que ocorreram ao longo do conflito político que finalmente foi resolvido pelo novo regime ou nele resultou". No caso colombiano, o conceito se insere no contexto do conflito armado interno e aplica-se ao processo de desmobilização dos paramilitares e às escolhas de políticas sobre como lidar com as graves violações de direitos humanos cometidas por vários ex-combatentes.

O objetivo deste artigo é abordar as questões empíricas e teóricas referentes ao impacto de normas internacionais de direitos humanos a partir da análise desse caso específico, relacionado à influência dos padrões de direitos humanos do sistema interamericano na Colômbia durante o processo de desmobilização dos paramilitares das Autodefesas Unidas da Colômbia (AUC) por meio da Lei de Justiça e Paz (lei 975/2005).3 3 . No total, entre agosto de 2002 e julho de 2010, desmobilizaram-se 53.659 pessoas, incluindo membros não só dos grupos paramilitares, mas também de agrupações guerrilheiras que se uniriam posteriormente a esse processo. Desse montante, 31.671 corresponderiam a paramilitares, e 4.346 estavam inscritos aos trâmites da Lei de Justiça e Paz em meados de 2010 (VALENCIA AGUDELO; MEJÍA, 2010, p. 61, p. 66). Depois de aprovada, essa legislação foi contestada judicialmente por um grupo de organizações não governamentais (ONGs) frente à Corte Constitucional, que promoveu importantes mudanças na lei a partir das exigências e padrões normativos do sistema interamericano. Nesse sentido, nosso foco não é discutir as diferentes posições políticas dos congressistas, do Executivo e de outros atores sociais e institucionais ao longo das discussões sobre esse tema. O escopo do artigo restringe-se antes à explicação de como foi possível à Corte Constitucional tomar uma decisão apoiada na jurisprudência do sistema interamericano para alterar a política preferida pelo Executivo e sua maioria no Congresso.4 4 . Por impacto e influência do sistema interamericano, referimo-nos, assim, à utilização, pela Corte Constitucional, das exigências de responsabilização criminal individual, verdade e reparações reiteradas em diversas ocasiões pela jurisprudência da Corte Interamericana em casos como Velásquez Rodríguez (contra Honduras), Barrios Altos (contra o Peru) e os massacres de Mapiripán e La Rochela (contra a Colômbia), entre outros. A respeito dessa jurisprudência que é apoiada pela Comissão Interamericana, consultar Quinche Ramírez (2009) e Morales (2012). Assim, a despeito da posição contrária do governo, de sua bancada legislativa e dos paramilitares, houve uma reforma legal que resultou dos esforços combinados das ONGs de direitos humanos e da existência de um tribunal de cúpula receptivo, de modo que a análise se orienta a explicar os pilares dessa interação que permitiu vencer as resistências da equipe governamental e dos paramilitares.5 5 . Uma vez que as decisões e normas do sistema interamericano não são autofiscalizantes, interessa-nos compreender, por conseguinte, a ação dessas constituencies domésticas pró-cumprimento, isto é, desses atores que funcionaram como canais de intermediação e recepção da normatividade do sistema. Em outras palavras, a preocupação do texto centra-se na explicação de como e por que essa mudançalegal foi possível, e não nos seus efeitos substantivos e implicações práticas em termos de implementação de políticas, performance institucional e melhorias do desempenho do país na proteção dos direitos humanos.6 6 . De modo similar, o artigo não é uma análise sobre a dinâmica do conflito, os resultados da desmobilização e os diferentes interesses e correlações de forças dos atores envolvidos no processo de aplicação da Lei de Justiça e Paz. Assim, não pretendemos explicar todas as rodadas do jogo político doméstico referente à desmobilização, mas apenas um dos momentos-chave da interação entre Executivo, Legislativo e Judiciário, quando a Corte Constitucional foi capaz de exercer um relevante impacto político-institucional sobre o referido marco legal com uma decisão específica, qual seja a sentença C-370/2006.

Uma das críticas recorrentes feitas aos trabalhos sobre o impacto de normas internacionais de direitos humanos é a de que eles sofrem um viés de seleção por analisar apenas aqueles contextos políticos onde haveria já, a priori, a presença de condições domésticas favoráveis ao cumprimento, o que enfraqueceria e limitaria o alcance explicativo de suas proposições. Aqui, portanto, buscamos evitar essa possível crítica com a seleção de um caso difícil, não só porque a Colômbia é um dos países com mais casos processados pelo sistema interamericano, mas também porque o governo Uribe (2002-2010), desde o início das negociações com os paramilitares, com o apoio de sua bancada majoritária no Congresso, manifestou-se a favor de uma legislação que oferecesse consideráveis incentivos para a desmobilização dos ex-combatentes, sem privilegiar, porém, os padrões internacionais de proteção das vítimas e de promoção dos direitos à verdade, justiça, reparações e garantias de não repetição. Além disso, como ficaria demonstrado a partir de 2006 no escândalo da parapolítica, a existência de vastas e numerosas ligações entre paramilitares, políticos e congressistas também dificultaria, a princípio, qualquer tipo de impacto do regime internacional de direitos humanos no sentido de aumentar as exigências legais para a consecução da desmobilização.7 7 . A dificuldade do caso deve ser entendida tendo em vista o enfoque analítico predominante dos estudos sobre o impacto de normas e pressões internacionais de direitos humanos. Nesse sentido, o foco da literatura especializada tem se ocupado tradicionalmente do papel das elites políticas eleitas, de modo que mudanças de comportamento dos Estados no sentido de um maior cumprimento dessas normas seriam um resultado da pressão da rede transnacional de ativismo contra esses políticos (RISSE et al., 1999) ou então uma consequência da decisão dessas elites de instrumentalizar o regime internacional para consolidar reformas democráticas e s inalizar uma b oa imagem e reputação (MORAVCSIK, 2000; MANSFIELD; PEVEHOUSE, 2006). No caso da Colômbia, as predições desses trabalhos nos induziriam a pensar que haveria então pouco espaço para a influência do sistema interamericano, visto que o governo Uribe sempre resistiu à incorporação de padrões internacionais de direitos humanos e muitos congressistas estavam, ademais, vinculados com grupos paramilitares. No entanto, nossa análise revela ser necessário atentar para o papel de outros atores do Estado, e mostra que a interação entre juízes de altas cortes e ONGs de direitos humanos pode ser um canal até aqui subteorizado para que os instrumentos internacionais adquiram certa influência nos países, mesmo em contextos políticos aparentemente não muito propícios que seriam entendidos, a priori, como casos difíceis pela literatura majoritária.

Tendo isso em mente, nossa hipótese tenta delinear como a política doméstica influencia o impacto potencial de normas internacionais, enfatizando o papel de grupos da sociedade civil e as respostas da cúpula do Judiciário local, bem como as características específicas desses atores que podem torná-los canais mais ou menos abertos para a influência do sistema interamericano de direitos humanos. Diferentemente da maioria dos estudos nessa temática, que privilegiam a ação do Executivo para explicar o impacto de normas e pressões internacionais, seja por motivação própria ou como resultado de pressões societais (HILLEBRECHT, 2012; RISSE et al., 1999), este artigo defende que o caráter e a dinâmica da interação entre juízes e ONGs domésticas são os fatores que moldam o impacto do sistema interamericano.

Nesse sentido, de acordo com nossa hipótese, duas condições foram necessárias para que a influência se verificasse no caso colombiano: existência de ONGs locais familiarizadas com a linguagem jurídica do direito internacional dos direitos humanos e que priorizaram ações de litígio estratégico e mobilização legal dessas normas; e existência de uma Corte Constitucional doméstica facilmente ativável por organizações da sociedade civil e receptiva à normatividade internacional dos direitos humanos e, em especial, à jurisprudência do sistema interamericano.

A importância das mediações domésticas para o impacto das normas internacionais

Tradicionalmente, o enfoque teórico predominante para abordar a questão do cumprimento com as normas internacionais parte da lógica de que tais disposições só terão algum efeito quando as próprias partes dos acordos tiverem incentivos para cumprir sozinhas com as suas obrigações contraídas. Na esfera internacional, isso significa dizer que um acordo autofiscalizante (self-enforcing agreement) é aquele em que dois ou mais Estados cumprem as suas regras porque calculam, a partir de seu próprio interesse racional, que os ganhos da continuação do acordo superam os custos de sua anulação.

Essa lógica explicativa se aplica muito bem a tratados que procuram regular externalidades surgidas de interações societais através das fronteiras, e que podem afetar as relações interestatais, como ocorre com os regimes internacionais de comércio, finanças, meio ambiente e segurança. Ela explica, assim, a necessidade funcional dos acordos em razão do crescente grau de interdependência entre os Estados. Todavia, esses acordos diferem fundamentalmente do regime de direitos humanos, cujo objetivo é antes o de responsabilizar os governos por atividades domésticas.

Como bem salientam Moravcsik (2000), Hathaway (2002), Neumayer (2005) e Simmons (2010), o regime de direitos humanos difere das outras formas de cooperação internacional institucionalizada em vários pontos-chave, o que dificulta a aplicação da lógica explicativa acima exposta do self-enforcement pelas próprias partes do acordo para explicar os padrões de cumprimento com as normas nesse âmbito regulatório. A área de direitos humanos "não envolve reciprocidade de maneira significativa, o que enfraquece as possibilidades de acordos autofiscalizantes mutuamente benéficos", do que resulta que "teorias funcionalistas baseadas em ganhos compartilhados e reciprocidade são muito inadequadas para entender o cumprimento e violação na área dos direitos humanos" (SIMMONS, 2010, p. 288).

Para fazer frente a esta questão, muitos trabalhos na última década se preocuparam em explicar as condições e circunstâncias, sobretudo de ordem doméstica, que têm levado os Estados ao cumprimento ou violação das normas internacionais na matéria. Suas principais conclusões opõem-se ao otimismo inicial dos trabalhos fundacionais deste subcampo, em especial os dedicados à atuação da rede transnacional de direitos humanos, assinalando que há poucas evidências de que os tratados de direitos humanos ou as pressões internacionais sejam capazes de melhorar sozinhos as práticas dos Estados.

Em geral, tais trabalhos sugerem que a pressão internacional não produzirá muitos efeitos a menos que as condições domésticas sejam propícias. Argumenta-se que um aumento de políticas e pressões internacionais no âmbito dos direitos humanos não reduz as violações por si só, e que "elas só podem afetar o comportamento estatal indiretamente e e m c onjunção com m uitas outras c ondições" (HAFNER-BURTON; RON, 2009, p. 371). Assim, essas pesquisas buscam explorar a dinâmica política doméstica envolvida no cumprimento das regras e as consequências da ratificação de tratados em diferentes contextos políticos.

A partir dessa chave explicativa, estudos quantitativos como o de Neumayer (2005) revelam que, na ausência de democracia e de uma forte sociedade civil com vínculos internacionais, a ratificação de tratados não produz efeitos e pode até estar associada com um aumento das violações de direitos humanos. Desse modo, para que a ratificação dos tratados exerça efeitos benéficos no desempenho dos Estados, é preciso que existam condições para que grupos domésticos, partidos, indivíduos e organizações da sociedade civil possam persuadir, convencer e pressionar os governos a traduzir suas promessas de melhores práticas em realidade. Já trabalhos como o de Powell e Staton (2009) têm também lançado luz sobre a importância do comportamento dos tribunais domésticos, já que eles são atores centrais na fiscalização (enforcement) dos acordos de direitos humanos. Segundo os autores:

Os Estados sentir-se-ão vinculados às suas obrigações internacionais [...] apenas se a execução legal doméstica for forte; porém, se a execução legal doméstica é forte, os Estados são menos propensos a adotar novas restrições ao seu comportamento. O fator que incentiva o cumprimento impede os Estados de ratificar (POWELL; STATON, 2009, p. 167).

Ainda a esse respeito, o trabalho mais elaborado sobre o impacto e as consequências domésticas que os compromissos internacionais de direitos humanos podem ter na política interna dos países foi oferecido por Simmons (2009). A autora argumenta que são três os mecanismos de origem por meio dos quais o regime internacional de direitos humanos pode exercer seus efeitos no plano doméstico dos Estados: 1) alteração da agenda nacional de políticas; 2) aumento dos recursos para que atores domésticos litiguem contra o seu próprio Estado no plano local tendo por fundamento os direitos reconhecidos nos tratados; e 3) incremento da propensão de mobilização dos grupos domésticos (SIMMONS, 2009, p. 112-155). Desse modo, um compromisso formal do Estado no âmbito do direito internacional ajuda os atores domésticos pró-cumprimento a estabelecer prioridades, formular demandas de direitos, definir o sentido de suas reivindicações, e também a pressionar o Estado com maior força e legitimidade do que teria sido possível na ausência da norma internacional (SIMMONS, 2009, p. 126).

Assim, partindo desse consenso emergente na literatura de que o "cumprimento não é uma questão de tudo ou nada e que os efeitos dos regimes de direitos humanos, quando e onde eles existem, são condicionados por outras instituições e atores" da política doméstica (HAFNER-BURTON, 2012, p. 311), argumentamos nas próximas sessões que a relação entre juízes de cúpula e ONGs domésticas de direitos humanos é o que explica a influência do sistema interamericano no marco legal que orientou a desmobilização dos paramilitares na Colômbia. Para embasar nossa hipótese, oferecemos inicialmente uma breve descrição do processo de tramitação da Lei de Justiça e Paz para, em seguida, explicar, em primeiro lugar, o perfil dessas ONGs e como suas características são relevantes para explicar suas ações e estratégias. Além disso, também buscaremos compreender como e por que a instância superior do Judiciário doméstico veio a adotar uma posição mais favorável com relação à aplicação do direito internacional dos direitos humanos e dos pronunciamentos do sistema interamericano.

A Lei de Justiça e Paz

No começo do governo Uribe, estendeu-se por meio da lei 782, de 2002, regulamentada pelo decreto executivo 128, de 2003, o marco legal utilizado em processos de paz anteriores para que ele pudesse abarcar a negociação com os paramilitares (GUEMBE; OLEA, 2006, p. 125; DÍAZ, 2009, p. 483). Entretanto, apesar de favorecer uma grande parcela dos paramilitares, essa disposição não se aplicava para os ex-combatentes envolvidos em graves violações de direitos humanos ou do direito internacional humanitário, os quais não estavam sujeitos às anistias e benefícios econômicos previstos na lei. Dessa forma, havia então o problema sobre o que fazer com os paramilitares responsáveis por esses crimes.

Assim, em outubro de 2003, o governo apresentou um projeto intitulado "Lei de Alternatividade Penal", que, segundo a equipe governamental, solucionaria o problema relativo à proibição de conceder anistias e perdões para os paramilitares envolvidos em atrocidades. Invocando o paradigma da justiça restaurativa como o mais apropriado para lidar com o processo de justiça de transição e busca da paz, o governo defendia a aplicação de sanções alternativas no lugar da utilização do direito penal comum.8 8 . O governo estabelecia, por conseguinte, um trade-off entre justiça e paz. Nesse sentido, de acordo com a lógica governamental, a consecução da paz exigiria inevitavelmente o sacrifício das demandas de justiça.

O projeto privilegiava a oferta de incentivos para a desmobilização e mencionava apenas vagamente os direitos das vítimas dos abusos de direitos humanos (SANCHEZ, 2011, p. 148-151). Como resultado, a proposta logo causou uma forte reação negativa, tanto de alguns parlamentares quanto das ONGs colombianas e internacionais que salientavam a necessidade de que fossem aplicados os padrões internacionais de direitos humanos a fim de que a legislação não se convertesse apenas em um mecanismo de impunidade. As organizações da sociedade civil utilizavam, dessa forma, os tratados, normas e também a jurisprudência de tribunais internacionais não só como pontos de referência para formular suas demandas de direitos e imbuir suas queixas de legitimidade, mas também como modelos que deveriam orientar qualquer nova proposta de legislação doméstica, introduzindo constrangimentos legais e morais às negociações (SIMMONS, 2009, p. 146-147).

Em razão da pressão combinada das ONGs domésticas e da rede transnacional de direitos humanos, alguns congressistas passaram a introduzir modificações ao projeto para que ele considerasse os direitos das vítimas e, em junho de 2004, o governo decidiu, então, retirar a sua proposta da consideração do Legislativo. Foi apenas em março de 2005 que o governo Uribe apresentaria um novo projeto que incorporava alguns elementos vinculados à linguagem dos direitos à verdade, justiça e reparações, e que depois de aprovado ficaria conhecido como a Lei de Justiça e Paz (lei 975/2005).

De acordo com a nova proposta de lei, investigações, processos criminais e julgamentos contra os paramilitares desmobilizados não seriam interrompidos, e as formas alternativas de punição que excluíam as sentenças à prisão no primeiro projeto foram substituídas por sentenças de prisão reduzidas a um período de cinco a oito anos (DÍAZ, 2009, p. 488). Porém, a lei não só não estabelecia nenhum mecanismo especial de reconstrução da verdade como também não condicionava o benefício da sentença de prisão reduzida à revelação completa dos fatos dos crimes, nem à contribuição dos ex-paramilitares para com a reparação das vítimas. A confissão de todos os crimes cometidos não era obrigatóriaea lei exortava apenas tais indivíduos a entregar bens adquiridos ilegalmente, eximindo o Estado, além disso, do dever de oferecer compensações econômicas individuais às vítimas (DÍAZ, 2009, p. 489; SANCHEZ, 2011, p. 168-169).

Ao final, o projeto do governo foi aprovado em junho de 2005, a despeito das críticas de vários atores internacionais e das ONGs de direitos humanos. Assim que a Lei de Justiça e Paz foi promulgada, várias ONGs e movimentos de direitos humanos como a Comissão Colombiana de Juristas (CCJ), o Coletivo de Advogados José Alvear Restrepo (CAJAR) e o Movimento Nacional de Vítimas de Crimes do Estado (MOVICE) apresentaram ações públicas de inconstitucionalidade perante a Corte Constitucional contra a legislação. Como bem lembra SANCHEZ (2011), para proteger os direitos das vítimas à verdade, justiça e reparações, a estratégia de litígio adotada foi a de não restringir o debate apenas à contradição entre as normas constitucionais e a Lei de Justiça e Paz. O objetivo era também o de mostrar como a Constituição exigia a inclusão e o respeito dos padrões internacionais de direitos humanos (SANCHEZ, 2011, p. 166). Para tanto, tais ONGs se utilizaram em sua argumentação dos tratados ratificados pelo país, da jurisprudência da Corte Interamericana e de fontes do direito internacional comparado sobre outras experiências de justiça de transição.

Em maio de 2006, a Corte Constitucional da Colômbia se pronunciou finalmente sobre a matéria na sentença C-370. Ela então examinou a questão da redução das sentenças de prisão dos paramilitares desmobilizados, considerando o interesse constitucional pela paz em relação aos direitos das vítimas. A Corte concluiu, a esse respeito, que era legítima a introdução de medidas que reduzissem as penas para facilitar o processo de desmobilização e que, portanto, isso não comprometia de maneira desproporcionada o princípio constitucional de justiça como acusavam as ONGs, para quem se havia organizado uma política de impunidade (DÍAZ, 2009, p. 489).

Entretanto, a Corte declarou que a lei não promovia de maneira efetivaa descoberta da verdade, já quea concessão de benefícios de redução de pena se dava sem que fosse necessário que os paramilitares revelassem todos os fatos acerca dos crimes, num claro desrespeito ao direito das vítimas. Como bem lembra Díaz (2009), seguindo sua própria jurisprudência constitucional, bem como aquela consolidada pela Corte Interamericana, a Corte Constitucional afirmou que o direito à verdade formava parte da Carta de Direitos incorporada à Constituição, com o que exigiu a confissão completa e real dos crimes pelos paramilitares para que eles pudessem disfrutar da redução de sentenças (DÍAZ, 2009, p. 489-490).

Além disso, a Corte decidiu ainda que, para se beneficiar da Lei de Justiça e Paz, era necessário que os paramilitares contribuíssem com a reparação financeira das vítimas usando seus bens pessoais, incluindo até mesmo propriedades adquiridas legalmente. A esse respeito, Díaz (2009) comenta que a Corte se baseou no direito doméstico e internacional para afirmar, por um lado, que o Estado não está autorizado a eximir os responsáveis por graves violações da responsabilidade civil e, por outro, que as compensações econômicas são uma exigência do direito das vítimas à reparação e uma condição-chave para promover a luta contra a impunidade (DÍAZ, 2009).

Assim, com essas alterações ao texto da Lei de Justiça e Paz aprovada pelo Congresso, a Corte Constitucional reafirmava sua visão e doutrina sobre o caráter vinculante dos padrões internacionais de proteção aos direitos humanos e aos direitos das vítimas. Em uma das várias alusões à importância do direito internacional dos direitos humanos na sentença C-370 de 2006, o tribunal deixa clara a obrigação tanto dos legisladores quanto dos juízes de respeitar as normas internacionais nessa matéria, ao afirmar que

[...] quando o legislador materializa qualquer política pública encaminhada à solução do conflito armado interno, tem a obrigação de respeitar os postulados constitucionais e os convênios e tratados internacionais ratificados pela Colômbia que reconhecem direitos humanos e que fazem parte do Direito Internacional Humanitário ou do Direito Internacional Penal. Os funcionários judiciais, por sua vez, devem ter como critério interpretativo relevante a doutrina elaborada pelos organismos internacionais de controle dos tratados, como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Trata-se de uma visão integral dos direitos humanos que permitirá cumprir com os padrões internacionais.9 9 . República da Colômbia, Corte Constitucional, Sentença C-370/2006. Disponível em: < http://www.corteconstitucional.gov.co/RELATORIA/2006/C-370-06.htm>. Acesso em: 20 mai. 2013.

Magistrados e sociedade civil

Diante desse panorama, como explicar que os juízes da Corte Constitucional tenham assumido esse posicionamento, utilizando a jurisprudência e os pronunciamentos do sistema interamericano de direitos humanos para alterar decisivamente a legislação aprovada pelo Executivo e sua maioria no Congresso? Ademais, como explicar que as ONGs colombianas tenham exercido um papel tão central de ativação da Corte e de mobilização do direito, utilizando as normas internacionais não só como uma alavanca política, mas também como uma ferramenta legal para a apresentação de um litígio que alterou a agenda política, incidindo em uma das políticas mais centrais do governo Uribe?

Até finais dos anos 1980, prevalecia, de modo geral, uma situação de desconhecimento dos instrumentos internacionais entre os grupos colombianos de direitos humanos, com um trabalho limitado ao envio de informações e denúncias para ONGs internacionais e comitês de colombianos no exterior, o qual ocorria junto com o acompanhamento das visitas e missões da Anistia Internacional e outras ONGs estrangeiras à Colômbia. Quanto ao sistema interamericano mais especificamente, as poucas ONGs que haviam realizado algum tipo de trabalho internacional haviam privilegiado a atuação no sistema ONU e demonstravam novamente desconhecimento, quando não desconfiança, do sistema regional, o que explica, aliás, o porquê de terem tardado tanto em ativar a Comissão Interamericana, fato que só se concretizaria em 1985 com o caso Luis Fernando Lalinde, do qual resultaria uma decisão da Comissão em 1987.

Em uma análise realizada em 1989, durante um seminário promovido pela recém-criada Comissão Colombiana de Juristas (CCJ) sobre a relação das ONGs colombianas com os mecanismos internacionais de direitos humanos, Jaime Prieto, então diretor do Comitê de Solidariedade com os Presos Políticos (CSPP), argumentava que havia um ceticismo geral e falta de convencimento entre os grupos colombianos de direitos humanos a respeito da utilidade do uso desses instrumentos. Isso explicaria, em última instância, a falta de interesse por conhecer o conteúdo dos pactos, protocolos e procedimentos de ativação e funcionamento dos organismos intergovernamentais de direitos humanos, levando assim a uma situação de desconhecimento geral de suas possibilidades e limitações (PRIETO, 1990).10 10 . A inibição internacional das ONGs colombianas nesse período foi também ressaltada por Federico Andreu (membro da CCJ), Gustavo Gallón (presidente da CCJ) e Amanda Romero (ativista histórica de direitos humanos) em entrevistas pessoais com o autor realizadas em Bogotá nos dias 23 de novembro, 14 de dezembro e 29 de novembro de 2012, respectivamente. A esse respeito, Romero (1990, p. 92) afirmava que "a atividade desenvolvida até agora pelos organismos colombianos de direitos humanos em relação aos instrumentos internacionais padece de uma ausência de conhecimento de sua funcionalidade e possibilidades, o que tem sido um fator de indiferença frente à sua utilização massiva no país".

Nesse contexto, o surgimento, em 1989, da CCJ seria um marco e divisor de águas no que diz respeito à montagem de casos e uso de mecanismos de litígios internacionais, particularmente no sistema interamericano de direitos humanos. Organizações como o CCJ, formadas pelo que Simmons (2009) intitula como advogados defensores de causas sociais (cause lawyers),11 11 . Segundo Simmons (2009, p. 133), cause lawyering é "o trabalho legal que se direciona a alterar algum aspecto do status quo social, econômico e político". seriam centrais não apenas para traduzir as normas internacionais para termos inteligíveis ao contexto doméstico, mas também para prover novos enquadramentos conceituais que alterariam as próprias ideias e estratégias por detrás da atividade política de outras ONGs e movimentos sociais. Gustavo Gallón e alguns outros advogados responsáveis pela criação da CCJ, apoiados pela Fundação Ford (TATE, 2007, p. 118), imaginaram-na, desde o início, como um novo tipo de ONG profissionalizada, dotada de funcionários especializados e permanentes que se focasse em atividades legais no âmbito internacional e, posteriormente, nacional, explorando de maneira inovadora os mecanismos e organizações internacionais de direitos humanos como a Comissão de Direitos Humanos da ONU e a Comissão e Corte Interamericanas de Direitos Humanos.

No entanto, para além do trabalho mais sistemático frente às instâncias internacionais de direitos humanos, a criação da CCJ marcaria ainda o início de uma nova fase para o movimento de direitos humanos na Colômbia de modo mais geral. Isso porque, ao longo dos anos 1990, o trabalho dos grupos colombianos de direitos humanos se tornou cada vez mais profissionalizado e especializado, à medida que os antigos grupos de solidariedade compostos por voluntários que protestavam contra a perseguição de seus membros e aliados foram substituídos por organizações não governamentais com funcionários treinados e remunerados, dentre os quais se destacavam as equipes de advogados (TATE, 2007, p. 107-145). Como resultado dessa transformação, as ONGs adquiriram novos papéis e passaram a seguir novas regras no que diz respeito à documentação de casos e produção de informações e denúncias a respeito das violações de direitos humanos com a finalidade de se adequar não só aos padrões normativos internacionais e aos critérios de apreciação de provas e evidências, mas também para atrair a atenção de audiências e financiadores internacionais para as suas atividades.

Nesse sentido, novas normas e práticas institucionais passaram a guiar o trabalho dessas organizações na medida em que seus parceiros e doadores internacionais exigiam novos tipos de narrativas de direitos humanos mais conformes tanto aos padrões do regime internacional de direitos humanos quanto ao tipo de atividade de incidência política levada a cabo por ONGs como Anistia Internacional, Washington Office on Latin America e Human Rights Watch.12 12 . Todas as principais ONGs colombianas de direitos humanos dependiam de fundos internacionais de fundações europeias e norte-americanas, bem como de governos europeus, para a realização de suas atividades. Como consequência,

[....] a profissionalização do conhecimento em direitos humanos se centrou no relato objetivo [das violações] que despolitizou o conhecimento em direitos humanos, aderindo aos padrões legais e usando um tom desapaixonado em vez de expressar explicitamente aliança com programas de esquerda (TATE, 2007, p. 108).

O pioneirismo da CCJ na utilização do sistema interamericano foi replicado por outras organizações litigantes, como o CAJAR, e várias outras ONGs passaram a contar com áreas e equipes especializadas de representação legal de vítimas e apresentação de casos e litígios.

Mesmo organizações que nunca acionaram o sistema interamericano passaram a se valer frequentemente das referências legais internacionais como ferramentas jurídicas para sustentar suas demandas, apostando assim na mobilização dos argumentos do direito internacional frente aos tribunais domésticos.

Se até finais dos anos 1980 era comum que muitas organizações defendessem a não utilização do sistema interamericano, seja pela falta até então de críticas da CIDH ao governo ou ainda porque argumentavam que o sistema não era crível, e que o direito internacional era, na verdade, o direito burguês internacional,13 13 . Entrevista pessoal com Gustavo Gallón, Bogotá, 14 de dezembro de 2012. essa inibição e desconfiança foram superadas ao longo dos anos 1990. A emissão cada vez maior de recomendações e sentenças pela Comissão e Corte Interamericanas e o efeito demonstrativo de esforços como os da CCJ deixaram claro que a utilização de argumentos legais e normas internacionais era um recurso valioso para confrontar o Estado. Formular as demandas em torno do enquadramento conceitual das normas internacionais ampliava a estrutura de oportunidades políticas à disposição dos ativistas, já que dava acesso a recursos, legitimidade e atenção perante as audiências externas. Além disso, aumentava a eficácia das estratégias de mobilização da vergonha e oferecia recursos jurídico-legais para a ativação do Judiciário local, bem como pontos focais e plataformas mais limitados para a definição de novos objetivos e realização de campanhas.

Esse processo de aprendizagem sobre o uso dos mecanismos internacionais de direitos humanos, e do sistema interamericano, em particular, que ocorria no âmbito dos grupos de direitos humanos seria combinado com outra importante mudança institucional decorrente da Assembleia Constituinte, produzindo uma interação entre juízes e sociedade civil cujos resultados não foram antecipados pelos políticos de então. Em 1991, como resultado de pressões sociais e da percepção generalizada de crise do sistema político duopolista da Frente Nacional, foi promulgada uma nova Constituição na Colômbia.

Dois aspectos do texto constitucional eram particularmente relevantes pelo resultado que teriam junto da existência das ONGs colombianas de direitos humanos: por um lado, a criação de uma Corte Constitucional com canais de acesso extremamente abertos e acessíveis que podiam ser ativados por qualquer cidadão por meio das ações de inconstitucionalidade e de tutela.14 14 . A ação pública de inconstitucionalidade pode ser utilizada por qualquer cidadão que considere que uma determinada lei ou decreto viola a Constituição. A ação de tutela, por sua vez, é outro procedimento de queixa individual que permite a qualquer pessoa que tenha seus direitos fundamentais ameaçados o direito de iniciar um processo judicial. Assim como as ações públicas de inconstitucionalidade, as ações de tutela não requerem participação de advogados, possuem poucas formalidades e são um instrumento de litígio constitucional vastamente utilizado para aplicar "provisões constitucionais relevantes em todos os tipos de circunstâncias, muitas das quais lidam com tópicos, questões e áreas inteiramente novos, os quais não tinham sido previamente regulados pela Constituição" (ESPINOSA, 2005, p. 75). Por outro, o status legal das normas internacionais de direitos humanos e direito internacional humanitário conferido pelos artigos 93, 94 e 214 da Constituição.15 15 . O artigo 93 estabelece no seu primeiro inciso que "Os tratados e convênios internacionais ratificados pelo Congresso, que reconhecem os direitos humanos e que proíbem sua limitação nos estados de exceção, prevalecem na ordem interna". Em seguida, o mesmo artigo estipula no seu segundo inciso que "Os direitos e deveres consagrados nesta Carta se interpretarão de conformidade com os tratados internacionais sobre direitos humanos ratificados pela Colômbia". Já o artigo 94 afirma que "A enunciação dos direitos e garantias contidos na Constituição e nos convênios internacionais vigentes não deve ser entendida como negação de outros que, sendo inerentes à pessoa humana, não figurem expressamente neles". Por fim, o artigo 214 dispõe no seu inciso segundo que, mesmo nos estados de exceção, "Não poderão ser suspensos os direitos humanos nem as liberdades fundamentais. Em todo caso se respeitarão as regras do direito internacional humanitário" (COLÔMBIA, 1991). Tais dispositivos seriam utilizados pela Corte Constitucional para fundamentar o conceito do bloco de constitucionalidade, o qual, ao conceder aos tratados de direitos humanos status constitucional, tem permitido que essas normas e a jurisprudência, bem como decisões, das instâncias internacionais de direitos humanos adquiram e exerçam grande força jurídica dentro do ordenamento legal colombiano.16 16 . A noção de bloco de constitucionalidade se refere à existência de "uma série de normas que fazem parte da Constituição por mandato do próprio texto constitucional sem que necessariamente se encontrem explicitadas nele" (UPRIMNY, 2008, p. 58).

Diante desse lugar destacado concedido aos tratados de direitos humanos, a existência, na Corte Constitucional, de um grupo inicial de juízes com perfil acadêmico – e que tinham, ademais, ligações com ONGs de direitos humanos e eram favoráveis à aplicação dessas normas – permitiu que eles pudessem explorar e desenvolver, a partir das demandas de ações de inconstitucionalidade e tutela que lhe eram encaminhadas por ONGs e indivíduos, a potencialidade normativa do texto constitucional ao longo de toda a década de 1990, até o ponto em que a utilização das normas internacionais de direitos humanos se converteu paulatinamente em uma prática jurídica cada vez mais aceita pelos demais operadores judiciais e pela doutrina legal. Nesse instante, recorrer ao direito internacional nessa matéria deixava de ser um tema de disputas e controvérsias no campo legal e passava, assim, a constituir outro elemento cujo uso era socialmente aceito pela comunidade jurídica colombiana.17 17 . Tal consenso se refere única e exclusivamente ao entendimento jurídico consubstanciado na doutrina legal do bloco de constitucionalidade, segundo o qual as normas e a jurisprudência internacionais têm status constitucional e devem ser aplicadas no ordenamento jurídico interno. Nesse sentido, a Corte Constitucional estabeleceu a interpretação de que "o único sentido razoável que se pode conferir à noção de prevalência dos tratados de direitos humanos e de Direito Internacional Humanitário (C.P., arts. 93 e 214, inciso 2o) é que estes formam com o resto do texto constitucional um 'bloco de constitucionalidade', cujo respeito se impõe à lei" (ver COLÔMBIA, Corte Constitucional, Sentença C-225/95, Juiz Relator: Alejandro Martínez Caballero). Desde o seu surgimento no início da década de 1990, a Corte Constitucional afirmou, assim, um vasto conjunto de sentenças nessa direção (Corte Constitucional, Sentenças C-574/92, C-295/93, C-225/95, C-578-95, C-191/98, C-10/2000, T-1303/2001,T-1319/01, C-580/02, T-1319/2002, C-058/03, C-067/03, C-551/03; SU-058/03, C-038/04, T-367/2010), transformando-se não só numa das cortes mais progressistas do mundo do ponto de vista da proteção dos direitos humanos (SIKKINK et al., 2011), mas também numa das mais representativas da tendência de ativismo judicial e judicialização da política (ESPINOSA, 2005). Em razão da explícita abertura da Constituição de 1991 aos tratados de direitos humanos, esse entendimento é compartilhado pela comunidade jurídica e juristas especializados no tema (UPRIMNY, 2008), assim como pelos tribunais superiores como a Corte Suprema de Justiça, o Conselho de Estado e os Tribunais Superiores de Distrito Judicial para a Justiça e Paz. Estes últimos tribunais são responsáveis pelos julgamentos dos processos criminais da Lei de Justiça e Paz, os quais depois são confirmados pela Corte Suprema de Justiça e não passam, portanto, pelos tribunais inferiores da justiça criminal ordinária. A existência desse entendimento não implica, contudo, que o uso dessas normas seja feito sempre de maneira apropriada e, além disso, tais regras internacionais não são necessariamente aplicadas em todos os casos por cortes inferiores. Para uma análise dos sérios problemas institucionais desses tribunais e da justiça criminal ordinária, ver Restrepo (2003).

Em outras palavras, nosso argumento é o de que, embora a abertura da Constituição e o lugar destacado que ela concede aos tratados de direitos humanos tenham contribuído para esse resultado, é preciso reconhecer ainda a existência de outros fatores decisivos para que a Corte Constitucional seguisse essa tendência, tais como a composição inicial da Corte Constitucional, o acesso relativamente fácil a esse tribunal e a existência de vínculos entre vários juízes e magistrados auxiliares com a academia e com organizações da sociedade civil familiarizadas com o sistema interamericano e demais instrumentos internacionais de direitos humanos.

Rodrigo Uprimny, advogado e pesquisador da CCJ entre 1989 e 1993 e, posteriormente, magistrado auxiliar da Corte Constitucional entre 1994 e 2005, recorda que havia importantes aproximações entre certos integrantes da Corte Constitucional com ONGs de direitos humanos e acadêmicos, o que foi determinante para explicar a nova postura desse tribunal, sobretudo no que se refere à questão da incorporação das normas internacionais de direitos humanos.18 18 . Entrevista pessoal, Bogotá, 7 de novembro de 2012. Todas as seguintes referências e citações dizem respeito a esta entrevista. Ele lembra que, na primeira formação da Corte Constitucional, que contava com sete magistrados e tinha um caráter transitório, operando apenas entre 1991 e 1993, ingressaram três juízes importantes para a definição da posição desse tribunal (Alejandro Martínez Caballero, Ciro Angarita Barón e Eduardo Cifuentes Muñoz), que eram reconhecidos juristas, mas que tinham a característica comum de vir de fora do poder judicial tradicional.

Segundo Uprimny, Alejandro Martínez vinha de setores de esquerda e "sempre foi um apaixonado pelo direito internacional dos direitos humanos", enquanto Ciro Angarita e Eduardo Cifuentes eram professores de direito da Universidade dos Andes.19 19 . Alejandro Martínez havia sido representante no Congresso e membro da Comissão Preparatória da Assembleia Constituinte. Ao se tornar juiz, pertencia à Aliança Democrática M-19 (ADM-19), agrupação política de esquerda surgida após a desmobilização do grupo guerrilheiro Movimento 19 de Abril (M-19) em finais da década de 1980. A ADM-19 gozava de importante apoio popular no início dos anos 1990 e conquistou uma das maiores bancadas durante a Assembleia Constituinte de 1991. Já Eduardo Cifuentes, que havia realizado cursos de especialização na Universidade de Colúmbia e na Espanha, havia participado do processo constituinte como um de seus militantes. Após deixar a Corte Constitucional, ele seria defensor del Pueblo (2000-2003), membro do Comitê de Coordenação da Rede de Instituições Nacionais para a Promoção e Proteção dos Direitos Humanos do Continente Americano, diretor da Divisão de Direitos Humanos da UNESCO (2003-2005) e presidente do Conselho Andino de defensores del Pueblo. Eles possuíam boas relações com várias ONGs de direitos humanos, por distintas vias, o que permitiu que houvesse com algumas delas uma dinâmica de contato que "não era uma inter-relação superconstante, [mas] simplesmente era como que um ambiente de abertura ao que as ONGs afirmavam e como elas podiam participar nos processos". Além disso, esses três juízes nomearam, para seus respectivos gabinetes, magistrados auxiliares "que eram todos professores universitários e que tinham vínculos acadêmicos, e alguns pessoais, com algumas ONGs de direitos humanos que promoviam a aplicação do direito internacional de direitos humanos", o que ajudava ainda mais a fortalecer esses vínculos.

Assim, a presença desses três juízes outsiders nessa composição inicial e temporária da Corte Constitucional, com um perfil mais acadêmico e progressista, e com boas relações com organizações da sociedade civil, permitiu que, com base no novo texto constitucional, eles pudessem gerar a ideia de que era legítimo usar argumentos de direito internacional dos direitos humanos durante a prática jurisdicional desse tribunal, concepção até então inédita na tradição de controle constitucional colombiano. Em 1993, houve então a primeira mudança de composição da Corte Constitucional, quando o número de juízes se ampliou de sete para nove e seus mandatos passaram a ser de oito anos. Nesse processo, Alejandro Martínez e Eduardo Cifuentes foram reeleitos, e ingressaram na Corte outros juízes progressistas, como Carlos Gaviria, "que também vinham como que da academia, por fora do poder judicial colombiano e vinculados a ONGs de direitos humanos". Além dos juízes ingressantes, foram incorporados novos magistrados auxiliares, dentre os quais o próprio Rodrigo Uprimny, que também tinham alguns vínculos com ONGs de direitos humanos, reforçando assim as ligações da Corte e de parte importante dos seus magistrados com essas organizações da sociedade civil.

Um claro exemplo dessas relações ficava patente na figura do juiz Carlos Gaviria, que viria a presidir a Corte Constitucional em 1996, e cujas decisões em vários temas-chave de direitos humanos e proteção de minorias se tornariam famosas. Ele havia sido vice-reitor da Universidade de Antioquia, tinha realizado estudos de pós-graduação na universidade de Harvard e havia ocupado ainda o cargo de vice-presidente do Comitê pela Defesa dos Direitos Humanos de Antioquia, organização que sob a presidência do médico Héctor Abad Gómez havia sido responsável por encaminhar o primeiro caso colombiano à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, relativo ao desaparecimento forçado de Luis Fernando Lalinde. Ameaçado pela onda de violência de grupos paramilitares na cidade de Medellín, que havia resultado no assassinato de vários militantes de esquerda e defensores de direitos humanos, dentre os quais seu amigo Héctor Abad Gómez, morto em 1987, Gaviria viu-se forçado a abandonar a Colômbia no final da década de 1980, buscando exílio na Argentina, país do qual regressaria apenas anos mais tarde.

Na Corte Constitucional, seu envolvimento pessoal com a defesa dos direitos humanos e sua trajetória como vítima da violência paramilitar encontrariam eco nas posições de outros juízes progressistas como Alejandro Martínez e Eduardo Cifuentes, que haviam participado do processo constituinte no país e que, além de possuir boas relações com ONGs de direitos humanos, manifestavam uma clara preocupação com essa temática e eram também conscientes da importância da dimensão internacional dessa matéria. Isso fortaleceu ainda mais a ideia que já vinha sendo gestada na Corte entre 1991 e 1993 de que era necessário recorrer tanto aos argumentos constitucionais como aos argumentos do direito internacional para conferir mais peso ao que se afirmava nas decisões desse tribunal. Nesse sentido, a normatividade internacional de direitos humanos era cada vez mais entendida por esses juízes como uma ferramenta-chave para incrementar e fortalecer seus recursos e argumentos jurídico-legais, a qual contribuiria decisivamente para "empoderar" a Corte Constitucional e aumentar o seu perfil e status político dentro do jogo político doméstico colombiano.

Nesse cenário, Uprimny afirma que os outros magistrados não se opunham à utilização das normas internacionais de direitos humanos e que "inclusive [entre] os mais conservadores não havia inimigos a usar o direito internacional". Assim, como essa formação da Corte Constitucional foi mais extensa e durou oito anos, de 1993 até 2001, o resultado foi o de que se gerou nesse período um processo de inércia institucional e jurisprudencial, no qual a referência à normatividade internacional de direitos humanos não só conquistava crescentemente uma maior legitimidade, mas também se tornava uma prática cada vez mais rotinizada e aceita pelos demais juízes da Corte e operadores judiciais colombianos, de maneira geral.

Dentro desse processo de aceitação do uso do direito internacional dos direitos humanos, a abertura do texto constitucional e sua referência expressa às normas internacionais nessa matéria exerceram, de fato, um efeito importante para vencer as eventuais resistências de juízes e outros atores judiciais que poderiam se opor ao ativismo de magistrados como Gaviria, Martínez e Cifuentes. Diante de artigos constitucionais tão explícitos como os de número 93, 94 e 214, havia uma base e um espaço normativos que permitiam e impulsionavam a atividade de juízes mais progressistas e afins ao direito internacional, sem que isso gerasse muita polêmica entre outros operadores do sistema judicial. Com uma sustentação legal bastante clara e embasada no texto da Constituição, a utilização das normas internacionais de direitos humanos não gerou muitas controvérsias, como ocorreria em outros âmbitos de atuação da Corte Constitucional, já que a comunidade jurídica muito rapidamente aceitou que, "se a Constituição tem uma abertura ao direito internacional, o que a Corte está fazendo é normal".

Como consequência, longe de ser vista como "uma inovação louca", sem sustento legal, a referência à normatividade internacional adquiriu consenso e passou a se irradiar da Corte Constitucional em direção a outros tribunais, permeando progressivamente, ainda que com atrasos, a atuação de outras cortes colombianas.20 20 . A Corte Suprema de Justiça, por exemplo, começou cada vez a mais usar argumentos do direito penal internacional, dando especial atenção para a figura legal do crime de lesa-humanidade. Além disso, ao revisar as sentenças proferidas pelos Tribunais Superiores de Distrito Judicial de Justiça e Paz, a Corte Suprema utiliza extensamente as sentenças e jurisprudência da Corte Interamericana (CENTRO INTERNACIONAL PARA LA JUSTICIA TRANSICIONAL, 2011), enquanto o Conselho de Estado, máxima instância da jurisdição contenciosa administrativa, passou a repensar, desde 2008, toda a ação de reparação das vítimas à luz da jurisprudência da Corte Interamericana nesse tema (SEPÚLVEDA MARTÍNEZ, 2012). No que diz respeito mais propriamente à Lei de Justiça e Paz, ainda que não seja o objetivo deste artigo discutir a implementação da lei e seus problemas, tais como a falta de preparo inicial de juízes e promotores para lidar com padrões de macroviolações sistêmicas, vale observar novamente que os processos judiciais criminais dessa lei são julgados não nas instâncias criminais ordinárias, mas nos Tribunais Superiores de Justiça e Paz, nos quais é comum o uso tanto da sentença C-370 da Corte Constitucional quanto da jurisprudência do sistema interamericano. A esse respeito, a juíza Uldi Teresa Jiménez, da Sala de Justiça e Paz do Tribunal Superior de Bogotá, responsável pela primeira sentença condenatória da Lei de Justiça e Paz confirmada pela Corte Suprema no caso Mampuján, afirma que a sentença C-370 "é nosso ABC nesse processo" e que "Todos estes aspectos que têm que ver com crimes internacionais e que de uma ou outra forma foram abordados pela Corte Interamericana, nós temos feito um seguimento muito, muito pontual e os trazemos como parte de nossas decisões" (entrevista pessoal, Bogotá, 30 de novembro de 2012). Isso não implica que diante da atividade dessas Cortes colombianas não haja controvérsias e certas polêmicas, mas elas se dirigem sempre à qualidade do uso que se faz dos argumentos do direito internacional em casos específicos, e não como uma crítica à ideia de incorporá-los.

Dessa forma, até mesmo juízes nomeados mais recentemente, com uma formação mais conservadora e tradicional, precisam se adequar a toda a produção jurisprudencial já acumulada pela Corte Constitucional sobre esse tópico em seus dez primeiros anos de funcionamento, e não são capazes, assim, de alterar ou se opor, de maneira substantiva, a esse consenso sobre a utilização das normas internacionais.21 21 . Veja-se, por exemplo, um caso como o do juiz Alvaro Tafur Galvis, membro da Corte entre 1999 e 2007 e especialista em direito administrativo, que vinha do Partido Conservador Colombiano e de uma universidade muito tradicional, qual seja a Universidad del Rosario. Apesar de ser um jurista tradicional, Rodrigo Uprimny afirma que, ao ingressar na Corte, ele "rapidamente vê que isso tem sentido, e se molda e se adapta, e o vemos em suas decisões citando não só tratados de direitos humanos, mas também conceitos da Corte Interamericana, conceitos do Comitê de Direitos Humanos etc." (entrevista pessoal, Bogotá, 7 de novembro de 2012). Mudanças desse tipo, de atitude individual de juízes, ocorrem porque a Corte Constitucional conseguiu estabelecer em pouco mais de dez anos de atividades, e em consonância com os esforços de juízes como Martínez, Angarita, Cifuentes e Gaviria, uma identidade muito definida queéa de uma instituição relativamente progressista e na qual "usar argumentos de direito internacional é moeda de todos os dias".

Por fim, quanto à facilidade de acesso à Corte Constitucional, este é outro fator que contribuiu para explicar o posicionamento favorável desse tribunal à normatividade internacional de direitos humanos. O acesso constante de indivíduos e ONGs de direitos humanos à Corte por meio da ativação de ações de inconstitucionalidade e de tutela embasadas em normas internacionais promoveu dois resultados principais. Por um lado, um efeito de difusão e de legitimação ainda maior dessas regras internacionais, ao mesmo tempo em que, por outro lado, abriu uma janela de oportunidade para que tais atores tivessem uma espécie de poder de agenda sobre a pauta dos temas abordados pelo tribunal, dinâmica essa que "empoderaria" não só esses atores societais, mas também a própria Corte, uma vez que, ao se pronunciar sobre esses temas, ela ampliaria também o próprio rol de instrumentos jurídico-legais à sua disposição.

As ONGs de direitos humanos atuam, em geral, como tradutoras das normas internacionais ao introduzir e adaptar a linguagem dos direitos humanos para as especificidades do âmbito local, dando materialidade a conceitos e noções jurídicas abstratas. No contexto colombiano, em particular, elas conseguiram ainda fazer com que a maioria dos processos judiciais analisados pela Corte Constitucional tratasse justamente das suas demandas.

Como resultado, a Corte teve diversas oportunidades para aprofundar e aclarar uma série de conceitos e de linhas jurisprudenciais, com o que ela foi ganhando também cada vez mais expertise, confiança e capacidade institucional sobre como mobilizar os argumentos legais internacionais. Desse modo, com o passar do tempo, os litígios apresentados pelas ONGs popularizaram as normas internacionais e contribuíram para que os juízes se familiarizassem cada vez mais com o direito internacional, explorando em cada caso as diversas modalidades possíveis de sua aplicação, muitas das quais eram propostas pelas próprias equipes de advogados especializados das ONGs. Isso deu origem a uma dinâmica que levou o tribunal inclusive a expandir o seu uso dos mecanismos internacionais para além dos tratados. Assim, além de aplicar, na qualidade de critério relevante para a interpretação constitucional, a jurisprudência da Corte Interamericana e de outros tribunais, como a Corte Europeia de Direitos Humanos, a Corte passou também a utilizar até mesmo instrumentos de soft law, como os princípios de Joinet.

Dessa forma, em suma, se a normatividade internacional era um recurso jurídico-legal adicional para os juízes, como já argumentado, o fácil acesso das ONGs à Corte era a correia de transmissão que levava esses instrumentos até a apreciação dos juízes, o que permitia então que eles pudessem analisar e interpretar esses mecanismos externos, utilizando as informações e inputs de políticas oferecidos por esses atores societais para tomar suas decisões. Dessa maneira, ao "ditar" a agenda da Corte Constitucional, as ONGs de direitos humanos fizeram com que o tribunal tivesse que se manifestar em repetidas ocasiões, as quais seriam utilizadas então pelos juízes como um canal de "empoderamento". Isso porque eles passaram a se valer dessa estrutura normativa internacional como uma ferramenta adicional que lhes auxiliava a disciplinar o comportamento do Executivo e do Legislativo e que também podia ser mobilizada durante eventuais disputas e confrontos do Judiciário com esses dois poderes, de modo a fortalecer, assim, o próprio peso e importância política desse poder dentro da política colombiana.

Comentários Finais

A jurisprudência do sistema interamericano foi importante e exerceu influência sobre o tema da desmobilização dos paramilitares na Colômbia não só durante a discussão das leis sobre esse tópico, ao ser mobilizada pelas ONGs e demais atores críticos aos projetos de lei da alternatividade penal e de justiça e paz, mas também quando da decisão da Corte Constitucional na sentença C-370/2006. Esse arcabouço normativo deu aos grupos de direitos humanos a possibilidade de reclamar e exigir que a desmobilização não fosse simplesmente um processo de indulto e impunidade, enquanto forneceu aos juízes constitucionais um rol mais amplo de princípios e ferramentas legais para alterar a política preferida pelo Executivo e por sua bancada majoritária no Congresso.

Desse modo, ao analisar o papel da política doméstica como uma instância de mediação de normas e pressões internacionais, é possível concluir que a dinâmica e o caráter da interação entre juízes e ONGs locais de direitos humanos foram os fatores que afetaram e moldaram o potencial de impacto do sistema interamericano de direitos humanos no caso colombiano. Esse impacto não começa, portanto, simplesmente com a publicação de uma sentença pela Corte ou de uma recomendação pela Comissão, já que essas decisões dependem da capacidade e agência de atores e instituições domésticas para serem implementadas.

Pelo contrário, a influência que o sistema pode vir a ter depende de processos domésticos que começam muito antes disso, e, em particular, da existência de ONGs que coletem e guardem evidências, mantenham relações com as vítimas e dediquem tempo e recursos para a formação de equipes legais e para atividades de litígio estratégico e mobilização do direito internacional. Além disso, por outro lado, requer-se ainda de um Judiciário que, apoiado em uma base legal expressa ou em algum tipo de interpretação, entenda a utilização do direito internacional não só como um exercício jurídico legítimo, mas também como um instrumento indispensável para a realização de direitos e para a própria consecução dos seus trabalhos.

Ainda a esse respeito, a postura da Corte Constitucional, embora sustentada por artigos constitucionais, foi resultado também não apenas do contexto institucional puro, mas de um processo de socialização que foi construído ao longo do tempo a partir das crenças, escolhas e ideias de seus membros, tendo como pano de fundo um Judiciário de cúpula extremamente poroso às demandas de atores societais. Do mesmo modo, a postura das ONGs de explorar as possibilidades legais de ativação do sistema interamericano e das próprias Cortes colombianas não pode ser tomada como um dado. Isso porque ela também se deve à escolha motivada desses atores, os quais foram capazes não só de superar desconfianças iniciais sobre o potencial de mobilização do direito, mas que também conseguiram investir tempo e recursos, humanos e econômicos, na produção de conhecimento e estratégias referentes à utilização de mecanismos internacionais de direitos humanos.

Notas

Artigo recebido em 3 de junho de 2013 e aprovado para publicação em 23 de agosto de 2013.

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  • VALENCIA AGUDELO, Germán Darío; MEJÍA Walker, Carlos Alberto. Ley de Justicia y Paz, un balance de su primer lustro. Perfil de Coyuntura Económica, n. 15, p. 59-77, ago. 2010.
  • 1
    . Esta e as demais citações de originais em língua estrangeira foram livremente traduzidas para este artigo.
  • 2
    . Segundo Teitel (2011, p. 57), a justiça de transição pode ser definida como "respostas sistemáticas aos erros e injustiças do regime anterior, ou que ocorreram ao longo do conflito político que finalmente foi resolvido pelo novo regime ou nele resultou". No caso colombiano, o conceito se insere no contexto do conflito armado interno e aplica-se ao processo de desmobilização dos paramilitares e às escolhas de políticas sobre como lidar com as graves violações de direitos humanos cometidas por vários ex-combatentes.
  • 3
    . No total, entre agosto de 2002 e julho de 2010, desmobilizaram-se 53.659 pessoas, incluindo membros não só dos grupos paramilitares, mas também de agrupações guerrilheiras que se uniriam posteriormente a esse processo. Desse montante, 31.671 corresponderiam a paramilitares, e 4.346 estavam inscritos aos trâmites da Lei de Justiça e Paz em meados de 2010 (VALENCIA AGUDELO; MEJÍA, 2010, p. 61, p. 66).
  • 4
    . Por impacto e influência do sistema interamericano, referimo-nos, assim, à utilização, pela Corte Constitucional, das exigências de responsabilização criminal individual, verdade e reparações reiteradas em diversas ocasiões pela jurisprudência da Corte Interamericana em casos como Velásquez Rodríguez (contra Honduras), Barrios Altos (contra o Peru) e os massacres de Mapiripán e La Rochela (contra a Colômbia), entre outros. A respeito dessa jurisprudência que é apoiada pela Comissão Interamericana, consultar Quinche Ramírez (2009) e Morales (2012).
  • 5
    . Uma vez que as decisões e normas do sistema interamericano não são autofiscalizantes, interessa-nos compreender, por conseguinte, a ação dessas
    constituencies domésticas pró-cumprimento, isto é, desses atores que funcionaram como canais de intermediação e recepção da normatividade do sistema.
  • 6
    . De modo similar, o artigo não é uma análise sobre a dinâmica do conflito, os resultados da desmobilização e os diferentes interesses e correlações de forças dos atores envolvidos no processo de aplicação da Lei de Justiça e Paz. Assim, não pretendemos explicar todas as rodadas do jogo político doméstico referente à desmobilização, mas apenas um dos momentos-chave da interação entre Executivo, Legislativo e Judiciário, quando a Corte Constitucional foi capaz de exercer um relevante impacto político-institucional sobre o referido marco legal com uma decisão específica, qual seja a sentença C-370/2006.
  • 7
    . A dificuldade do caso deve ser entendida tendo em vista o enfoque analítico predominante dos estudos sobre o impacto de normas e pressões internacionais de direitos humanos. Nesse sentido, o foco da literatura especializada tem se ocupado tradicionalmente do papel das elites políticas eleitas, de modo que mudanças de comportamento dos Estados no sentido de um maior cumprimento dessas normas seriam um resultado da pressão da rede transnacional de ativismo contra esses políticos (RISSE et al., 1999) ou então uma consequência da decisão dessas elites de instrumentalizar o regime internacional para consolidar reformas democráticas e s inalizar uma b oa imagem e reputação (MORAVCSIK, 2000; MANSFIELD; PEVEHOUSE, 2006). No caso da Colômbia, as predições desses trabalhos nos induziriam a pensar que haveria então pouco espaço para a influência do sistema interamericano, visto que o governo Uribe sempre resistiu à incorporação de padrões internacionais de direitos humanos e muitos congressistas estavam, ademais, vinculados com grupos paramilitares. No entanto, nossa análise revela ser necessário atentar para o papel de outros atores do Estado, e mostra que a interação entre juízes de altas cortes e ONGs de direitos humanos pode ser um canal até aqui subteorizado para que os instrumentos internacionais adquiram certa influência nos países, mesmo em contextos políticos aparentemente não muito propícios que seriam entendidos, a priori, como casos difíceis pela literatura majoritária.
  • 8
    . O governo estabelecia, por conseguinte, um
    trade-off entre justiça e paz. Nesse sentido, de acordo com a lógica governamental, a consecução da paz exigiria inevitavelmente o sacrifício das demandas de justiça.
  • 9
    . República da Colômbia, Corte Constitucional, Sentença C-370/2006. Disponível em: <
  • 10
    . A inibição internacional das ONGs colombianas nesse período foi também ressaltada por Federico Andreu (membro da CCJ), Gustavo Gallón (presidente da CCJ) e Amanda Romero (ativista histórica de direitos humanos) em entrevistas pessoais com o autor realizadas em Bogotá nos dias 23 de novembro, 14 de dezembro e 29 de novembro de 2012, respectivamente. A esse respeito, Romero (1990, p. 92) afirmava que "a atividade desenvolvida até agora pelos organismos colombianos de direitos humanos em relação aos instrumentos internacionais padece de uma ausência de conhecimento de sua funcionalidade e possibilidades, o que tem sido um fator de indiferença frente à sua utilização massiva no país".
  • 11
    . Segundo Simmons (2009, p. 133),
    cause lawyering é "o trabalho legal que se direciona a alterar algum aspecto do status quo social, econômico e político".
  • 12
    . Todas as principais ONGs colombianas de direitos humanos dependiam de fundos internacionais de fundações europeias e norte-americanas, bem como de governos europeus, para a realização de suas atividades.
  • 13
    . Entrevista pessoal com Gustavo Gallón, Bogotá, 14 de dezembro de 2012.
  • 14
    . A ação pública de inconstitucionalidade pode ser utilizada por qualquer cidadão que considere que uma determinada lei ou decreto viola a Constituição. A ação de tutela, por sua vez, é outro procedimento de queixa individual que permite a qualquer pessoa que tenha seus direitos fundamentais ameaçados o direito de iniciar um processo judicial. Assim como as ações públicas de inconstitucionalidade, as ações de tutela não requerem participação de advogados, possuem poucas formalidades e são um instrumento de litígio constitucional vastamente utilizado para aplicar "provisões constitucionais relevantes em todos os tipos de circunstâncias, muitas das quais lidam com tópicos, questões e áreas inteiramente novos, os quais não tinham sido previamente regulados pela Constituição" (ESPINOSA, 2005, p. 75).
  • 15
    . O artigo 93 estabelece no seu primeiro inciso que "Os tratados e convênios internacionais ratificados pelo Congresso, que reconhecem os direitos humanos e que proíbem sua limitação nos estados de exceção, prevalecem na ordem interna". Em seguida, o mesmo artigo estipula no seu segundo inciso que "Os direitos e deveres consagrados nesta Carta se interpretarão de conformidade com os tratados internacionais sobre direitos humanos ratificados pela Colômbia". Já o artigo 94 afirma que "A enunciação dos direitos e garantias contidos na Constituição e nos convênios internacionais vigentes não deve ser entendida como negação de outros que, sendo inerentes à pessoa humana, não figurem expressamente neles". Por fim, o artigo 214 dispõe no seu inciso segundo que, mesmo nos estados de exceção, "Não poderão ser suspensos os direitos humanos nem as liberdades fundamentais. Em todo caso se respeitarão as regras do direito internacional humanitário" (COLÔMBIA, 1991).
  • 16
    . A noção de bloco de constitucionalidade se refere à existência de "uma série de normas que fazem parte da Constituição por mandato do próprio texto constitucional sem que necessariamente se encontrem explicitadas nele" (UPRIMNY, 2008, p. 58).
  • 17
    . Tal consenso se refere única e exclusivamente ao entendimento jurídico consubstanciado na doutrina legal do bloco de constitucionalidade, segundo o qual as normas e a jurisprudência internacionais têm status constitucional e devem ser aplicadas no ordenamento jurídico interno. Nesse sentido, a Corte Constitucional estabeleceu a interpretação de que "o único sentido razoável que se pode conferir à noção de prevalência dos tratados de direitos humanos e de Direito Internacional Humanitário (C.P., arts. 93 e 214, inciso 2o) é que estes formam com o resto do texto constitucional um 'bloco de constitucionalidade', cujo respeito se impõe à lei" (ver COLÔMBIA, Corte Constitucional, Sentença C-225/95, Juiz Relator: Alejandro Martínez Caballero). Desde o seu surgimento no início da década de 1990, a Corte Constitucional afirmou, assim, um vasto conjunto de sentenças nessa direção (Corte Constitucional, Sentenças C-574/92, C-295/93, C-225/95, C-578-95, C-191/98, C-10/2000, T-1303/2001,T-1319/01, C-580/02, T-1319/2002, C-058/03, C-067/03, C-551/03; SU-058/03, C-038/04, T-367/2010), transformando-se não só numa das cortes mais progressistas do mundo do ponto de vista da proteção dos direitos humanos (SIKKINK et al., 2011), mas também numa das mais representativas da tendência de ativismo judicial e judicialização da política (ESPINOSA, 2005). Em razão da explícita abertura da Constituição de 1991 aos tratados de direitos humanos, esse entendimento é compartilhado pela comunidade jurídica e juristas especializados no tema (UPRIMNY, 2008), assim como pelos tribunais superiores como a Corte Suprema de Justiça, o Conselho de Estado e os Tribunais Superiores de Distrito Judicial para a Justiça e Paz. Estes últimos tribunais são responsáveis pelos julgamentos dos processos criminais da Lei de Justiça e Paz, os quais depois são confirmados pela Corte Suprema de Justiça e não passam, portanto, pelos tribunais inferiores da justiça criminal ordinária. A existência desse entendimento não implica, contudo, que o uso dessas normas seja feito sempre de maneira apropriada e, além disso, tais regras internacionais não são necessariamente aplicadas em todos os casos por cortes inferiores. Para uma análise dos sérios problemas institucionais desses tribunais e da justiça criminal ordinária, ver Restrepo (2003).
  • 18
    . Entrevista pessoal, Bogotá, 7 de novembro de 2012. Todas as seguintes referências e citações dizem respeito a esta entrevista.
  • 19
    . Alejandro Martínez havia sido representante no Congresso e membro da Comissão Preparatória da Assembleia Constituinte. Ao se tornar juiz, pertencia à Aliança Democrática M-19 (ADM-19), agrupação política de esquerda surgida após a desmobilização do grupo guerrilheiro Movimento 19 de Abril (M-19) em finais da década de 1980. A ADM-19 gozava de importante apoio popular no início dos anos 1990 e conquistou uma das maiores bancadas durante a Assembleia Constituinte de 1991. Já Eduardo Cifuentes, que havia realizado cursos de especialização na Universidade de Colúmbia e na Espanha, havia participado do processo constituinte como um de seus militantes. Após deixar a Corte Constitucional, ele seria
    defensor del Pueblo (2000-2003), membro do Comitê de Coordenação da Rede de Instituições Nacionais para a Promoção e Proteção dos Direitos Humanos do Continente Americano, diretor da Divisão de Direitos Humanos da UNESCO (2003-2005) e presidente do Conselho Andino de
    defensores del Pueblo.
  • 20
    . A Corte Suprema de Justiça, por exemplo, começou cada vez a mais usar argumentos do direito penal internacional, dando especial atenção para a figura legal do crime de lesa-humanidade. Além disso, ao revisar as sentenças proferidas pelos Tribunais Superiores de Distrito Judicial de Justiça e Paz, a Corte Suprema utiliza extensamente as sentenças e jurisprudência da Corte Interamericana (CENTRO INTERNACIONAL PARA LA JUSTICIA TRANSICIONAL, 2011), enquanto o Conselho de Estado, máxima instância da jurisdição contenciosa administrativa, passou a repensar, desde 2008, toda a ação de reparação das vítimas à luz da jurisprudência da Corte Interamericana nesse tema (SEPÚLVEDA MARTÍNEZ, 2012). No que diz respeito mais propriamente à Lei de Justiça e Paz, ainda que não seja o objetivo deste artigo discutir a implementação da lei e seus problemas, tais como a falta de preparo inicial de juízes e promotores para lidar com padrões de macroviolações sistêmicas, vale observar novamente que os processos judiciais criminais dessa lei são julgados não nas instâncias criminais ordinárias, mas nos Tribunais Superiores de Justiça e Paz, nos quais é comum o uso tanto da sentença C-370 da Corte Constitucional quanto da jurisprudência do sistema interamericano. A esse respeito, a juíza Uldi Teresa Jiménez, da Sala de Justiça e Paz do Tribunal Superior de Bogotá, responsável pela primeira sentença condenatória da Lei de Justiça e Paz confirmada pela Corte Suprema no caso Mampuján, afirma que a sentença C-370 "é nosso ABC nesse processo" e que "Todos estes aspectos que têm que ver com crimes internacionais e que de uma ou outra forma foram abordados pela Corte Interamericana, nós temos feito um seguimento muito, muito pontual e os trazemos como parte de nossas decisões" (entrevista pessoal, Bogotá, 30 de novembro de 2012).
  • 21
    . Veja-se, por exemplo, um caso como o do juiz Alvaro Tafur Galvis, membro da Corte entre 1999 e 2007 e especialista em direito administrativo, que vinha do Partido Conservador Colombiano e de uma universidade muito tradicional, qual seja a Universidad del Rosario. Apesar de ser um jurista tradicional, Rodrigo Uprimny afirma que, ao ingressar na Corte, ele "rapidamente vê que isso tem sentido, e se molda e se adapta, e o vemos em suas decisões citando não só tratados de direitos humanos, mas também conceitos da Corte Interamericana, conceitos do Comitê de Direitos Humanos etc." (entrevista pessoal, Bogotá, 7 de novembro de 2012).
  • *
    Este trabalho contou com o apoio financeiro de bolsas de Doutorado e de Estágio de Pesquisa no Exterior da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      02 Dez 2013
    • Data do Fascículo
      Jun 2013

    Histórico

    • Recebido
      03 Jun 2013
    • Aceito
      23 Ago 2013
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