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A Sociologia Política Internacional distante da grande síntese: como articular relações entre as disciplinas de Relações Internacionais, Sociologia e Teoria Política

International Political Sociology away from the great synthesis: how to articulate relations between disciplines of IR, the Sociology and Political Theory

Resumos

Este artigo analisa uma abordagem de Sociologia Política Internacional (SPI) inspirada em uma metodologia relacional e processual que questiona as premissas das RI quanto às fronteiras do internacional, a visão de que a política está no centro das ciências políticas e o nacionalismo metodológico no que diz respeito à sociedade. A fim de evitar dualismos, a SPI discute as diferentes epistemes em jogo e analisa a sociogênese das práticas dos atores em seus distintos universos profissionais e culturais, com atenção especial para as disputas por poder entre esses atores e para os processos de politização e (in)securitização. A SPI é, portanto, construtivista na medida em que seus autores são reflexivos e desconstroem reivindicações de conhecimento essencialistas. A SPI é também empiricista na medida em que seus autores são sensíveis às práticas dos seres humanos e a suas relações com objetos. Nessa abordagem, as teorias partem dessas relações sociológicas e históricas, sempre incrustadas em locais e tempos específicos. Logicamente, o empiricismo não significa positivismo, e o construtivismo não significa uma perspectiva idealista em que normas, ideias e crenças lideram o mundo. Dessa forma, a SPI também constitui um esforço de descolonizar o estudo das práticas das "sociedades transnacionais de indivíduos" dos chamados "grandes debates" das visões anglo-americanas, reproduzidos transversalmente em suas filosofias e abordagens de ciências sociais.

Sociologia Política Internacional; Teorias de Relações Internacionais; Sociedades Transnacionais de Indivíduos; Segurança; Poder


This paper analyses an approach of International Political Sociology (IPS) inspired by a relational and processual methodology, questioning the assumptions of International Relations concerning the boundaries of the international, the vision of politics at the core of political sciences, and the methodological nationalism concerning society. In order to avoid dualisms, IPS discusses the different episteme at work and analyses the socio genesis of the practices of actors in their different professional and cultural universes, looking specifically to their struggles for power and to the processes of politicisation and (in)securitisation. IPS is therefore constructivist in the sense that its authors are reflexive and deconstruct essentialist claims to knowledge. IPS is also empiricist inasmuch as the authors a re sensitive to the practices of human beings and their relationships to objects, and start their theories from these sociological and historical relationships always embedded in specific locations and time. Of course empiricism does not mean positivism, and constructivism does not mean an idealistic perspective where norms, ideas and beliefs lead the world. The aim of this perspective is to decolonize the study of practices of the "transnational societies of individuals" from the so-called great debates of the Anglo-American visions, reproduced in their philosophies and approaches of social sciences.

International Political Sociology; Theory of International Relations; Transnational Societies of Individuals; Security; Power


ARTIGOS

A Sociologia Política Internacional distante da grande síntese: como articular relações entre as disciplinas de Relações Internacionais, Sociologia e Teoria Política* * Artigo traduzido por Manuela Trindade Viana. E-mail: m.trindadeviana@gmail.com. ** O autor faz referência, aqui, ao título do livro de Rob Walker (2009), After the Globe, before the World. O jogo de palavras do título invoca o duplo significado – espacial e temporal – das palavras after e before no inglês. A primeira refere-se igualmente a "após" (depois) e "atrás de" (no sentido de buscar, tentar alcançar), e a segunda a "antes" e "diante de". A opção por manter a formulação no original deve-se ao fato de a tradução para o português perder parte desse jogo de palavras. [ N. da T.]

International Political Sociology away from the great synthesis: how to articulate relations between disciplines of IR, the Sociology and Political Theory

Didier Bigo

Doutor pela Universidade Sorbonne I, Paris, professor no War Studies Department no King's College London e professor pesquisador no Institut d'Études Politiques (Sciences Po) de Paris. E-mail: didier.bigo.conflits@gmail.com

RESUMO

Este artigo analisa uma abordagem de Sociologia Política Internacional (SPI) inspirada em uma metodologia relacional e processual que questiona as premissas das RI quanto às fronteiras do internacional, a visão de que a política está no centro das ciências políticas e o nacionalismo metodológico no que diz respeito à sociedade. A fim de evitar dualismos, a SPI discute as diferentes epistemes em jogo e analisa a sociogênese das práticas dos atores em seus distintos universos profissionais e culturais, com atenção especial para as disputas por poder entre esses atores e para os processos de politização e (in)securitização. A SPI é, portanto, construtivista na medida em que seus autores são reflexivos e desconstroem reivindicações de conhecimento essencialistas. A SPI é também empiricista na medida em que seus autores são sensíveis às práticas dos seres humanos e a suas relações com objetos. Nessa abordagem, as teorias partem dessas relações sociológicas e históricas, sempre incrustadas em locais e tempos específicos. Logicamente, o empiricismo não significa positivismo, e o construtivismo não significa uma perspectiva idealista em que normas, ideias e crenças lideram o mundo. Dessa forma, a SPI também constitui um esforço de descolonizar o estudo das práticas das "sociedades transnacionais de indivíduos" dos chamados "grandes debates" das visões anglo-americanas, reproduzidos transversalmente em suas filosofias e abordagens de ciências sociais.

Palavras-chave: Sociologia Política Internacional – Teorias de Relações Internacionais – Sociedades Transnacionais de Indivíduos – Segurança – Poder

ABSTRACT

This paper analyses an approach of International Political Sociology (IPS) inspired by a relational and processual methodology, questioning the assumptions of International Relations concerning the boundaries of the international, the vision of politics at the core of political sciences, and the methodological nationalism concerning society. In order to avoid dualisms, IPS discusses the different episteme at work and analyses the socio genesis of the practices of actors in their different professional and cultural universes, looking specifically to their struggles for power and to the processes of politicisation and (in)securitisation. IPS is therefore constructivist in the sense that its authors are reflexive and deconstruct essentialist claims to knowledge. IPS is also empiricist inasmuch as the authors a re sensitive to the practices of human beings and their relationships to objects, and start their theories from these sociological and historical relationships always embedded in specific locations and time. Of course empiricism does not mean positivism, and constructivism does not mean an idealistic perspective where norms, ideas and beliefs lead the world. The aim of this perspective is to decolonize the study of practices of the "transnational societies of individuals" from the so-called great debates of the Anglo-American visions, reproduced in their philosophies and approaches of social sciences.

Keywords: International Political Sociology – Theory of International Relations – Transnational Societies of Individuals – Security – Power

A Sociologia Política Internacional (SPI) é uma corrente de pensamento que tem reunido um número crescente de acadêmicos das Relações Internacionais (RI), sociologia da globalização e movimentos sociais transnacionais, antropologia política, teoria política, geografia e criminologia crítica, com o objetivo de debater algumas das insuficiências nos ditos pressupostos fundamentais de suas respectivas disciplinas ou subdisciplinas.1 1 . A International Political Sociology é, hoje, uma das maiores seções da International Studies Association (ISA). A revista acadêmica International Political Sociology, criada há cinco anos, consta entre as cinco mais importantes publicações do mundo nas áreas de Relações Internacionais e sociologia. Para mais informações, ver: < http://onlinelibrary.wiley.com/journal/10.1111/%28ISSN%291749-5687>.

Longe de propor uma nova "síntese", que buscaria esconder as dificuldades em se pensar um espaço internacional de sociedades de indivíduos, a SPI visa levantar um conjunto de "perguntas desconfortáveis" acerca da redução do âmbito internacional não apenas a um espaço interestatal, mas também a um assunto distinto da vida interna de sociedades, constituídas como se fossem, em todos os aspectos de suas atividades, confinadas nos limites do Estado. Assim, é preciso substituir a fácil distinção entre níveis de análise por uma abordagem séria em termos de complexidade e copresença.

Como expliquei com Rob Walker, o projeto da SPI busca revelar a articulação entre o pensamento moderno e as formas de silenciamento que algumas das grandes divisões entre disciplinas criaram. É, portanto, uma forma de criar debates e tensões, politizando aquilo que veio a ser considerado e valorizado como verdade, senso comum, metodologia, técnica ou mesmo teoria em sociologia, antropologia, ciência política e Relações Internacionais. Para tanto, ao invés de fixar uma terminologia em um movimento disciplinar, analisam-se os elementos de circulação e as múltiplas traduções entre as diferentes disciplinas (BIGO; WALKER, 2007; ALBERT; BUZAN, 2013).

Questionando a divisão entre interno e externo (inside/outside), ou seu funcionamento dialético que reproduz o dualismo entre duas categorias altamente problemáticas, a SPI propõe uma série de diferentes alternativas (por vezes incompatíveis entre si) como uma forma de pensar o internacional de diversos universos "plurais", de diferentes mundos sociais, delimitados territorial ou profissionalmente, e cujas redes são quase sempre transnacionais. Essa reconexão se distingue claramente de uma nova metanarrativa, articulando fácil e homogeneamente uma sociologia política do internacional, como foi, por vezes, erroneamente interpretada.

Se, por um lado, a SPI é claramente uma crítica a uma visão específica da ciência política que informa grande parte dos trabalhos em RI, é, por outro lado, também uma críticaà sociologiaeà sociologia política, especialmente quando prisioneiras do nacionalismo metodológico.

Nesse sentido, vale destacar que a terminologia de sociedade(s) ainda é preferida por muitos sociólogos que conceituam a sociedade como equivalente às atividades de diferentes mundos sociais capturados por uma nação ou um Estado multinacional. Porém, tal concepção de sociedade como um estrato específico de homogeneização deve ser debatida nos mesmos termos da discussão ao redor da concepção de um internacional dotado de regras próprias, separadas da dimensão interna por meio da chamada sociedade internacional de Estados. Assim, trabalhos recentes em sociologia mostraram, em primeiro lugar, que a sociedade não pode ser oposta aos indivíduos, nem entendida como a soma de ações individuais; e, em segundo lugar, que tanto individualismo quanto holismo metodológicos são irrelevantes.

Consequentemente, a distinção entre agente e estrutura deixa de representar uma ferramenta heurística e passa a revelar-se como um falso dualismo e uma armadilha. Como afirmou Norbert Elias, "uma sociedade é uma sociedade de indivíduos" cujas relações são centrais para a emergência e manutenção de instituições e campos sociais que se desenvolvem ao longo de uma multiplicidade de espaços, dos mais localizados àqueles conectando tantos pontos locais que chegam a parecer globais. O elemento fundamental, portanto, são as cadeias de interdependência (ELIAS; ETORÉ-LORTHOLARY, 1991) ou, para evitar a terminologia de cadeias, a circulação de indivíduos ao longo de séries de redes heterogêneas que se agregam em certo momento no tempo, a rastreabilidade (traceability) e a complexidade dessas redes, seus pontos de interrupção e a forma pela qual suas configurações as distinguem e diferenciam ao criar linhas e fronteiras.

A sociologia dos movimentos sociais transnacionais e das cidades globais exemplificou tal abordagem desconstruindo a noção de sociedade como um espaço de encerramento e homogeneização. Em seu lugar, favoreceram o acompanhamento dos rastros deixados pelos agentes em suas trajetórias, das redes que estes constroem por meio das suas dinâmicas de mobilização, dos campos e universos sociais em que vivem e lutam para adquirir ou manter status. Parte da teoria dos campos de ação estratégica conecta-se com questões ligadas à SPI, ainda que tenda a ser menos atenciosa às discussões que dizem respeito à política (FLIGSTEIN, 2001; FLIGSTEIN; MCADAM, 2011).

Ao trabalhar as contradições que são levantadas quando, por um lado, as RI não são tomadas como uma disciplina independente com seus próprios objetos e métodos e, por outro, a sociologia não reduz sua análise à sociedade dentro das fronteiras dos Estados, abre-se espaço para um entendimento da política que vai além daquele presente na ciência política.

Muitos teóricos políticos buscaram localizar a política (politics) em um domínio específico de atividades chamado o político (the political) e relacioná-lo a uma comunidade política (polity) específica, resultando em confusão conceitual e contradições no âmbito da relação entre política, comunidade política e formação estatal. Tais contradições, centrais à condição moderna, foram silenciadas pela aceitação, por parte das grandes narrativas dos distintos ramos do conhecimento, de uma divisão do trabalho que torna possível a formulação de pressupostos que se mostram insustentáveis assim que tais ramos são colocados em relação uns com os outros (BIGO; WALKER, 2007).

A importância da política em uma abordagem de SPI deve-se à forma pela qual esta aborda o conjunto das questões difíceis colocadas pela discussão e pelo encontro entre RI, ciência política, teoria política, sociologia política, antropologia e geografia em um período no qual, segundo Walker (2009), nos encontramos after the globe, before the world.** 1 . A International Political Sociology é, hoje, uma das maiores seções da International Studies Association (ISA). A revista acadêmica International Political Sociology, criada há cinco anos, consta entre as cinco mais importantes publicações do mundo nas áreas de Relações Internacionais e sociologia. Para mais informações, ver: < http://onlinelibrary.wiley.com/journal/10.1111/%28ISSN%291749-5687>.

Política é analisar as lutas entre os agentes em universos sociais específicos sobre o que é importante para eles, o que está em jogo e o que precisa ser silenciado, considerado como irrelevante ou inquestionável (destino) (BIGO, 2005).2 2 . Tal concepção é próxima da definição de politização de Jacques Lagroye: "uma requalificação das mais diversas atividades sociais, requalificação esta que resulta de um arranjo prático entre agentes sociais inclinados, por múltiplas razões, a transgredir ou questionar a diferenciação entre espaços de atividades" (LAGROYE, 2003, p. 360-361). Conquanto Rancière insista mais especificamente nas lutas nas margens da política, o autor mantém a ideia de um núcleo da política ao redor da política democrática, movimento que Lagroye busca evitar. Assim, a politização ocorre tão cedo uma questão emerge na formação do social de diferentes universos e nos limites entre diferentes esferas de atividades. Incluir, como John Law, Michel Callon e Bruno Latour, objetos materiais e sua importância na formação desses universos não apaga a questão da politização; pelo contrário, complexifica-a ao politizar a questão da técnica e do papel de transmitor do objeto. Infelizmente, esses autores pouco abordam tal elemento, permanecendo prisioneiros de um entendimento estreito de política derivado de Talcott Parsons: política como uma "função" especial. Não obstante, Naomi Sakai certamente conectou a abordagem da translação e da politização do social de forma original ao analisar a translação como uma prática que produz diferenças a partir de incomensurabilidades (ao invés de equivalências a partir de diferenças) e a politização como uma luta para conectá-las. Logo, a politização produz linhas, limites, faixas, organizando um espaço e um tempo para o dissenso, para que heterogeneidades sejam exibidas e para que os diferentes mundos sejam diferenciados ao longo de diversos interesses em jogo. A formação do social é enredada na politização, o que explica por que esta, quando tomada enquanto prática, joga com ambiguidades e incertezas, usando metáforas, símbolos, como formas de (re)ordenamento do mundo ao seu redor e, muitas vezes, aplicando relações de poder sobre outros de modo a conduzi-los, a fazê-los participar e obedecer a tal reordenamento. Murray Edelman explicou por que acadêmicos se sentem desconfortáveis com tal definição de política, e Michel Foucault trabalhou a subjetivação e a conduta de si ( conduct of the self) nos termos desse tipo de politização. A conexão entre a verdade e os procedimentos de veridicção esteve no centro do trabalho de Michel Foucault, assim como das reflexões de Pierre Bourdieu (1997) em Méditations pascaliennes. A política refere-se, assim, a um processo de politização de uma realidade construída como um problema. Com efeito, o próprio mundo acadêmico não está fora dessa definição de política ou politização. Logo, a SPI questiona a racionalidade a partir da qual as Relações Internacionais definiram o internacional, a ciência política definiu a política, a sociologia conceituou a sociedade. Em seguida, a SPI tenta reconectar alguns ramos das humanidades e, com isso, desafiar a dita autonomização de algumas disciplinas – autonomização essa que fornece tecnologias de ação e poder específicas sobre o mundo. Portanto, opõe-se a uma ideia específica de modernização, acompanhada de uma clara demarcação entre domínios do pensamento, onde se torna fácil distinguir uma ordem interna da sociedade de uma ordem externa, uma modernidade em formação de resíduos não modernos, um domínio da política diferente da ciência e da tecnologia, um domínio dos fatos diferentes de valores.

O projeto da SPI é um projeto coletivo muito mais rico do que uma discussão voltada exclusivamente à "segurança". O que conecta os diferentes autores interessados na SPI ultrapassa a crítica comum às fronteiras estreitas de suas respectivas disciplinas ou subdisciplinas, aproximando-se de uma perspectiva relacional e processual que critica as falsas alternativas entre agência e estrutura, indivíduo e sociedade, Estado-nação e sistema interestatal. Tal perspectiva relacional e processual permite pensar em termos de ator-rede, habitus-campo, homem plural-mundos plurais, práticas discursivas-dispositivos. As palavras-chave são: transversal ou travesso, translação e emergência, complexidade e heterogeneidades, trajetórias e repertório de ação, impacto do tempo e velocidade e aceleração, organização e coincidência (ou não) de múltiplos espaços, reconstrução de rastros anteriores, instrumentos digitais e futuros possíveis.

A tendência dominante, seguindo os esforços de Luc Boltanski e Bernard Lahire, opõe o pragmatismo e a sociologia crítica, apresentando-os como duas perspectivas irreconciliáveis sobre o social – o primeiro aceitando-o como constituído, o segundo como frágil e sempre em formação. Aqui, quero insistir na possibilidade de pensá-los conjuntamente uma vez aceitas as mudanças em termos de ontologia e epistemologia impostas pela perspectiva relacional e processual aqui esboçada. Obtém-se, assim, um dispositivo internacional feito de assemblages complexos. Isso implicaria pensar as RI sociologicamente em termos de relações, assim como repensar sua conexão com a(s) "ciência(s)" política(s) e seu essencialismo.

Uma perspectiva processual defende que processos, ao invés de coisas, melhor representam os fenômenos que encontramos no mundo natural. Assim, processos têm primazia sobre coisas e prioridade sobre substâncias. Nicholas Rescher tem sido um dos principais autores a insistir nessa tradição ilustrada por Leibniz e desenvolvida por John Dewey. O autor propõe ver o mundo como um mar de fluxos compreendendo uma multiplicidade de mudanças que não são traduzíveis na substituição de um estado claramente delimitado por outro, mas sim em imagens de derretimento e fusão de processos sem fronteiras. Isso implica pensar em termos de movimento, de trajetórias, de "tornar-se" (becoming), ao invés de favorecer o fixo e o estático, o separado e o autorreferenciado (RESCHER, 1995).

Uma perspectiva relacional é processual, mas insiste também no fato de que o real é relacional e não interacional ou intersubjetivo. As relações entre agentes são tanto aquilo que torna possível o entendimento de suas práticas quanto aquilo que constitui suas identidades. As relações invisíveis entre agentes guiam as práticas imanentes que estes tornam visíveis enquanto atores. Nesse sentido, eles são "divíduos" mais do que indivíduos. Existem diferentes versões dessa perspectiva relacional. A de Pierre Bourdieu tem como ponto central as características e propriedades de um estruturalismo genético que desestabiliza o anistoricismo do estruturalismo e considera o tempo e as trajetórias como os elementos-chave de um processo. Bernard Lahire e Luc Boltanski, por sua vez, criticaram tal abordagem – que pode ser demasiadamente holística – e tentaram apresentar uma versão que avance uma perspectiva mais pragmática do que a de Dewey ou, mais recentemente, Bruno Latour e John Law. Apresentarei, a seguir, o que tal perspectiva processual e relacional implica (LATOUR, 2007; BOLTANSKI, 2009; LAHIRE, 2012).

Em poucas palavras, e para simplificar, se se deseja situar a SPI dentro da narrativa dominante das teorias de RI, ela se diferencia do debate das RI – nos Estados Unidos e em outros locais –, uma vez que afirma ser simultaneamente uma abordagem "construtivista" e "empiricista", ao invés de opor ambas as alcunhas como alternativas.

A SPI é construtivista na medida em que seus autores são reflexivos e desconstroem pretensões essencialistas de conhecimento – em par com o que vem sendo chamado recentemente de pós-estruturalismo. Ela é empiricista uma vez que seus autores são sensíveis às práticas dos seres humanos e às suas relações com objetos, começando suas teorias a partir dessas relações sociológicas e históricas – sempre imbricadas em locais e tempos específicos –, ao invés de aplicar categorias abstratas aos chamados "estudos de casos". Empiricismo não significa positivismo, e construtivismo não é equivalente a uma abordagem idealista, na qual normas, ideias e crenças determinam o mundo. Estes são, de fato, dois equívocos cuja especificidade pode ser traçada ao seu posicionamento estratégico dentro de algumas correntes de Relações Internacionais voltadas à crítica do debate entre realistas e liberais, assim como pelo fato de as abordagens construtivistas alcançarem as margens das RI mais de trinta anos depois de terem sido desenvolvidas na sociologia, na teoria francesa e nas perspectivas feministas.

Dessa forma, o construtivismo materialista foi ignorado por ser apressadamente associado a um retorno ao realismo, e as RI – notadamente nos Estados Unidos – transformaram o construtivismo em uma ontologia muito específica, na qual foi confundido com poder da imaginação. Assim, os termos construtivismo social ou construção de realidades sociais insistiram apenas na construção social enquanto imaginação, ao invés de analisar as relações e os processos que estabelecem as condições sob as quais tal construção é possível a partir de sua própria limitação.

Aqui, para a abordagem de SPI, as duas características do construtivismo e do empiricismo são unidas e inseparáveis. O reconhecimento por parte dos autores contemporâneos de SPI de que elas não podem existir independentemente uma da outra é o que vem tornando possível uma perspectiva diferente sobre como analisar "problemas", concentrando-se em "práticas" específicas e sendo reflexivo sobre tais práticas, ao ponto de talvez des-disciplinar a pesquisa e abri-la na direção de uma interdisciplinaridade construída ao redor de uma abordagem relacional-processual.

Interdisciplinaridade, relações e práticas

Há dois pontos de partida fundamentais para uma pesquisa de SPI. Em primeiro lugar, a SPI reposiciona as RI dentro de uma tradição humanística, permitindo diálogos construtivos – e, por vezes, polêmicos – com os campos da sociologia, história, teoria política, criminologia e do direito ao redor de "problematizações" específicas. Esses diálogos exigem que cada disciplina reconheça seus próprios limites e especifique o valor relativo de seu ponto de vista, assim como os diferentes procedimentos de veridicção que emprega para sustentá-lo. Em segundo lugar, a SPI analisa conceitos ou terminologias – tais como segurança – de forma reflexiva e transversal ao investigar os limites e desconexões entre as terminologias de segurança de especialistas de RI, historiadores, sociólogos ou criminólogos e as possibilidades que são abertas pela confrontação desses diferentes corpos de conhecimento (MADSEN, 2011). A reflexividade é uma trajetória completa, que vai além das lutas contra prenoções e das discussões com uma "comunidade epistêmica" predeterminada e delimitada por uma disciplina específica. Ela supõe o engajamento com diferentes domínios de conhecimentos e autores vindos de disciplinas diferentes.

A ideia de dividir o conhecimento em níveis de análise para justificar um monopólio disciplinar de um nível específico – como as RI comumente tendem a fazer – é, nesse caso, enganosa. Todavia, diversos trabalhos mostraram como essa foi a única "solução" possível para silenciar contradições e aporias que desestabilizavam diferentes variantes da teoria da escolha racional em economia, ciência política e psicologia. A organização tribal da modernidade ao redor de uma unidade totêmica da razão certamente é um elemento a ser discutido, e não descartado em prol de um irracionalismo. Com efeito, é necessário traçar os múltiplos processos e modalidades de conhecimento que utilizam a razão ao longo de caminhos diversos, incomensuráveis e irredutíveis aos dos "contadores" e dos "economistas" (DUMONT, 1977).

Os próprios conceitos de Estado, fronteira, soberania, segurança, risco, liberdade, justiça, privacidade e democracia precisam ser discutidos de modo a entender suas gêneses e transformações (ver, por exemplo, Balibar (2003); Bartelson (1995; 2010), Bourdieu e Accardo (1993), Rancière (2006) e Walker (2009)). Nenhuma disciplina pode afirmar possuir monopólio sobre o conhecimento acerca de um deles. Tais conceitos apenas têm sentido na forma segundo a qual se relacionam a outros conceitos, pois são interdependentes dentro de uma episteme (ou formação discursiva) específica (FOUCAULT, 1971). Consequentemente, em contraste com a ciência política tradicional, o objetivo do pesquisador de SPI não é substituir o seu raciocínio por aquele dos atores de modo a antecipar o que eles farão, mas entender suas razões práticas e a historicidade de suas ações. Isso deveria eliminar a falsa distinção entre níveis (homem, Estado e guerra), assim como o privilégio do Estado e do sistema interestatal sobre a ação humana (compare o trabalho de Walker (2009) com as simplificações de Waltz (1954)). Tal formação discursiva só faz, ela mesma, sentido em sua relação com as práticas que tais conceitos envolvem e ignoram ou excluem.

Seja por meio da investigação da gênese social desses conceitos e de sua emergência institucional, ou de uma genealogia revelando a mudança de seus significados e de suas relações com outros conceitos ao longo do tempo, autores nessas linhas assumem uma posição crítica que questiona o senso comum e o conhecimento disciplinar, ao invés de se basear neles. Tal crítica começa com a discussão da relevância de subdisciplinas especializadas tais como as RI ou os estudos de segurança. Esses domínios de conhecimento deveriam ser engajados em um diálogo (ainda que difícil) com outras disciplinas que utilizam as mesmas terminologias para descrever outras práticas ou que descrevem as mesmas práticas por termos opostos.

A característica comum a toda a pesquisa em SPI é a postura reflexiva que leva a um distanciamento das narrativas filosóficas liberais e iliberais do pensamento moderno ocidental. Com efeito, a SPI recusa-se a aceitar que tais narrativas apresentam uma "verdade" sobre o homem, o Estado e a guerra, assim como as muitas outras práticas que constituem a política internacional. Ao contrário, considera-as mitos e dogmas, e, portanto, volta-se a analisá-las enquanto tais. Consequentemente, a pesquisa deve ser informada por uma atitude antropológica – analisando a crença de uma cultura específica sobre sua própria universalidade e os benefícios associados a tal aparência de universalidade. Tal posição, que já informou diversos estudos pós-coloniais e abordagens feministas, precisa ser colocada à frente da agenda da SPI (NEUMANN; SENDING, 2010; BARKAWI; BRIGHTON, 2011; JABRI, 2012).

Do ponto de vista da SPI, conceitos têm significado apenas em relação a determinados contextos localizados (espacial e temporalmente) e apenas quando entendidos como emergindo em relação a práticas específicas, elas mesmas moldadas pelo poder e pela política (VEYNE, 1984). Assim, o construtivismo aqui defendido é derivado dessa postura reflexiva em relação às práticas dos atores e às suas variações, distinções, diferenças e heterogeneidades. Fazer isso certamente não é reverter ao positivismo, nem abandonar a teoria ou qualquer tentativa de generalização; é, porém, necessariamente derivar a pesquisa do estudo de práticas específicas. Conforme Bourdieu (1988, p. 775), "a teoria sem pesquisa empírica é vazia, a pesquisa empírica sem teoria é cega". Ser reflexivo sobre dados empíricos não equivale a aceitar as escolhas filosóficas e epistêmicas de autores específicos.

A reflexividade opõe-se a qualquer dogma, e seu objeto é a análise do que os atores em universos sociais diversos estão de fato "fazendo".

O ponto de partida para a pesquisa é, portanto, o estudo das práticas: o que os atores fazem e o que eles pensam estar fazendo (THÉVENOT apud SCHATZKI et al., 2001). Tal lógica resulta em uma agenda de pesquisa bastante diferente da "ciência" política tradicional. Conforme apontado por um autor, é preciso "ir até a varanda": conhecer os atores nas ruas, questioná-los e respeitar sua lógica e raciocínio quando de volta à poltrona e ao computador (ECKL, 2008). O pesquisador de poltrona de Relações Internacionais, olhando para o mundo a partir de sua tela como uma criatura divina capaz de ver simultaneamente todas as facetas do mundo, precisa desaparecer. Seu ego e vontade de subsumir o mundo em uma metanarrativa merecem apenas ironia. A reflexividade deve envolver um esforço em explicar a lógica dos autores e os aspectos discursivos e materiais de práticas específicas (BIGO; WALKER, 2007). Conforme Schatzki et al. (2001, p. 10) sugerem, "falar em práticas é retratar a linguagem como uma atividade discursiva em oposição às concepções estruturalistas, semióticas e pós-estruturalistas da linguagem enquanto estrutura, sistema ou discurso abstrato". Com esse movimento, a SPI diferencia-se de uma análise em termos de discurso abstrato derivada da linguística geral e/ou em termos da performatividade dos locutores e do papel das audiências. Isso não é dizer que as teorias desenvolvidas por Austin com relação aos atos de linguagem são irrelevantes, mas atentar para como essas teorias precisam ser ampliadas e sociologizadas por meio de uma pesquisa das condições de felicidade localizadas além da linguagem, abdicando da insistência em um projeto de linguística geral como ciência hegemônica.

Ao invés de olhar para o discurso em abstrato, a atividade discursiva enfatiza a sociologia das relações entre atores em uma formação discursiva específica a um universo determinado e localizado espacial e temporalmente, recusa a busca pela origem em uma terminologia ou conceito como se estes tivessem vida própria e critica a dicotomia criada por locução e audiência, que reproduz a antinomia ativo-passivo e privilegia um momento de decisão – associado à aceitação por parte da audiência – a ser capturado. Inspirada parcialmente pelos conceitos de Michel Foucault de formação discursiva e de episteme, a pesquisa permanentemente analisa as conexões entre uma terminologiaea rede de outras terminologias que lheé associada em um contexto semântico específico. Ademais, para além do vocabulário e dos efeitos retóricos, atenta para o modo de pensamento, as racionalidades em jogo, os quadros de entendimento e a autoridade dos porta-vozes engajados na atividade discursiva, especialmente naqueles campos em que competições emergem entre diferentes detentores de autoridade (fortemente correlacionados a ambientes públicos, mas não restritos a eles).

É aqui que a ênfase de Pierre Bourdieu na mágica do ministério realizada pelos porta-vozes é central e reintroduz a questão da dominação na atividade discursiva que, por vezes, a abordagem foucaultiana deixa subexplorada. Com efeito, Bourdieu opõe-se a certas perspectivas baseadas em estratégias e sujeitos anônimos, mantendo a prioridade das relações sobre o sujeito e o ator, vistos como efeitos terminais da própria relação. Insiste, ademais, na forma pela qual uma doxa é constituída por todos por meio de lutas entre ortodoxia e heterodoxia. Explica por que os atores sempre buscam reinventar seu pertencimento a domínios distintos de conhecimento e atividades, e reagem fortemente à perspectiva relacional que mostra como são apenas parte de um fluxo (RESCHER, 1995). Bourdieu enfatiza mais especificamente o papel de um pensamento de Estado (pensée d'État) nas formações discursivas comumente conectadas a universos específicos (direito, ciência, religião, economia, academia e profissões que afirmam ser especialistas nesses âmbitos). A distinção entre linguagem ou discurso, de um lado, e práticas, de outro, é, portanto, rejeitada como uma falsa dicotomia. Atividades discursivas são práticas que precisam ser estudadas no campo em que emergem e circulam, campo que é tanto campo de luta quanto campo magnético.

É apenas por meio da investigação das práticas institucionais de categorização e das competições acerca da definição das fronteiras que o regime prático de justificação emergindo dessas atividades pode ser entendido e que as tecnologias que sustentam a materialidade das práticas podem ser analisadas. Conforme explicado por Bernard Lahire, isso significa que o real, em sua constituição sócio-histórica, existe independentemente dos acadêmicos que falam sobre ele. Sua materialidade resiste à sua própria construção linguística e social; ao mesmo tempo, as teorizações que buscam interpretá-lo são sempre construções que dependem de interesses em conhecimento, escalas de observação, temporalidades em jogo e lutas de poder. O real pode ser descoberto, mas cada descoberta depende de uma teorização, tendo, portanto, por necessidade, um elemento de arbitrariedade (LAHIRE, 2012, p. 15).

Basta afirmar, aqui, que a SPI é desconstrucionista, pós-positivista e imbricada em um construtivismo sociológico (BERGER; LUCKMANN, 1966; BOURDIEU, 1996; BIGO; WALKER, 2007). Assim, diferencia-se tanto das simplificações da teoria da escolha racional quanto da primazia das normas desenvolvidas pelas formas idealistas de construtivismo, incluindo aquelas enfatizando o papel da linguagem, dos atos de fala e das condições de recepção. Portanto, a SPI utiliza uma abordagem relacional para explorar a lógica e as práticas dos atores, rejeitando as falsas oposições entre teoria geral e pesquisa empírica, discurso abstrato e materialismo real que dominam grande parte da teorização contemporânea em Relações Internacionais.

Ao invés de opor sociedade e indivíduos, estrutura e agência, linguagem e matéria, a SPI propõe uma versão relacional da "sociedade de indivíduos" ampliada em termos de cadeias transversais de interdependência entre sociedades, assim como uma perspectiva processual de práticas emergentes e transformativas (o que inclui discursos como práticas). Tal perspectiva visa capturar o aspecto coletivo de agentes individuais – eles pertencem sempre a uma série de universos ou campos sociais específicos – e a dimensão individual da mudança e da incerteza incorporada no habitus dos agentes e nas razões práticas dadas para suas ações (ELIAS; ETORÉ-LORTHOLARY, 1991). Isso leva a um foco em práticas imanentes (isto é, habituais, impensadas), em vez de escolhas racionais como ponto de partida para a análise (BIGO; MADSEN, 2011) e um foco em regimes práticos de justificação como práticas discursivas, ou de uma abordagem em termos de reação de audiência a atos de falas ou enunciações (BOLTANSKI; THEVENOT, 2006).

O fundamental é, portanto, seguir e traçar a cascata de ações de atores humanos e institucionais, sua relevância e coincidência, as razões imanentes e os rastros deixados em espaços diferentes, assim como o escopo das consequências ou co-ocorrências de eventos diferentes. O que importa são os atores (seres humanos) ou os actantes (seres humanos em relação com objetos) (LATOUR; LEPINAY, 2008). Seu passado corporificado e seu contexto presente de ação são os elementos a serem pesquisados para entender por que os agentes agem como agem e pensam como pensam (LAHIRE, 2012, p. 12). O passado corporificado foi, por vezes, denominado de disposições, habitus ou competências. O contexto presente foi analisado como o social em formação, dando ênfase à sua fragilidade e especificidade. É a partir da abordagem processual e relacional da emergência do social em loci específicos, da constituição de mundos sociais, de campos específicos, que os rastros deixados por essas ações podem ser seguidos, reconstruídos, traduzidos e, por vezes, entendidos. Nesse entendimento de SPI, como já indicado aqui, os atores são menos indivíduos do que "divíduos", uma vez que suas relações são mais importantes do que eles mesmos – relações que devem incluir os objetos, o mundo material.

Não obstante, a SPI contrapõe-se a uma perspectiva estruturalista ou funcionalista, uma vez que o elemento fundamental da análise são as relações entre atores e não uma estrutura predeterminada ou a "vibração" do próprio mundo. Analisar a emergência e a estabilização do social é seguir relações, quaisquer que sejam suas escalas. Instituições importam, mas apenas existem por meio das relações instituídas pelas práticas dos atores. Se os atores não agem, as instituições morrem; da mesma forma, objetos não são ativados por conta própria. A sociedade é uma sociedade de indivíduos, não um nível de análise diferente. O mesmo vale para o Estado: este não é um ator, mas sim um campo de ações. O internacional, nessa perspectiva, não é uma esfera de ação específica separada das demais (internas, sociais), mas o nome dado à investigação de um entendimento mais transversal de sociedades de indivíduos em que pessoas, por meio de processos de conectividade e relações de distinção, aprendem a viver juntas a despeito de serem organizadas separadamente em termos de solidariedade (nacional, territorial, profissional).

Em conclusão a esta seção, minha interpretação de uma abordagem de sociologia política internacional privilegia uma análise das cadeias de interdependências entre atores, dando prioridade às suas relações, processos e trajetórias históricas ao invés de pretensas identidades fixas. A noção de mudança permanente, de fluxo, permite questionar a reprodução da ordem, das identidades e das fronteiras ao analisar quais formas de redes, de mundos (profissionais), de sociedades (nacionais ou transnacionais), desenvolvem características centrípetas e atraem os atores ao redor de questões específicas, criando custos de entrada para aqueles que quiserem participar em estágios subsequentes. É isso que chamei de campo, ajustando o conceito de Pierre Bourdieu, que definiu um campo enquanto um campo magnético, um campo de lutas e um campo de poder com relação a outros campos, mas que talvez os tenha conectado rápido demais à formação do Estado como uma forma de estabilização para a troca de diferentes tipos de capital. Certamente, nem todos os diferentes mundos que constituem as relações sociais são campos, como apontou Bernard Lahire. As especificidades das práticas não podem ser homogeneizadas sob o rótulo do social tomado como entidade preexistente.

As conectividades e rupturas das redes são repentinas e incertas. Todavia, algumas redes são estáveis, rotinizadas, especialmente quando envolvem instituições e quando porta-vozes precisam defender suas posições. Essas redes estabilizadas, quando desenvolvem certa topologia marcada por efeitos centrípetos, tornam-se, a meu ver, campos. As fronteiras desses campos se fortalecem gradualmente e verticalizam os elementos rizomáticos de redes e mundos cotidianos (por exemplo, a família); elas concentram a circulação de relações de poder. Não é impossível, portanto, entender o processo pelo qual uma rede se torna um campo e o impacto dessa transformação sobre os atores.

As fronteiras dos campos são lugares nos quais os rastros da passagem, da tradução, das lutas e das alianças entre atores são mais obviamente visíveis. Todavia, encontram-se sempre em um estado específico de transformação (rápido ou lento). As ações dos atores, dos actantes, não são decisões, vontades de poder ou capacidades de reformular regras, elas seguem trajetórias prévias e inovam dentro de um repertório de ações à disposição. A ideia de fragilidade e espontaneidade do presente precisa estar no centro da descrição dos campos, ao mesmo tempo em que é constantemente relativizada conforme o presente é relacionado à incorporação de experiências passadas. O mesmo vale para o conceito de representação (enactment), que é fundamental conquanto não pressuponha o livre-arbítrio, a pura transgressão, o ato de fala livre.

Ao contrário, a investigação da gênese social das práticas estabelecendo o repertório de enunciação, de justificação das práticas discursivas, é necessária para entender quão bem incorporados na linguagem, no corpo e nas atitudes são esses momentos de ruptura e dissenso. O trabalho sociológico é, em certa medida, uma investigação, um inquérito, visando o mapeamento dessas múltiplas e heterogêneas trajetórias e de seus encontros, incertezas e perigos. É isso que caracteriza uma abordagem relacional e processual que possa se libertar dos dualismos agências versus estruturas, vontade versus influência, individualismo versus holismo. Com efeito, permite ao pesquisador ser simultaneamente empiricista e construtivista, ao levar a sério a históriaea reflexividade.O internacional, aqui, significaa ambição de descrever essas longas cadeias de interdependências entre sociedades ou campos populados por divíduos e entender suas condições de possibilidade em termos de mudança e reprodução, especialmente quando essas cadeias são transversais e atravessam as barreiras criadas pelos Estados, pelas sociedades nacionais e por suas instituições. A gênese social da consistência de suas interdependências é o ponto de partida para entender os jogos nos quais os atores estão envolvidos, as estratégias que utilizam e seus motivos para tal. É também uma forma de analisar as diferentes configurações de relações entre campos (autonomia, subordinação) e da captura de alguns mundos por campos de poder. A descrição das fronteiras dos campos em termos de diferenciação ou de des-diferenciação, hibridização, permite relacionar diferentes estados dos jogos e entender alguns ajustes dos atores e histereses dos comportamentos.

Notas

Artigo recebido em 2 de julho de 2013 e aprovado para publicação em 6 de setembro de 2013.

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  • 1
    . A International Political Sociology é, hoje, uma das maiores seções da International Studies Association (ISA). A revista acadêmica International Political Sociology, criada há cinco anos, consta entre as cinco mais importantes publicações do mundo nas áreas de Relações Internacionais e sociologia. Para mais informações, ver: <
  • 2
    . Tal concepção é próxima da definição de politização de Jacques Lagroye: "uma requalificação das mais diversas atividades sociais, requalificação esta que resulta de um arranjo prático entre agentes sociais inclinados, por múltiplas razões, a transgredir ou questionar a diferenciação entre espaços de atividades" (LAGROYE, 2003, p. 360-361). Conquanto Rancière insista mais especificamente nas lutas nas margens da política, o autor mantém a ideia de um núcleo da política ao redor da política democrática, movimento que Lagroye busca evitar. Assim, a politização ocorre tão cedo uma questão emerge na formação do social de diferentes universos e nos limites entre diferentes esferas de atividades. Incluir, como John Law, Michel Callon e Bruno Latour, objetos materiais e sua importância na formação desses universos não apaga a questão da politização; pelo contrário, complexifica-a ao politizar a questão da técnica e do papel de
    transmitor do objeto. Infelizmente, esses autores pouco abordam tal elemento, permanecendo prisioneiros de um entendimento estreito de política derivado de Talcott Parsons: política como uma "função" especial. Não obstante, Naomi Sakai certamente conectou a abordagem da translação e da politização do social de forma original ao analisar a translação como uma prática que produz diferenças a partir de incomensurabilidades (ao invés de equivalências a partir de diferenças) e a politização como uma luta para conectá-las. Logo, a politização produz linhas, limites, faixas, organizando um espaço e um tempo para o dissenso, para que heterogeneidades sejam exibidas e para que os diferentes mundos sejam diferenciados ao longo de diversos interesses em jogo. A formação do social é enredada na politização, o que explica por que esta, quando tomada enquanto prática, joga com ambiguidades e incertezas, usando metáforas, símbolos, como formas de (re)ordenamento do mundo ao seu redor e, muitas vezes, aplicando relações de poder sobre outros de modo a conduzi-los, a fazê-los participar e obedecer a tal reordenamento. Murray Edelman explicou por que acadêmicos se sentem desconfortáveis com tal definição de política, e Michel Foucault trabalhou a subjetivação e a conduta de si (
    conduct of the self) nos termos desse tipo de politização. A conexão entre a verdade e os procedimentos de veridicção esteve no centro do trabalho de Michel Foucault, assim como das reflexões de Pierre Bourdieu (1997) em
    Méditations pascaliennes.
  • *
    Artigo traduzido por Manuela Trindade Viana. E-mail:
    **
    O autor faz referência, aqui, ao título do livro de Rob Walker (2009),
    After the Globe, before the World. O jogo de palavras do título invoca o duplo significado – espacial e temporal – das palavras
    after e
    before no inglês. A primeira refere-se igualmente a "após" (depois) e "atrás de" (no sentido de buscar, tentar alcançar), e a segunda a "antes" e "diante de". A opção por manter a formulação no original deve-se ao fato de a tradução para o português perder parte desse jogo de palavras. [
    N. da T.]
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      02 Dez 2013
    • Data do Fascículo
      Jun 2013

    Histórico

    • Recebido
      02 Jul 2013
    • Aceito
      06 Set 2013
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