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Violência policial e imprensa: o caso da Favela Naval

A VIOLÊNCIA DISSEMINADA

Violência policial e imprensa: o caso da Favela Naval

Theophilos Rifiotis

Professor do Departamento de Antropologia, Coordenador do Laboratório de Estudos das Violências e da Rede Aberta de Investigação das Violências da Universidade Federal de Santa Catarina

A violência simbólica é uma violência que se exerce com a cumplicidade tácita dos que a sofrem e também, com freqüência, dos que a exercem, na medida em que uns e outros são inconscientes de exercê-la ou de sofrê-la.

P. Bourdieu

Violência é uma palavra singular. Seu uso recorrente a tornou de tal modo familiar que parece desnecessário defini-la. Ela foi transformada numa espécie de significante vazio, um artefato sempre disponível para acolher novos significados e situações. O seu campo semântico tem uma regra de formação: a constante expansão. A aparente unidade deste termo resulta de uma generalização implícita dos diversos fenômenos que ela designa sempre de modo homogeneizador e negativo.

Sabemos que o complexo "conjunto" de fenômenos que a palavra violência designa é plural nas suas formas e significados. Por esta razão, sua redução a uma forma singular e negativa pode ser entendida como expressão de uma percepção social marcada pela prevalência da atitude racional e pelo desprezo da dimensão não-racional do comportamento humano. É o discurso da modernidade, aquele dos grandes pensadores do século XIX, e sua crença que o século seguinte seria marcado pelo progresso e pela razão. Hoje, já no final do século XX, podemos afirmar que, efetivamente, ele foi marcado por um grande progresso social e tecnológico, ainda que muito desigualmente distribuído, mas também pelas chamadas Grandes Guerras Mundiais, Auschewitz e Gulag, guerras de libertação nacional, terrorismos e, mais recentemente, pela Chechenia, Libéria, Rwanda e Kosovo, e ainda pela chamada "violência urbana".

Em outros termos, violência é uma palavra ícone da modernidade em crise. Os discursos que se identificam com a modernidade têm na violência uma espécie de "parte maldita" (G. Bataille), um "resquício", um elo da corrente que nos prende ao passado. Neste tipo de discurso, violência existe como uma unidade exterior ao campo social; ela é a própria negação da sociabilidade. O mal-estar da sociedade é produto da busca de construir um mundo onde a "parte maldita" da vivência social ceda seu lugar ao pleno domínio da razão. Esta busca se confronta com um descompasso entre a visão racional e progressiva do mundo e a realidade de guerras, genocídio, crimes e agressões que se observa quotidianamente. É a perplexidade do mundo moderno diante da "banalidade do mal" (H. Arendt). Por sua posição estratégica na visão de mundo moderna, os discursos sobre as violências são um questionamento à visão de mundo dominada pelo encantamento com a racionalidade. Portanto, consideramos que estes discursos são um ponto de apoio sobre o qual se movem novos significados da vida social, e seu estudo é fundamental para a compreensão do tempo presente.

Assim, podemos dizer que os discursos da modernidade se mostram insatisfatórios para a significação do mundo contemporâneo. Faz-se portanto necessária uma revisão dos nossos conceitos e práticas no campo das violências. Esta revisão conceitual nos permitirá abrir nossas análises para além das fronteiras atuais. O tempo presente não se reduz à dimensão racional, mas deve incluir os processos de subjetivação, a dimensão simbólica dos comportamentos sociais.

O esboço deste quadro referencial estaria incompleto sem destacarmos que ele não deve de modo algum ser confundido com uma esteticização das violências. Ao contrário, consideramos importante esta temática exatamente por compartilharmos a indignação, e procuramos com nosso estudo contribuir para a compreensão destes fenômenos na sua especificidade e na busca de meios alternativos de ação. Porém, entendemos que se faz necessário romper o círculo das explicações racionalizantes que têm como meta a conquista de um novo mundo, a construção de uma sociedade utópica. Devemos deixar de lado a "ética do herói" — que crê tudo poder realizar — e a sua obsessão pelo poder, pois se trata, segundo K. Popper, de um "racionalismo utópico", que prefere a realização de bens abstratos ao trabalho pela eliminação de males concretos.1 1 . Popper (1994:387) defendeu este ponto de vista numa conferência proferida em 1947 na qual criticava o apelo do utopismo, e afirmou: "Estou consciente que (...) a nova Idade da Violência inaugurada com as Grandes Guerras não chegou ao fim."

Acreditamos que esta introdução se faz necessária porque ela sublinha aspectos importantes no campo de estudos das violências ainda pouco desenvolvidos na literatura especializada. Por esta razão, iniciamos este artigo com a descrição dos fundamentos da linha de pesquisa em que temos trabalhado. Nosso lugar de estudo tem como ponto de partida a contribuição da antropologia para os estudos na área da segurança e da justiça, e a diferenciação de três tipos de discursos que têm sido assimilados: o discurso contra a violência, o discurso analítico e o discurso da própria violência, ou seja, a violência como uma linguagem. Caracterizamos — provisoriamente — esta linha de pesquisa como "aceitabilidade da violência" (Rifiotis, 1997 e 1998).

O CASO DA FAVELA NAVAL

Concretamente, neste artigo analisamos os discursos sobre a "violência policial" produzidos pela imprensa escrita sobre o chamado caso da Favela Naval — localizada no Município de Diadema, em São Paulo. Conscientes da importância da problemática da "violência policial" para o processo de consolidação da democracia no Brasil e do importante papel da mídia na denúncia e divulgação destes casos, realizamos um estudo sobre matérias publicadas nos jornais Folha de S.Paulo (FSP) e O Estado de S. Paulo (OESP),2 2 . Iniciamos um trabalho comparativo no qual estudamos as notícias dos "mesmos acontecimentos" relatadas em diferentes locais, examinando a estrutura semântica e estilística locais, em como as macroestruturas gerais dos artigos, conforme sugerido por Van Djick (1996). A coleta e organização deste material foram realizadas com a colaboração de Daine Roman, à qual expressamos aqui o nosso agradecimento. Uma primeira versão deste trabalho foi apresentada na II Reunión de Antropologia del Mercosur (Piriápolis, 1997). após a divulgação do caso pela Rede Globo de Televisão, no dia 31 de março de 1997.

Em muitos sentidos, o caso da Favela Naval é um dossiê aberto. Embora não tenha sido responsável direto por eventos que o sucederam no tempo, o caso da Favela Naval guarda sobre eles um valor emblemático. Nos dias que sucederam imediatamente sua divulgação, importantes propostas em andamento foram concretizadas. No dia 3 de abril, o Senado aprovou em regime de urgência um projeto que tramitava desde agosto de 1994, tipificando o crime de tortura. No dia seguinte, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara aprovou a emenda consti-

tucional que federaliza os crimes contra os direitos humanos. O Presidente da República sancionou a lei que tipifica o crime de tortura e o torna inafiançável no dia 6 de abril. A criação da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, anunciada desde março e prevista para 13 de maio, foi antecipada também para o mesmo dia. Imediatamente após sua criação, a Secretaria Nacional de Direitos Humanos anunciou a criação de um grupo para propor mudanças na polícia e a abertura do processo de discussão sobre a unificação das polícias militar e civil.3 3 . A Secretaria Nacional de Direitos Humanos vem desempenhando um papel fundamental no processo de promoção e garantia da cidadania no Brasil, e tem como um dos seus objetivos justamente atuar contra a "violência policial". Com a sua criação, os direitos humanos passaram a ser uma questão de Secretaria de Estado, o que possibilitou implementar medidas concretas de ação neste campo, basicamente configuradas no Programa Nacional dos Direitos Humanos. Iniciou-se um ciclo de palestras e seminários que percorreu todo o país, cuja pauta era a unificação das polícias, o policiamento comunitário, os direitos humanos e a implantação do Programa Nacional dos Direitos Humanos. A abertura das polícias militares, que já vinha se esboçando em iniciativas locais, se deu a partir daquele momento em debates públicos, nos quais a temática dos direitos humanos ganhou uma conotação mais positiva e propositiva. Porém, a situação é extremamente complexa, e não se pode esquecer que o caso da Favela Naval foi seguido da divulgação no dia 7 de abril — também pela televisão — de um outro vídeo sobre violência policial que teve lugar na Cidade de Deus, no Estado do Rio de Janeiro. No final de julho, ocorreu um fenômeno da maior importância na área de segurança pública: os movimentos grevistas nas polícias militares, cujo estudo específico é da maior importância.

Por diversos caminhos, o ano de 1997 tornou-se um marco na área de segurança e justiça no Brasil. No que se refere às polícias militares, várias questões vieram à tona: reivindicação salarial e a jornada de trabalho extra na segurança privada, vinculação como força auxiliar do Exército, falta de treinamento e armamento adequados, questionamento da Justiça Militar, entre outros. Havia uma imagem a mudar, uma nova imagem por construir. A preocupação institucional com as cobranças quanto ao desempenho cedeu lugar a um diálogo com os policiais enquanto categoria profissional, e não como abstratos guardiães da segurança pública. A figura do policial aparece socialmente como um profissional, seus problemas financeiros, sua vida quotidiana, e com ele o problema da produção da segurança pública generaliza-se.

Os avanços institucionais no campo da segurança pública, conquistados nestes últimos anos no Brasil, são visíveis. Ainda há muito a ser feito para que as mudanças que vêm sendo implementadas possam ser aprofundadas e se tornem duradouras. Portanto, considerando o papel da mídia neste processo, e o fato de que ela — sem ser homogênea — 4 4 . Entendemos que o jornal não é simples tradutor de lutas sociais, mas um dos meios através dos quais se travam estas lutas. Discutimos a diferenciação interna nos jornais em relação à chamada página policial num trabalho realizado a partir de entrevistas com repórteres policiais (Rifiotis et alii, 1999). é um espaço onde estas lutas são travadas, e não apenas o seu resultado, interessamo-nos em estudar o modo como a denúncia de casos de "violência policial" é apresentada na imprensa, procurando identificar o leitor que ela projeta nos seus textos e com o qual ela dialoga diariamente através das suas páginas.

COOPERAÇÃO TEXTUAL E O LEITOR-MODELO

A mídia é amplamente reconhecida como um elemento estratégico na produção simbólica das violências, porém ainda é pouco estudada neste particular. Os estudos geralmente utilizam os textos para ilustrar argumentos da sua análise conjuntural, e aqueles que se voltam para dentro da imprensa concentram-se sobre o conteúdo das mensagens divulgadas — raramente sobre as condições de produção das notícias, e quase nunca sobre a sua circulação (Thompson, 1998:20). É exatamente este ponto que vamos estudar neste artigo, voltando-nos para o estudo da recepção dos textos.

Sabemos que a maior força da imprensa é estar quotidianamente presente, e é este o seu calcanhar de Aquiles. O modo de produção das notícias é marcado pelo limite do tempo. Não apenas pela constante busca do "furo", mas pela necessidade imperativa de produzir diariamente uma notícia. Sem o tempo necessário, e por vezes sem o interesse, não há como transformar informações em notícias que reconstituam os sistemas de relações em "fatos" intelegíveis — e este é certamente um desafio permanente no jornalismo.

Dadas as circunstâncias específicas, o caso da Favela Naval colocou a imprensa escrita numa situação de extrema falta de tempo. As matérias foram produzidas à noite, a partir da transmissão do Jornal Nacional, para circularem na manhã do dia seguinte, 1º de abril de 1997. As conseqüências deste limite evidenciam-se à primeira leitura do material publicado. Porém, é mais interessante imaginar a imensa capacidade intelectual e de articulação mobilizada pelos jornalistas para que o leitor, impactado pelas imagens do Jornal Nacional, ou por comentários de terceiros, pudesse logo cedo no dia seguinte ter informações para refletir sobre o caso.

A extrema falta de tempo para averiguar os fatos, consultar documentos, colher depoimentos e analisar informações com que foram confrontados os jornalistas é amplamente favorável para o objetivo da nossa pesquisa. Este fator reflete-se na linguagem direta e nas lacunas de informações que são por vezes preenchidas com juízos, pressupostos, avaliações. Este conjunto, digamos, lacunar define-se a partir de um diálogo imaginado do jornalista com o leitor. Em outros termos, ele nos permite refletir sobre o universo de valores do leitor pressuposto pela imprensa e sua maneira de pensar a "violência policial".

O material selecionado para este artigo foi analisado a partir do modelo teórico-metodológico desenvolvido por Umberto Eco (1986), chamado "cooperação textual". Nesta abordagem, o texto é considerado como uma "máquina preguiçosa", cheia de não-ditos que apelam à contribuição do leitor, o qual está previsto no texto através de uma imagem do leitor-modelo. Para Umberto Eco, o texto é repleto de não-ditos, ou seja, sem presença na superfície textual, e que devem ter seu conteúdo atualizado: "(...) o texto postula a cooperação do leitor como condição própria da atualização. Podemos dizer melhor que o texto é um produto cujo destino interpretativo deve fazer parte do próprio mecanismo gerativo" (Eco, 1986:39).

Assim, na produção de um determinado texto, o autor pressupõe o leitor-modelo, mas também o constrói, instituindo sua competência. Em outros termos, a interpretação situa-se entre a estratégia do autor e a resposta do leitor-modelo. Não se trata de um exercício de onisciência do autor-empírico, mas de um complexo exercício de diálogo entre a escrita e a leitura. Afinal, mesmo que o leitor empírico não corresponda às expectativas do autor, na sua leitura ele idealiza também o autor e o leitor que teria procurado construir na sua escrita. Em resumo, o leitor-modelo é um interlocutor hipotético que mediatiza a comunicação entre a produção das notícias e a sua leitura.

Para que se possa melhor avaliar a metodologia aplicada neste artigo, lembramos esquematicamente que o texto tem dois grandes campos: manifestação linear e conteúdo atualizado. No campo da expressão, manifestação linear do texto, existem os códigos (dicionário de base, regras de co-referência, seleções contextuais e circunstanciais, encenações ou frames, hipercodificação ideológica) e as circunstâncias de enunciação, que o autor compartilha com o leitor-modelo para produzir a atualização do conteúdo. O conteúdo atualizado, por sua vez, é organizado em diferentes níveis de estruturas (narrativas, discursivas, actanciais e ideológicas), que não serão abordadas neste artigo.5 5 . Na realidade, o modelo de Umberto Eco refere-se particularmente ao texto narrativo, que se diferencia da forma "notícia". Limitamos nosso trabalho ao domínio do leitor-modelo, que pode ser identificado a partir dos elementos dados pela manifestação linear do texto. Será através delas que se concretizarão as operações realizadas pelo leitor para individualizar as isotopias do texto, atualizando seu conteúdo.

No nosso trabalho limitamo-nos à identificação dos elementos relativos à manifestação linear do texto (códigos e circunstâncias de enunciação), ou seja, a uma espécie de enciclopédia semântica à qual o leitor deve referenciar-se para a produção de sentido prevista no texto. Concentramo-nos na identificação do dicionário de base, regras de co-referência, hipercodificação ideológica, frames e as circunstâncias de enunciação. Através desta identificação procuramos caracterizar o leitor-modelo das notícias do caso Favela Naval nos jornais FSP e OESP.

MANIFESTAÇÃO LINEAR DOS TEXTOS

Iniciamos a apresentação da nossa análise através de dois quadros sinópticos das matérias publicadas na Folha de S.Paulo e no Estado de S. Paulo que são objeto deste trabalho. Estes quadros foram elaborados a partir da redução das matérias em forma de títulos ou breves frases que representam as isotopias discursivas, ou seja, os pontos de investimento semântico dos textos. A partir destas isotopias são construídas as macroproposições dos textos que estão na base da cooperação textual e, portanto, do leitor-modelo destas notícias, que analisamos na seqüência da nossa exposição.

A leitura dos quadros sinópticos permite constatar que as notícias são textos assertivos cuja lógica de exposição não segue a ordem cronológica dos fatos. A leitura atenta da manifestação linear do texto das notícias revela partes sem elos de ligação com as demais, evidenciando-se as lacunas que pressupõem a cooperação do leitor e que são complementadas através de títulos e leads, fotos, legendas ou gráficos distribuídos em cada página do jornal. Assim, a coerência entre esses enunciados e a ordem dos fatos apresenta-se como produto de informações descontínuas distribuídas no texto. É no ato da leitura que se dá a articulação destes elementos, produzindo-se a representação geral da notícia. Não se trata absolutamente de um mecanismo falho, mas de um dispositivo discursivo cujo objetivo está integrado à prática quotidiana de leitura de jornais: permitir a leitura através de pontos selecionados do texto.

O discurso da imprensa escrita segue, portanto, uma lógica não cronológica, mas hierárquica, de tal modo que o que vem primeiro é o mais importante (Van Djick, 1996:293). Deste modo, facilitam-se também a leitura e a compreensão do texto, pois tudo se passa como se ao ler a notícia o leitor já estivesse de posse da macro-estrutura da qual depende o sentido do texto. O leitor avalia de forma diferenciada os títulos, subtítulos, fotos, legendas, etc.; sabe por experiência que deve procurar estabelecer uma ordem significativa, pois cada categoria presente no texto necessita do conteúdo geral para ganhar um sentido específico, e está diretamente relacionada com o conjunto de valores e juízos articulados na matéria, que organizam o processo de leitura, compreensão e (re)produção do discurso jornalístico (Van Djick, 1996:6).

QUADRO 1

Folha de S.Paulo

(matérias sobre caso Favela Naval, 01/abril/1997)

Título: Vídeo de tortura e morte leva PMs à prisão

(Filme de cinegrafista amador mostra policiais espancando e matando conferente em favela de Diadema/SP)

  • Dez policiais militares presos desde quarta-feira por assassinato, tortura, agressões e extorsões praticadas em Diadema [Grande São Paulo].

  • Prova é uma fita de vídeo, cujas imagens foram mostradas no Jornal Nacional. Gravações feitas na primeira semana de março. Fita foi entregue há uma semana ao Procurador Blat e a um capitão do 24º Batalhão da PM. Seis policiais estavam em investigação por causa da morte de Mário José Josino: "O espancamento e morte de Josino foi (?) filmado."

  • Explica a seqüência do homicídio. "Josino morreu com um tiro na nuca."

  • No dia da morte duas pessoas que estavam com ele reconheceram seis PMs.

  • Não havia, segundo a Secretaria, ordem para que os policiais realizassem uma blitz antidrogas. Eles saíram em duplas para patrulhamento de rotina e foram para a Favela Naval por conta própria.

  • No dia seguinte à morte, um oficial (Tte. Neuton Santos Ramos) teria dito que os PMS "tinham comportamento de bom para ótimo", que nada comprovava que haviam atirado contra a vítima, a qual seria "suspeita de envolvimento com drogas". O caso havia sido registrado como "averiguação de homicídio e lesão corporal".

Título: Prisão deve ser prorrogada hoje

  • Prisão temporária deve ser decretada hoje [Os PMs estavam detidos].

  • Os policiais estão presos administrativamente e estão incomunicáveis. Esclarece que a prisão administrativa tem validade de quatro dias e que termina hoje.

  • No mesmo dia em que PMs foram presos foi expedido mandato para busca e apreensão para localizar as armas utilizadas nos dois casos mostrados no vídeo.

Título: Tortura dura 8 minutos e terminou com um tiro

(Vídeo mostra 13 pessoas sendo revistadas e espancadas, algumas sessões duraram oito minutos.)

  • "No primeiro dia, a principal agressão envolve um homem negro aparentando 30 anos, que leva tapas na cara e golpes de cassetete por cinco minutos, sem resistir." Este pessoa é levada para um local sem visibilidade para a câmara, ouvem-se gritos e disparo. Dia 5, mostra um PM contando dinheiro de um revistado que é guardado por ele. Dia 7, foi a morte de Mário José Josino, o espancamento dos que estavam no mesmo carro.

    [Fotos: 4 fotos do vídeo] (Legenda:

    Amigo do conferente Mário Josino leva golpes na sola dos pés (esq.); o grupo é liberado, mas um PM atira contra seu carro (dir.).

    [Comentários colhidos pela FSP]

  • (N. Jobim, Ministro da Justiça: imagens monstruosas e chocantes, caso isolado, governador luta pelos Direitos Humanos.)

  • (H. Bicudo, deputado federal: cenas mostradas são prova de que o projeto que leva para a Justiça comum crimes praticados por policiais militares, fora do quartel, precisa ser aprovado.)

  • (G. Andrade, presidente da OAB: cenas mostram uma aberração indescritível, fruto da certeza de impunidade. Tenho certeza que daqui há um ano eles não serão punidos.)

  • (R. Balestri, Anistia Internacional: comando da PM deve punir exemplarmente. Falta de preparo, ganham mal e são mal assistidos.)

  • (J. Lancellotti, vigário episcopal: Igreja Católica vê estas imagens com repulsa, doença na corporação PM.)

  • (L. A. Marrey, procurador geral de Justiça SP: Nenhum tipo de violência pode ser admitida, muito menos aquela praticada por agentes do Estado.)

  • (J.P. Lira, Tenente-Coronel, ex-sub-comandante da corregedoria da PM: A PM não compactua com este tipo de atitude. Eles serão punidos criminalmente e disciplinarmente. Em 40 dias eles serão expulsos da polícia. Posso garantir que na Polícia Militar não existe corporativismo nem impunidade.)

Título: Policiais vão ser expulsos da corporação

(Para comando da PM, acontecimento é um caso isolado e fere 'o orgulho e a hombridade' de toda a tropa)

  • O comando da PM informa que os dez PMs serão expulsos da corporação e provavelmente ficarão presos por "um longo período".

  • "Com certeza esse deverá ser o resultado dos IMPs", afirmou o assessor de relações públicas da PM.

  • O mesmo assessor declara também: "Tentar identificar o que leva uma pessoa a agir assim é muito difícil, pois é um problema de educação, de caráter. Não há justificativa para isso."

QUADRO 2

O Estado de S. Paulo

(matérias sobre caso Favela Naval, 01/abril/1997)

Título: Vídeo mostra PMs espancando e matando

(Dez policiais militares estão detidos pela morte de mecânico (?) em Diadema filmada por cinegrafista)

  • Faz a diferença entre "detidos" e "prisão preventiva".

  • PMs são acusados também de espancamento e tentativa de homicídio.

    [OESP utiliza indistintamente "militares" e "policiais militares"]

  • "Exibido ontem, pela Rede Globo, o vídeo provocou indignação na população e entre defensores dos direitos humanos."

    [Segue-se a informação de que os PMs são do 24º Batalhão e que organizam falsos bloqueios para extorquir moradores, motoristas e traficantes.]

  • IPM e Inquérito Policial.

  • As informações segundo informe do Comando da PM teria chegado pelo Cabo Buzetto.

  • Decisão de realizar bloqueio partiu de PMs comandados por Rambo: "Não havia nenhum oficial à frente do grupo."

  • Segue descrição das cenas mostradas no vídeo. (Foto:

    PM atira: pancadaria e extorsão.)

Título: Covas fala hoje sobre caso; cenas causam revolta

(Secretário solicita relatório ao comando da PM; "é uma atrocidade", define comerciante)

    ST Indignação

  • Leitores de OESP telefonaram para o jornal, pedem demissão do Comandante da PM, denunciam que pode acontecer com qualquer um. O promotor Blat deve acompanhar as apurações.

  • Covas vai falar hoje sobre cenas de violência policial.

  • Após ver as cenas, o Secretário pede relatório ao Comando da PM, e foi informado que há dois inquéritos em andamento sobre o caso.

  • Filme foi solicitado.

  • Descrição do vídeo, os dias, os personagens, o carro em que foi baleado o Sr. Mário José Josino.

  • Versão no 2º DP: "furaram bloqueio".

Título: Jobim diz que ação de PMs foi "monstruosa"

    ST Impunidade

  • (

    Ministro da Justiça afirma que atos não ficarão impunes; Hélio Bicudo critica processo militar.)

    [Fotos do vídeo: Pedágio, tortura e rapaz baleado.]

  • Ministro da Justiça qualificou de monstruosa a ação dos policiais, e afirma ter certeza que atos desta natureza não ficarão impunes. Lembra que governador de São Paulo e seu secretário são "defensores intransigentes dos Direitos Humanos" e que as imagens não espelham a corporação da PM/SP.

  • A violência não surpreendeu o deputado Hélio Bicudo ("acontece há dez anos, ontem e amanhã", se não forem tomadas medidas: julgamento pela Justiça comum para todos os crimes). No momento apenas os homicídios não vão mais para a Justiça Militar. O problema é que toda a investigação é feita pela própria Polícia Militar: "Isto significa que o processo vai resultar na impunidade."

  • Marta Suplicy: o crime mostra que o sistema entrou em colapso.

    [Fotos: 3 fotos do vídeo]

    (Legendas:

    Policial pega dinheiro de motorista parado no bloqueio: pedágio. Policiais batem na sola do pé e nas costas do mecânico: tortura. Depois que o carro parte, 'Rambo' atira duas vezes: rapaz é baleado.)

CIRCUNSTÂNCIAS DE ENUNCIAÇÃO

Chama-se aqui circunstâncias de enunciação um campo extratextual, porém fundamental, a partir do qual são feitas previsões que nos aproximam do texto. São estas circunstâncias que delimitam a época, a língua, a forma do enunciado, como por exemplo a jornalística, etc., o que permite distinguir certos dados de competência enciclopédica que colocam no jogo do texto.

Recuperemos em linhas gerais as circunstâncias de enunciação dos textos que apresentamos anteriormente. Eles foram publicados nos jornais FSP e OESP,6 6 . Não foram consideradas diferenças entre as linhas editoriais entre FSP e OESP. a partir da divulgação no Jornal Nacional da TV Globo de imagens mostrando cenas de abuso de autoridade, tortura, "extorsão"7 7 . O crime de extorsão não foi comprovado, apesar das cenas divulgadas naquela emissão. Durante as investigações posteriormente divulgadas mostrou-se que na íntegra do vídeo o policial militar que pega do dinheiro da carteira de uma das vítimas, devolve-o numa cena que havia sido cortada pela edição do Jornal Nacional. e morte envolvendo policiais militares do 24º Batalhão da Polícia Militar de São Paulo, em Diadema.

Era 31 de março 1997. Já era noite e muitos estavam em suas casas. O Jornal Nacional da TV Globo começava como sempre, sem novidades, apenas "notícias"... No entanto, naquela noite ele nos colocaria diante de um fato que certamente ficou registrado nas discussões da agenda política e social do processo de construção da democracia no Brasil, assim como nos anais da história da televisão e do jornalismo no Brasil.8 8 . Villas-Boas Corrêa afirma: "No gênero, é a maior reportagem das quase cinco décadas da crônica da televisão brasileira" (Jornal do Brasil, 02/04/97, p.11).

As conhecidas notícias de "violência" cederam lugar à "violência policial". Seu maior aliado foram as imagens que transformaram o que talvez se inscrevesse como mais um caso de uma série de denúncias numa espécie de "hiper-realidade". Dos aparelhos de televisão, como num filme, vimos e ouvimos cenas e sons da maior nitidez, em que policiais militares de São Paulo torturavam e maltratavam cidadãos que não pareciam esboçar a menor reação, e que foram alvo de disparos que causaram a morte de um deles.

A força daquelas imagens era tamanha que embora os dias e as horas em que foram gravadas estivessem registrados no vídeo, apontando para os primeiros dias de março, elas pareciam fora de tempo e de lugar, ganhavam uma estonteante atualidade. Este aparente deslocamento entre passado e presente fazia com que as imagens se confundissem com os "fantasmas" que povoam a nossa percepção do abuso de poder e da ação dos agentes de segurança no Brasil. Assim, naquela edição do Jornal Nacional tudo parecia confundir-se. A tensão das cenas traía a nossa atenção: mostravam-se no dia 31 de março cenas gravadas nos dias 3, 5, 6 e 7 daquele mês. As cenas repetidas na televisão pareciam estar em continuum com tantas outras cenas reais e imaginadas, tomando de assalto nossa imaginação e nossas emoções, transformando o vídeo em atos mostrados "ao vivo", como se costuma dizer.

Assim, a divulgação no noticiário do "horário nobre" da Rede Globo de uma fita de vídeo mostrando cenas de abuso de autoridade, tortura, humilhação e de um homicídio cometido por agentes da Polícia Militar de São Paulo gerou uma série de repercussões nos dias seguintes, cujos efeitos ainda se fazem sentir diretamente na discussão atual sobre as estruturas policiais e os direitos humanos no Brasil.

Em outras palavras, os atos realizados pelos policiais militares de São Paulo, que foram gravados e divulgados pela televisão, parecem ter-se tornado auto-suficientes. Mostrar as imagens na televisão não foi apenas, digamos, re-apresentar, mas criar um fato novo, completo em si mesmo. A revista Veja publicou uma matéria em 9 de abril 1997, com o título "Olhar escondido", dedicada exclusivamente ao vídeo e ao cinegrafista, revelando que uma semana antes da divulgação equipes da Rede Globo começaram a tomar depoimentos das vítimas e dos moradores da Favela Naval, inclusive da viúva de Mário José Josino. Ela não sabia que junto com seu depoimento seriam exibidas as cenas da morte do seu marido, e ficou chocada ao ver as imagens na TV. Realmente, o registro do fato cria uma visão global de episódios ocorridos em diferentes dias e nos coloca numa posição superior, aquela de observador onisciente e onipresente. "Parecia 1984", afirmou posteriormente um dos ex-policiais implicados no caso ao ver as cenas gravadas, para expressar a preocupação de estar sendo observado em ação, o vigia vigia-

do, o policial policiado.

The day after. 1º de abril. Não havia o que desmentir diante de imagens. Todo o país estava impactado pelas cenas de "violência de policial" transmitidas na noite anterior. Os jornais do dia seguinte não poderiam deixar de comentar o "furo" jornalístico da TV Globo. A imprensa teve que rever sua pauta e introduzir, com a agilidade possível, matérias sobre o vídeo apresentado após o Jornal Nacional. Tudo estava na fita: data e hora, o local, os envolvidos já identificados, as agressões, a irregularidade da ação policial. As imagens tudo mostravam e foram amplamente utilizadas pela imprensa escrita naquela noite de 31 de março para criar as notícias para o jornal da manhã seguinte. A TV assumiu uma centralidade sem igual neste caso: ela antecipou o jornal do dia seguinte, e suas imagens ocuparam um lugar privilegiado das notícias que se seguiram e que são objeto de análise neste texto.9 9 . Umberto Eco refere-se à posição privilegiada que a televisão vem assumindo, afirmando que na Itália ela dita, por assim dizer, a pauta dos jornais (Eco, 1997:70).

Como veremos na caracterização do leitor-modelo, as circunstâncias de enunciação relativas à sua cooperação textual não incluem a agenda política na área de segurança e justiça daquele momento. Destacamos que as cenas divulgadas pela televisão inscrevem-se num momento de grande relevância para a nossa leitura, que inclui a criação da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, do Programa Nacional de Direitos Humanos e da Lei Anti-Tortura, a discussão sobre o projeto de lei transferindo para a esfera federal os crimes contra os direitos humanos, a passagem para a justiça comum dos crimes cometidos por policiais militares, a reestruturação das polícias. Para o leitor previsto pelas matérias, nem mesmo a situação paradoxal do aumento de violações dos direitos humanos por parte das instituições de segurança entre os anos 80 e 90 no Brasil, importante para a democracia e tão tematizado nos últimos anos (Pinheiro, 1997), faz parte das circunstâncias enunciativas por ele consideradas.

O leitor-modelo dos textos analisados será, por assim dizer, surpreendido com a onda de notícias e debates que se seguiram e a significativa intensificação dos processos e ações em curso na área da promoção da cidadania, justiça e segurança. O leitor previsto nas matérias não tinha estes elementos para auxiliá-lo na sua re-significação dos fatos.

Finalmente, por tratarmos aqui da mídia, lembramos também que neste mesmo momento se dá a ampliação do espaço dedicado pelo rádio e pela televisão à temática do crime. São programas que mostram imagens gravadas durante a ação policial (militar e civil) e que têm uma audiência considerável. Uma programação que foi se tornando mais especializada a partir do sucesso do conhecido programa Aqui e Agora.

CÓDIGOS

Os códigos mobilizados pelos textos podem ser divididos em dicionário de base, hipercodificações, seleções contextuais e circunstanciais e frames, e são instrumentos semânticos pelos quais o autor provê o leitor dos elementos interpretativos necessários para que este realize a leitura. Para cada um destes elementos existem complementarmente aqueles que o autor prevê que serão mobilizados cooperativamente para construir o sentido do seu texto.

Dicionário de Base

É o vocabulário um campo com uma série de conteúdos, que leva a enfatizar ou não as unidades significativas:

- Vídeo: divulgado pelo Jornal Nacional, mostra "violência policial" e gerou questão pública, para além do IPM.

- Jornal Nacional/Rede Globo.

- Tortura, abuso de autoridade, extorsão (verificada apenas nas imagens mostradas no Jornal Nacional).

- Morte de um trabalhador (conferente, mecânico?).

- Favela/Diadema.

- Polícia Militar/falta de hierarquia, "blitz".

- Prisão (detidos, prisão administrativamente) e expulsão.

- Indignação (nas palavras dos entrevistados, mas não nas matérias).

- A estrutura da Secretaria de Segurança, com a vinculação da Polícia Militar ao secretário de Segurança e não diretamente ao Governador. O organograma da Secretaria apenas foi divulgado pelo OESP em 06/04/97. Portanto, ou ele está pressuposto ou admite-se a sua naturalização.

- Apuração interna, sem conhecimento do secretário de Segurança Pública, nem do Governador.

Regras de Co-Referência

Dão o sentido de uma expressão em relação a outras, ou melhor, completa o seu sentido através de outras expressões.

- Policial militar chamado Rambo: sem hierarquia.

- Rambo comandava a ação policial: estilo de ação do personagem dos filmes.

Hipercodificação

Elementos já ideologizados que permitem ativar uma estrutura superior de significação:

- "Classes perigosas": insistência na atividade profissional das vítimas.

- Tiro na nuca: execução.

- "Caso isolado"?

- Militar, ao invés de policial militar.

- Tentativa de homicídio de um operário.

- Prisão ao invés de detenção: prisão administrativa.

Seleções Contextuais e Circunstanciais

Apontam os limites que marcam as extensões possíveis do texto:

- Não entra na série de "violência policial".

- Não são referidas estatísticas.

- Não há referência a casos anteriores.

- Isolamento do caso, mas não necessariamente um caso isolado, mas um caso.

Frames

São aplicações enciclopédicas de uma representação semântica, o que equivale a uma estrutura de dados que serve para representar uma situação esteriotipada. Elas são como encenações previstas pelo leitor a partir dos elementos dados no texto e que o levam a fazer inferências com base no conhecimento que dispõe de outros textos semelhantes:

- Vídeo: prova visual divulgada na TV, então prisão/condenação.

- Vídeo mostrado na TV: visibilidade total, fora do âmbito da corporação e dentro de casa.

- (Implicitamente: sem prova material não haverá condenação, mas sem a divulgação na TV a prova poderia se perder. TV exige resposta coletiva, responsabilidade pública.)

- "Flagrante": se todo mundo viu, então castigo, castigo exemplar.

- Se fossem bandidos, mas trabalhadores que moravam na favela...

CARACTERIZAÇÃO DO LEITOR-MODELO

O material levantado, apesar de restrito ao primeiro dia após a denúncia apresentada no Jornal Nacional, é extremamente rico para a análise e pode ser analisado desde diferentes perspectivas. A partir dos investimentos semânticos identificados no item anterior, procuraremos caracterizar o leitor-modelo correspondente. Para orientar nossa exposição, selecionamos três temáticas para a caracterização do leitor-modelo: a imagem-acontecimento, a condenação e a "violência policial".

Imagem-Acontecimento

Dizemos que o vídeo é uma imagem-acontecimento no sentido de que o vídeo apresentado no Jornal Nacional foi elevado a uma categoria que ultrapassa a ilustração de um fato. As matérias analisadas têm como sujeito de suas reportagens o próprio vídeo. Ele revela fatos, mas também cria um acontecimento: o caso da Favela Naval. Esta é uma característica da mídia: gerar a imagem que se torna o acontecimento: "O acontecimento não existe, ele é capturado no tempo da imagem" (Jeudy, 1994:77).

No caso, a matriz articuladora do conjunto das matérias foi sem dúvida o próprio vídeo. Os fatos deixaram de ser o centro das matérias, e estas se dirigem para as imagens reproduzidas. A imagem passa ao primeiro plano, pois deixa de ser um testemunho e ganha uma outra realidade, uma dimensão a mais. É a imagem, o vídeo, no nosso caso, que circula como informação, como se fosse o alfa e o ômega do que ele mesmo foi apenas um testemunho, um registro de um ângulo, num momento, editado, etc. As matérias analisadas têm um leitor pressuposto cuja atenção está totalmente voltada para o próprio vídeo, e não para os sistemas de relações aos quais o vídeo deve a sua existência e sentido específico. O vídeo aparece como uma história atomizada, cuja origem não se explica e que a experiência de leitor ou telespectador ensina que apareceu sem explicação e desaparecerá sem solução. Descontextualizadas e despolitizadas, as imagens da mídia podem suscitar um interesse humanitário, mas nenhum envolvimento (Bourdieu, 1997:140-141).

Através das imagens, o caso ganhou visibilidade, saiu da série, tocou o telespectador. A centralidade das imagens é tão significativa que podemos afirmar que no caso da "violência policial" na Favela Naval a fita virou fato. É sobre as imagens-acontecimento que a imprensa dialoga com o seu leitor-modelo. De fato, nota-se que as matérias não fazem referência a casos anteriores, nem a estatísticas disponíveis sobre homicídios cometidos por policiais militares. Sem a imagem da "violência policial" a denúncia não se adaptaria bem à linguagem televisiva. A denúncia a partir de estatísticas ou do relato de outros casos não parece cumprir tão bem o seu papel quanto a imagem televisiva. A fita criou o fato mobilizador. Ou como na manchete de Veja de 9 de abril de 1997 (p.17) "(...) as coisas só acontecem de verdade no Brasil, quando aparecem na TV (...)". Na realidade, a fita forneceu um elemento para o desenvolvimento das matérias, pois forneceu material para a "retórica da facticidade" (Van Djick, 1996) necessária ao discurso jornalístico.

A imagem sendo o nosso contato mais próximo com os fatos torna-se uma medida para tudo. As discussões iniciais voltaram-se para a surpreendente qualidade do material, o que remetia diretamente à identidade do cinegrafista, ou melhor, à sua condição de "amador". Foi até mesmo levantada uma "possível vinculação com o narcotráfico", visando desacreditar a Polícia Militar e permitir um maior espaço de manobra para os criminosos. A qualidade de vídeo e som é impressionante e muito contribuiu para identificar os criminosos, assim como para caracterizar os crimes cometidos. Juridicamente, também houve polêmica, não apenas quanto à autenticidade das imagens, mas também quanto ao modo como foram obtidas. Averiguada sua autenticidade, ela informa objetivamente e permite conclusões que foram extremamente importantes no caso da Favela Naval, conforme mostraram os laudos dos peritos que estabeleceram exatamente o culpado pela morte de Mário José Josino. Mas nem por isso tornou-se, como se esperava, uma prova incontestável, pois durante os julgamentos dos ex-policiais, a validade das imagens foi questionada pela defesa pelo modo como foram obtidas. Sobre o vídeo, foram publicados depoimentos no dia 2 de abril com o ponto de vista das vítimas e dos seus parentes e vizinhos, que mostram sua centralidade: "Gostei de ver a verdade na TV", disse a mãe da vítima fatal, já que até a divulgação da fita acreditava-se que seu filho e amigos teriam "furado o bloqueio policial". "O processo estava morrendo quando a fita apareceu", afirmou uma das vítimas, enquanto outro entrevistado expressou-se nos seguintes termos: "Quem gravou os policiais para a TV libertou esta Favela" (FSP, 02/04/1997).

A medida, talvez a mais importante para os meios de comunicação, especialmente para a televisão, foi a potencialidade emocional das trágicas imagens. As situações mais fortes tiveram lugar entre as vítimas e seus familiares: além do seu forte envolvimento, elas próprias foram surpreendidas com a exibição do vídeo. A viúva de Mário José Josino, que havia sido entrevistada pela reportagem da Rede Globo, foi surpreendida ao ver pela televisão seu marido momentos antes de falecer. "Para a televisão, apoiada nos esquemas do mundo do espetáculo, a informação é ribalta"; por esta razão ganham prevalência as notícias quando acompanhadas de emoção, o que explica, segundo Di Franco (1998), "a prioridade de escândalos, catástrofes e violências". Foi a partir dessa mesma emoção que os jornais no dia seguinte noticiaram o caso; basta confrontar os títulos e subtítulos e a organização das páginas amplamente ilustradas com fotos realizadas a partir do vídeo — o que representa um diálogo com um leitor envolvido pela emoção produzida pelas imagens.

Infelizmente, os casos de "violência policial" não são isolados, mas seguem-se em uma série que hoje começa a ser abandonada. Naqueles mesmos dias acontecia um outro caso na Cidade de Deus (RJ), em que policiais militares do Rio de Janeiro foram filmados espancando e extorquindo, e que tem várias semelhanças com o caso da Favela Naval, principalmente o fato de ter sido divulgado através de um vídeo pelo Jornal Nacional. Há muitas características em comum nas matérias da imprensa escrita após a divulgação das imagens: centralidade do vídeo, cinegrafista amador, trabalhadores sendo espancados, a fita divulgada dia 7 de abril havia sido filmada no dia 23 de março de 1997. Até mesmo a idéia de que a situação tinha sido "armada" para se realizar um vídeo contra os policiais foi aqui também levantada.10 10 . Há especificidades que mereceriam ser exploradas no caso da Cidade de Deus, mas que estão fora dos limites deste trabalho.

A centralidade das imagens e sua capacidade de criar fatos pode ser constatada em inúmeros casos como "Assalto em Ipanema choca o país" (Jornal do Brasil, 1ª Página, 16/08/1998). Depois das fotos tiradas do vídeo vem o seguinte subtítulo: "PM mata à queima-roupa dois assaltantes da Caixa Econômica numa praça chamada Nossa Senhora da Paz." Ainda na matéria da capa: "Após a ação, o Cabo Tenório foi elogiado por pessoas que passavam no local e, à noite, no quartel, recebeu cumprimentos de colegas de corporações de outros estados." Ou ainda, apenas para citar um caso em outro contexto, no início dos anos 90 em Los Angeles (Estados Unidos), o assassinato de Rodney King, cujas imagens gravadas tiveram grande impacto. Ou ainda pela confusão entre data da divulgação e dos fatos, como na passagem seguinte publicada na FSP sobre o caso da Favela Naval: "Os PMs foram flagrados por um cinegrafista, no dia 31 de março de 97 (sic), espancando e torturando pessoas que passavam pelo local." ("Julgamento de PMs da Favela Naval é suspenso", C1, 22/07/98.)

CONDENAÇÃO

Uma segunda temática significativa para a caracterização do leitor-modelo é a relação imediata entre as cenas do vídeo e a punição. A articulação entre o vídeo e a punição evidencia o pressuposto de que se não houvesse vídeo não haveria punição. Aliás, sem o vídeo não teríamos as imagens em nossas casas e não haveria para nós o caso da Favela Naval. Em outros termos, parece-nos apontar para uma encenação prevista: contra a "violência policial" pouco ou nada se pode, a menos que se tenha uma prova divulgada publicamente, o que — por razões diversas, inclusive medo de denunciar — raramente se produz. Esta questão aponta para o medo e a desconfiança em relação aos agentes de segurança.

Portanto, poderíamos pensar que tudo se passa como se as matérias se dirigissem a um leitor para o qual seria significativo o seguinte raciocínio: vamos aproveitar para condenar aqueles que se deixaram filmar. É um mecanismo de condenação sumária, de construção de vítimas sacrificiais, pois para aqueles policiais militares não caberia defesa e se poderia condená-los, dando prova de que não se aceita tal comportamento.11 11 . O nome "Rambo" foi evocado com expressão máxima desta construção de um monstro. A capa da revista Veja na mesma semana foi a fotografia do policial fardado na capa com o título "Rambo, o torturador". Seria o uso de um mecanismo exemplar, sem uma necessária solução de continuidade. O que indica a indignação com os atos filmados, mas também um julgamento sumário, ou pelo menos uma dificuldade em vislumbrar a validade de mecanismos institucionais de controle.12 12 . No dia 03 de abril, a FSP publica uma pesquisa na qual se percebe nitidamente a força da vontade punitiva expeditiva: 13% dos entrevistados pedem a pena de morte, cerca de 25% a prisão perpétua, duas penas que não existem no Código Penal Brasileiro, e um terço prisão por muito tempo. A demissão do secretário de Segurança Pública foi pedido por 63% e a demissão do comandante da Polícia Militar por 61% (FSP, 03 abril 1997, p.1.1).

Assim, podemos afirmar que os textos analisados pressupõem um leitor para o qual a tortura e o homicídio cometidos em meio a atos de abuso de autoridade não teriam conseqüências se não fosse pelo vídeo. Assim, para o leitor-modelo a "violência policial" inscreve-se numa ordem naturalizada, quotidiana que se reproduz sem qualquer controle. Porém, o problema torna-se ainda mais grave do ponto de vista do leitor-modelo que, não fosse através do vídeo que chegou ao seu mundo privado, não teria tido contato com esta realidade. Pela TV, as imagens invadiram o último refúgio do mundo exterior, saíram do domínio da rua e entram em casa.13 13 . Entende-se aqui como válidas as conhecidas observações feitas por R. da Matta sobre os atributos destes dois espaços na cultura brasileira (Da Matta, 1985). O que torna o caso da Favela Naval um caso é a invasão do domínio reservado da vida privada da parcela da população que não vivencia quotidianamente a presença policial e os atos de arbitrariedade. A Favela Naval tornou-se um caso porque é um caso raro que sai da noite escura da rua ou da favela e entra nas casas dos segmentos médios, coloca-os como observadores daquela realidade. Porém, o caso não se torna mais um numa série, como de fato o acúmulo de casos tem mostrado, mas um caso "raro" porque sobre ele não restam dúvidas.

A pretensa satisfação anunciada pelo serviço de relações públicas da PM na noite de 31 de março, sintetizada na expulsão e condenação a um "longo período" de prisão, é uma resposta a um interlocutor suposto que deseja a punição imediata. A FSP deu particular destaque à punição, ainda que alertando seu leitor que a fita de vídeo ainda não havia sido avaliada pela perícia. Entre uma espetacularização do vídeo como imagem-acontecimento e o pronunciamento do governador Mário Covas aguardado para o dia seguinte (1º de abril), expõe-se na verdade apenas a indignação geral sobre casos de "violência policial", assim como a falta de controle sobre os agentes de segurança.

Entendemos que as matérias não discutem o problema, apenas procuram referir-se a uma espécie de "limpeza da área", como o jargão da cultura policial, ou seja, pretendem a eliminação radical e definitiva do problema da "violência policial". Isto representa uma tomada de consciência que busca a solução imediata de um problema distante em relação aos procedimentos legais, que talvez sejam entendidos como burocráticos, inúteis e mesmo a fonte dos problemas. A "monstruosidade" dos mostrados pelo vídeo parece exigir um discurso sobre a impunidade. Entende-se, portanto, que o leitor diante destes fatos exija uma atitude. Mas a espetacularização aponta para um leitor-modelo que gostaria que na manhã seguinte à divulgação do vídeo tudo estivesse resolvido, acabado. A assimilação de "detido", "prisão administrativa" com "prisão", ainda que explicada no final de uma das matérias, evidencia de forma contundente que se postula uma inviável solução imediata. A imagem que se desenha para o leitor-modelo estaria caracterizada como "autoritária", ou pelo menos ambígua.14 14 . Esta caracterização é reforçada com a noção ambígua da ação policial apontada no início deste trabalho. Aliás, é próprio da mentalidade autoritária aceitar como verdadeiras duas afirmações opostas. O que poderia ser considerado como um pensamento automático, resultando num "duplo pensamento" que G. Orwell descreveu no seu livro 1984: capacidade de manter duas crenças contraditórias e de aceitar ambas (From, 1981:35).

VIOLÊNCIA POLICIAL

As matérias estão provendo o seu leitor-modelo com o pressuposto de que se trata de um caso especial. De fato, verificada a autenticidade da fita pela perícia, o que ainda não havia sido feito, não haveria como supor a impunidade. No entanto, ela está prevista nas matérias, como nos referimos anteriormente pela idéia da condenação homogeneizadora e expeditiva. Por outro lado, independentemente de aceitar-se ou não que se trata de um "caso isolado", os textos analisados não se referem a esta proposição, pois não inscrevem o caso da Favela Naval em nenhuma série de episódios. Parece-nos que ou se pressupõe a negação generalizada da "violência policial", o que sabemos não corresponder totalmente ao entendimento de qual deva ser a atuação policial, ou fecha-se o caso nele mesmo, procurando a sua solução específica.

O leitor pressuposto nestas matérias, em primeira aproximação, parece-nos que é exigente quanto à solução a ser dada ao caso, mas mais cioso que se puna os culpados do que de refletir sobre a instituição policial ou sobre a sua própria sociedade. De fato, como têm comentado oficiais da polícia militar, e conforme observamos nos nossos contatos em Santa Catarina e na Paraíba, há uma atitude de perplexidade em face da incompreensão social como relação ao trabalho profissional do policial, sobretudo no que se refere ao uso da força e ao tipo de trabalho que implica envolver-se com o crime. Há um importante trabalho a ser feito para a mudança desta imagem, que os programas de televisão que mostram a polícia em ação não têm ajudado a manter num patamar adequado. Esta questão deve ser avaliada do ponto de vista da auto-imagem do policial, bem como da revalorização da instituição, pois entre os policiais chegou-se a se falar naquele momento em "vergonha da farda".15 15 . "Se a gente encontra com o pai na rua, é para fingir que não o conhecemos", explica a filha de um policial militar, por questão de segurança da família, medo de represália, numa reportagem sobre filhos de policiais militares intitulada "Violência de PMs faz crescer preconceito" (OESP, 10 abril 1997, G7). A matéria muito oportuna refere-se em geral ao preconceito contra o profissional das polícias militares.

Entendendo que a "violência policial" não pode ser considerada como episódio isolado, embora de modo algum generalizado e igualmente distribuído pelas diversas polícias militares do país, nos perguntamos qual a influência desta matéria ser discutida a partir de imagens que entraram pela "telinha" nas casas dos leitores de jornal. A "violência policial" saiu das ruas escuras e das proximidades das favelas e invadiu a sua vida privada, mas como espetáculo.

Assim, ao mesmo tempo em que se identifica uma rejeição genérica da polícia,16 16 . "O inimigo comum da comunidade é a polícia", como identificou Robert W. Shirley em pesquisa em favelas de Porto Alegre (Shirley, 1997:217). encontra-se uma demanda de direitos civis que exigem a ação policial eficaz. Porém, tal eficácia tem sido apropriada desigualmente na nossa sociedade, na maioria das vezes como demanda de ordem e tematizada em torno da vigilância e da repressão das "classes perigosas"; ou seja, trata-se de uma espécie de privatização da ação policial, e num campo mais amplo, da própria justiça. No entanto, os estudos mais atuais têm apontado um "(...) declínio do consenso no apoio popular às operações policiais" (Adorno e Peralva, 1997:2), embora a persistência de atuações policiais envolvendo "abuso de poder" não possa ser imputada, nos parece, exclusivamente aos agentes de segurança.17 17 . O secretário de Segurança Pública de São Paulo, por exemplo, declara que houve época em que a sociedade pedia uma polícia mais violenta (FSP, 06/04/97, p.3.3). Em certa medida, a "violência policial" pode ser entendida como uma expressão de tolerância social, ainda que decrescente.

As circunstâncias enunciativas, como vimos anteriormente, apontam para um quadro em que muitas iniciativas estavam sendo concretizadas no campo da segurança e da justiça. No entanto, as matérias não articulam este quadro com os fatos, e mesmo as referências dos depoimentos não são articuladas com a exposição contida nas matérias. O que estava sendo feito e o caso da Favela Naval parecem duas realidades diferentes.

Isto caracterizaria o leitor-modelo como uma postura autoritária e ambígua com relação à "violência policial"? Será esse leitor aquele mesmo que apóia a "violência policial" quando se trata de criminosos, que procura contratar policiais para serviços de segurança privada e lhes pede atos ilegais? O que nos interessa aqui é colocar em evidência o "aplauso errado", título de matéria da Veja, 15 de março de 1995, p.46-47, referindo-se a um cinegrafista que filmou um assaltante sendo dominado por policiais militares e, em seguida, executado. O fato ocorreu no dia 4 de março de 1995. Conforme o subtítulo da matéria: "O policial ganha elogios e quem tem que se esconder é o cinegrafista." Estas imagens também foram mostradas no Jornal Nacional, e uma pesquisa divulgada no dia seguinte pela Rádio Globo forneceu os seguintes resultados: 9% acharam que a cena mostrada na TV foi chocante demais, o restante aplaudiu o policial. "Mais da metade das cartas enviadas às redações dos jornais na semana passada [quando foi apresentado o caso] também elogiavam o gesto do policial."

A interrogação que movimenta a nossa reflexão poderia ser reduzida ao seguinte: por que a "violência policial" não é tematizada quotidianamente, ou como pode a violência ser um atributo da ação policial, a chamada "violência física legítima do Estado" e, ao mesmo tempo, um atributo questionável pelo "excesso", ou em que condições ela seria "aceitável"? A categoria "violência policial" parece exigir um fino, delicado e implícito consenso social, que faz com que ela seja percebida como pertencente à ordem natural das coisas ou repudiada com indignação.

Evidentemente, as questões levantadas acima são apenas indicativas de uma cartografia de problemas que estão sendo enfrentados de diversos modos pelos distintos segmentos da sociedade brasileira. Neste trabalho, valendo-nos de uma análise textual, procuramos contribuir para responder a uma questão que se inscreve neste pano de fundo de um modo mais pontual: por que as estatísticas de homicídio cometidos por agentes de segurança no Brasil parecem não impressionar a chamada "opinião pública".18 18 . Evitamos as controvérsias em torno da existência e do significado da noção de "opinião pública", valendo-nos da teoria de cooperação textual e do leitor modelo desenvolvidas por Eco (1986). O conceito de "leitor-modelo", que apresentamos detalhadamente no próximo item, pressupõe um modelo comunicacional de "mão-dupla" entre a imprensa e o seus leitores, ou seja, procura-se simular um diálogo entre o(s) jornalista(s) produtor(es) da matéria e o leitor. Ao contrário, mostra-se a necessidade urgente de desenvolver atividades visando a construção de valores que permitam a cada cidadão ver-se ao mesmo tempo como responsável pela produção da segurança e do seu controle.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ni el terror ni el contraterror pueden revelar su significado bajo un examen puramente cuantitativo, ya que las cifras deben ser vistas dentro de un contexto total, y éste inclue un contexto simbólico que asigna valores diferentes a formas de violencia diferentes.

E. P. Thompson

Vivemos um momento particularmente profícuo para a implementação de políticas públicas nas áreas de segurança e de justiça no Brasil. De um lado, temos tido avanços significativos na garantia e promoção dos direitos humanos, reorientações na formação e atuação das polícias militares e civis, ampliação do universo de interlocutores na área da segurança e da justiça. A criação da Secretaria Nacional de Direitos Humanos e a implementação do Programa Nacional de Direitos Humanos, bem como as diversas iniciativas das polícias militares neste campo, que assinalamos no início deste trabalho, sinalizam de modo evidente uma tendência importante para a consolidação e ampliação da cidadania no país. Este panorama positivo nos estimula a lutar pela consolidação das conquistas já alcançadas e nos deixa esperançosos de que possamos avançar ainda mais.

É no sentido de avançar nossa compreensão sobre os diversos tipos de violências e, por conseguinte, de ampliar nossa capacidade de ação que temos nos dedicado ao seu estudo. Afinal, não existem tendências que se concretizem por si mesmas, e a questão da permanência e do aumento das violações aos direitos humanos a que nos referimos anteriormente constitui a base da reflexão neste campo. Assim, consideramos que, complementarmente às explicações baseadas em respostas macrossociais e conjunturais e exclusão social, o estudo interpretativo pode contribuir ao identificar elementos sociológicos que se adequam a esta conjuntura, reforçando-a ou não. O presente artigo tem como objetivo justamente contribuir na busca de respostas a uma das questões centrais na área dos direitos humanos no Brasil, que pode ser formulada em termos da permanência e mesmo do aumento das violações por parte dos órgãos de segurança no período da chamada transição democrática.

Tomando como referencial o caso da Favela Naval, identificamos uma matriz que circunscreve o seu leitor-modelo: a ambigüidade. Sua indignação diante da "violência policial" mostrada na televisão não é um princípio, mas uma afirmação parcial que depende de um operador que é a condição de "trabalhador" da vítima. "Conferente" ou "mecânico" (sic), a vítima fatal não é apenas um cidadão morto pela polícia. Simbolicamente, operam-se a identificação da premissa das "classes perigosas" e a construção da imagem da favela como um lugar onde se desenrola mais um drama; a rua Naval passa a ser a Favela Naval. E a "violência policial" passa a ser vista como uma fonte sem controle deslocando-se contra a população pobre. O que deveras já vinha acontecendo há anos. Trata-se, portanto, de uma indignação modulada. O mesmo se pode afirmar da volúpia punitiva que a acompanha: condenação expeditiva.

É a operação simbólica de construção ao mesmo tempo da inocência da vítima, mas também a resposta ao leitor-modelo que se pergunta contra quem os policiais agiram, distinguindo se eram ou não criminosos, pressupondo que a prática policial tenha como atribuição definir a culpabilidade, que cabe à justiça. É a imagem do suspeito que é tratado como criminoso, sem respeito ao princípio da inocência pressuposta até que a Justiça estabeleça a condenação.

Consideradas isoladamente, as características do leitor-modelo apontam para problemas menores, "erros" de trajetória, para os quais teríamos a bússola da cidadania e da democracia para nos orientarmos. Porém, de um ponto de vista mais geral, quando consideradas em conjunto, elas apontam para um questionamento geral das instituições de segurança e de justiça. A experiência histórica no Brasil tem confirmado que o Estado exerce uma violência não autorizada e que, ao mesmo tempo, abandona este mesmo monopólio. Pensamos concretamente na multiplicação das zonas de exclusão, ou seja, espaços em que o Estado não intervém: as pequenas infrações, os crimes que "merecem" apuração, a desistência da punição para os réus primários, a redução do tempo de prisão, a legislação que cria e amplia infrações sem um aparelho correlato de controle e repressão. O que coloca em questão para R. Dahrendorf a noção weberiana de monopólio da violência nas mãos do Estado (Dahrendorf, 1987). As mudanças que estão sendo operadas na legislação e nos procedimentos policiais, assim como os juízos de pequenas causas, não poderão por si mesmas modificar o imenso campo de exclusão em que se inscreve a ação do Estado. A impunidade real ou pressentida coloca em questão a própria validade normativa: "A impunidade, ou desistência sistemática de punições, liga o crime e o exercício da ordem" (Dahrendorf, 1987:28).

Acreditamos que este cenário foi reforçado pela crítica sistemática e generalizada das instituições, particularmente forte no período de transição democrática, e que ainda está por se tornar objeto de uma reflexão sistemática. De modo geral, parece-nos que na busca de garantias da cidadania e da democracia, contra a estrutura autoritária do regime militar, colocamo-nos num impasse em face da criação de novas instituições, como nos parece refletir o processo da Constituinte de 1988.19 19 . Em meio à crítica ao autoritarismo, construiu-se um discurso generalizante que talvez tenha contribuído, juntamente com um processo de transição que não conseguiu ainda efetivar as mudanças necessárias para constituir uma sociedade democrática, para reforçar a ambigüidade generalizada diante da justiça.

A violência contra a sociedade desigual, a negação do Estado autoritário, a violência como estratégia de sobrevivência e os múltiplos sucedâneos quotidianos da arbitrariedade e da impunidade contribuíram para a formação de uma cultura da impunidade e do descrédito, cujas conseqüências são o medo, o sentimento de insegurança e a desconfiança nas instituições. Num processo extremamente complexo, o esforço em defesa dos projetos democráticos resultou numa situação paradoxal que parece adequada para a caracterização do leitor-modelo no nosso trabalho: "Queríamos uma sociedade de cidadãos autônomos e criamos uma sociedade de seres amedrontados ou agressivos" (Dahrendorf, 1987:13).

Decorre do que mostramos neste artigo que a questão colocada para o momento presente é a capacidade de criar e gerenciar espaços sociais (processos, instituições) que efetivamente ampliem a participação e o exercício da democracia. Dependemos, portanto, da promoção de meios que possibilitem a co-produção da segurança pública, que deixaria de ser um affaire exclusivamente de Estado, para que a democracia se generalize como um valor ético e que cada setor social possa conquistar a sua maioridade social.

Assim, podemos afirmar que estamos vivendo um período de construção institucional. O que num sentido sociológico representa mais do que a construção de organizações e normas: é o próprio campo dos valores que está implicado. Neste campo, a questão que colocamos é a da necessidade de buscar soluções de continuidade entre as organizações de Estado e as práticas sociais quotidianas, como assinalam Coimbra (1997) e Ribeiro (1997). Em outros termos, concordamos plenamente que é "(...) a institucionalização de políticas públicas capazes de impedir a prática de graves violações de direitos humanos, com impunidade garantida, que põe em risco a construção de um estado de direito válido para as elites e as não-elites" (Pinheiro e Mesquita Neto, 1997). A esta resposta apenas acrescentamos que é preciso apoiar ou mesmo criar as condições para que a "maioridade" (Ribeiro, 1997) da população possa se realizar, ou seja a sua co-responsabilidade na produção da segurança ou dos direitos humanos possa se expressar. Portanto, nosso trabalho deve ser estendido a todos os parceiros da construção institucional: a escola, os grupos organizados da sociedade, a mídia, etc. O que significa criar e apoiar instituições e processos que permitam a efetiva construção da democracia no Brasil. Afinal, é na confluência de múltiplas forças que se define o que é controle social e como ele pode e deve ser exercido.

NOTAS

E-mail do autor: theo@cfh.ufsc.br

O presente trabalho foi realizado com o apoio do CNPq, entidade do governo brasileiro voltada ao desenvolvimento científico e tecnológico.

Artigo redigido a partir da comunicação apresentada no XXI Encontro Anual da Anpocs (Caxambu, 1997). Agradecemos as críticas e sugestões dos participantes do Grupo de Trabalho "(Des)Regulações da Ordem Pública: Os Direitos Humanos e Justiça Social no Brasil dos anos 90".

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RIFIOTIS, T.; DIAS, L.L. e ZENAIDE, M.N.T. "Páginas policiais na imprensa paraibana". Entrevista com repórteres e editores sobre violência e ação policial. Signo. Revista de Comunicação, n.6, outubro 1999 (prelo).

SHIRLEY, R. "Atitudes com relação à policia em uma favela do sul do Brasil". Tempo Social. (Estratégias de Intervenção Policial no Estado Contemporâneo.) São Paulo, v.9, n.1, maio 1997.

THOMPSON, J.B. A mídia e a modernidade. Uma teoria social da mídia. Petrópolis, Vozes, 1998.

VAN DJICK, T. La ciencias del texto. Barcelona, Paidós, 1996.

  • 1
    . Popper (1994:387) defendeu este ponto de vista numa conferência proferida em 1947 na qual criticava o apelo do utopismo, e afirmou: "Estou consciente que (...) a nova Idade da Violência inaugurada com as Grandes Guerras não chegou ao fim."
  • 2
    . Iniciamos um trabalho comparativo no qual estudamos as notícias dos "mesmos acontecimentos" relatadas em diferentes locais, examinando a estrutura semântica e estilística locais, em como as macroestruturas gerais dos artigos, conforme sugerido por Van Djick (1996). A coleta e organização deste material foram realizadas com a colaboração de Daine Roman, à qual expressamos aqui o nosso agradecimento. Uma primeira versão deste trabalho foi apresentada na II Reunión de Antropologia del Mercosur (Piriápolis, 1997).
  • 3
    . A Secretaria Nacional de Direitos Humanos vem desempenhando um papel fundamental no processo de promoção e garantia da cidadania no Brasil, e tem como um dos seus objetivos justamente atuar contra a "violência policial". Com a sua criação, os direitos humanos passaram a ser uma questão de Secretaria de Estado, o que possibilitou implementar medidas concretas de ação neste campo, basicamente configuradas no Programa Nacional dos Direitos Humanos.
  • 4
    . Entendemos que o jornal não é simples tradutor de lutas sociais, mas um dos meios através dos quais se travam estas lutas. Discutimos a diferenciação interna nos jornais em relação à chamada página policial num trabalho realizado a partir de entrevistas com repórteres policiais (Rifiotis et alii, 1999).
  • 5
    . Na realidade, o modelo de Umberto Eco refere-se particularmente ao texto narrativo, que se diferencia da forma "notícia". Limitamos nosso trabalho ao domínio do leitor-modelo, que pode ser identificado a partir dos elementos dados pela manifestação linear do texto. Será através delas que se concretizarão as operações realizadas pelo leitor para individualizar as isotopias do texto, atualizando seu conteúdo.
  • 6
    . Não foram consideradas diferenças entre as linhas editoriais entre FSP e OESP.
  • 7
    . O crime de extorsão não foi comprovado, apesar das cenas divulgadas naquela emissão. Durante as investigações posteriormente divulgadas mostrou-se que na íntegra do vídeo o policial militar que pega do dinheiro da carteira de uma das vítimas, devolve-o numa cena que havia sido cortada pela edição do Jornal Nacional.
  • 8
    . Villas-Boas Corrêa afirma: "No gênero, é a maior reportagem das quase cinco décadas da crônica da televisão brasileira" (Jornal do Brasil, 02/04/97, p.11).
  • 9
    . Umberto Eco refere-se à posição privilegiada que a televisão vem assumindo, afirmando que na Itália ela dita, por assim dizer, a pauta dos jornais (Eco, 1997:70).
  • 10
    . Há especificidades que mereceriam ser exploradas no caso da Cidade de Deus, mas que estão fora dos limites deste trabalho.
  • 11
    . O nome "Rambo" foi evocado com expressão máxima desta construção de um monstro. A capa da revista
    Veja na mesma semana foi a fotografia do policial fardado na capa com o título "Rambo, o torturador".
  • 12
    . No dia 03 de abril, a FSP publica uma pesquisa na qual se percebe nitidamente a força da vontade punitiva expeditiva: 13% dos entrevistados pedem a pena de morte, cerca de 25% a prisão perpétua, duas penas que não existem no Código Penal Brasileiro, e um terço prisão por muito tempo. A demissão do secretário de Segurança Pública foi pedido por 63% e a demissão do comandante da Polícia Militar por 61% (FSP, 03 abril 1997, p.1.1).
  • 13
    . Entende-se aqui como válidas as conhecidas observações feitas por R. da Matta sobre os atributos destes dois espaços na cultura brasileira (Da Matta, 1985).
  • 14
    . Esta caracterização é reforçada com a noção ambígua da ação policial apontada no início deste trabalho. Aliás, é próprio da mentalidade autoritária aceitar como verdadeiras duas afirmações opostas. O que poderia ser considerado como um pensamento automático, resultando num "duplo pensamento" que G. Orwell descreveu no seu livro
    1984: capacidade de manter duas crenças contraditórias e de aceitar ambas (From, 1981:35).
  • 15
    . "Se a gente encontra com o pai na rua, é para fingir que não o conhecemos", explica a filha de um policial militar, por questão de segurança da família, medo de represália, numa reportagem sobre filhos de policiais militares intitulada "Violência de PMs faz crescer preconceito" (OESP, 10 abril 1997, G7). A matéria muito oportuna refere-se em geral ao preconceito contra o profissional das polícias militares.
  • 16
    . "O inimigo comum da comunidade é a polícia", como identificou Robert W. Shirley em pesquisa em favelas de Porto Alegre (Shirley, 1997:217).
  • 17
    . O secretário de Segurança Pública de São Paulo, por exemplo, declara que houve época em que a sociedade pedia uma polícia mais violenta (FSP, 06/04/97, p.3.3). Em certa medida, a "violência policial" pode ser entendida como uma expressão de tolerância social, ainda que decrescente.
  • 18
    . Evitamos as controvérsias em torno da existência e do significado da noção de "opinião pública", valendo-nos da teoria de cooperação textual e do leitor modelo desenvolvidas por Eco (1986). O conceito de "leitor-modelo", que apresentamos detalhadamente no próximo item, pressupõe um modelo comunicacional de "mão-dupla" entre a imprensa e o seus leitores, ou seja, procura-se simular um diálogo entre o(s) jornalista(s) produtor(es) da matéria e o leitor.
  • 19
    . Em meio à crítica ao autoritarismo, construiu-se um discurso generalizante que talvez tenha contribuído, juntamente com um processo de transição que não conseguiu ainda efetivar as mudanças necessárias para constituir uma sociedade democrática, para reforçar a ambigüidade generalizada diante da justiça.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      03 Dez 2004
    • Data do Fascículo
      Dez 1999
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