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Violência nas escolas: quando a vítima é o processo pedagógico

A VIOLÊNCIA DISSEMINADA

Violência nas escolas: quando a vítima é o processo pedagógico

Felícia Reicher Madeira

Socióloga, Demógrafa, Diretora Adjunta de Análise Socioeconômica da Fundação Seade

A gente passa a roupa, pega a roupinha mais bonitinha que a gente tem quando chega lá é rebaixado.

Jovem da periferia de Brasília

O primeiro semestre deste ano foi marcado por ações concretas e discussões acaloradas sobre um tipo de violência bastante específica em pelo menos três aspectos: acontece em ambientes ou em espaços próximos às escolas; aparece como se fosse impulsionada por uma epidemia internacional de criminalidade entre adolescentes; e o contágio se efetiva via mídia.

Quem está de alguma forma familiarizado com ecos de manifestações criminosas perversas que ocupam muito espaço na mídia, sobretudo quando envolvem adolescentes, certamente não se surpreendeu com este fato. Após o chocante evento da Columbine High School, na pequena comunidade de Littleton, um subúrbio de Denver, no Colorado, e o surto de insanidade de um estudante de uma escola em Atlanta, nada mais esperado do que a síndrome da violência escolar por contágio via mídia. De fato, depois destes trágicos episódios nos Estados Unidos, a mídia, no resto do mundo e naturalmente no Brasil, passou algumas semanas destacando dezenas de ocorrências relativas à violência (desde o porte de arma para ganhar aposta de R$ 1 até o assassinato de uma professora) no circuito da vida escolar, que pipocavam pelo mundo, quando ainda estava quente na memória de todos a tragédia norte-americana.

Esta não é a nossa primeira manifestação deste tipo de síndrome envolvendo adolescentes. Apenas para citar fato mais próximo e mais recente, vale lembrar que, por ocasião do brutal assassinato do índio Galdino por adolescentes da classe média em Brasília, o fenômeno da síndrome da violência por contágio via mídia também se manifestou. Em uma seqüência de chocantes imitações, adolescentes atearam fogo em mendigos em diferentes pontos do país. Nos casos do crime nas escolas, entretanto, os impactos foram bem mais graves, aprofundando o pânico e a angústia já bastante presentes na sociedade. A sensação que envolvia o imaginário das famílias é que qualquer criança ou adolescente, a qualquer momento, poderia tornar-se vítima da ação criminosa de outra criança ou adolescente. Na verdade, tanto este sentimento angustiante e a insegurança dele decorrente quanto a forte reação de indignação da sociedade são compreensíveis, já que um dos poucos momentos de tranqüilidade para os pais sempre foi aquele em que seus filhos atravessavam a porta das escolas onde estariam protegidos e seguros.

Como a enorme maioria dos jovens e crianças freqüenta a escola pública, nada mais esperado do que uma forte reação da sociedade no sentido de cobrar ações rápidas e eficientes do governo, o qual, por sua vez, diante da gravidade da situação, não pode se manter omisso, tendo mesmo que agir rapidamente. O problema é que formular ações nesta área não constitui uma tarefa simples dadas as profundas divergências sobre o tema que dividem os diferentes setores da sociedade. Além disso, são precárias as avaliações de programas aplicados em outros países ou em outras ocasiões.

De fato, no campo político, estes episódios deixaram claro que a velha dicotomia esquerda/direita, nas questões relativas à violência, persistem ainda com intensidade. A parcela da população com vocação direitista, como sempre, passou a exigir ações imediatistas e repressivas, como a presença da polícia na escola ou até a sua militarização através da colocação de detetores de metal. Já a esquerda insistia nos argumentos de sempre — o crescimento da exclusão, desemprego, a perda do poder de ganho do salário, a ausência de investimento em educação, política educacional equivocada, etc. —, sem propostas concretas de ação. O governo do Estado, por sua vez, seguindo uma tendência internacional, optou por uma espécie de terceira via, por uma corrente que vem ganhando expressão internacional e que aposta em ações preventivas envolvendo a comunidade. Trata-se do Projeto Parceiros do Futuro. Assim, diagnosticando o fenômeno da violência nas escolas, sobretudo como manifestações de dificuldades de agregação e de organização da sociedade civil, passou a desenvolver projetos na tentativa de envolver toda a comunidade (local e geral) no processo de construção da cidadania e de conquista de direitos. Na concepção destes projetos, a comunidade, representada pelas famílias dos alunos, deve participar não só como simples receptora dos "investimentos sociais" no seu sentido mais amplo (envolvendo desde projetos de saúde até esporte, cultura e lazer), mas também como promotora, executora e gestora de iniciativas e ações. Este processo de envolvimento familiar com a escola aproxima muito mais pais, alunos (filhos) e corpo docente e administrativo das escolas, abrindo um diálogo que seja capaz de minimizar o potencial de desenvolvimento da violência.

É claro que a ocasião mostrou-se propícia também para se retomar a calorosa e polêmica questão em torno da eficácia do Estatuto da Criança e do Adolescente como instrumento de proteção e controle social. Esta discussão esteve especialmente presente nas sessões de "Carta ao Leitor" dos grandes jornais, sendo que a ampla maioria manifestava indignação com relação ao conteúdo protecionista deste Estatuto.

Nas áreas mais próximas da pesquisa e da academia, a discussão mais recorrente tendeu a se concentrar nas diferentes variantes do cotejamento entre a percepção que a sociedade tem da violência juvenil e a realidade dos fatos, quase sempre captadas por resultados estatísticos nem sempre confiáveis, seja pela deficiência da fonte utilizada, seja pela metodologia adotada. Nesta área, as dúvidas mais recorrentes costumam ser as seguintes: a violência vem efetivamente crescendo ou é só percebida como tal dada a exposição na mídia? Os jovens são de fato os promotores da violência ou são sobretudo vítimas?

Efetivamente, o empenho e o envolvimento da mídia com a seqüência de manifestações criminais praticadas por crianças e adolescentes no ambiente escolar, neste início de ano, reiteraram a importância do tema para aqueles que têm se envolvido nesta discussão. Na verdade, são inúmeros os estudos — nacionais e internacionais — nos quais as representações sociais do crime e da violência e o conseqüente medo da população são apresentados e tratados como irracionalidades geradas pela mídia, que incentiva o sentimento de insegurança das pessoas através do exagero ou excessiva exposição de notícias sobre o crime. A literatura, sobretudo a internacional, está farta de exemplos de situações que mostram que atos de criminalidade praticados por adolescentes e muito veiculados pela mídia são especialmente propícios para gerar representações sociais que criam ou fortalecem um clima de pânico social.

Talvez a maior novidade que veio no rastro destes eventos recentes tenha sido a minimização da crença em velhas e reiteradas hipóteses que ainda desfrutam de grande credibilidade no Brasil. Diante das circunstâncias que envolveram os episódios escolares norte-americanos, é difícil acreditar que apenas diferenças sociais, níveis de pobreza ou quaisquer outras explicações exclusivamente socioeconômicas sejam suficientes para explicar manifestações de violência. Ao mesmo tempo, passam a ganhar importância teses que atribuem o crescimento da violência à "cultura do individualismo" e que acabou por inspirar o Projeto Parceiros do Futuro. Esta nova linha interpretativa, que vem se estruturando e ganhando organicidade há algum tempo, teve enorme destaque neste período, sobretudo através do artigo "A grande ruptura", de Francis Fukuyama, publicado na edição de maio da revista Atlantic Monthly e traduzida pelo Jornal O Estado de S.Paulo (30/05/99). Segundo o autor, "a mesma sociedade que não admite limites em sua inovação tecnológica também não percebe os limites em muitas formas de comportamento pessoal, e a conseqüência é o aumento do crime, famílias desfeitas, o malogro dos pais em exigir obrigações dos filhos, a recusa do vizinho de ter responsabilidade pelo outro e a retirada dos cidadãos da vida pública".

Neste cenário, como tendência, claramente perdem força as concepções que entendem a violência como fenômeno unicamente ou preferencialmente vinculado à existência da pobreza, mostrando-se cada vez mais insuficientes para compreender e explicar as situações concretas dos dias atuais. Resumidamente, o debate encontra-se na seguinte situação: certamente os componentes inerentes à violência encontram cenário mais propício às suas manifestações onde a pobreza se traduz em restrição permanente e crescente ao acesso a bens materiais cada vez mais atraentes, que infelizmente é onde se encontra grande parcela da população. Daí as estatísticas se concentrarem nestas camadas populacionais. Porém, hoje não parece haver dúvidas de que a violência mais ou menos agressiva, mais ou menos visível ou declarada, tem se manifestado em todas as instâncias do tecido social, não observando classes sociais, riqueza e pobreza. Tal consideração ganha relevo tanto no caso das manifestações de violência pública, por meio das organizações internacionais do mundo do crime, das gangues e galeras infanto-juvenis, das agressões entre civis, dos extermínios e homicídios, como também nas ações que acontecem nos âmbitos privados e até pouco tempo fora das discussões desta temática, como a violência doméstica, o uso da força contra a mulher e os maus tratos às crianças e aos adolescentes.

A violência cada vez mais está associada a referências bem mais amplas, que inviabilizam qualquer abordagem que não envolva profundas transformações que estão ocorrendo na sociedade, como fica claro no trecho extraído de projeto destinado a enfrentar a violência escolar: "Atualmente, passa-se por um processo de banalização da violência, que corresponde não só à perda do monopólio do Estado sobre esse elemento constitutivo da sua soberania e a ruptura dos processos de pacificação social estabelecidos segundo regras de convivência social, mas também à pulverização da violência entre civis, ao armamento individual e das organizações internacionais do crime, ao lucro de empresas de segurança, etc. Essa situação, quando acompanhada de métodos e meios modernos de destruição, torna difíceis o entendimento e a elaboração de modos de lidar com a violência, posto que esta se encontra por toda parte, não tem agentes permanentes reconhecíveis, nem causas facilmente delimitáveis e inteligíveis. Instituições, organizações, entidades, famílias, classes sociais, movimentos sociais, etc, fundamentais à construção e conquista da autonomia ética, moral e política, encontram-se desestruturados quando não partidos. Desorganizados, facilitam o domínio dos chamados agentes da violência (traficantes, por exemplo), que aprofundam a ruptura dos laços sociais dentro da família e da comunidade, levando ao isolamento, à atomização, ao individualismo. Rompem com a rede de reciprocidade social, colocando em seu posto o fascínio pelas armas, a defesa até a morte do orgulho machista, construído sobre a noção de território, valores militaristas e enriquecimento rápido em atividades ilegais" (Muszkat, 1997).

Nesta discussão sobre a violência, o lamentável é que se perdeu mais uma vez a oportunidade de trazer à tona e discutir o que talvez seja o desdobramento mais nocivo desta ou de qualquer outra síndrome desta natureza: sua ação direta e perversa sobre a atividade pedagógica nas escolas públicas (que é afinal a missão prioritária da escola) para adolescentes dos setores populares. Não há dúvida de que as maiores vítimas, aquelas que sentem mais profundamente o impacto da mídia a que está sujeita a violência juvenil, são o projeto e o processo pedagógicos. Trata-se de assunto que nos é especialmente caro, e que desde o início dos anos 80 temos discutido, mas que, salvo honrosas exceções (Corti, 1999:33-34), as calorosas e recentes discussões praticamente ignoraram. No fundo, a proposta é evidenciar como síndromes desta natureza, que acabam por dilatar enormemente os níveis reais de violência escolar, também aprofundam e ampliam os já complicados e difíceis conflitos entre jovens e o corpo docente e administrativo das escolas, diminuindo a eficácia da escola e, no limite, levando o jovem a abandoná-la. E isto acontece em um momento em que o discurso da importância da educação goza de amplo e consensual prestígio na sociedade.

O objetivo central deste artigo é justamente cobrir esta lacuna. Além desta introdução, o texto contém mais três partes. Para encaminhar a discussão na direção proposta, no item inicial, procura-se colocar o leitor minimamente a par do "estágio atual das artes" de dimensões do tema adolescência/violência, importantes na condução da linha de argumentação. Já no segundo item, a intenção é dupla: trazer a discussão para o Brasil de hoje; e introduzir, no circuito de reflexão deste complexo tema, um conjunto de novas informações que têm sido pouco exploradas ou mesmo incorporadas. Trata-se de mostrar como mudanças estruturais recentes no país, de natureza socio-demográfica e econômica, têm atuado no sentido de aumentar substancialmente os riscos dos jovens no envolvimento de ações violentas. Finalmente, no último item, chega-se à reflexão central do texto, concluindo-se que, se a pretensão efetiva for a de construir relações pautadas pela confiança, solidariedade e respeito, indispensáveis para o êxito de qualquer proposta pedagógica, uma das tarefas mais importantes que se tem pela frente é o desmonte da percepção de eterna suspeição que paira sobre os jovens pobres, imagem esta que permeia fortemente a equipe escolar e é constantemente alimentada, fortalecida e solidificada pela manipulação do imaginário que trabalha a associação juventude/pobreza/criminalidade. Como desdobramento importante, estarão sendo criadas condições para diminuir a violência.

CRIMINALIDADE/ADOLESCÊNCIA: TENSÕES/CONSENSOS

O primeiro ponto para reflexão é: o que fazer para evitar a manifestação da síndrome? Alguns argumentam que deveria ser dado espaço menor a crimes notórios, sobretudo quando envolvem adolescentes. Esta foi a decisão, por exemplo, de alguns jornais norte-americanos, como o The Chicago Sun-Times que propositadamente deslocou o tiroteio da Columbine das manchetes de primeira página para um tratamento mais discreto e científico no interior do jornal. Outros órgãos da imprensa norte-americana, ancorando-se no diagnóstico de que os adolescentes tomam esta atitude sobretudo para brilhar como heróis na mídia (o que certamente é parte da verdade), optaram por insistir em mostrar a vida arruinada daqueles que viveram histórias parecidas (Time, 31/05/99).

A questão que naturalmente se segue é: por que a síndrome consegue se instalar, se espraiar tão rapidamente? Talvez neste campo o consenso seja maior, provavelmente porque encontra terreno fértil e altamente propício, ou seja, existe na sociedade um número expressivo de adolescente em situações limites de executar tais atos violentos, manifestando-se prontamente quando a oportunidade e o exemplo existem de forma simultânea. Além disso, os adolescentes sabem que a televisão se encarregará de propiciar a devida notoriedade que os mesmos tanto anseiam.

Mas afinal, o que poderia ser caracterizado como um campo propício? Ou, em outros termos, quais as causas da criminalidade juvenil? Ou, ainda, o que estaria ocorrendo de novo no mundo pós-moderno, globalizado e na sociedade brasileira em especial para propiciar tal situação dramática? Colocadas para a sociedade ou mesmo para setores organizados ou não mais envolvidos com estes temas, as respostas a este conjunto de questões produziriam uma discussão acalorada, longe de consenso. Entretanto, a literatura sociológica de certa forma já fechou questão em alguns pontos, que serão tratados a seguir.

Em primeiro lugar, é preciso destacar que a violência juvenil que se manifesta fora e dentro das escolas não é recente nem nos países ricos do norte nem nos países pobres do sul, sobretudo porque juventude e violência são temas estreitamente associados, desde o surgimento da categoria adolescência ou juventude. De fato, a literatura sociológica já dispõe de uma vasta discussão sobre o assunto, evidenciando que a categoria adolescência é, historicamente, muito vinculada às mudanças da sociedade moderna, em especial a dois fatores: as transformações do trabalho urbano industrial liberando crianças e adolescentes da participação na produção direta; e a conseqüente e progressiva universalização do acesso à escola básica pública. Assim, no processo de crescente distanciamento entre as esferas de atuação pública e privada da família, que ocorre ao longo do amadurecimento das sociedades modernas, o adolescente cada vez mais passa a ocupar uma categoria que o distingue tanto da criança (totalmente dependente dos adultos) como dos adultos (totalmente autônomos). Aos adolescentes atribuía-se uma autonomia relativa, uma espécie de moratória, um espaço de preparação (sobretudo via extensão da escolaridade) para a vida adulta.

A literatura sociológica tem se preocupado também em evidenciar a estreita associação entre adolescência e "problema". É fácil aceitar que o conceito de autonomia relativa, dificultando o estabelecimento de limites claros, traz implícito um componente de ambigüidade. Por outro lado, se a ambigüidade é inerente à categoria, seria de se esperar que a adolescência tivesse sido, desde sempre, entendida como uma fase problema e, enquanto tal, fonte de preocupação dos pais e da sociedade, já que a responsabilidade indefinida é fonte constante de inquietações familiares e sociais. Por este motivo, na condição especial que desfruta na sociedade, o adolescente é objeto de atenção específica e especializada do Estado: definem-se regras para sua inserção no mundo do trabalho; regulamenta-se a educação compulsória; desenvolvem-se programas próprios de lazer e ocupação do tempo livre.

É também no processo crescente de busca da consolidação da autonomia em relação à família, de construção de sua identidade e ainda de preencher o tempo livre, que os adolescentes organizam-se em grupos, bandos, galeras, etc., com os quais têm mais afinidade. Esta aí, provavelmente, a origem das chamadas "culturas juvenis". Com o amadurecimento da sociedade moderna, o perfil do adolescente vai se definindo pela conquista de uma vida pessoal cada vez mais independente, marcado por um visual, um consumo e um tipo de lazer que os diferencia e que são, ao mesmo tempo, intensamente explorados pela propaganda comercial que reforça esta necessidade, impondo constantemente novos padrões de consumo diferenciados segundo tribos.

É claro que a simples vivência em grupo não gera violência, e de fato a enorme maioria dos grupos juvenis não são violentos. Entretanto, os bandos de adolescentes constituem uma forte fonte potencial de atritos, seja entre os grupos, seja entre estes e a comunidade. Não raro, a escalada da violência juvenil é associada ao próprio crescimento dos grupos, em geral, nas periferias das grandes cidades, onde também se concentra a população juvenil. A mistura explosiva acontece quando se cruzam a crescente imposição de um consumo que os identifica (tribos), a disseminação das drogas e do uso de armas de fogo e (talvez o fator mais importante) a afirmação da honra e da virilidade. Neste cenário, as chances de os grupos ou bandos tornarem-se uma quadrilha são bastante reais, além das crescentes possibilidades da sua associação com outros grupos organizados.1 1 . No contexto deste trabalho, não se considerou importante entrar na discussão das diferenças conceituais entre grupos, gangues, galeras, bandos, etc.

Enfim, o risco constante ao qual o jovem está submetido, que no limite significa o seu envolvimento com o mundo do crime e da violência, deve ser visto de uma perspectiva histórica, sendo, de certa forma, inerente ao próprio conceito de transição e de autonomia relativa que caracteriza este período de vida.

TENDÊNCIAS RECENTES E OS RISCOS DE VIOLÊNCIA JUVENIL

Considerando-se estas reflexões, ou seja, que adolescência, crescimento do tempo livre, formação de grupos ou bandos de jovens, ideologia da virilidade e da honra e disseminação das drogas e do uso de armas de fogo amplamente, potencializados pela imposição do consumo via mídia, constituem uma mistura explosiva no desencadeamento de ações juvenis violentas, as análises e os dados que se seguem deixam claro que o Brasil vive, neste final de século, uma situação especialmente difícil no enfrentamento desta questão.

O primeiro dado a destacar é de natureza demográfica. No período que se estende de 1992 a 1996, o contingente de jovens entre 20 e 24 anos ampliou-se em 8%, enquanto o segmento mais próximo à adolescência (15-19 anos) apresentou um ritmo de crescimento populacional bem mais expressivo (12%). Esta diferença nos ritmos de crescimento pode ser explicada pelo fenômeno conhecido na literatura demográfica como "descontinuidades demográficas", que pode ser assim resumido: "por alterações dos fatores que intervêm na dinâmica demográfica — fecundidade, mortalidade e migrações — a pirâmide etária pode sofrer alargamentos ou estreitamentos na sua base, ou seja, aumento ou diminuição do número de nascimento. O fenômeno deste tipo mais conhecido é o chamado baby boom, ocorrido no pós-guerra. Tais alargamentos ou estreitamentos vão necessariamente produzir ecos (novos alargamentos ou estreitamentos) à medida que esta geração vai envelhecendo. No caso, como se trata de um alargamento na faixa de adolescentes, passou a ser conhecido como 'onda jovem'. Neste sentido, é fundamental ter presente que esses resultados referem-se ao período 1992-96 e que, portanto, a 'descontinuidade' ou a 'onda' nos próximos anos deve afetar a faixa de 20 a 24 anos" (Bercovich; Madeira e Torres, 1998). No momento, o pico da "onda" deve estar em torno dos 19 anos e, no início de 2000, deverá corresponder aos 20 anos. O Brasil inaugura o novo milênio com a maior população de jovens que já teve e provavelmente jamais terá.

Entretanto, uma melhor compreensão dos impactos deste fenômeno deve considerar dois aspectos da questão. O primeiro refere-se ao fato de que, embora a "onda" esteja presente em praticamente todas as regiões do Brasil, a sua intensidade e concentração está desigualmente distribuída pelas áreas geográficas do país e com forte presença nas periferias das áreas metropolitanas. O segundo diz respeito à avaliação do impacto da "onda", que deve sempre considerar o seu valor absoluto. Como em geral o número absoluto de jovens é alto, os acréscimos em número relativos são pequenos em relação ao total do grupo etário, mas acabam tendo impactos substantivos tanto no mercado de trabalho quanto no sistema escolar. Este argumento é mais verdadeiro quando observa-se que a distribuição da "onda" é muito desigual em termos regionais (Bercovich; Madeira e Torres 1998).

O fenômeno da "descontinuidade demográfica" é fundamental na definição das estratégias de planejamento de políticas intervencionistas de natureza pública ou não. Além disso, o fenômeno da "onda jovem" tem recebido também a atenção e reflexões de sociólogos preocupados com a manifestação de eventos políticos-sociais que envolvem a juventude, no sentido de mostrar que, dependendo da maior ou menor capacidade que o mercado de trabalho tem de absorver a mão-de-obra juvenil e o sistema educacional de responder de forma mais ou menos positiva às expectativas dos jovens, o elevado número de jovens pode vir a constituir um problema político-social.

Wriggins (1988) é um dos autores que trabalha com profundidade esta hipótese, argumentando que esta reflexão começa a ganhar consistência quando nota-se, por um lado, que as manifestações sociais radicais e violentas costumam ser lideradas por jovens (15 a 25 anos) e acontecem de forma recorrente em momentos nos quais a coorte demográfica constituída por jovens está alargada. Segundo o autor, foi o que ocorreu há alguns anos no Sri Lanka, em Taiwan, em Cuba, no movimento anti-Marcos, nas Filipinas, na Turquia, etc. Também é possível encontrar na literatura associações da "onda jovem" com o movimento francês de 1968, os yuppies norte-americanos, os acontecimentos na China de dez anos atrás, ou mesmo nos altos índices de violência nas periferias das grandes cidades norte-americanas nos anos 80. Existem autores como Fernando (apud Wriggins,1988), que calculam inclusive um índice de periculosidade, que seria atingido quando a proporção de jovens estivesse em torno de 20% da população.

Nesta linha de raciocínio, é interessante lembrar uma entrevista antiga, mas atual no seu conteúdo, do antropólogo Philippe Bourgois à revista Veja (19/09/80), sobre a questão da juventude, droga e violência nos Estados Unidos, especificamente no Harlem hispânico. A tese do autor é a seguinte: "os traficantes de drogas nas esquinas de Nova York são pessoas que perseguem à sua maneira, numa cultura de terror e autodestruição, o mesmo sonho americano dos jovens yuppies que vivem nos bairros bem comportados." Mais adiante, explicando por que a droga desencadeava a histeria e a violência nos Estados Unidos, argumenta: "...(na Europa) os jardins têm flores, as escolas funcionam (...) Aqui nesta região da cidade há menos parques, menos piscinas públicas, mas há mais prisões". Análises recentes sobre a queda da violência nos Estados Unidos têm, de forma muito recorrente, se referido ao envelhecimento populacional como um dos fatores importantes para esta redução. Outros autores têm insistido que o grande número de jovens pobres encarcerados em decorrência da política de tolerância zero tem contribuído como fator importante. De qualquer forma, a diminuição do número de jovens em circulação é sempre fator a ser levado em conta.

Outro ponto a se considerar é o rápido crescimento do tempo livre entre jovens brasileiros, também concentrado entre jovens que ocupam as periferias das grandes aglomerações urbanas.

Os jovens brasileiros apresentam diferenças marcantes em relação aos seus pares latino-americanos, no que diz respeito tanto aos indicadores de desempenho educacional quanto às características de inserção no mercado de trabalho. No Brasil, comparativamente aos outros países da América Latina, é significativamente maior a proporção de jovens (sobretudo adolescentes) no mercado de trabalho urbano (na agricultura a proporção de jovens é sempre alta), inclusive nos setores mais modernos da economia. Tal tendência começou a se definir com clareza ao longo dos anos 70, quando a economia brasileira esteve marcada pelo dinamismo, persistindo com igual vigor no período recessivo que caracterizou a década de 80. Um dado interessante a acrescentar é que os anos 70 foram marcados por uma forte "onda jovem" (os pais dos atuais jovens), mas que teve êxito em sua absorção pelo mercado de trabalho, graças ao dinamismo da economia neste período. Já na década de 80 houve um refluxo desta "onda" e, portanto, a manutenção do emprego juvenil neste período deveu-se mais à ausência de pressão demográfica juvenil do que à geração específica de postos de trabalho para jovens. De qualquer forma, é importante notar que, comparada às dos outros países latino-americanos, a estrutura produtiva da economia brasileira apresentou, no passado muito recente, uma espécie de "vocação" para incorporar as coortes jovens (Madeira e Bercovich, 1989). De certa forma, ocorre o inverso com relação os indicadores de escolaridade juvenil, que estão entre os piores do mundo, portanto bem abaixo dos coetâneos dos principais países da América Latina.

No Brasil gerou-se ainda uma outra especificidade que é importante aqui considerar. No decorrer dos últimos 30 anos, ganhou contorno, especialmente na região Sudeste, uma figura que nos é bastante familiar e que, por esse motivo, sempre nos surpreende saber que não existe em nenhum outro país, pelo menos da América Latina: o jovem trabalhador-estudante. Trata-se de jovens que, em geral, cursam o Ensino Médio noturno (parcela freqüenta ainda entre a 5ª e a 8ª série) e trabalham durante o dia. Nada menos do que cerca de 75% dos estudantes do Ensino Médio, desde meados dos anos 80, lançam mão deste arranjo para freqüentar e completar este nível de ensino.

A novidade brasileira, no que diz respeito à oferta de ensino noturno para adolescentes e jovens, foi, na verdade, uma imposição ou um desdobramento da política de financiamento educacional no Brasil, que nunca destinou verba específica para o Ensino Médio. O Ensino Médio foi, assim, criado nas brechas, nos espaços vagos e por isso no período noturno das escolas de Ensino Fundamental; como já se disse, uma espécie de passageiro clandestino das verbas destinadas ao Ensino Fundamental. Embora esta tenha sido a origem do ensino regular noturno, a verdade é que esta característica, quando combinada com a efetiva possibilidade de inserção dos jovens no mercado de trabalho (a aludida vocação brasileira para acolher jovens no mercado de trabalho urbano), tornou o arranjo escola/trabalho bastante conveniente, passando a fazer parte tanto da nossa "cultura" escolar como da "cultura" das famílias dos setores mais populares. De fato, combinar escola e trabalho deixou de ser uma simples solução de emergência, para tornar-se a solução ambicionada tanto pelos jovens (que poderiam assim garantir uma espécie de "mesada" para seu consumo específico) quanto por seus pais, que, além de somar renda no final do mês, consideravam nesta combinação mais duas vantagens: possibilidade de minimizar bastante os conflitos familiares; e ver seus filhos protegidos da transgressão. De fato, em pesquisas domiciliares realizadas com jovens e suas famílias, em meados dos anos 80, ficou muito claro que o consumo próprio dos jovens, como a roupa (os jeans com grife, o novo corte de calça, o tênis, etc.), o lazer e o som (o aparelho de som, as fitas cassetes ou CDs, os bailes de fim de semana, etc.), constitui um tema de discussão e disputa permanente no seio familiar. A disponibilidade de renda própria, de um salário, significa para o jovem sobretudo a possibilidade de maior poder de barganha, de negociação com a família nesta disputa. O jovem que trabalha tem seu poder aumentado e seus privilégios na família garantidos. Enfim, a necessidade de ostentar marcas visíveis de pertencer à categoria jovem, sobretudo aquelas veiculadas pelos meios de comunicação, é um dos pontos nodais de atrito com a família, fonte de intensos e violentos conflitos. Foi interessante notar que a própria freqüência à escola assume a forma de uma espécie de consumo típico de um jovem. Ou seja, o fato de freqüentar uma escola, de possuir uma "carteirinha" de estudante, caracteriza-o como "jovem moderno", sendo que a renda do emprego é a garantia da sua imagem correspondente.

Entretanto, a década de 90 inaugura, no Brasil, uma nova dinâmica na relação escola/trabalho. Como resultante da dinâmica da combinação de um conjunto de fatores — forte reestruturação do setor produtivo, aumento da pressão demográfica sobre o mercado de trabalho (em função da crescente entrada das mulheres, da volta dos aposentados e ainda da pressão da "onda jovem") e baixo crescimento econômico —, os postos de trabalho vêm crescendo a uma velocidade bem menor do que seria necessário para acomodar o número crescente de pessoas dispostas a trabalhar. Nesta nova dinâmica, os jovens, sobretudo os adolescentes, têm sido os grandes perdedores, já que apresentam dificuldades crescentes de permanecerem e de se inserirem no mundo do trabalho tanto agrícola como no meio urbano, o que vem se desdobrando em três situações diferentes:

- parte dos jovens dirigiu-se para a inatividade, mas continua freqüentando a escola. De fato, felizmente, a categoria que mais cresceu nos últimos anos foi a de adolescentes e jovens que só estudam;

- outra parcela insistiu na busca de emprego, mas, dadas as dificuldades crescentes, passou a engrossar a taxa de desemprego juvenil;

- uma parcela pequena, que nunca chega a 3% de jovens, mas preocupante porque volumosa em números absolutos, optou pela inatividade total — fora da escola e sem busca de trabalho (Madeira; Watanabe, e Rosandiski, 1998).

Um dos resultados mais alentadores dos últimos anos tem sido a tendência marcante da melhoria dos indicadores educacionais da população brasileira, evidenciada, sobretudo, entre os adolescentes e jovens. As coortes juvenis vêm apresentando melhor desempenho, abandonando menos os bancos escolares e até voltando aos mesmos após um período, às vezes, grande de abandono. Esta tendência vem ocorrendo em todo o país, apresentando, naturalmente, diferenças de ritmos e de nível de inserção segundo as diferentes regiões. A necessidade da educação continuada, corretamente percebida pelos jovens, decorre da velocidade das transformações tecnológicas no mundo do trabalho, que avançam inclusive nas áreas de atividades até então desqualificadas. No Brasil, guardadas as devidas diferenças entre os níveis educacionais da nossa população juvenil e aqueles dos países desenvolvidos, já ganham força razoável a aposta e o investimento na qualificação constante. Na verdade, quem hoje se debruça sobre a evolução das tendências recentes dos nossos indicadores de escolaridade surpreende-se com a velocidade com que a concepção da valorização da escola vem avançando em nossa sociedade, neste final de século (Madeira, 1998).

O rápido aumento das exigências educacionais no mercado de trabalho, sobretudo no Estado de São Paulo, tem sido sempre citado por sua perversidade, pois efetivamente limita muito as possibilidades daqueles com baixos níveis de escolaridade, gerando um grupo de indivíduos e famílias relegados à miséria e sem chance de inserção no mundo do trabalho. Curiosamente, o desdobramento positivo desta nova exigência não tem sido considerado ou mesmo lembrado. A recente valorização da escola para o trabalho e para a vida entre os setores populares é um ganho que não pode ser absolutamente desprezado, dado os seus diversos impactos positivos na sociedade, em geral, e na mobilidade social das famílias. Durante muito tempo, atribuiu-se o nosso "fracasso escolar" ao descaso dos setores populares com a formação do capital cultural de seus filhos. Pois bem, parece que agora este valor está chegando às classes populares. Neste sentido, muito há que se comemorar, entretanto deve-se lembrar que a opção exclusiva pela escola significa aqui, como ocorreu nos países do norte, o crescimento de um espaço de tempo livre destinado a vivenciar mais intensamente a adolescência e a juventude, trazendo implicitamente um desdobramento não esperado e naturalmente não desejado: a potencialidade de ações violentas favorecidas pela vida em grupos.

Recentemente, a Folha de S.Paulo (25/08/99) divulgou alguns resultados de pesquisa realizada pela Unesco, no Distrito Federal, sobre a formação de gangues de adolescentes. Alguns destes resultados reforçam empiricamente os argumentos aqui apresentados e merecem ser citados. Durante um ano (entre maio de 1998 e junho de 1999), 810 jovens responderam a um questionário domiciliar. Destes, 10,7% (correspondendo a 47.000 jovens no conjunto da população) tiveram experiências de participação em gangues, sendo que apenas 1,1% declararam pertencer atualmente a uma delas, enquanto 9,6% já haviam pertencido. A maioria está concentrada na faixa dos 15 aos 17 anos. A partir dessas informações, pode-se concluir que o número de jovens envolvidos em "gangues" é pequeno, pelo menos bem menor do que nosso imaginário faz supor. Além disso, trata-se de um fenômeno transitório e rapidamente superado caso o adolescente tenha a sorte de não ser condenado ou mesmo morto. A grande concentração está entre aqueles que dispõem de tempo livre — 38,3% estudam, mas não trabalham e 27,2% não estudam e não trabalham. Apenas 18,5% só trabalham e 16% combinam escola e trabalho. Os dados apontam que os grupos são formados nas quadras ou nas escolas e atuam em determinadas áreas, podendo ser divididos em dois grandes segmentos: o daqueles que praticam pequenos roubos e consomem drogas; e o de bandidos, que se associam com traficantes e assaltantes. O estudo também mostra que os membros das gangues usam bem mais drogas que os demais jovens. O álcool, por exemplo, é consumido por 81,5% daqueles envolvidos com gangues, caindo para 55% entre os não envolvidos. Em relação à maconha, as proporções são de 16% e 2% e, no caso da cocaína, de 7,5% e 1,5%, respectivamente.

Em resumo, a idéia defendida aqui é a de que, a rigor, esta transferência do trabalho (principalmente do trabalho rural) para a escola poderia ser considerada normal ou esperada, já que foi assim que aconteceu nos países de industrialização antiga, como discutido no item anterior. Aliás, foi exatamente este espaço dedicado somente à formação escolar que gerou a categoria jovem, que se desdobrou na "cultura juvenil", como está ocorrendo aqui também. O problema é que a ampliação do acesso dos jovens ao sistema escolar vem se dando de forma extremamente tardia e em simultâneo às grandes transformações da sociedade atual, potencializando a ação violenta.

Nesse cenário, costuma-se enfatizar que a enorme expansão (na verdade a globalização) das atividades ligadas ao tráfico e ao consumo de drogas, para as quais o jovem é certamente o ator social ideal, seja como trabalhador seja como consumidor, é alternativa possível ao elevado desemprego juvenil. A questão entretanto é bem mais complexa e vale a pena explicitá-la melhor. Trata-se de tema muito pouco conhecido e discutido no Brasil, mas com ampla reflexão em países do norte, e diz respeito ao crescimento do descompasso entre as expectativas geradas pelo acesso a um maior nível educacional e as possibilidades efetivas de tipos de trabalho que este nível educacional propicia aos jovens.

De fato, uma das conseqüências da rápida valorização e democratização da escolaridade é a absorção de jovens de camadas sociais mais populares, cujas famílias, até então, não tinham acesso a este nível de ensino. Assim, em paralelo a este aumento da escolaridade, costuma crescer fortemente a aspiração por trabalhos que desfrutam de maior prestígio social, em geral ocupações técnicas do setor terciário em contraposição a trabalhos manuais, de planta de fábrica ou autônomo. São inúmeros os estudos que indicam a decepção dos jovens quando se defrontam com a realidade dos trabalhos aos quais eles efetivamente têm acesso, em geral de prestígio muito menor que sua expectativa e, o que é pior, com uma baixíssima remuneração, muito aquém das suas necessidades de consumo. Na verdade, o jovem se vê diante de um círculo vicioso que ele não sabe como romper — para conseguir o trabalho que deseja é necessária experiência, mas para apresentar experiência é necessário ter trabalhado. Em qualquer estudo ou mesmo reportagens da mídia que colham depoimentos de jovens, é possível constatar que a opção pela transgressão ou pela ilegalidade se dá muito mais pela recusa em trabalhar em funções desprestigiadas e de baixo salário, de que propriamente pela ausência da possibilidade de trabalho.

Em países desenvolvidos, a generalização deste comportamento entre jovens desdobrou-se no forte crescimento tanto das taxas de desemprego como do "tempo de procura de emprego" entre os mais educados. Tal tipo de desemprego é algumas vezes denominado de intelectual, sendo que a rápida e recente expansão da educação em São Paulo já aponta pistas neste sentido. Dados da Pesquisa de Emprego e Desemprego (PED), relativos ao tempo de procura, quando cruzados com o grau de escolaridade, evidenciam o fato de que o tempo de procura é maior entre os mais escolarizados, sobretudo quando se trata de jovens. Na verdade, vários estudos já demonstraram que, da perspectiva dos jovens, a maior dificuldade que eles enfrentam para se inserir no mercado de trabalho é a falta de experiência. Entretanto, não é difícil supor que parte substancial desta declaração generalizada esteja de fato mascarando a rejeição a empregos considerados de pouco status ocupacional e social, frente à formação educacional já alcançada. Ou seja, os jovens iniciam a sua busca em ocupações para as quais os empregadores consideram que os mesmos não possuem qualificação suficiente, traduzida na exigência de falta de experiência. É claro que as exigências do mercado serão sempre maiores nos períodos de maior dificuldade econômica, quando a pressão sobre o mercado é maior.

De qualquer forma, está claro que este é um momento de reflexão e, mais do que isto, um momento de tomada de posição. O que não é possível é continuar sempre só denunciando; se o adolescente (e é importante deixar claro aqui que se está falando de adolescentes e não de crianças com menos de 14 anos) trabalha, a denúncia é que deveria estar na escola; se passa a ficar só na escola, a denúncia é da sua "exclusão" do mercado de trabalho. Por que existe tanta dificuldade em falar ou mesmo propor isto que os jovens e as famílias efetivamente desejam? Conciliar escola e trabalho. O trabalho nunca foi o grande responsável pelos baixos níveis de escolaridade no Brasil. Estudos bem recentes só confirmam esta tese. No Nordeste, por exemplo, os jovens das áreas urbanas não trabalham (porque não encontram emprego) e ficam na escola, mas simplesmente não avançam na escolaridade. Assim, mesmo que o jovem, diante das dificuldades de encontrar uma ocupação remunerada, "opte" por permanecer na escola, é necessário desenvolver um enorme esforço conjunto, que envolve um forte entrosamento entre a equipe escolar e a sociedade, para garantir que ele continue freqüentando a escola. Se a valorização e o acesso à escola estão garantidos, a escola está longe de cumprir as aspirações dos jovens, seja como espaço de pertencimento, seja como via de acesso às melhores posições no mercado de trabalho.

É justamente nas deficiências dos processos de socialização que, cada vez mais, vem se localizando a raiz do comportamento violento juvenil, como conclui relatório de avaliação de experiências realizadas ao longo dos anos 90, em Medellín, na Colômbia (Paisajoven, 1998): "Ao finalizar o estudo ficou claro que o problema da juventude não se podia reduzir ao assunto de desemprego juvenil. Apesar destes índices serem altíssimos, descobriu-se que o problema girava em torno da deficiência de processos de socialização de jovens nos bairros, na família e na presença de um sistema educacional que não respondia às verdadeiras necessidades de seu desenvolvimento."

Antes de enveredar por esta discussão, um terceiro fator a ser elencado no rol daqueles que acentuam o crescimento do risco de ações violentas por parte dos jovens diz respeito à questão da sedução do consumo entre jovens. As pressões e a sensibilidade para o consumo entre os jovens são fatos conhecidos e disseminados no mundo todo. Por este motivo é generalizada, nos meios de comunicação, a tendência de caracterizar um corpo integrado de símbolos e representações do que é ser jovem. Neste momento, esta tendência está acirrada por duas novidades estreitamente relacionadas. O Brasil vem alcançando, desde os anos 70, surpreendentes avanços das telecomunicações, sobretudo da televisão. Entretanto, nos anos 90 e especialmente nos últimos seis anos, houve um enorme incremento de telespectadores das classes C e D. Segundo dados que vêm sendo discutidos e publicados na imprensa, em 1993 existiam cerca de 31 milhões de aparelhos de TV em uso no país. Entre 1994 e 1998, graças ao controle da inflação e à estabilização da economia, foram vendidos 28 milhões de aparelhos, quase dobrando, portanto, a base instalada na primeira metade da década. Calcula-se que, desse total, cerca de 6 milhões foram comprados por famílias que adquiriram o primeiro televisor, todas localizadas na base da pirâmide social. Pode-se projetar, portanto, o surgimento de um contingente aproximado de 24 milhões de novos telespectadores, que representam cerca de 20% do antigo total. Em resposta a este novo público, a própria natureza da televisão e da programação vem se alterando. Trata-se certamente de uma população menos exigente em qualidade e provavelmente ainda mais sensível às imposições dos temas, costumes e naturalmente do consumo veiculado por este meio de comunicação.

Atualmente discute-se muito a crescente banalização da violência e do sexo, mas a ação é ampla e intensa. Nas novelas e nos programas de auditório, os personagens vivenciam as insatisfações, explicita-se a disputa de poder entre os sexos, sendo freqüentemente valorizado o comportamento "viril", pais e filhos sofrem intensamente o conflito e a ambigüidade dos valores revendo as relações de poder na família, etc. Há o questionamento constante do poder econômico, das imposições do consumo, mas, ao mesmo tempo, estimula-se o culto aos símbolos do "modo de vida ", sobretudo a juventude e a beleza corporal. A publicidade, por sua vez, sensível a essa onda de novas normas, como num círculo vicioso, acaba por reforçá-las. Ou seja, a indústria cultural, com amplo destaque para a televisão que sempre atuou como a grande geradora de aspiração para o consumo em geral, e em especial para o consumo juvenil, está chegando a uma parcela maior, mais carente e menos preparada da população. De forma complementar, a queda efetiva dos preços de produtos que sempre foram objetos de desejo das camadas de baixo poder aquisitivo pode consubstanciar-se em consumo efetivo. O fato de a realidade estar mais próxima do sonho tem sido um enorme estímulo para mulheres, que sempre foram donas de casa, aposentados e jovens saírem em busca de algum tipo de rendimento. Quando este não existe, ou é pequeno, o caminho do tráfico e da transgressão fica mais atraente.

JUVENTUDE OU JUVENTUDES?

Finalmente, chega-se ao cerne da argumentação.

A melhor forma de introduzir o tema e a linha de argumentação conduzidos neste item é iniciá-lo com o relato de uma experiência vivida em 1983, por ocasião da realização de uma pesquisa de campo, cujo tema era a análise do cotidiano de jovens que combinavam escola/trabalho. Estavam marcadas para o mesmo dia duas entrevistas: a primeira, numa escola particular de classe média intelectualizada; e outra, em uma escola de periferia bem carente, na Zona Sul de São Paulo, que passou a fazer parte da amostra porque a diretora pretendia extinguir os cursos noturnos.

Na escola particular, a equipe pedagógica, através da experiência acumulada de trabalho com adolescentes, defendia a idéia de que a única forma de garantir a adesão do jovem à escola e ao conteúdo da grade curricular era trabalhando a escola como um espaço privilegiado de sociabilidade, desenvolvendo com força o sentido da associação entre estar naquela escola e o "pertencimento" a um grupo, proposta sempre fundamental quando se trata do relacionamento com adolescentes e jovens. O aluno não podia ser um número, ele era alguém, de preferência identificado com algum dos diferentes grupos que se organizavam no colégio de acordo com interesses. Os grupos, segundo a equipe da escola, manifestavam-se externamente por um visual mais ou menos agressivo, mas o fundamental era entender o jovem, sobretudo quando ele era agressivo, pois, freqüentemente, o visual estava completamente descolado das características de personalidade do adolescente.

Já na segunda entrevista, marcada na escola da Zona Sul, a diretora relatou, com muita seriedade e a convicção de quem está cumprindo fielmente seu papel de servidora dos interesses do Estado, que estava extinguido o curso noturno porque os alunos que trabalhavam durante o dia não freqüentam a escola para aprender, para estudar. Eles não têm, o que segundo ela seria o "natural", aquela responsabilidade de quem precisa ajudar a família; o que eles querem mesmo é se divertir — encontrar amigos, namorar, ouvir música e até, quem diria, ocupar a escola nos fins de semana para jogar basquete e organizar o time de futebol. Além disso, é claro, a escola estava sendo tomada por "elementos" perigosos, estes sempre descritos pelo seu visual, pela forma de se vestir ou se comportar.

A forte contraposição das duas situações, no mesmo dia, deixou muito transparente a dificuldade que os professores têm de entender o jovem pobre, mas deixou claro também que a dificuldade é fortemente permeada pelo preconceito e que tem como referência muito mais um imaginário construído sobre o como "deveria ser um jovem pobre ideal" ou "sobre como a mídia trata os jovens e suas famílias" do que a aproximação do que é o "jovem real". De certa forma, é este preconceito que faz com que o que é considerado natural e até desejável para jovens da classe média seja traduzido como desvio ou transgressão quando se trata de pobres. É como se dissessem: sabemos tratar com adolescentes, mas pobres não têm direito à adolescência.

Os fatos relatados ocorreram há mais de 15 anos e, neste período, felizmente, a educação democratizou-se muito, sobretudo o acesso ao Ensino Médio nos últimos cinco anos. Seria de se esperar, portanto, que o contato mais intenso com este tipo de clientela já tivesse minimizado tais percepções negativas e distorcidas de jovens oriundos de famílias dos setores mais populares, ou pelo menos diluído o temor de lidar com estes jovens. Em 1997, o Cenpec realizou a pesquisa "Jovens, subjetividade, saber e socialização", exatamente com o objetivo de "conhecer melhor a distância que se estabelece entre o tipo de jovem que a escola pública supõe ser seu aluno e o jovem que de fato está lá". A julgar pelos destaques dados aos depoimentos dos alunos, dos professores e pelos próprios comentários dos analistas que desenvolveram o projeto, pouco ou nada mudou. Quem sabe talvez tenha até piorado.

Depoimento de Professores

Para mim, a função da escola por excelência é ensinar. Mas, isto está difícil porque nem todos os jovens gostam da escola (...) Freqüentam-na porque os pais os obrigam, fazendo dela um ponto de encontro com os colegas (Cenpec, 1998a:47).

Falta de interesse e falta de valores morais que estes jovens têm em casa. Eles não têm estímulo, não gostam da escola porque ninguém nunca explicou para eles o que é a escola. É difícil uma família que briga pela cachaça, pela comida, pelo cobertor, entender a escola. Estudar para quê?

Depoimento de Alunos

Quando eu saio e chego tarde em casa, minha mãe senta no sofá comigo e me ensina a lição da vida (Cenpec, 1999:100).

Comentário da Equipe de Análise

(...) as famílias são identificadas pelos alunos como o lugar do aconchego, do acolhimento, da possibilidade efetiva de estar com outros e ser aceito por eles (Cenpec, 1998b:24).

Comentários da Equipe de Análise sobre Fala de Aluno

Lucimara está há três anos na escola X. Antes estudava em São Miguel Paulista, onde sua família morava. Ela diz que lá havia mais violência do que na sua escola atual. Os bandidos entravam no meio da aula e queriam estuprar as professoras. O ensino também era ruim, pois os professores "não ligavam muito, quem não entendesse, azar dele". Ela diz gostar muito da escola atual e de alguns de seus professores. Os melhores, segundo ela, são os que tentam compreender as dificuldades dos alunos e explicam de novo a matéria quando eles não entendem. Mas há os que "não querem nem saber se os alunos entenderam ou não e ficam descontando neles os seus problemas pessoais".

Luiza diz gostar de tudo na escola. Dos professores, dos alunos. "É muito legal, só que tem alunos que fazem guerra de bolacha, que picham, estragam a escola." Se não estivesse estudando, estaria "trabalhando numa barraca no centro, porque ia ser muito burra e ia estar trabalhando assim". Para ela, quem faz esse tipo de trabalho "não pensa, nunca estudou". O ensino da escola não é muito bom, mas não sabe dizer por quê. Ela gostaria que a escola tivesse aulas regulares, até nos sábados, porque o seu sábado é "muito chato", "eu fico em casa assistindo televisão".

Conclusões da Equipe de Análise

Na verdade, um dos pontos que pretendíamos sinalizar (...) é o fato de que não é tanto a necessidade de começar a trabalhar que leva os jovens a abandonar a escola. O que realmente os afasta da escola é o fato de que ela é o espaço de indiferença, passividade e, sobretudo, um espaço ao qual eles sentem que não pertencem. Poderíamos dizer que é a escola que abandona o jovem, e não o inverso (Cenpec, 1998a:39).

A justaposição destes depoimentos deixa claro o total desencontro entre estes atores sociais que, surpreendentemente, vivem experiências partilhadas quotidianamente. Trata-se verdadeiramente de uma conversa entre "cegos, surdos e mudos". Diferente do que julgam os professores, as famílias apóiam (e muito) os filhos e os estudos. As famílias pobres estão longe da degeneração (claramente preconceituosa) descrita pelos professores, sendo inclusive bastante compreensivas com as dificuldades enfrentadas por seus filhos (bem mais que os professores). Os jovens, por sua vez, gostam muito de estar na escola, mas gostariam de ter na escola sobretudo um espaço de encontro, de identificação e de pertencimento. A percepção que os professores (e os setores auto-assumidos como progressistas) têm da relação escola/trabalho é distorcida. Ao contrário do que dizem (e como estamos afirmando há 15 anos), é a desilusão com a escola que mais freqüentemente leva o jovem a abandoná-la pelo trabalho e não o inverso. Afinal, quem não ouviu ainda pais entristecidos afirmarem: este aí foi trabalhar porque não tem cabeça para o estudo!

É claro que, considerando a questão do ponto de vista dos professores, as dificuldades e os problemas não são poucos, nem fáceis. Dentre tantos desafios hoje colocados ao professor, pelo menos três relacionam-se diretamente à questão da violência escolar. O primeiro diz respeito à relação que ele deve estabelecer com grupos de indivíduos de faixa etária e camada social distintas da sua e que, ele acredita, apresentam comportamentos e valores pertencentes a um mundo adulto e juvenil diferente do seu. Boa parte desses valores é construída e expressa por oposição ao mundo adulto, num movimento de diferenciação cultural que, implicitamente, anuncia possibilidades de intensos conflitos. Além disso, vivemos uma crescente deterioração dos códigos de convivência e de tratamento de tensões sociais, em que o uso da força passa a ser o principal argumento para dirimir as diferenças. Finalmente, neste cenário, é possível supor que o caráter de "autoridade docente" venha sendo minado, pois o consenso em torno da sua legitimidade está abalado.

Neste quadro, a linha divisória entre o aluno e o marginal é, da ótica do professor (e da sociedade em geral), muito tênue, sendo que os jovens pobres são eternos "suspeitos". Como num círculo vicioso, a "suspeição" é, ao mesmo tempo, o apoio para a eficiência da manipulação do imaginário social que amplia e distorce o tamanho da violência e a sua maior vítima. A "suspeição" é também a origem e o resultado de manifestações e "ações" violentas por parte dos jovens, como fica claro neste depoimento extraído da matéria da Folha de S.Paulo, já citada: "A gente passa a roupa, pega a roupinha mais bonitinha que a gente tem, quando chega lá é discriminado". Os "bodinhos", como os jovens da periferia se referem aos do Plano Piloto, são arrogantes e se sentem superiores a eles, segundo os pesquisados.

Não é difícil de perceber que, diante destes enormes desafios, a equipe escolar, em geral, e o professor, em particular, sintam-se especialmente abalados nos momentos em que a síndrome da violência, por contágio via mídia, está em plena fase de vigência. Não é difícil perceber também que, no rastro desta síndrome, as tensões e os conflitos tendem a se acentuar, ampliando o fosso dos desencontros entre alunos e professores. Portanto, se quisermos trabalhar em prol dos jovens das camadas populares, melhorar seu desempenho escolar e minimizar a violência juvenil, talvez a tarefa mais árdua seja romper este círculo vicioso, o que só será possível através do desmonte da construção desta imagem de "suspeição".

Um bom ponto de partida para esta cruzada é começar pela área acadêmica, que costuma adotar, em seus trabalhos, a concepção de que os jovens, assim como toda a sociedade, estão marcados por diferenças de "classe". Em outras palavras, não existe uma juventude, mas sim várias juventudes — o jovem operário, o jovem bóia-fria, o jovem da periferia, etc. O que se procura argumentar aqui é que, apesar (ou para além) das diferenças nas condições de vida que efetivamente existem, os jovens, independentes da sua condição socioeconômica, não só apresentam, mas sobretudo cultivam uma identidade ou uma marca de "juventude". Hoje (certamente a mídia e a imposição de consumo têm grande responsabilidade nisto), mais do que nunca, ser jovem é mais do que pertencer a uma faixa etária específica, é viver um "estilo de vida" amplamente valorizado na sociedade.

É necessário também evitar o discurso recorrente que associa fortemente pobreza/ juventude e violência. De fato, como comentado anteriormente, em ocasiões de surto da síndrome, a mídia costuma receber um bom reforço de eminentes representantes do pensamento de esquerda, que tendem a insistir em culpar a miséria e o desemprego. O que é importante destacar no contexto deste trabalho é que esta insistência acabou por produzir danos profundos para a imagem do jovem pobre, principalmente se ele for negro. Ou seja, a persistência em associar pobreza/violência/adolescência, que tem sido feita com a intenção de proteger e trabalhar em favor dos pobres, acabou, ao contrário, por acentuar o maior problema que eles vivenciam hoje: a estigmatização e sua conseqüente discriminação. De tanto repetir que a carência é o fator por excelência que empurra o jovem para a marginalidade, acabou-se por estimular e contribuir para a gestação de um imaginário social que percebe os jovens pobres como perigosos e ameaçadores da ordem, os eternos e maiores suspeitos. Em trabalho recente, Abramo (1989), tentando evidenciar a importância do lazer na vida do jovem paulistano de baixa renda, chama a atenção para as enormes dificuldades que ele enfrenta para concretizá-lo. Fala da dificuldade de equacionar o espaço do lazer diante do problema econômico da família, do tempo disponível, do cansaço, e completa: "Alie-se a isso o destrato e a repressão a que muitas vezes são submetidos: os jovens pobres nas ruas são objeto de suspeição, ainda mais se não estão a caminho da escola ou do trabalho, se estão à toa — sobre eles paira a desconfiança da baderna, quando não da delinqüência. Os ônibus não param nos pontos que ficam lotados de jovens às saídas dos bailes com medo da ameaça; muitos locais de diversão juvenil (como as casas de jogos eletrônicos) são considerados 'pontos' suspeitos de vendas de drogas e intermediação de objetos roubados, e, portanto, passíveis de sofrer 'batidas' e fechamento."

Enfim, os jovens pobres e os ricos desejam uma escola onde consigam aprender, mas que também seja um espaço agradável, onde possam encontrar amigos, ouvir música e namorar. É preciso, cada vez mais, que a equipe escolar procure conhecer sua clientela, construindo um ambiente adequado às suas características e interesses.

O visual dos alunos, por vezes agressivo, não deve intimidar. Raspando-se a "casca", o que se vê são pessoas com expectativas muito sensatas em relação ao futuro, à família e à escola, como fica absolutamente claro no amplo conjunto de depoimentos reunidos pelo trabalho do Cenpec e em várias outras pesquisas, experiências, documentários, vídeos, etc. Os anseios de manifestar na escola a sua marca de viver a juventude não podem ser ignorados, nem vistos como um obstáculo aos estudos. Investir em atividades artísticas, culturais e esportivas, com a contribuição de diferentes áreas do conhecimento, é uma forma criativa de combinar a aprendizagem e prazer. É essencial, ainda, que a escola possua uma identidade e que os jovens possam sentir orgulho de fazer parte dela. Eles têm necessidade de símbolos que os inspirem. Em uma escola que tem cara própria, esses símbolos estão e devem estar em toda parte — na camiseta com logotipo próprio, no hino, nos "gritos de guerra" entoados em competições esportivas. Esse sentimento aumenta quando a escola os convida a participar da resolução de problemas, através do grêmio, ou os envolve em projetos interdisciplinares, como aqueles voltados para a difusão de mensagens de proteção à saúde, em que os estudantes colocam os conhecimentos aprendidos a serviço da comunidade. Pesquisas recentes realizadas em áreas violentas e carentes do Rio de Janeiro e de certa forma o próprio trabalho do Cenpec mostram que os jovens querem uma escola limpa, que ensine, cuja biblioteca funcione, que existam referências como uniformes, horário rígido, hino escolar, times de futebol e outros esportes, enfim, uma escola que os permita desfrutar deste curto período de juventude.

Na verdade, tudo que acabou de ser descrito aqui não é novidade, é uma escola típica de classe média que todos conhecemos, a escola dos nossos filhos. Os jovens dos setores populares estão apenas iniciando a sua trajetória em direção ao Ensino Médio, uma vez que hoje, segundo dados do MEC (1998) bem menos que a metade dos jovens cursa ou conclui o Ensino Médio na faixa etária adequada. Temos que nos aparelhar para recebê-los melhor. Projetos como o dos Parceiros do Futuro constituem um ótimo começo, mas serão muito mais eficientes se entre suas prioridades estiver fortemente colocada a intenção de conhecer melhor a distância (e como ela se estabelece) entre o tipo de jovem que a escola pública supõe ser seu aluno e o jovem que de fato esta lá. Se isto acontecer, o rendimento será certamente bem melhor. De quebra, deve diminuir a violência.

NOTAS

E-mail da autora: fmadeira@seade.gov.br

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  • 1
    . No contexto deste trabalho, não se considerou importante entrar na discussão das diferenças conceituais entre grupos, gangues, galeras, bandos, etc.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      03 Dez 2004
    • Data do Fascículo
      Dez 1999
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