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Educação científica: uma prioridade nacional

Resumo

O avanço explosivo do conhecimento está marginalizando os povos que não dispõem de uma infra-estrutura de pesquisa associada à formação de recursos humanos de alto nível e a uma educação científica universal. A análise da situação do país mostra a necessidade da expansão da base de pesquisa acadêmica e da inovação tecnológica. É destacada a urgência na mudança do sistema de ensino fundamental, médio e superior, passando de informativo para formativo, como meio de capacitação do homem para o mercado de trabalho, altamente dependente de um aprender contínuo.

educação científica; ciência e tecnologia; políticas públicas


EDUCAÇÃO CIENTÍFICA

uma prioridade nacional

GLACI T. ZANCAN

Professora de Bioquímica da Universidade Federal do Paraná

Resumo: O avanço explosivo do conhecimento está marginalizando os povos que não dispõem de uma infra-estrutura de pesquisa associada à formação de recursos humanos de alto nível e a uma educação científica universal. A análise da situação do país mostra a necessidade da expansão da base de pesquisa acadêmica e da inovação tecnológica. É destacada a urgência na mudança do sistema de ensino fundamental, médio e superior, passando de informativo para formativo, como meio de capacitação do homem para o mercado de trabalho, altamente dependente de um aprender contínuo.

Palavras-chave: educação científica; ciência e tecnologia; políticas públicas.

A ciência é antes de mais nada um mundo de idéias em movimento ¾ o processo para a produção do conhecimento ¾ e busca descobrir a unidade existente nas diferentes facetas da experiência do homem com o seu meio. Assim como ela, as artes também procuram a unidade na variedade (Bronowski, 1965). As descobertas da ciência e o trabalho das artes são faces da mesma criatividade e compreendem a recriação da natureza. É na formulação de hipóteses que o cientista usa imaginação como o artista, mas trilha um caminho próprio quando exerce a crítica e a experimentação. A atividade científica busca soluções ao confrontar, o que poderia ser feito com aquilo que é (Jacob, 1997). Ela é a principal realização do mundo atual e, talvez mais do que qualquer outra atividade, distingue este século dos demais. Devido à natureza social da ciência, a sua divulgação é crucial para o seu progresso, sendo que o avanço da ciência da informação afeta todos os campos científicos (Rutherford e Algreen, 1990).

Os benefícios da ciência são, no entanto, distribuídos assimetricamente entre países, grupos sociais e sexos. O desenvolvimento científico tornou-se um fator crucial para o bem-estar social a tal ponto que a distinção entre povo rico e pobre é hoje feita pela capacidade de criar ou não o conhecimento científico (Unesco, 2000).

Já a tecnologia reflete e molda o sistema de valores e estende nossas habilidades para mudar o mundo, sendo uma força poderosa no desenvolvimento da civilização e própria de cada cultura. As tecnologias, ao se tornarem sofisticadas, estreitaram sua ligação com a ciência, tornando difícil, em alguns campos, separar uma da outra. Como a tecnologia afeta o sistema social e cultural mais diretamente do que a pesquisa científica, as implicações imediatas de seus sucessos e fracassos refletem diretamente na atividade humana (Rutherford e Algreen, 1990). É reconhecido que desenvolvimento tecnológico requer uma sólida base científica. As novas tecnologias devem ser direcionadas para processos produtivos seguros e limpos, mais eficientes no uso dos recursos e na proteção do meio ambiente. A ciência e a tecnologia devem ser dirigidas para aumentar a competitividade, o emprego e a justiça social (Unesco, 2000).

A tecnologia também não está distribuída igualmente entre os povos. Apenas 15% da população da terra fornece todas as inovações tecnológicas do mundo. Mais da metade da população mundial está apta a adotar essas tecnologias para produção e consumo, o restante corresponde a regiões tecnologicamente excluídas. A maioria dessas regiões estão nos trópicos e imersas na pobreza. É hoje reconhecido que a tecnologia é mais excludente que o capital e, juntamente com a ciência, define o futuro de um povo. A capacidade tecnológica de uma economia depende não só de suas próprias inovações, mas também da capacidade de adaptar as tecnologias desenvolvidas em outros lugares (Sachs, 2000). Para Sachs, "O mundo de hoje é dividido não pela ideologia mas pela tecnologia."

A Conferência Mundial sobre a Ciência declara que, "sem instituições adequadas de educação superior em C&T e em pesquisa, com uma massa crítica de cientistas experientes, nenhum país pode ter assegurado um desenvolvimento real" (Unesco, 2000). E o último relatório do Banco Mundial sobre Ensino Superior (World Bank, 2000) complementa: "É pois vital para o futuro dos países em desenvolvimento que eles assumam a tarefa de constantemente estimular e de manter seus talentos em ciência e tecnologia" e exemplifica com o caso de países africanos que passaram a ter dificuldades nas negociações internacionais devido ao desaparecimento da agenda de pesquisa em suas universidades.

Por outro lado, o avanço do conhecimento e sua apropriação comercial está colocando para a reflexão humana uma série de indagações que outras épocas históricas não vivenciaram. Os problemas decorrentes das novas tecnologias precisam e devem ser discutidos por todos, pois afetarão profundamente a vida do homem sobre a terra. Para poder opinar e decidir é preciso primeiro conhecer.

Dentro desse contorno, é fundamental olhar criticamente a situação de nosso país. Nos últimos 30 anos, com a finalidade de implantar a pesquisa nas universidades, foi viabilizada a criação da pós-graduação com o financiamento dos grupos de pesquisa existentes na década de 70. Os resultados estão aí para comprovar que as políticas públicas, quando são bem definidas e implantadas, resultam em sucesso. Na Tabela 1, apresenta-se a expansão da formação de recursos humanos, cujo contingente vem sendo praticamente todo absorvido pelas universidades. O país montou um parque de formação de recursos humanos invejável, cobrindo praticamente todas as áreas do conhecimento. Como a pós-graduação nasceu e se desenvolveu estreitamente associada à pesquisa, o número de artigos originais de pesquisa cresceu. Em 1996, o Brasil ocupava o 18o lugar em produção científica (King, 1997), que continua a crescer (Gráfico 1). Na realidade, houve crescimento em todas as áreas do conhecimento acima da média mundial, mas a produção, avaliada pelos artigos originais de pesquisa publicados, ainda está ao redor de 1% da produção científica indexada no Institute for Scientific Information (ISI). Outro dado importante é que esta produção está concentrada na região Sudeste, mais particularmente em São Paulo, gerando uma distribuição desigual entre as diferentes regiões do país.


Os dados da Tabela 2 mostram que a capacidade de inovação tecnológica no Brasil é ainda muito baixa (Freeman, 1999) e precisa se expandir para que se possa não só atender às necessidades imediatas da população com tecnologias apropriadas, como também produzir bens e serviços que impulsionem o desenvolvimento econômico. Essa tarefa depende basicamente da capacidade das empresas, portanto, são necessários investimentos privados orientados por uma política industrial bem equacionada. O fato de o país dispor de uma base científica razoável permite planejar o crescimento da inovação através do estímulo da integração das universidades com as empresas. Por outro lado, há a necessidade de dispor de engenheiros nos centros de desenvolvimento tecnológico das empresas, uma vez que os números indicam que há apenas 0,6 pesquisador em tempo integral para 1.000 trabalhadores, índice muito baixo quando comparado ao de países de economia menor que a nossa (World Bank, 1999).

Se, por um lado, é preciso expandir a capacidade de inovação, por outro, é fundamental não esquecer de que a base científica precisa crescer ainda mais para atingir pelo menos uma posição equivalente à nossa economia, sem o que se perderá a competitividade internacional. A recente criação dos fundos setoriais é um fator importante na expansão da inovação, mas deve-se ressaltar que, sem o suporte de um parque científico forte, não haverá inovação.

Como o incremento da ciência ocorreu nas universidades, vale a pena se deter sobre as repercussões do crescimento observado no interior do sistema de ensino superior. Os dados da Tabela 3 mostram que o número de Doutores no sistema de ensino superior é pequeno e concentra-se no sistema público (MEC, 2000). Os números são globais e mesmo dentro do universo das instituições públicas há uma grande heterogeneidade. Portanto, estamos longe da universalização da pesquisa nas universidades, como sonharam Anísio Teixeira (1968), Florestan Fernandes (1979), Darci Ribeiro (1975) e tantos outros. Outro fator a destacar é que o crescimento do ensino superior, voltado para o ensino profissionalizante, se deu fundamentalmente no sistema privado que, já em 1980, era responsável por 64% das matrículas (MEC, 2000).

Outro dado que emana das análises disponíveis sobre o ensino superior é que o sistema de acesso é perverso ao excluir os jovens de famílias de menor poder aquisitivo (World Bank, 1999). O problema da exclusão, infelizmente, não está só no ensino superior, na realidade, aparece no ensino secundário seja na cidade seja na zona rural. Além disso, o tempo de permanência na escola diminui com o poder aquisitivo, e é desigual nas diferentes regiões do país, equivalendo a uma média de 4,1 anos no Nordeste e 6,2 anos no Sudeste, em contraste aos 11,1 anos dos países do OCDE (World Bank, 1999). Os dados mostram que o país tem um desempenho educacional médio, como médio é o índice de desenvolvimento humano recentemente publicado pelo PNUD (2000). Convém entender que essas informações refletem médias estatísticas e, portanto, escondem enormes desequilíbrios internos.

Os números melhoraram nos diferentes níveis de ensino, mas certamente a qualidade não atende às necessidades do mundo atual. Os problemas avolumam-se em todos os níveis educacionais. A reforma acadêmica das universidades é premente e começa já com o sistema de acesso. Será necessário enfrentar com criatividade o gargalo do ingresso, pois, ao se eliminar, por motivos econômicos, um universo de jovens criativos, potencialmente capazes de gerar conhecimento e inovações, está se limitando nossas chances competitivas, há a necessidade da reforma de gestão das universidades por parâmetros gerenciais modernos, com a implantação de uma autonomia responsável e socialmente controlada no sistema federal de ensino superior.

As políticas para o desenvolvimento do sistema universitário público devem promover o crescimento mais harmônico entre as diferentes regiões do país para evitar que a formação das elites fique circunscrita a uma única região. Paralelamente, é preciso melhorar os métodos de avaliação do desempenho dos egressos para que a qualidade do ensino no nível superior seja aprimorada.

Por outro lado, é primordial alterar a vida acadêmica, podendo-se fazer algumas sugestões para modernizar o processo de formação: estimular a flexibilização dos currículos através de programas de estudos individualizados usando a tutoria; incentivar os jovens criativos, envolvendo-os nas atividades de pesquisa e extensão; estimular os jovens empreendedores com a criação de empresas jovens; integrar os grupos de pesquisa das universidades com um objetivo comum, visando atender às demandas da sociedade. Cabe à universidade a liderança do sistema educacional e, para isso, ela deve ser crítica, competente e eficiente.

Os currículos desde o ensino fundamental até o superior estão desenhados para que os estudantes memorizem um vasto número de fatos, não relacionados com sua vida diária. Aqui valeria a pena lembrar o texto de Paulo Freire (1967): "A partir das relações do homem com a realidade, resultantes de estar com ela e de estar nela, pelos atos da criação, re-criação e decisão, vai dinamizando o seu mundo. E, na medida em que cria, recria e decida, vão se transformando as épocas históricas (...) Por isso, desde já saliente-se a necessidade de uma permanente atitude crítica, único modo pelo qual o homem realizará a sua vocação natural para integrar-se. Necessitávamos de uma educação para a decisão, para a responsabilidade social e política. Uma educação que possibilitasse ao homem a discussão corajosa de sua problemática. Educação que o colocasse em diálogo constante com o outro. Que o identificasse com métodos e processos científicos".

Considerando que hoje fica difícil entender o mundo em que vivemos sem o conhecimento dos princípios básicos da ciência e da tecnologia, "é fundamental aumentar o capital humano da nossa população através de uma educação científica voltada para o apreender como apreender" (Toffler, 1970).

A Declaração da Unesco coloca: "A educação científica, em todos os níveis e sem discriminação, é requisito fundamental para a democracia. Igualdade no acesso à ciência não é somente uma exigência social e ética: é uma necessidade para realização plena do potencial intelectual do homem."

Trata-se de selecionar a informação pertinente e que seja necessária para fundamentar raciocínio e decisões. A mudança básica significa não se limitar a memorizar um conjunto desconexo de fatos, mas sim estruturar um arcabouço relevante para análise de conceitos básicos para a compreensão da ciência.

Os membros da comunidade científica brasileira tem hoje mais uma tarefa: lutar para mudar o ensino de informativo para transformador e criativo. Este desafio é uma tarefa gigantesca, pois abarca todos os níveis de ensino sem privilegiar um em detrimento de outro. Para que se atinjam os objetivos de alterar o sistema educacional, é preciso concentrar esforços na formação dos professores. O Plano Nacional de Educação, elaborado pelo Congresso Nacional, desenha corretamente a formação do magistério, calcando-a na pesquisa como princípio orientador. Os professores de todos os níveis precisam estar conscientes de que a ciência não é só um conjunto de conhecimentos, mas sim um paradigma pelo qual se vê o mundo. Para colocar o sistema educacional em novo patamar, próprio do novo século que se inicia, o professor deverá ser um orientador de seus alunos no processo da descoberta e da reflexão crítica. Logo, a pesquisa educacional precisa ser ampliada, pois as experiências educacionais nem sempre podem ser transportadas de uma realidade sociocultural para outra, exigindo que sejam estimuladas por investimentos apropriados.

O desafio é criar um sistema educacional que explore a curiosidade das crianças e mantenha a sua motivação para apreender através da vida. As escolas precisam se constituir em ambientes estimulantes, em que o ensino de matemática e da ciência signifique a capacidade de transformação. A educação deve habilitar o jovem a trabalhar em equipe, a apreender por si mesmo, a ser capaz de resolver problemas, confiar em suas potencialidades, ter integridade pessoal, iniciativa e capacidade de inovar. Ela deve estimular a criatividade e dar a todos a perspectiva de sucesso.

Neste contexto deve-se deixar claro que as políticas públicas para área de ciência e tecnologia devem ser amplas, envolvendo não só a inovação, mas, fundamentalmente, o desenvolvimento das ciências, tendo ainda a educação científica, em todos os níveis, como prioritária. É preciso considerar que o analfabetismo científico aumentará as desigualdades, marginalizando do mercado de trabalho as maiorias que hoje já são excluídas. Para ser bem- sucedida, a reforma do sistema educacional deve nascer da comunidade, envolver e valorizar os professores, a fim de que possamos ter alguma perspectiva como nação, na sociedade do conhecimento.

NOTAS

E-mail da autora: zancan@bio.ufpr.br diretoria@sbpcnet.org.br

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Nov 2002
  • Data do Fascículo
    Jul 2000
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