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Ciências biológicas e biotecnologia: realidades e virtualidades

Resumo

Os enormes progressos das ciências biológicas ocorridos nas últimas décadas abrem grandes perspectivas benéficas para o homem no terreno das aplicações, em particular no domínio da agronomia e da biomedicina. A sociedade brasileira deverá romper com essa situação, em que os progressos beneficiam apenas setores privilegiados, e promover a educação e divulgação científicas de qualidade a todos os níveis, concentrando sua aplicação em domínios essenciais para vencer atrasos e deformações da sociedade brasileira. Se a ciência e a tecnologia não tiverem relação direta com a realidade do dia-a-dia, traduzindo-se em melhoria da situação material e cultural do conjunto da sociedade, estarão se arriscando a evoluir para uma situação de atividade apenas virtual.

biotecnologia; ciência e realidade; tecnologia e virtualidade


realidades e virtualidades

LUIZ HILDEBRANDO PEREIRA DA SILVA

Professor aposentado da Universidade de São Paulo. Professor honorário do Instituto Pasteur de Paris.

Membro da Academia Brasileira de Ciências

Resumo: Os enormes progressos das ciências biológicas ocorridos nas últimas décadas abrem grandes perspectivas benéficas para o homem no terreno das aplicações, em particular no domínio da agronomia e da biomedicina. A sociedade brasileira deverá romper com essa situação, em que os progressos beneficiam apenas setores privilegiados, e promover a educação e divulgação científicas de qualidade a todos os níveis, concentrando sua aplicação em domínios essenciais para vencer atrasos e deformações da sociedade brasileira. Se a ciência e a tecnologia não tiverem relação direta com a realidade do dia-a-dia, traduzindo-se em melhoria da situação material e cultural do conjunto da sociedade, estarão se arriscando a evoluir para uma situação de atividade apenas virtual.

Palavras-chave: biotecnologia; ciência e realidade; tecnologia e virtualidade.

O progresso observado nas últimas décadas em ciências biológicas, demonstrando a universalidade dos princípios básicos de estrutura e funcionamento dos seres vivos e decifrando o código genético, promoveu um avanço vertiginoso de conhecimentos e uma convergência das disciplinas biológicas que, durante o século XIX e início do século XX, tinham conhecido uma lenta acumulação de informações e diversificação por meio da multiplicação das disciplinas.

Essa evolução é bem recente: pode-se mesmo precisar a data de seu início em 1953, quando James Watson e Francis Crick publicaram seu famoso modelo de estrutura do DNA (ácido desoxiribonucléico), já identificado por numerosas pesquisas como sede química da informação genética. O modelo abria caminho para as manipulações experimentais que logo foram coroadas de êxito, com a síntese enzimática in vitro do DNA por Kornberg em 1956, a proposição do RNA mensageiro (ácido ribonucléico) e do modelo de regulação da expressão dos genes em 1961 por Jacob e Monod, o desenvolvimento das técnicas de seqüenciamento dos genes nos anos 70 por Gilbert e Sanger e a descrição dos enzimas ditos de restrição por Arber, que permitiram o nascimento da engenharia genética.

Essas conquistas e descobertas em ciência fundamental tiveram repercussão imediata na esfera biotecnológica. Com o desenvolvimento de equipamentos especializados e a produção industrial de insumos e reagentes, "democratizou-se" a pesquisa, o que permitiu que os estudos em biologia molecular, restritos anteriormente a um punhado de especialistas e instituições privilegiadas, se generalizassem e a capacidade de investigação se estendesse a grande número de laboratórios e equipes em nível mundial. Novas biotecnologias se desenvolveram também como aplicações de interesse geral, tais como produtos de diagnóstico, técnicas de vacinação e de preparação de insumos químicos e biológicos, pela engenharia genética, técnicas de seleção e melhoramento de espécies vegetais e animais e a introdução da transgênese (transferência de informação genética de um organismo a outro, da mesma espécie ou de espécie diferente). A biologia celular e molecular teve grande desenvolvimento e, nos últimos anos, vem atravessando a fase denominada genômica, em que os pesquisadores se concentram na descrição do seqüenciamento do repertório de genes de seres vivos (genomas), desde vírus e bactérias até o homem, e na identificação de genes responsáveis por características fenotípicas normais ou patológicas, com a perspectiva de decifrar e definir, nos próximos anos, as informações completas dos repertórios de genes típicos de cada espécie. Ao mesmo tempo, desenvolveu-se um capítulo próprio da informática, a bioinformática, que introduziu metodologias de análise das macromoléculas biológicas e de suas interações, permitindo a experimentação nas telas de computadores, com enorme economia de tempo e de complexas operações de bancada. A bioinformática introduziu igualmente metodologias capazes de analisar estruturas moleculares ou frações para definir os responsáveis pela especificidade funcional da molécula, seja como enzima, como antígeno, como inibidor ou ativador, como receptor ou mediador, enfim, uma diversidade de funções possíveis.

Num seguimento natural da fase atual, que é essencialmente de acumulação de informações, será possível observar, nas próximas décadas, o desenvolvimento da era pós-genômica (que já se inicia nos centros de vanguarda). Essa era abrirá um ciclo de ampliação dos conhecimentos científicos e será centrada na análise funcional dos genes seqüenciados, mas de função ignorada, e nos mecanismos de interação e regulação entre eles, que levam à expressão das capacidades funcionais de cada ser vivo. A compreensão desses mecanismos, aliada ao desenvolvimento das biotecnologias, permitindo a intervenção sobre o genoma primitivo, com integração de novas informações externas, cria diversas possibilidades de ação e promove um estreitamento das fronteiras entre os conhecimentos básicos fundamentais em biologia e o desenvolvimento de aplicações que atualmente se denominam de novas biotecnologias. Exemplos diários são divulgados pela mídia com um certo sensacionalismo sobre a clonagem de animais e plantas ¾ e a discutida clonagem humana ¾ e a produção de organismos geneticamente modificados (OGM). As expectativas favoráveis são grandes, por exemplo, no campo da medicina, com a prevenção de patologias hereditárias, e a correção de certos defeitos genéticos (terapia gênica); da agronomia, com a produção agropecuária e a melhoria funcional ou a adaptação de espécies úteis de plantas e animais; das indústrias químicas, alimentícias e farmacêuticas, com a produção de moléculas sintéticas capazes de agir como fármacos, alimentos, agrotóxicos, inseticidas biológicos, novos materiais e outros produtos de interesse.

OS PROGRESSOS DA CIÊNCIA REDUNDAM AUTOMATICAMENTE EM PROGRESSO SOCIAL?

Pode-se perguntar em que esses grandes progressos da ciência e da biotecnologia podem ou devem ser considerados instrumentos para acelerar o desenvolvimento socioeconômico da sociedade brasileira, desenvolver o bem-estar de sua população, resolver seus problemas crônicos e colocar o país no caminho de um real progresso social.

Temos certamente em algumas de nossas universidades e em alguns institutos de pesquisa cientistas e técnicos qualificados, capazes não apenas de acompanhar os progressos científicos e técnicos internacionais, como também de contribuir de forma original para esses progressos. O exemplo recente do sucesso na clonagem do seqüenciamento completo do genoma da Xylella fastidiosa, bactéria responsável pela doença dos cítricos conhecida como amarelinho, é uma prova, entre outras, da existência de competências humanas e estruturas laboratoriais capazes de situar a pesquisa científica e o desempenho tecnológico em âmbito mundial. Esse sucesso se desdobra em projetos atualmente em andamento, como o do câncer e o seqüenciamento da cana-de-açúcar e de outras variedades vegetais, assim como o de organismos patogênicos, tais como o paracoccidioides, responsável por uma grave micose profunda, todos financiados pela Fapesp.

Participante que sou da atmosfera de orgulho legítimo de ver o país se colocar, com essas ações e iniciativas, na esfera internacional de vanguarda das pesquisas na área biológica e biotecnológica, não posso deixar de sentir, entretanto, certo temor de que a situação atual possa nos levar ao ufanismo, doença bem nacional, que a partir daí, contribuirá para criar no país uma relação de virtualidade com a ciência.

O ufanismo brasileiro, que nos acompanha talvez desde os tempos da colônia e da carta de Caminha, tem se deslocado imperceptivelmente para o virtual. Se antes ele se exprimia pelo orgulho de termos as mais belas praias do mundo, os mais lindos coqueiros, bosques com mais flores, o melhor café do mundo, o melhor futebol, nota-se que esse orgulho vem se deslocando para o campo virtual. O que caracteriza o virtual? Evidentemente, é a focalização de fatos, ações, situações e acontecimentos dos quais não se participa senão virtualmente. A supremacia da Televisão e da Internet vem reforçando as atitudes de participação virtual. As telenovelas registram realidades virtuais. O cinema, principalmente o americano, com suas aventuras espaciais e fantásticas, valoriza apenas a participação virtual. O virtual invade não só as atividades de lazer como o conjunto da atividade humana e até o esporte. Ele penetra mesmo em nosso futebol, que era o esporte nacional. Até um passado recente, grande parte da população brasileira participava, é verdade, virtualmente pela televisão mas, por outro lado, tinha participação ativa, ao menos numa fase da vida, jogando suas peladas ou praticando seriamente. Os esportes nacionais estão se virtualizando, pois os mais prestigiados agora são o tênis e as corridas de fórmula 1. No tênis, milhões de brasileiros acompanham pela televisão os gestos frenéticos de enviar uma bolinha com uma raquete de um lado para o outro de uma rede; nas corridas automobilísticas das fórmulas 1, 2 e 3, outros milhões de brasileiros ficam horas contemplando as arrancadas ruidosas de "petardos" de alta tecnologia dirigidas por audazes aventureiros. Quantos brasileiros praticam o tênis ou a corrida automobilística? Um número insignificante. Mas tanto um como outro são considerados esportes de massa. Esportes virtuais. Mesmo o futebol está evoluindo para o virtual, porque o objetivo não é mais a prática em si, mas sim ser (ou ver) um craque que será vendido por milhões para um clube europeu. Quantos vão atingir esse tipo de realidade? Alguns poucos. Os outros, isto é, a maioria, participam apenas na contemplação. No virtual.

CIÊNCIA COMO REALIDADE VIRTUAL?

Não permitamos que a ciência também caminhe para o virtual. Como seria isso possível? Muito simples. Se a ciência, como conhecimento, não for algo acessível à sociedade ¾ desde a escola primária até a universidade e, fora da escola, pela permanente informação científica correta, discreta e eficiente e pela prática em cada setor de atividade ¾, ela se transformará em atividade real apenas para um pequeno núcleo de privilegiados e em virtual para a maioria da população. A informação hoje é essencialmente sensacionalista. Nos últimos anos, a imprensa (não apenas a nacional) tem se especializado em destacar assuntos que alimentam a virtualidade da ciência, como, na área biológica, a clonagem de seres humanos e as qualidades ou os perigos dos produtos vegetais ou animais geneticamente modificados, os célebres OGM. Como muitos leitores são pouco informados ou ignorantes das bases científicas ou éticas de tais problemas, o que se obtém com isso é um pânico latente e/ou o desenvolvimento de verdadeiro obscurantismo medieval na população. É mais grave ainda a divulgação escandalosa de sucessos (alguns reais, mas em geral fantasiosos) de certas aplicações biotecnológicas que alimentam ilusões sobre como vencer o câncer, a esterilidade ou a velhice, criando outras fontes de virtualidade.

Mas não é apenas pela ação de uma imprensa sensacionalista que se pode evoluir para uma virtualidade científica. É pela própria evolução da prática científica e de suas aplicações na sociedade. Falava-se, no passado, em conhecimento científico livresco, isto é, sem ligação com a prática e restrito à leitura e à transmissão do que foi aprendido. Era uma forma antiga de virtualização. Menos grave do que a atual, porque se limitava aos eruditos, os que tinham capacidade de leitura. O perigo atual é transformar a ciência em conhecimento "televisesco" e "internetesco". Os livros eram e continuam a ser instrumentos indispensáveis para o aprendizado da ciência. Televisão e Internet são novos meios, agora fundamentais, de acesso aos conhecimentos científicos. Se o processo e a relação com a ciência se reduzir ao livro, à televisão, ao vídeo ou à Internet, caímos objetivamente no virtualismo. A ciência e a biotecnologia se tornam virtuais também à medida que a sociedade não tenha um nível de acesso aos benefícios que ela proporciona ou pode proporcionar, seja por falta de recursos, seja por não estar preparada culturalmente e/ou socioeconomicamente para incorporar as descobertas e as novas aplicações. Tomemos o exemplo das práticas médicas e biomédicas. Elas vêm se beneficiando de progressos extraordinários nas últimas décadas com a implantação de técnicas de exploração de imagens computadorizadas, novos reativos de diagnóstico precoce, microintervenções por radiação a laser robotizadas, terapêuticas antitumorais e antiinfecciosas, técnicas de intervenção, etc. Qual a fração da população que tem acesso a essas tecnologias? Uma porção reduzida, apesar dos inegáveis esforços da administração pública nacional para estender o acesso às pessoas mais carentes, pelo desenvolvimento dos Programas de Agentes Comunitários (Pacs) e de Saúde da Família (PSF). Apesar de certos programas federais de atendimento generalizado (o Brasil, por exemplo, é dos raros países onde o tratamento da Aids por associação de medicamentos é acessível a todos os afetados), é evidente que há um profundo contraste entre o acesso aos recursos de novas tecnologias médicas entre as classes médias e superiores urbanas do Sudeste e do Sul e as camadas mais pobres urbanas e periféricas dessas mesmas regiões e as populações rurais do Norte, do Nordeste e do Centro-Oeste. Mais do que isso, estas últimas encontram-se na verdade com um atraso de quase um século, pois não têm acesso nem mesmo às tecnologias já há tempos disponíveis às populações urbanas do Sudeste e do Sul, e mesmo à parte das zonas rurais do Sul. Essas pessoas, quando contemplam na televisão as maravilhas das novas biotecnologias, encaram-nas como realidades das quais elas estão automaticamente excluídas. O grande desafio nacional consiste, portanto, em vencer essa exclusão e marginalização. Pode-se ou deve-se intervir nesse processo com uma política de ciência e tecnologia? E em que isso teria repercussões no processo de desenvolvimento e progresso social?

CIÊNCIA E TECNOLOGIA PARA RESOLVER QUAIS PROBLEMAS?

Entre os aspectos mais graves que caracterizam a sociedade brasileira nesta virada de século e que estão na base da exclusão e marginalização social destacam-se as desigualdades e os desequilíbrios entre populações rurais e urbanas e, nestas últimas, entre populações de áreas realmente urbanizadas e as de periferias ou favelas. Tais problemas, que se originaram nos tempos de colônia, se intensificaram com o processo de industrialização e modernização da agricultura, a partir dos anos 50, e provocaram a expulsão de populações agrícolas e migrações descontroladas. Esses fenômenos não foram privilégio do Brasil, e se manifestaram com intensidade variável em toda a América Latina. Em nosso caso, a estrutura econômica do país e as infra-estruturas urbanas são incapazes de absorver esse excedente de mão-de-obra, e assim crescem as populações marginalizadas, base da formação de favelas e subúrbios superpovoados, com degradação social e desenvolvimento da violência urbana. É o que se verifica não apenas nas megalópolis como São Paulo e Rio de Janeiro, mas também em cidades médias como Recife, Vitória, Ribeirão Preto, Belo Horizonte, Campinas e Santos, entre outras.

Para um observador imparcial, causa estranheza a contradição flagrante desse processo migratório: de um lado, iniciativas do governo federal, em atenção a justos clamores por uma reforma agrária, tentando instalar famílias em áreas rurais e, de outro, o contínuo processo de migração do campo para a cidade.

Com efeito, a população rural está nitidamente diminuindo no Brasil. Se há 50 anos representava ainda 60% do total, na avaliação do IBGE de 1996 representa apenas 20%, que entretanto, soma mais de 30 milhões de brasileiros residindo no campo (mais de três Bélgicas), aos quais seria justo acrescentar várias dezenas de milhões (uma Itália) de outros que residem nas periferias das cidades, à espera de uma hipotética integração social, onde as condições de infra-estrutura estão mais próximas das condições rurais, agravadas pela promiscuidade e desemprego, que das verdadeiras condições urbanas. Os fenômenos migratórios deviam assim ser considerados não processos de urbanização, mas processos de ruralização degradada das cidades.

Na procura de causas, um consenso superficial sobre a questão assinala o chamado "atrativo das grandes cidades", com as iluminações feéricas das ruas, os anúncios luminosos, os cinemas e teatros, os bares e restaurantes, a circulação de veículos, etc. Observadores mais doutos, por outro lado, assinalam, como inexorável, o desaparecimento da agricultura de subsistência e da pequena e média propriedades, como decorrência obrigatória da evolução das tecnologias agrícolas e pecuárias, ou dos "agronegócios" como se costuma dizer, resultantes por sua vez dos progressos da ciência e da tecnologia. Consideram ao mesmo tempo essa "reserva de mão-de-obra", representada pelas populações marginais, como útil ao desenvolvimento capitalista e à industrialização. É, portanto, de consenso geral que esse problema está diretamente ligado ao desenvolvimento e à evolução da ciência e da tecnologia agrárias ou, ao menos, do uso que delas se faz.

E quais são as razões mais freqüentemente invocadas pelos migrantes rurais, quando a emigração se faz por iniciativa própria, para justificar o abandono da terra? São razões de saúde, isto é, a falta de acesso a recursos técnicos e humanos, médicos e farmacêuticos, para tratamento e prevenção das doenças, às vezes as mais banais a que estão sujeitos.

Chegamos assim (após um longo desvio) a um dos pontos centrais que deveria ser tratado. A introdução irracional de ciência e tecnologia pode ser um fator de desequilíbrio e não de progresso social. No caso das ciências biológicas e da biotecnologia os exemplos não faltam nas suas duas áreas mais estratégicas, as ciências agrárias e as ciências médicas e biomédicas.

POR UMA NOVA BIOTECNOLOGIA AGRÁRIA

Nas ciências agronômicas competências não faltam. Pode-se contar com nomes como o de Joahana Dobereiner e seus discípulos em trabalhos de vanguarda sobre a fixação do azoto, com grandes aplicações atualmente, como por exemplo, na cultura de cana, com redução considerável das necessidades de adubos nitrogenados. Vale lembrar ainda das equipes paulistas participantes do projeto do genoma da Xylella fastidiosa que nos colocou em posição de igualdade com o nível internacional de capacitação técnica dos grandes centros europeus e americanos do norte. Ao mesmo tempo, o organismo nacional responsável pelo desenvolvimento das biotecnologias na área agronômica, a Embrapa, é considerado internacionalmente como de nível equivalente, em competência e qualificação, aos grandes organismos de países avançados, como o Inra francês. A Embrapa tem se distinguido por grandes êxitos tecnológicos na seleção e melhoria de variedades de soja, cana-de-açúcar, milho, café, cítricos, entre outros, e no desenvolvimento de técnicas agrícolas, melhorias de solo, etc. Seus cientistas e técnicos dominam as biotecnologias mais sofisticadas e modernas nas áreas de pecuária, como as de inseminação artificial in vitro, congelamento e implantação de embriões, clonagem de embriões, etc; na área vegetal, os cientistas dominam as técnicas mais avançadas da biologia aplicadas a clonagem molecular, transgênese, seleções de marcadores, virologia e parasitologia, etc. Teríamos assim, teoricamente, os meios e as competências necessárias para que as ciências e tecnologias agrárias fossem importantes instrumentos de enriquecimento e progresso social: Mas elas são?

Sem negar o grande papel que têm desempenhado a modernização e o progresso tecnológico de nossas atividades agrícolas e pecuárias (produtos agrícolas e carne representam itens fundamentais de nossas exportações), deve-se entretanto assinalar que os esforços de introdução de novas tecnologias baseadas em progressos científicos se concentraram essencialmente em benefício da agricultura e pecuária intensivas, favorecendo a produção para exportação. Isso se fortalece, de um lado, pelo esforço permanente das autoridades federais em estimular as exportações com facilidades de financiamento e, de outro, pelas tradições brasileiras das grandes estruturas latifundiárias no campo. Se essas políticas podem atender às necessidades a curto prazo para manter equilíbrios comerciais, elas contêm fatores de fragilidade que se acentuam progressivamente e acentuam a marginalização da população rural.

Um primeiro fator de fragilidade dessa política é não considerar a evolução de hábitos alimentares que se observa na esfera internacional a partir de acidentes trágicos. Um deles foi a disseminação na Europa da epidemia de encefalite espongiforme (doença da vaca louca) que se originou da reciclagem de carcaças e restos de matadouros, introduzidos na década de 70, e que se generalizou no mundo, permitindo baratear consideravelmente o custo de rações e, em conseqüência, o preço da carne bovina, porcina e avícula. Essa tecnologia serviu de base para a elaboração do Programa Agrícola Comum (PAC) que previa, além disso, a redução de espaços agrícolas reservados a oleaginosas. A epidemia de encefalite espongiforme, que se manifestou inicialmente na Grã-Bretanha, mas se manifesta esporadicamente em países do continente europeu, levou a Comunidade Européia a decidir pelo abandono das farinhas animais nas rações. Isso torna a Europa dependente da importação de substitutos vegetais, em particular da soja, cujo custo é avaliado em 5 a 6 bilhões de dólares anuais. Poucos países têm condições de suprir a curto ou médio prazo essas necessidades, entre eles, naturalmente, o Brasil. Eis uma opção que nos seria portanto favorável.

Novo problema, entretanto, se coloca nesse caminho: na opinião pública européia (gato escaldado tem medo de água fria) desenvolvem-se preconceitos crescentes contra o consumo de variedades vegetais modificadas geneticamente (os OMG) e a grande produção de soja americana (a brasileira segue a mesma tendência) é inteiramente de variedade transgênica. Esses preconceitos que ganham setores crescentes da opinião levaram os ministros da agricultura da Comunidade Européia a decidir por uma moratória, com suspensão da introdução de novos produtos transgênicos no Mercado Europeu por um período de dois anos.

É interessante observar que, a partir de preconceitos justos ou injustos do consumidor e em contraposição aos alimentos de uma agropecuária extensiva e industrializada, vêm-se beneficiando na opinião pública os setores agroalimentares que se especializam nos chamados "produtos biológicos", como frangos criados em pleno sol, com direito a circulação e alimentados à base de produtos de origem vegetal. O que se disse para as aves é válido para os bovinos, ovinos e suínos. O que foi dito para a soja transgênica se aplica ao milho, a frutos e legumes. O que é válido para a opinião pública européia, penetra na opinião americana e contamina inclusive a opinião tupuniquim. A Austrália e o Canadá, por exemplo, promulgaram decretos proibindo a utilização, para transfusão, de sangue de doadores que residiram na Grã-Bretanha ou na França nos últimos anos. Os produtos alimentares de origem agroindustrial provocam inquietude. Os produtos "biológicos" invadem as feiras livres e os supermercados.

O problema tem repercussão no plano econômico-social e implica decisões políticas. Como se orientar nessa situação confusa em que se confrontam progressos da ciência e da tecnologia com hábitos e preconceitos alimentares, lobbies das grandes empresas internacionais na área alimentar contra pequenos produtores, acidentes inevitáveis com ações criminosas, interesses das macroempresas de adubos, de herbicidas e de inseticidas, conflitantes entre elas e com os consumidores e pequenos produtores? Tudo isso como expressão, muita ignorância e de explorações demagógicas do tudo biotecnológico ou do tudo "natural"?

O cenário que se anuncia para o futuro é incerto. Mas um retorno à produção agropecuária em pequenas e médias propriedades e empresas, que permita a diversificação e melhor identificação dos produtos, é uma tendência que se reforça intensamente e deverá progredir nos próximos decênios.

Um outro fator, em relação a países como o nosso, também favorável ao desenvolvimento da pequena e média empresa, é a agropecuária intensiva ter sua rentabilidade diminuída em função da concorrência internacional, incapaz, portanto, de transferir renda para promover melhorias do nível de vida da população rural. Efetivamente, os principais produtos como a soja, o milho, o açúcar, o café, os sucos cítricos, o cacau, o algodão, entre outros, são objetos de concorrência internacional selvagem; em certos casos, eles provêm de países de estrutura econômica atrasada, com mão-de-obra tão ou mais barata que o Brasil; em outros casos, provêm de países desenvolvidos que praticam formas abertas ou disfarçadas de subvenção da produção que garanta o nível de vida elevado de seus agricultores. Por uma razão ou por outra, as tendências observadas são de superprodução e os preços internacionais são constantemente aviltados. Assim, se a produção agropecuária extensiva permite ao grande proprietário uma remuneração adequada ou mesmo um enriquecimento, o valor acumulado da produção dificilmente poderia favorecer, mesmo com legislação redistributiva rigorosa, uma melhoria de renda efetiva dos trabalhadores envolvidos na produção.

Sem abandonar a agropecuária extensiva, não é possível, no Brasil, deixar de acompanhar a tendência que se desenvolve no mundo por uma nova agricultura e pecuária, dita biológica e alternativa, que conquista, na Europa e na América do Norte, setores crescentes do mercado consumidor.

Essa vertente, que já penetra o mercado brasileiro, só pode se desenvolver por meio da pequena e média empresas agrícolas e nelas os valores agregados são muito superiores aos da agricultura extensiva tradicional. Exemplos nesse sentido são numerosos. Os produtores de morango, das pequenas e médias propriedades da província da Almeria na Espanha, transformaram a região mais pobre na de maior renda per capita do país. No Brasil, os produtores de frutas tropicais e de vinho do sertão baiano e da Serra Gaúcha estão criando áreas de grande dinamismo econômico. O município de Envira, no Amazonas, com seus 6 mil habitantes, é um exemplo de sucesso do programa III Ciclo de Interiorização do Desenvolvimento no Estado, ao se tornar o município que mais exporta arroz, feijão, farinha, café, produtos avícolas e outros. Certos núcleos familiares no Estado do Amazonas estão extraindo essência do pau-rosa e comercializando produtos cosméticos, a partir das folhas, sem derrubar árvores como os fornecedores do mercado internacional de perfumes. Dever-se-ia ainda acrescentar que, se realmente a preservação e exploração da biodiversidade, das quais tanto se orgulha o Brasil, são estrategicamente essenciais para o país, ela só será viável se houver reforço do setor de pequena e média empresas agropecuárias e limitação da implantação das grandes empresas madeireiras e de pecuária intensiva dos chamados agronegócios, por essência responsável pela degradação do meio ambiente, desflorestamento e destruição da biodiversidade.

O QUE SE ESPERA DAS UNIVERSIDADES E INSTITUTOS DE PESQUISA

As Universidades brasileiras e a própria Embrapa não têm representado o papel que deveriam para o desenvolvimento das biotecnologias apropriadas às pequenas e médias empresas agrícolas, tanto na diversificação de produtos já comercializados e nos métodos de produção, como na introdução de novos produtos. Nesse sentido, a Colômbia, com todos os seus graves problemas, ultrapassou o Brasil, e não apenas no café, colocando, por exemplo, rosas no mercado americano e bananas-maçã no mercado mundial. O caso das bananas merece destaque. A banana comum, nanica, é produzida e exportada pelas repúblicas centro-americanas, das Antilhas e Caraibas, e por diversos países africanos. Seu preço mundial é aviltado e o consumidor europeu paga por ela menos de 1 dólar por quilo. A banana-maçã, que é muito mais saborosa, não era exportada em virtude da fragilidade da casca fina e rápido apodrecimento. Técnicos colombianos adaptaram algumas técnicas para possibilitar a exportação e por meio de uma pesquisa tecnológica encontraram a solução fácil e barata, o empacotamento em sacos plásticos contendo nitrogênio que inibe as enzimas de apodrecimento; a banana-maçã está sendo vendida na Europa a 10 dólares o quilo. Era uma simples questão de empacotamento. A diversificação de produtos como hortaliças, legumes e frutas, para atender aos mercados de consumo nacional e internacional, não é objeto de grande atenção de nossos cientistas e tecnólogos, nem de programas oficiais de estímulo à produção. Temos centenas de frutas originais na Amazônia e no Nordeste, mas os supermercados dessas regiões oferecem ao consumidor apenas maçãs, peras, ameixas, kiwis e uvas vindas do Sul. Apenas banana e mamão são locais. Ora, as técnicas genéticas de melhoramento e seleção tornam-se, em princípio, cada vez mais acessíveis aos não-especialistas e já poderiam ser ensinadas e utilizadas em escolas técnicas e mesmo em escolas não-especializadas. A generalização desse conhecimento seria um meio seguro de estimular iniciativas de nossos técnicos agrícolas e dos agricultores, criando efetivamente sistemas de produção em que o valor agregado do produto é muito superior. Sabe-se que o metro cúbico de madeira do eucalipto vale 10 dólares, e o metro cúbico de madeiras de lei, como o mogno, até 1.000 dólares. Mas se continua plantando apenas eucalipto, porque o retorno de renda é rápido. Uma nova política se impõe, portanto, com uma nova visão a longo prazo. É o que se chamou em artigo anterior (Gazeta Mercantil, 20/7/99) de retrobiotecnologia de vanguarda, cujo desenvolvimento e generalização possibilitará, a médio e longo prazos, promover aumento real de renda dos trabalhadores da área rural e com isso, seguramente, reverter a migração rural.

O QUE SE ESPERA DAS BIOTECNOLOGIAS PARA A SAÚDE

Em relação às ciências da saúde, em particular médicas e biomédicas e as tecnologias respectivas, os problemas são mais graves. Na verdade, as novas tecnologias de uso em medicina, em grande parte, dependem de equipamentos de exploração de imagens ou manipulação física com base em eletrônica, ótica, mecânicas finas e computação. Nesse domínio somos ainda quase inteiramente dependentes de importação direta de equipamentos mais que de importação de tecnologia e não me considero competente para discutir aqui políticas a serem seguidas para o desenvolvimento do setor. Evidentemente, como já foi salientado, impõe-se uma política de democratização do acesso a essas tecnologias, mesmo que as populações carentes tenham pouco ou nenhum acesso a elas.

Entretanto, em relação a outros aspectos mais biológicos das ciências da saúde, humana ou animal, podem ser definidas situações equivalentes às das ciências e tecnologias agrárias. Existem excelentes cientistas, com competência reconhecida internacionalmente, nas áreas de biologia molecular, genética humana e animal, farmacologia, imunologia, parasitologia e microbiologia, mas suas atividades de pesquisa, grande parte dirigida a aspectos de ciência fundamental, têm pouca repercussão social, muito mais uma atividade de consumo (consumo caro, aliás, de produtos importados) que de produção ou de estímulo à produção. Há uma exceção a ser feita à produção de vacinas humanas tradicionais. Um programa nacional de auto-suficiência está nos fazendo avançar nesse campo, graças aos esforços em particular da Fundação Oswaldo Cruz e do Instituto Butantã, que além de utilizar tecnologias clássicas na produção de soros e vacinas, estão caminhando para a introdução de biotecnologias atualizadas, como as vacinas de segunda e terceira gerações.

Entretanto, mesmo esse setor se ressente da ausência de atividades de pesquisa nas universidades e instituições, ou em pequenas e médias empresas capazes de desenvolver a produção de reativos e insumos biológicos e químicos para uso em diagnóstico etiológico de afecções humanas e animais, de vacinas animais e em particular de fármacos. O país é dependente de importação de medicamentos, reativos, insumos e plásticos até para o diagnóstico de infecções virais mais comuns, como sarampo, rubéola, dengue, febre amarela, arboviroses. São raros os esforços que nos capacitem a identificar e diagnosticar viroses emergentes, principalmente as que ocorrem na Amazônia e para as quais não existem, obviamente, produtos no mercado internacional.

As deficiências são particularmente evidentes no setor de fármacos. Fomos incapazes até o momento, apesar das competências científicas existentes nesse domínio, como a do professor Sérgio Ferreira, de desenvolver atividades produtivas nesse setor, não obstante a decantada riqueza da biodiversidade nacional, particularmente da biodiversidade amazônica, do consenso mundial sobre o potencial imenso que representa a pesquisa de novos produtos ativos de origem vegetal, originais em sua estrutura. Uma recente tentativa nesse sentido, com a criação da Bioamazônica pelo Ministério de Meio Ambiente, está evoluindo para o fracasso, pois a primeira iniciativa da sua diretoria foi propor um convênio com a Novartis, um dos grandes consórcios multinacionais do medicamento. O grande erro, nesse caso, não foi se associar a uma empresa multinacional. No mundo globalizado, associações desse tipo são inevitáveis. O erro foi o tipo de associação e as funções reservadas à Bioamazônica nesse convênio: preparar extratos! Vender extratos! Ora, o grande problema a ser vencido no progresso tecnológico nessa área é colocar nosso potencial de pesquisas em novas tecnologias (e nós a temos), participando das atividades mais complexas de purificação de produtos, identificação de princípios ativos, caracterização dessas atividades em laboratório e criação e desenvolvimento dos necessários modelos biológicos experimentais. O valor agregado nessas operações é imensamente superior ao da preparação e venda de extratos. Mesmo que depois seja necessário se associar a firmas multinacionais para finalização e comercialização de produtos. Se não for possível ultrapassar essas etapas, continuaremos a ser importadores de fármacos patenteados, pagando preços exorbitantes e vendendo extratos brutos por preço de banana (nanica). Mais uma vez, será apenas explorando esse tipo de atividade que a pesquisa científica e técnica poderá participar do processo produtivo, promover agregação de valor e redistribuição de renda na direção do setor produtivo, contribuindo, assim, para o enriquecimento social e mostrar para a sociedade o seu interesse pela ciência e tecnologia real e não apenas da virtual.

CONCLUSÃO

Se não conseguirmos fazer da ciência e da tecnologia algo que tenha relação direta com a realidade do dia-a-dia, que se traduza por melhorias da situação material e cultural da sociedade, por um enriquecimento material e espiritual extensivo às grandes massas da população, elas se tornarão progressivamente atividades virtuais. Pode haver cientistas famosos, de muito sucesso na mídia e nos congressos internacionais, mas para a totalidade de seus compatriotas, os cientistas, seriam considerados, na melhor das hipóteses, Sennas e Barrichelos dirigindo potentes máquinas estrangeiras, que não trazem nenhum benefício para o conjunto da sociedade. E com a evolução nessa direção, estariam se arriscando a serem considerados, algum dia, feiticeiros e extraterrestres, por uma opinião pública dominada pela superstição e pelo irracionalismo. Como na história contada ao autor deste artigo por Leonidas Deane, grande sanitarista já desaparecido, do tempo em que trabalhou na Vale do Rio Doce, durante a Segunda Guerra Mundial. Após a entrada dos americanos na guerra contra a Alemanha e o Eixo, em 1942, os americanos tinham muita necessidade do minério da Vale e resolveram, num esforço de boa vizinhança, investir na melhoria da situação social local, como em saúde pública, ao mesmo tempo que faziam campanha para atrair a simpatia da população a seu favor, contra os alemães. Deane visitava uma grande exposição realizada pelos americanos para mostrar os avanços da sua aviação e de todas as novas tecnologias de guerra de que dispunham. Viu um caboclo local aproximar-se de uma série de fotografias em um dos quadros que mostrava o super bombardeiro B-26. O caboclo aproximou-se, olhou bem, e depois disse: "que bruto avião alemão!".

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Nov 2002
  • Data do Fascículo
    Jul 2000
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