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Espaços Estruturados e Informes: São Paulo diante da globalização

Resumo

Este artigo trata da reestruturação da espacialidade urbana diante do processo de globalização. Os diferentes aspectos e problemas vinculados às transformações nos padrões de estruturação do espaço urbano são analisados sob a ótica mais geral e conceitual, utilizando-se como referência empírica a cidade de São Paulo.

transformação urbana; mudança social e metrópole; espaço urbano


São Paulo diante da globalização

Nelson Brissac

Professor do Departamento de Comunicação e Semiótica da PUC-SP e Curador do Projeto Arte/Cidade

Resumo: Este artigo trata da reestruturação da espacialidade urbana diante do processo de globalização. Os diferentes aspectos e problemas vinculados às transformações nos padrões de estruturação do espaço urbano são analisados sob a ótica mais geral e conceitual, utilizando-se como referência empírica a cidade de São Paulo.

Palavras-chave: transformação urbana; mudança social e metrópole; espaço urbano.

De que forma as transformações espaciais e técnicas da economia globalizada atuam nas grandes metrópoles? A concentração de atividades globalizadas constitui espaços internacionalizados no coração destas grandes áreas urbanas, uma vez que as maiores empresas produtoras de serviços desenvolvem vastas redes multinacionais contendo linkagens geográficas e institucionais especiais.

Esta mecânica engendra uma profunda reestruturação urbana destas metrópoles, pois desenvolvem-se grandes projetos de reurbanização e "reabilitação" de áreas até então decadentes ou marginais, para novos usos empresariais ou residenciais, acarretando uma reconstrução em grande escala das cidades. Um processo que intensifica as descontinuidades: disparidade entre locações, coexistência de espaços vazios e extrema densidade.

A constituição desses centros transnacionais só pode ser realizada através de processos em grande escala. O planejamento e o redesenvolvimento urbanos passam a depender de fatores externos internacionais muito mais complexos, envolvendo a atração de grandes investimentos, sobre os quais se pode ter um controle apenas limitado.

Qual é o impacto da constituição de um território de escala global nos espaços locais? Trata-se de apreender a expansão em escala da reestruturação das metrópoles contemporâneas, o processo pelo qual o espaço urbano é inscrito na paisagem geográfica dinâmica do capital. O capitalismo se desenvolve por meio de um processo difuso e problemático de espacialização, operando através da diferenciação do espaço ocupado, em muitas escalas diferentes. O resultado é uma espacialidade desigualmente desenvolvida, com a formação de centros e periferias em todas as escalas espaciais. A matriz espacial é constantemente reconfigurada, estruturando paisagens cada vez mais amplas.

Uma complexidade que obstrui nossa capacidade de visualizar a dinâmica da espacialização. Em geral, a espacialidade só é compreendida como aparências objetivamente mesuráveis, apreendidas através de percepção sensorial. Porém, a geografia da reestruturação urbana contemporânea, a escala das mudanças estruturais e a complexidade das espacializações flexíveis resultantes escapam por completo da apreensão e do controle dos indivíduos. É engendrada uma geometria urbana que, dada sua configuração cambiante e alcance global, não é mais abarcada pela experiência dos habitantes da metrópole.

Trata-se de observar como, paralelamente aos projetos de redesenvolvimento rigidamente estruturados e programados, surgem territórios informes onde novas configurações espaciais e sociais ocorrem. A zona é ocupada por elementos mutantes e nômades, capazes de engendrar novas linkagens e acontecimentos imprevisíveis, que escapam por completo ao plano e à estruturação. Esses intervalos são espaços vagarosos (os pátios ferroviários, estacionamentos, depósitos) que introduzem diferenciais de tempo na organização e percepção do urbano. São os espaços informais (de camelôs, sem-teto, favelas e cortiços) que escorrem sem parar, ocupando as áreas adjacentes. São também territórios fluídos (ao longo das grandes vias expressas e linhas de metrô, voltados aos que passam em velocidade) que permitem a articulação entre o perto e o longe, redimensionando nossas noções de escala e distância.

Nos últimos anos, significativas transformações nos padrões de estruturação do espaço urbano, alterando o papel e o peso dos agentes, anunciam um novo ciclo de reestruturação. Megaprojetos de redesenvolvimento urbano, promovidos pelo capital internacional, vão reconfigurar regiões inteiras das cidades, combinando em imensas estruturas arquitetônicas e áreas adjacentes os diversos programas e usos ¾ comercial, habitacional, cultural e de lazer, além de transportes ¾ que até agora compunham o tecido urbano: investimentos intensivos em vastas áreas previamente desvalorizadas e abandonadas; implantação de novos equipamentos de transporte e comunicações; concentração de grande diversidade de serviços e atrativos culturais. Estas regiões, dotadas de uma dinâmica de desenvolvimento diferenciada, tornadas quase autônomas com relação ao restante da cidade, passam a se articular diretamente com configurações semelhantes de outras metrópoles mundiais.

Uma dinâmica que, devido à sua escala, distingue-se por completo da apropriação pontual do espaço urbano pelas corporações e da revitalização localizada de áreas públicas realizada pelo governo em conjunto com os interesses imobiliários tradicionais. Um processo de reestruturação que, por ser basicamente um único empreendimento e implantado de uma só vez, difere também da mecânica de reorganização habitacional e deslocamento de populações baseada na desvalorização e revalorização paulatinas e na gentrificação progressiva promovida por programas de preservação do patrimônio, arte pública e atividades culturais, além de reposicionar o Estado em relação ao espaço público, ao demandar maior flexibilização dos regimes legais e condicionar os investimentos públicos.

Não é com surpresa que, no final de 1999, ocorreu um grande debate em torno de intervenções urbanas, a partir de um vasto projeto de reurbanização, baseado na edificação de um megacomplexo arquitetônico, a ser instalado no Pari ¾ a SP Tower. Talvez único setor da cidade propício ¾ por causa da sua extensão, infra-estrutura viária, proximidade ao centro e disponibilidade a baixos custos engendrados por um longo período de desinvestimento ¾ para abrigar algo desse porte. Esse megaprojeto implica uma alteração muito grande na escala das intervenções e nos limites previstos pelo zoneamento e pelas diretrizes das operações localizadas. Além do evidente desinteresse na manutenção de edifícios antigos, ele propõe a construção de um novo modelo de centro financeiro. A proposta, feita por um fundo de investimentos internacional em parceria com um grupo local, parece selar uma nova escala das operações imobiliário-financeiras que ditam a organização espacial da cidade. Trata-se de uma radical transformação da morfologia urbana, legitimada através da flexibilização das regras de uso e ocupação propostas pela Operação Urbana, mas com um diferencial: é o capital internacional que, subordinando às regulamentações e aos investimentos públicos, passa a determinar a configuração do território urbano.

O megaempreendimento, na verdade, indica uma tendência que deve pautar os futuros investimentos determinantes na reestruturação urbana de São Paulo, grandes projetos de desenvolvimento imobiliário e urbano promovidos pelo capital internacional, apontando a potencial inserção de São Paulo no sistema das cidades globais. Projetos que tendem a concentrar em grandes complexos arquitetônicos todos os programas do tecido urbano, criar áreas de concentração de produção, serviços e habitação diretamente ligadas às configurações de outras metrópoles mundiais, relativamente independentes do restante da cidade, e instalar equipamentos culturais corporativos integrados ao circuito de artes e espetáculos internacional, suprimindo definitivamente os espaços públicos tradicionais.

De que maneira as transformações em cidades como São Paulo responderam a essa mesma dinâmica? A megacidade indica a configuração de novos formatos espaciais, resultantes do impacto da globalização. Uma forma caracterizada pelas conexões funcionais estabelecidas em vastas extensões de territórios, mas com muita descontinuidade em padrões de uso do solo. As hierarquias sociais e funcionais das megacidades são indistintas e misturadas em termos de espaço, organizadas em setores reduzidos e improvisadas de forma irregular, com focos inesperados de usos indesejáveis.

A configuração atual de São Paulo, especialmente em regiões como a Zona Leste, é resultado de uma reorganização urbana em escala metropolitana, compreendendo um processo de adaptação da metrópole à transição para uma cidade global, que acarreta profunda e acelerada desorganização na ocupação das áreas consolidadas. As intervenções em grande escala rearticularam de outro modo o setor com o restante da cidade e, com isso, reconfiguraram a própria estrutura espacial da área.

A dimensão metropolitana subitamente assumida pela Zona Leste entrou em conflito com sua organização local, provocando uma completa desarticulação e desagregação dos tecidos urbanos consolidados. Os sistemas urbanos implantados por essas intervenções só têm sentido funcional e urbanístico no vasto território metropolitano, erodindo toda organicidade local.

Será o urbanismo capaz de inventar e implementar na escala requerida pelo desenvolvimento demográfico e espacial das cidades? A urbanização perversiva modificou a condição urbana para além de todo reconhecimento. Um novo urbanismo é requerido aqui, que seja capaz de criar campos que acomodem processos sem forma definida, de expandir noções, de negar fronteiras, descobrindo inomináveis híbridos, de manipular infra-estrutura para permanentes intensificações e diversificações, irrigando territórios com potencial, e de gerar uma massa crítica de renovação urbana.

Intervir aqui significa operar com essas tensões, propor novas relações entre elementos distantes, novas escalas metropolitanas, refletir a perda da escala humana, própria da cidade tradicional, provocada pelas dimensões da nova situação, e considerar a supressão de um padrão de medida, produzindo estruturas descontínuas e relações sem hierarquia.

A megaescala possibilita programáticas hibridizações, proximidades, fricções e sobreposições. Só esta escala pode sustentar uma grande proliferação de eventos numa só área, permitindo o inesperado. Uma visão em que a cidade se coloque mais como um padrão de eventos do que uma composição de objetos. Como intervir no caos?

A dinâmica descontínua da espacialização metropolitana engendra novos processos de consolidação territorial. O espaço resultante apresenta-se como uma coleção amorfa de pedaços justapostos, sem ligação uns com os outros. Aqui a articulação de uma vizinhança com a seguinte não é definida e pode se fazer de uma infinidade de maneiras. Ela se realiza antes por acumulação, independentemente de toda métrica. Este espaço é uma colcha de retalhos, heterogêneo, em variação contínua.

O desenho urbano que se delineia parece operar por dobradura. Cada situação possibilita uma dobra, a rearticulação com o contíguo, o que permite alcançar logo vastas dimensões, passar do lugar ao espaço, preenchendo o hiato entre o muito pequeno e o imenso e dando conta de grandes escalas. São situações locais que tomam um campo ampliado através de seus prolongamentos e propagações.

Trata-se do modelo da topologia: retratar a vizinhança e suas proximidades sem precisar recorrer à medida das distâncias, utilizando os intervalos, as direções, os vínculos, os prolongamentos, todos elementos sem medida ¾ não os lugares em si, mas as relações de proximidade e afastamento. Essas relações se prolongam, de perto em perto, para a extensão distante; situações diversas num espaço extenso, como os círculos concêntricos justapostos que se formam quando atiram-se várias pedras na água; como os sinais sonoros ou luminosos que se propagam de um ponto para o entorno aberto, difundindo-se por meio de ondas.

As conexões entre os lugares não se fazem mais segundo um continuum espacial. As relações entre os diferentes pontos no espaço descontínuo e ilimitado das metrópoles se fazem por articulações entre o próximo e o distante, interfaces entre o que não é contíguo, ignorando as medidas de distância próprias do espaço contínuo. Trata-se de uma disposição territorial engendrada por distintas e irredutíveis localizações, um outro tipo de operação de passagem, de ligação entre os sítios. Diversas situações num espaço extenso, uma rede formada por prolongamentos e propagações.

Esta é uma configuração resultante do processo de desindustrialização, com a decadência e o abandono do edificado, da criação de novos pólos de atividades produtivas e serviços e da implantação de diversos sistemas de transporte sobrepostos, desorganizando o tecido urbano e criando terrenos vazios, com usos improvisados. Impureza, degeneração e colapso são os motores do processo.

O resultado da desindustrialização é o terreno-vago. Estes espaços indefinidos e incertos encarnam as oscilações ¾ a instabilidade ¾ do tecido urbano nesse processo. Ilhas de vazio de atividades, são espaços que existem fora das estruturas produtivas e dos circuitos da cidade, remanescentes das diversas operações de reconfiguração de suas regiões em escalas mais amplas e complexas.

A dinâmica metropolitana opera uma obstrução de todo sentido de continuidade espacial. Tudo o que se tem são formas dispostas sem proporção nem medida comum. Neste espaço dominado pelo caos e a turbulência, cada local não tem mais um tecido onde se encaixar. Espaços fraturados que remetem sempre para outro lugar. Vazios testemunhando atos de remoção. O terreno-vago é o paradigma da metrópole contemporânea.

As imagens desses espaços não dominados pela arquitetura refletem nossa insegurança de perambular por territórios indistintos e ilimitados. Mas o vazio, a ausência de limites, contém também a expectativa da mobilidade, a possibilidade do outro. O terreno-vago é também o espaço do possível. Toda a história da reação ao terreno-vago, desde a percepção dos fotógrafos até as intervenções do planejamento urbano, tem sido no sentido de evidenciar a ansiedade diante da sua indefinição e erradicar sua negatividade. Ela reflete a dificuldade de lidar com a cidade em termos de força, de fluxos, em vez de formas.

A cidade é basicamente um espaço demarcado, compartimentalizado por uma grade das vias de transporte e das funções. Porém, a metrópole engendra o seu oposto: terrenos baldios; desertos urbanos; ocupações temporárias; imensas favelas moventes; vias expressas sem parada; lugares abandonados, que se constituem em territórios não mais circunscritos pela habitação, pelo trabalho ou pelo capital.

Essas formas de espacialidade se estendem infinitamente, sem pontos de referência, como o mar e o deserto. Aqui tudo se distribui num regime de relações de velocidade e lentidão entre elementos não constituídos, segundo composições em permanente variação. Elementos heterogêneos e díspares que formam conjuntos fluídos.

Estas regiões apresentam um alto grau de desorganização arquitetônica e dilaceramento do tecido urbano, resultante tanto do desmantelamento das antigas estruturas quanto do impacto de monumentais projetos de reconstrução. A Zona Leste é basicamente informe.

A entropia é uma força que aspira todos os intervalos entre os pontos do espaço, abolindo as distâncias, sobre as quais se fundam as diferenças necessárias à produção de sentido. Ela coloca a questão do limite, dos contornos; uma contínua erosão da distinção entre interior e exterior, localizado e deslocado, que constituía a condição espacial requerida pela percepção. Ela instaura um terreno mole, indistinto e ilimitado.

O processo de desativação e subutilização dos locais, acompanhado da periferização das áreas que ficaram à margem das vias de transporte expresso, constitui a zona. Uma dinâmica que engendra permanente proliferação entrópica, o acúmulo de construções abandonadas, fábricas vazias e áreas de demolição convertidas em estacionamentos. São espaços à espera, como os galpões industriais transformados em depósitos. Espaços intersticiais, praticamente imperceptíveis, ocultos entre o edificado. Tudo ainda está construído, o vazio não é imediatamente visível.

Esses terrenos vazios são espaços negativos, que podem se ampliar indefinidamente pela contaminação dos vizinhos. Um crescimento contínuo do indiferenciado. Indicativos de baixa atividade imobiliária, eles são reservados assim para uso futuro. Espaços intersticiais inutilizados que só se tornam perceptíveis ao atingirem o ponto crítico, a amplitude de toda a área, inviabilizando sua reinserção em circulação comercial.

Aqui o intervalo toma tudo, num movimento turbilhonário de ocupação do espaço. É como se o congelamento do espaço sob esta rigidez entrópica bloqueasse toda possibilidade dele revestir qualquer configuração nítida. A cidade busca sem parar combater a proliferação entrópica, ao mesmo tempo em que a engendra.

São pequenos intervalos, interstícios na trama urbana, que a reconfiguram permanentemente. Cada bolsão ¾ a ocupação de uma área por sem-tetos, camelôs ou cortiços, a instalação de um novo pólo de comércio (shoppings e grandes superfícies), o surgimento de um núcleo de condomínios habitacionais ¾ vai redesenhando a região ao se ajustar por acumulação com outras partes locais, uma justaposição que compõe um espaço heterogêneo em variação contínua.

O espaço resultante apresenta-se como uma coleção amorfa de partes justapostas sem vínculos entre si. Ele pode ser definido por acumulação, independentemente de qualquer referência a uma métrica. Cada justaposição cria uma zona de indiscernibilidade: áreas de passagem e mudanças de direção, que são intervalos resultantes da descontinuidade do território, do processo fragmentado de espacialização. Neste espaço sem contornos nem limites, sem início nem fim, se está sempre no meio. Aqui todo movimento constitui uma área de vizinhança, uma terra-de-ninguém, uma relação não-localizável entre pontos distantes ou contíguos. Esta vizinhança (fronteira) é indiferente tanto à contigüidade quanto à distância.

É o espaço dos pequenos intervalos, onde o ajuste das vizinhanças se faz independentemente de qualquer via determinada. É uma área de contato, constituída por operações locais com mudanças de direção. Ele opera de perto em perto: é um espaço local de conexões, um território armado por articulações de partes locais, por operações de passagem.

A configuração urbana resultante é um espaço fragmentado, que se articula através das intransponíveis descontinuidades entre suas partes. Intervalos que guardam tanto a marca do passado quanto do futuro, desdobramento de um volume que produz seu próprio espaço. Produção de uma dimensão dentro dela mesma, e não mais organizada a partir de um outro lugar ausente, de uma ilocalidade ou de uma utopia. Configuração de um campo que assimila dentro si próprio a diferença, o desdobramento em outro.

Uma nova estética urbana resulta daí: justaposição randômica e turbulenta de entidades que não têm nada em comum, exceto sua coexistência, resultado da dinâmica de campos de força em movimento contínuo. Grandes figuras urbanas que não se juntam mais por meio de ligas urbanas em pequena escala, mas por fragmentos flutuantes de áreas com novos usos. Sua matriz espacial é uma forma de coerência fraca, com linkagens em aberto.

O terreno se constitui por repetições espaçadas de conjuntos habitacionais, instalações industriais, franquias e shopping centers. Um mundo residual: é o que restou depois que a área foi desprovida de toda vida comunitária e memória histórica. Refúgio do ilegal e do incontrolável, sujeito a infinitas manipulações.

É um amálgama de seções estritamente ordenadas e arranjos cada vez mais livres em todo o restante da área. O resultado é uma enorme proliferação de parafernália de conexões ¾ passarelas, pontes, viadutos e todo tipo de passagens. A infra-estrutura, normalmente integrada e totalizadora, torna-se cada vez mais competitiva e local. Não pretende mais criar conjuntos operativos, mas apenas entidades funcionais. Em vez de redes, a nova infra-estrutura gera enclaves e impasses.

Em vez da rígida implantação da cidade tradicional, o espaço metropolitano é uma coleção "soft" de partes justapostas sem ligação entre si. Um campo que pode ser traçado independentemente de toda métrica, de toda grandeza, constituído por intervalos e movimentos, não por marcos fixados no espaço. O território é antes de tudo a distância crítica entre duas situações: as relações de força, de atração e repulsão, que se estabelecem entre elas.

Um sistema instável de funções não-formalizadas e matérias não-formadas. Elementos informais de diferentes velocidades que entram em conexões variáveis. Linhas de variação, que escapam à geometria, sem traçar contornos nem delimitar formas. Manchas de atividade e ocupação que escorrem em todas as direções, tomando todo o espaço.

Podem processos urbanos globais engendrar mutabilidade urbana local? Situações locais tornam-se mais complexas através da intensificação de múltiplas linkagens. Intensidades locais podem engajar sistemas urbanos mais vastos, através do desenvolvimento de relações entre múltiplas escalas e locações. Configurações sempre mutantes que guardam uma irredutível instabilidade estrutural. Campos que acomodam processos que recusam a se cristalizar em formas definitivas.

O espaço é processo, movimento, em vez de implantação, geografia. Ativar espaços: ações não que incidam sobre a estrutura, que diz respeito à organização, mas que acionem e transformem. Uma predominância do espaço fluído sobre a locação estática. Intensificar relações e interdependências urbanas: um urbanismo em transformação contínua. Operações frouxas de recombinação, criando zonas fracas, modos adaptativos e flexíveis de reestruturação espacial. Uma urbanização "soft".

O plano diretor elimina as condições urbanas existentes, projetando investimentos, padrões de ocupação e controles político-sociais. Ele nega o fenômeno dinâmico da urbanização. Em contraposição, deve-se propor políticas urbanas que partam da instabilidade e do inacabamento das situações para intensificar sua conectividade, mobilizando todo o território. Estratégias que comportem a inclusão do indeterminável e do inconclusivo.

Dada a crescente dimensão e complexidade da metrópole contemporânea e a crise do aparelho administrativo governamental ¾ devido à falta de recursos, à inadequação do planejamento centralizado e à crise de governabilidade ¾, novos parâmetros têm de ser encontrados para a implementação de políticas públicas, particularmente as relacionadas com grandes projetos de desenvolvimento urbano. Estratégias que se contraponham à tendência, hoje predominante, no vácuo deixado pelo Estado, de apropriação privada do espaço urbano, tanto por megaprojetos imobiliários como pelo comércio e ocupação informais.

Novas combinações programáticas e espaciais poderiam se contrapor à segregação organizacional? A intensificação interna da cidade oferece um modo operativo contra a exclusão e a expansão periférica descontrolada. São necessárias operações urbanas diferenciadas, visando padrões ocupacionais instáveis, bem como a coexistência de territórios privados e públicos em configurações mais permeáveis e fluídas. Deve-se estabelecer um terreno indefinido, que acomode extensas gradações de ocupação pública e privada e indeterminações programáticas que permitam modos variáveis de ativação.

Projetos alternativos de intervenção podem, em relação direta com as regiões e comunidades, sugerir outros modos de ocupação e uso, novas configurações para estes vazios metropolitanos, distintas daquelas ditadas pelo desenho existente da cidade e pelos interesses econômicos e políticos dominantes. É preciso introduzir novas estratégias urbanas, baseadas na diversidade, na indeterminação e na fluidez desses espaços intersticiais.

NOTA

Projeto Arte/Cidade: www.artecidade.org.br

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Nov 2002
  • Data do Fascículo
    Out 2000
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