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Teogonias Urbanas: os pentecostais na passagem do rural ao urbano

Resumo

Os grupos pentecostais que nascem e crescem na metrópole estruturam um conjunto de representações e práticas religiosas dialeticamente vinculadas à passagem do rural ao urbano. São simultaneamente herdeiros de uma história religiosa lentamente consolidada e que vai configurar o "catolicismo popular" e reprodutores de uma cultura metropolitana sempre mais hegemônica. Nessa dialética entre passado e presente constituem-se como religião popular da metrópole.

religião popular; pentecostalismo; mudança socioreligiosa; metrópole


os pentecostais na passagem do rural ao urbano

João Décio Passos

Professor no Departamento de Teologia e Ciências da Religião da PUC-SP, no Instituto Teológico São Paulo e na Faculdade São Luís

Resumo: Os grupos pentecostais que nascem e crescem na metrópole estruturam um conjunto de representações e práticas religiosas dialeticamente vinculadas à passagem do rural ao urbano. São simultaneamente herdeiros de uma história religiosa lentamente consolidada e que vai configurar o "catolicismo popular" e reprodutores de uma cultura metropolitana sempre mais hegemônica. Nessa dialética entre passado e presente constituem-se como religião popular da metrópole.

Palavras-chave: religião popular; pentecostalismo; mudança socioreligiosa; metrópole.

Se, no passado, as cidades nasciam dos deuses enquanto eles estruturavam o mundo como eixo e centro, hoje os deuses nascem na cidade como pontos sagrados dentro do grande espaço profano. No entanto, o mapa de suas habitações é tão amplo e tão complexo quanto a metrópole. A dialética entre espaço urbanizado e sacralizado, ou melhor, entre urbanização e sacralização, parece ser a grande problemática da sociologia da religião em nossos dias, de modernidade em desconstrução e de visibilização sempre maior do fenômeno religioso em suas múltiplas expressões.

Essa relação religião-cidade não parece fortuita, mas, ao contrário, constitui-se a partir de variáveis relacionadas de maneira complexa e dinâmica. Na metrópole, os deuses se mostram onipresentes do centro à periferia, nas inúmeras denominações religiosas, do coletivo ao individual, nas grandes concentrações e ofertas esotéricas, nas teleconsultas e nas incorporações benéficas, no erudito e no popular. A metrópole parece compor um grande panteão e instaurar um dissenso teológico, no qual os deuses se espalham difusamente pelo espaço geográfico caótico, pelo espaço antropológico do não-lugar e pelo espaço virtual da mídia. As religiões nascem em meio ao caos dos grandes centros urbanos e desafiam a modernidade crente na racionalização e no desencantamento: profanação total do espaço ou produção desencantada do espaço.

O fenômeno de renascimento, diversificação e força das religiões, na grande cidade, tem no pentecostalismo um paradigma e, sob muitos aspectos, ainda um enigma a ser explicado, uma vez que desafia as exposições teóricas mais comuns sobre a religião, tais como a teoria da secularização, a leitura em chave economicista e as explicações elaboradas pelo próprio evangelismo. As teogonias urbanas têm sentido novo, participam da metropolização da cidade, da urbanização do rural e da necropolização da metrópole.

O fenômeno do pentecostalismo vem chamando a atenção de crentes e estudiosos. As cifras ascendentes extrapolam as antigas médias da mobilidade ou migração religiosa, e rompem com a regularidade do mercado das religiões cristãs históricas, ciosas, por princípio, de rebanhos numerosos e de consensus fidei.11. Dados estatísticos demonstram um crescimento dos pentecostais a partir da segunda metade do século XX. Segundo Rolim, em 1955 eles eram 394.998; em 1960, 705.031; em 1965, 1.021.929; em 1970, somavam 1.418.933. Hoje, estima-se que o número de pentecostais no Brasil esteja entre 15 e 20 milhões (Rolim, 1985, cap. IV; Cesar e Shaull, 2000, 22-4). No entanto, é também visível a capacidade de adaptação dos grupos pentecostais às condições urbanas, no seu desenvolvimento posterior, sobretudo a partir da década de 50, com a multiplicação acelerada das denominações que se instalam nas periferias, e, a partir da década de 80, com o modelo pentecostal, voltado para as massas, cujo paradigma é a Igreja Universal do Reino de Deus.22. Paul Freston classifica o pentecostalismo brasileiro em três ondas distintas, não só pelo período histórico em que se situam, como também pelas características próprias que as constituem. A primeira onda vai de 1910 aos anos 50, com duas únicas igrejas: Congregação Cristã no Brasil e Assembléia de Deus. A segunda onda tem início a partir dos anos 50 e se firma nos anos 60, com uma multiplicação continuada de grupos. Os três principais grupos desse período são Quadrangular, Brasil para Cristo e Deus é Amor. A terceira onda surge no final da década de 70 e se firma nos anos 80. A grande representante é a Igreja Universal do Reino de Deus, vindo em seguida a Igreja Internacional da Graça (Freston, 1993 e 1994).

As reflexões que seguem constituem parte da tese de doutoramento do autor (Passos, 2001) em que buscam desvendar as relações entre pentecostalismo e metrópole, situam o desenvolvimento quantitativo e qualitativo dos grupos pentecostais na perspectiva da passagem histórica do rural ao urbano como um partícipe do processo de metropolização, com suas peculiaridades e contradições. O objeto de estudo busca, pois, a dialética sociocultural da religião dada num processo de mutação histórica, quando estão em jogo a sobrevivência de significados consolidados do passado, concretamente do chamado "catolicismo popular", e a assimilação de significados emergentes do presente advindos da cultura metropolitana. Será enfocado primeiramente o processo histórico da passagem do rural ao urbano e, em seguida, se discutirá a participação dos pentecostais nesse processo. Os pentecostais, inseridos nessa passagem, alimentam-se do passado religioso lentamente consolidado e do presente metropolitano que se instaura numa dinâmica de rupturas e continuidades.

AS CONDIÇÕES HISTÓRICAS:

O LENTO E O ACELERADO

A urbanização brasileira deu-se em um ritmo bastante próprio, que, de algum modo, determinou nossa formação cultural, hoje cada vez mais metropolizada, em sua constituição e dinâmica. Estamos falando de dois aspectos que marcaram a história contraditória de nossa urbanização ou inserção no processo de modernização: urbanização tardia e metropolização acelerada. Sobre essa trama econômica contraditória, deve assentar-se a compreensão de nossa formação cultural e religiosa, seja na consolidação e resistência de um continuum cultural, ou da chamada "religião mínima" (Droogers, 1987),33. Oliveira e Fernandes (1983) discutem essa temática. seja na emergência fantástica do novo e, sobretudo, na acomodação de ambos.

O pentecostalismo deve ser situado nessa passagem de uma "história lenta da religião" a uma "história acelerada da religião", quando se verifica um descompasso entre o passado e o presente, entre tradição e inovação. O lento e o acelerado construíram diacronias distintas na nossa composição histórico-cultural de ontem e de hoje. A fase lenta deixou para trás (concretamente para a Europa) uma possível modernização; a fase acelerada conservou os resíduos do passado. Esse desalinhamento entre processos culturais e processos socioeconômicos constitui num dado fundamental para compreender as mutações históricas no Brasil e, em particular, as mutações religiosas. Sem isso, corre-se o risco de construir falsas linearidades evolutivas que interpretam os fatos isolados em épocas distintas.

A Formação Lenta do Rural

A história de nossa formação sociocultural mostra um longo período de predomínio do espaço rural, muito embora tenhamos nascido sob o ímpeto de modernização por que passava a Europa do século XVI; nascemos como resultado de uma aliança precoce (contraditoriamente precoce) entre a Coroa portuguesa e a classe mercantil, um misto de projeto de cristandade com projeto de modernidade. Gestada pelas forças expansionistas modernas e domesticada pela Coroa católica, nossa terra foi consolidando-se na condição de servilidade à metrópole, fornecendo-lhe os meios materiais para a modernização. Milton Santos fala de urbanização pretérita (Santos, 1998: 19), segundo a qual estivemos sempre na condição de modernidade dependente e por longo tempo sob condições agrárias. No período colonial, as vilas que se formavam eram lugares de coleta, processamento e escoamento de produtos nacionais para a Coroa. A formação das cidades é lenta e elas estão longe de constituírem unidades produtivas e comerciais autônomas. À medida que as fazendas se reforçam como unidade de produção, criando excedentes que circulam pelas cidades, surge, aí, uma classe comercial, fazendo despontar alguns centros urbanos já com milhares de habitantes. Esses centros continuam, no entanto, dependentes da produção agrária. Vale dizer que entramos no último século como uma sociedade agrária sob todos os aspectos: produção econômica, distribuição demográfica e processos culturais.

A formação lenta de uma matriz cultural marcada pelo híbrido consolida um núcleo duro em nossa cultura e, de modo particular, em nossa tradição religiosa, a ponto de poder se falar em uma "história lenta da religião no Brasil" ou de uma tradição produzida, expressa e significada de maneira endógena. Do ponto de vista da produção, trata-se de um processo de formação histórico-cultural colonial, ou seja, no reverso da construção da modernidade européia; do ponto de vista da expressão cultural, o que se constata é a insistência e a sobrevivência de elementos pré-modernos e, como resultado, a configuração de significados originais, distintos daqueles que a modernidade, pouco a pouco, foi introduzindo na sociedade ocidental. Celso Furtado bem designou a formação do Brasil como "o longo amanhecer". Nosso ritmo de formação histórica geral é o de terra de exploração, sem projeto emancipatório e de identidade, com centro de decisão e de produção cultural alheios. "Nos três séculos do período colonial gestou-se no Brasil um estilo cultural que, sendo português em seus temas dominantes, incorpora não apenas motivos locais mas toda uma gama de valores das culturas originais dos povos dominados. Antes de tudo cabe ter em conta que a apropriação e a exploração das terras brasileiras fizeram-se no quadro de empresas agroindustriais voltadas para a exportação. Contudo, os interesses mercantis que comandavam todo o processo econômico estão controlados por agentes metropolitanos, o que impediu a emergência no país de uma classe comercial com consciência de seus interesses específicos e com participação no sistema de poder" (Furtado, 1999:60-1).

O processo de formação-consolidação cultural e religiosa foi balizado pela Coroa e pela Igreja no velho regime do padroado. Nossa localização geopolítica colonial colocou-nos fora do processo de modernização, atiçado, sempre mais, pela afirmação da autonomia econômica, política e cultural que instaura rupturas e avanços tecnológicos bem como um novo quadro cultural. Esse quadro, continua Furtado, "congela o processo cultural em estágio correspondente à Europa pré-humanismo (...). Cabe assinalar que, à semelhança da síntese medieval européia, o Barroco brasileiro se integrava ao conjunto da sociedade. Sua mensagem atingia senhores e escravos. Mas não se pode desconhecer que a contrapartida desse desempenho foi o crescente distanciamento de uma Europa em rápida transformação tecnológica" (Furtado, 1999:62).

A religião que aqui se formou desenvolveu-se sobre si mesma, como os demais aspectos da cultura. Basta lembrar que o processo de reforma tridentina só veio acontecer entre nós na segunda metade do século, portanto, com três séculos de atraso em relação à Europa. Essa história lenta da religião, a nosso ver, consolidou-se como uma tradição autônoma, marcadamente rural, medieval para utilizarmos a expressão de Furtado.44. Sobre os resíduos medievais do Brasil atual vale conferir: Weckmann, 1993. O catolicismo popular constitui-se, portanto, num aspecto de nossa modernização tardia, ou de nossa modernização dependente. O resultado é uma assimetria visível e resistente entre a dimensão cultural e as transformações socioeconômicas que posteriormente foram se instaurando em nossa terra. No entanto, essa assimetria entre o cultural e o econômico persistirá em plena fase de industrialização acelerada e metropolização consolidada, devido à contradição do processo que atingiu apenas uma pequena parcela de nossa população (Buarque de Holanda, 1997:73).

A Metropolização Acelerada

O processo brasileiro de industrialização e metropolização, se olhado em relação à nossa anterioridade histórica e ao que se passou no Hemisfério Norte, deu-se de maneira convulsiva, sem tempo para as acomodações devidas, do ponto de vista econômico, demográfico, social e cultural. Parafraseando Furtado, podemos falar de um rápido amanhecer, quando, então, dormimos rural e acordamos metrópole. Os números demonstram um crescimento vertiginoso da população urbana, sobretudo a partir da segunda metade do século XX. No início deste século, era de 1,2 milhão; em 1950, em torno de 18 milhões; dez anos mais tarde, 32 milhões; em 1970, atinge 52 milhões; em 1980, avança para 82 milhões e, na década de 90, chega a 120 milhões (Santos, 1998:17-29).

O Brasil é hoje um país urbano e metropolizado. Calcula-se que 85% de sua população viva nas cidades. Aumenta sempre mais o número de cidades regionais com o índice populacional em torno de um milhão de habitantes. O êxodo rural acelerado alimentou essas grandes concentrações populacionais. Singer explica esse processo contraditório pela própria inserção do campo no mercado produtor em grande escala e por meios tecnológicos, impossibilitando os pequenos proprietários e colonos de continuarem a produzir (Singer, 1975:70-1). Os pólos industriais vão agregando as massas provenientes do campo que são absorvidas como mão-de-obra farta e como exército de reserva. O que se configura é o que chamamos de metrópole caótica. A maioria da população fica excluída dos benefícios da modernização trazida pelas cidades, desde os mais básicos bens de subsistência, até a inserção nos bens culturais, pelo acesso à educação fundamental e superior. Portanto, a metropolização brasileira está longe de significar um processo de modernização como aquele vivenciado pelos países do Norte. Vejamos o comentário de Parker, ao fazer um balanço da urbanização latino-americana e de seus impactos sobre a cultura: "Junto com o proletariado clássico encontramos o proletariado típico do setor menos desenvolvido da indústria, do comércio e do transporte. Proletariado com muito baixa qualificação, com baixa remuneração (...). Por outro lado o setor 'invisível' amplia-se com uma imensa massa de subproletários que encontram ocupações muito diversas no setor informal da economia subdesenvolvida (...) subempregados e desempregados crônicos (...) o mal denominado 'setor inativo', donas de casa, estudantes (...). Esta heterogeneidade de situações de classe tende a gerar um campo de representações culturais e religiosas também heterogêneo, em maior ou menor correspondência, pela mediação do campo de práticas do agente coletivo com suas posições de classe" (Parker, 1996:113-4).

Esse caldo cultural metropolitano heterogêneo resulta da própria contradição histórica, de um passado que resiste, com suas estratégias de domínio e significação da natureza, do grupo e dos indivíduos, e de um presente que provoca acomodações rápidas das massas populares, em novos territórios. J. S. Martins sugere uma explicação das contradições sociais presentes a partir de nosso passado: "na sociedade brasileira, a modernização se dá no marco da tradição, o progresso ocorre no marco da ordem. Portanto, as transformações sociais e políticas são lentas, não se baseiam em acentuadas e súbitas rupturas sociais, culturais, econômicas e institucionais. O novo surge sempre como um desdobramento do velho..." (Martins, 1999:30). O que nossa história lenta de condição colonial foi produzindo, sendo reverso da modernidade nórdica, resiste como uma duração temporal, pouco alterada em seu núcleo pelas rupturas da modernidade, enquanto esta avança, cada vez mais globalmente, com seus significados novos, provocando reconfigurações nas representações e práticas socioculturais. Tais reconfigurações recriam os espaços institucionais dos significados socioculturais, colocando em crise velhos padrões estabelecidos.

É nessa dinâmica que, a nosso ver, devem ser inscritos os movimentos pentecostais: herdeiros de uma passado religioso, lentamente consolidado e, simultaneamente, resultado dos processos metropolitanos acelerados. Trata-se de vinhos velhos em odres novos, ofertas religiosas que respondem, a um só tempo, a arquétipos cristalizados do passado e às exigências espaço-temporais do presente.55. Entendemos que essa consolidação religiosa do passado configurou o chamado "catolicismo popular" que vai prevalecer como religião unânime em nosso país. Cf. Pereira de Queiroz, 1973:72-99; Fernandes et alii, 1988: 59-84. Nesta mesma obra, ver o artigo de Brandão, 1988:27-58. Os fiéis pentecostais passam por um processo de conversão às novas condições urbanas, sem perder suas referências religiosas fundamentais. A conversão vai adaptando as massas dentro do espaço e do tempo da grande cidade e atiçando a velha lógica de leitura do mundo e da vida, bem como as estratégias capazes de estabelecer equilíbrio dentro do caos. O velho persiste no fundo, o novo impera na forma, compondo uma periferia dinâmica no conjunto de significados religiosos.

Pentecostalismo, Passagem e Deslocamento

A passagem do rural para o urbano se dá dentro de uma dialética múltipla que inclui rupturas com significados anteriores, incorporação de elementos novos e hibridação do antigo com o novo. Como toda mudança, instaura uma nova estrutura no conjunto social que rompe com a anterior, afetando e envolvendo coletivamente os indivíduos em suas representações e práticas (Bastian, 1997:13-5).

A mudança geográfico-social implica acomodações que vão das macroesferas às microesferas sociais, dos sujeitos à coletividade, do antigo ao novo. A espacialidade metropolitana, que se vai constituindo, rapta o sentimento estabilizado de localidade e temporalidade com seus significados e controles simbólicos estabelecidos. A vida metropolitana produz um deslocamento generalizado na vida dos migrantes de ontem e de hoje, que vão compondo suas massas periféricas, assim como na de indígenas, filhos e habitantes de um pedaço distante do grande espaço sem contornos, ligados por corredores quilométricos, vias anônimas e estranhas. Esse é um primeiro deslocamento, que vai gerar uma tensão permanente entre o lugar e o não-lugar (Augé, 1994). O domínio do espaço é uma meta permanente do metropolitano, que vai recriando as formas de delimitar territórios próprios no interior da terra sem contornos ¾ territórios que garantam a identidade, a relação e até a sobrevivência. Os grupos religiosos são pontos sagrados ¾ puncta mundi ¾ dentro da grande área profana (exatamente, porque sem dono e sem controle). Estes vão como que coagulando os desejos e as necessidades de seus adeptos e canalizando-os para uma meta comum a ser alcançada.

Um segundo deslocamento se dá no âmbito das relações interpessoais com a sociedade metropolitana anônima. Se, por um lado, a metrópole vai afirmar, com sua composição anônima, a subjetividade solitária sem os laços de consangüinidade e de proximidade, que conferem imediatamente identidade e exercem função de controle dos papéis e comportamentos, por outro, vai instaurar o padrão comum da sociedade de consumo e da comunicação de massa que diminui cada vez mais as diferenças. O pentecostalismo, na sua diversidade denominacional, bem como no seu desenvolvimento histórico, pode ser compreendido pela apropriação do igual na afirmação do diferente, as mesmas regras que vão gestando as comunidades locais de forma que ser pentecostal pode significar, simultaneamente, ser igual e ser diferente, individualizado e coletivizado, tradicional e novo.

A metrópole marca, ainda, a passagem da unicidade de significados para a pluralidade, de forma a possibilitar, e até mesmo solicitar, as dinâmicas dos trânsitos, das trocas, dos sectarismos e dos hibridismos culturais. Onde e quando não há pluralidade, imperam a unidade e os processos endógenos de produção e manutenção cultural. A sociedade metropolitana pluralista abriga e estimula essas extrapolações de fronteiras e ressignificações, e há, inclusive, lugar para a afirmação das diferenças radicais, dos isolamentos, bem como dos desenraizamentos que adotam padrões exógenos de significação e práticas culturais e religiosas.

Nesse redemoinho de transformações intensas e permanentes, a religião pentecostal entra em cena como estratégia de solução e significação da passagem, determinando os limites dentro do grande espaço sem limites, restabelecendo os laços de proximidade, compondo sentidos gerais e resistindo ou negociando com o novo (Cipriani et alii, 2000:23-32). Trata-se de expressões religiosas que tematizam e ritualizam a mudança em curso de uma sociedade que ainda não encontrou seu ponto mínimo de estabilidade e coesão, seja por sua assimetria histórica, seja por uma cultura sempre mais predominante, cuja base reside no sujeito consumidor e na efemeridade do novo, incessantemente oferecido.

Jean-Pierre Bastian faz a seguinte observação sobre a permanência e a função da religião, no processo de mudança das sociedades latino-americanas: "A modernidade foi imposta pelas minorias ilustradas, sem que as massas tenham acesso a uma educação secularizadora, ou quando o tiveram, como por exemplo nos países do cone Sul, a pauperização crescente nestes últimos 20 anos criou de novo uma distância entre a cultura oral e a cultura escrita das elites. Nas sociedades duais e dependentes, o religioso permanece como o vínculo principal da cultura, cujo modo de expressão é a oralidade sagrada (...) expressão genuína das populações latino-americanas" (Bastian, 1997:185).

Os pentecostalismos originam-se e processam-se nessa moldura histórica contraditória em que se configura a metrópole como a religião da continuidade e da transformação do popular; continuidade de suas condições socioeconômicas, de seus significados e suas estratégias simbólicas; transformação de linguagens, de símbolos e de organizações grupais no enfrentamento do novo que se vai impondo.

AS RUPTURAS E OS ELEMETOS EMERGENTES

A cultura metropolitana produz, obviamente, uma ressignificação cultural, se olhada em relação às condições rurais. Os resíduos do passado permanecem vivos na dinâmica e nos significados metropolitanos, no interior dos novos quadros de referência que vão sendo incorporados pelos segmentos populares. O pentecostalismo, sendo religião popular, participa como que naturalmente dessa permanente dinâmica adaptativa das representações culturais, quando o velho vai incorporando o novo e realimentando-se em sua lógica e seus valores básicos. Neste item, será abordada a incorporação operada pela religião pentecostal desses elementos emergentes da cultura metropolitana, quando ele rompe com os constituintes arcaicos da religião católico-popular.

Os Elementos Emergentes

Williams (1980:145) assim diz dos elementos emergentes: "quero significar, em primeiro termo, os novos significados e valores, novas práticas, novas relações e tipos de relações que se criam continuamente". Contudo, a cultura emergente não deve ser vista como uma série de elementos isolados e simples, ainda que analiticamente o façamos. Ela se dá dentro da contradição, no processo de produção, e, portanto, num quadro de cultura dominante e alternativa dialeticamente interagidas, formando um quadro global complexo, heterogêneo e contraditório. A metrópole instaura, nesse sentido, os elementos emergentes, seja com sua produção massiva dominante, seja nas suas expressões populares alternativas. A delimitação do popular dá-se sempre nessa dialética, de forma que o emergente, na cultura metropolitana, não significa uma imposição implacável, ou uma hegemonia das condições de vida supermoderna que transforma todos em iguais e reprodutores dos mesmos significados. Trata-se, portanto, de um processo hegemônico e híbrido (Martin-Barbero, 1997:110; Canclini, 1998), que inclui a contradição entre as classes que produzem os novos significados e a mistura de significados. "Uma nova classe é sempre uma fonte de uma prática cultural emergente" (Williams, 1980:145) e tais práticas não permanecem isoladas; ao contrário, interagem, dialeticamente. Portanto, é necessário que se inclua, no estudo da cultura popular, "não só aquilo que produzem as massas, mas também o que consomem (...) e de pensar o popular na cultura não como algo limitado ao que se relaciona com seu passado ¾ e um passado rural ¾ mas também e principalmente o popular ligado à modernidade, à mestiçagem e à complexidade do urbano" (Matin-Barbero, 1997:62).

A hibridação cultural é, portanto, mais que o resultado de uma miscigenação racial e étnica; significa a negociação, a troca, a adaptação e as perdas carregadas de conflito e de resistência. A cultura urbana introduz padrões e valores emergentes-hegemônicos, que recriam os elementos do passado, transformando-os em resíduos vivos e ativos. Nesse sentido, só há resíduos porque ocorre um encontro entre um passado consolidado e um presente sempre mais hegemônico; noutros termos, o encontro entre hegemonias culturais do passado e do presente cria a figura do residual. Sem os elementos emergentes da cultura metropolitana, que rapidamente se impõem, não teríamos a presença de resíduos, mas a completa transformação que instaura o totalmente novo. Esse processo de pura ruptura e instauração do novo se dá pela coerção, de forma a eliminar radicalmente os significados culturais ¾ pensemos na evangelização dos indígenas brasileiros ¾, ou por um processo histórico lento o suficiente para reprocessar os significados, até que reduza o passado a dado arcaico, francamente superado e inativo.

A metropolização não se dá de maneira homogênea e linear; atinge, diversificadamente, o conjunto social, instaurando uma dialética entre o ontem e o hoje. Cria o espaço das temporalidades distintas dentro do mesmo conjunto. As expropriações e reapropriações do tempo e do espaço, conforme já foi analisado, são novas atuações sociais e significações culturais que desenham a ocupação contraditória do espaço. Os agentes metropolitanos combinam, em suas estratégias de reapropriação do expropriado, o enfrentamento dos significados ¾ que vão se impondo, massivamente ¾ e os velhos esquemas de ocupação e convivência no mesmo espaço.

A Incorporação da Metrópole

A metrópole representa uma ruptura espacial que vai exigindo acomodações diversas no modo de se viver nessa nova realidade e de significá-la culturalmente. Alteram-se as condições geográfica, social e política dos valores e significados culturais, reproduzidos pelas gerações nos nichos familiares e de relações próximas. Do ponto de vista da tradição religiosa, fica desterritorializado o sentimento de localidade, bem como destemporalizado o sentimento de permanência. A simbolização do local pelo poder do santo padroeiro e especializado entra em crise: o grande espaço exige um grande santo que solucione os grandes desafios impostos pela nova realidade. Os ciclos festivos, que ritualizam essa interferência especializada na realidade, perdem igualmente sua funcionalidade, exigindo outras estratégias rituais análogas ao tempo metropolitano cronometrado, acelerado e de mercado.

O sentimento de localidade e de relações próximas, descritos por Antônio Cândido (Cândido, 1971:62), parecem reger a construção dos pedaços da metrópole, como enfrentamento de seu anonimato. Os grupos pentecostais ajudam a construir esses laços, compondo uma nova vizinhança, baseada não na relação de parentesco consangüíneo, mas de parentesco espiritual. Dessa maneira, a anomia urbana, bem como o isolamento ¾ elementos emergentes inevitáveis ¾, são tratados pelos moradores da grande cidade a partir de sua velha lógica, agora ressignificada: a vizinhança espiritual é capaz de enfrentar os limites espaciais da convivência, bem como a perda dos laços de parentesco, sinônimo de proximidade. O crente é sempre o "irmão" que resgata a proximidade perdida, vencendo, pela ligação espiritual, os insuperáveis isolamentos da metrópole.

Os espaços fora do pedaço, os trajetos e as manchas,66. Magnani (1998:115-6) estuda cultura popular metropolitana a partir dessas categorias. Define o pedaço como a esfera de sociabilidade imediata dentro do grande território anônimo, a mancha como "áreas contíguas" com especificidades de bens oferecidos, e o trajeto como os itinerários que ligam as manchas e os pedaços ou criam fluxos no interior das próprias manchas. não resolvem a sociabilidade metropolitana, embora recriem meios de convivência efêmera e temporária, dando conta da circulação no grande espaço anônimo. São, por certo, lugares privilegiados do homem público, do metropolitano, adaptado aos rituais do espaço, regido pela força das trocas comerciais, do contato superficial dos indivíduos anônimos. Embora a convivência nesses espaços remeta de volta ao pedaço, eles parecem compor o que a metrópole tem de mais próprio e que, de fato, rompe com a relacionalidade próxima e cordial. Aí, a cordialidade pode ser suplantada pela ritualidade que protege o anonimato individual, confirmando o ethos moderno e metropolitano. Não por acaso, o público metropolitano é produzido e dinamizado pela lógica da comunicação de massa: a mensagem de tudo e para todos. É o lugar dos iguais, dos avulsos aglomerados, que buscam as satisfações individuais na fonte comum de significados. Aqui, cumpre afirmar a incorporação pentecostal da descontinuidade com seus resíduos católico-tradicionais. Trata-se do pentecostalismo metropolitano, fora do local, que oferece seus bens na seqüência dos demais bens do consumo de massa. São, de fato, sujeitos religiosos dentro das ofertas massivas. A segunda e a terceira ondas pentecostais têm sido capazes de incorporar, de modo mais visível, em suas regras, a cultura metropolitana emergente, permitindo estabelecer-se uma analogia entre elas (analogia urbis). A organização dessas igrejas normalmente compõe com as produções dos pedaços , enquanto criam comunidades de relações próximas nas periferias, e com as manchas e os trajetos metropolitanos, quando oferecem seus bens e centralizam a administração em uma grande sede para as quais confluem verdadeiras massas de fiéis. A vida religiosa, fora do pedaço, já fazia parte dos esquemas católicos arcaicos. Os santuários eram, por excelência, o lugar distante em que se buscava uma experiência mais extraordinária de fé, o lugar da teofania. As religiões em geral ¾ mas, sobretudo, as de cunho popular ¾ reproduzem um ciclo permanente e contínuo de saída-experiência-volta; o santo local cuida da rotina da vida; o santo distante é responsável pelas grandes questões, resolve os maiores problemas, revigora a rotina e orienta a vida em seu conjunto. É comum os fiéis buscarem, nos santuários, as ligações nos momentos existenciais axiais: batizado, casamento e, até mesmo, morte, como no caso do santuário de Canindé, no Ceará. A metrópole do não-lugar precisa desses grandes santos deslocalizados para reger todo o conjunto caótico. Buscar uma experiência nos trajetos ou nas manchas metropolitanas, longe de casa e do bairro, parece constituir um elemento de residualização ¾ fazer sobreviver os resíduos ¾ das teofanias dos santuários, em que o supersanto resolve os problemas graves da existência na sua dimensão mais ampla e radical.

A subjetividade metropolitana está também incorporada no discurso e na prática pentecostais, respondendo e confirmando, em chave simbólica, esse modo de viver moderno, instituído pela sociedade capitalista. O indivíduo é, nessas práticas, o centro de consumo religioso, o receptor dos discursos, dos rituais e da prosperidade. As prédicas dos pastores dirigem-se, exclusivamente, ao indivíduo, como pudemos observar nos cultos ou nos textos escritos. A regra é sempre a mesma:

- falar ao sujeito ouvinte (meu amigo, meu irmão, você que me ouve, você que está aqui, caro leitor, Jesus pode salvar você, você pode conseguir);

- referir-se a situações particulares (você que está com dor na coluna, você que tem problemas com a família, você que está desempregado, você que quer ir bem nos negócios, você que está triste);

- provocar uma experiência pessoal (feche os olhos, entregue seu problema a Jesus, peça a Jesus que resolva seu problema, sinta Jesus tocando seu coração, sinta Jesus libertando, fale com Jesus, você pode ficar à vontade, chorar, sorrir, gritar);

- estimular a auto-estima (você pode, Jesus te ama, Jesus vai realizar o que prometeu, você é herdeiro de uma promessa, basta você acreditar, basta entregar-se a Jesus, basta crer que conseguirá);

- solicitar um gesto pessoal (levante a mão quem quer..., venha até a frente, cante, entregue-se concretamente, dê seu voto pessoal, receba a unção, pegue o envelope, faça uma oferta).

Esse apelo à individualidade se dá, sobretudo, nas igrejas da segunda e terceira ondas, embora esteja presente na onda anterior, como nas correntes carismáticas das igrejas históricas. As estratégias de comunicação-persuasão são as mais variadas: o som que atinge perfeitamente toda a platéia, a linguagem coloquial e popular, a utilização de canções e de fundo musical, de símbolos e de expressão corporal.77. As músicas pentecostais expressam igualmente essa centralidade do indivíduo com suas letras na primeira pessoa do singular. No livro de canto Louvores do Reino da IURD (1998:9-100) pode-se verificar as letras compostas em primeira pessoa do singular ocupando quase a totalidade dos cantos. Das 100 primeiras músicas obtém-se o seguinte resultado: primeira pessoa do plural (8), terceira pessoa do singular (9), segunda pessoa do singular com letras apelativas ao "tu" individualizado (10) e primeira pessoa do singular (73). Quem presencia um culto pentecostal sente-se, simultaneamente, atingido individualmente e implicado na massa de fiéis, que vai se envolvendo e respondendo aos apelos do pregador. É nesse sentido que alguns especialistas falam em "individualismo coletivo" para designar essas assembléias. O papel do público parece ser o de produzir o frenesi coletivo, a contaminação emocional, a efervescência religiosa que vão sendo configurados pelo espetáculo da fé. O espetacular se dá numa circularidade com o grande público consumidor ou, até, consumista dos bens de salvação.

A religião pentecostal incorpora a regra da estetização, própria da cultura de consumo disseminada e operante na metrópole. O provocar sensações está na base dos discursos e rituais. Os parâmetros dessa evangelização sedutora vêm do próprio ato de sedução dos sujeitos, nada de fora, "nada de regras, somente escolhas" (Featherstone, 1995:75),e o que for escolhido com gosto (diga-se, com fé) será, por certo, bom. O bens religiosos tornam-se mercadorias ofertadas pelos discursos bem embalados, significados consumidos, no impulso da sensação que vem da euforia bem estimulada, das promessas excitantes de salvação, das mensagens experimentadas com profunda emoção e dos rituais, envolvendo as sensações corporais. No âmbito do discurso teológico, as regras mínimas da coerência racional, seja na leitura do texto, seja na reflexão homilética, não estão presentes. Prevalece uma teologia estética, ou melhor, uma "teopatia", sobre os discursos regrados. Jesus Cristo é o Santo que está presente na palavra que comove, um supersigno que produz efeitos instantâneos e, por isso mesmo, poderá gerar efeitos remotos, solucionando os problemas da vida. O mesmo se pode dizer da figura do Espírito Santo e de Deus. Um sintoma interessante é o não-enfrentamento das dificuldades teórico-cognitivas da relação entre as pessoas trinitárias, sempre referidas isoladamente e sem se preocupar com suas relações e conexões, como é próprio das tradições cristãs. Há, de fato, no pentecostalismo em geral, mas, de modo particular, na sua terceira onda, uma inflação da forma sobre os conteúdos, nas representações e práticas. Trata-se, no fundo, da prevalência do pathos sobre o logos; em linguagem de mercado, da embalagem sobre o conteúdo, oferecidos e comprados mediante os slogans de promessa de eficácia. Nesse sentido, o neopentecostalismo se produz na cultura metropolitana, dinamizadora de "um movimento para além da primazia discursiva e reflexiva da linguagem, em direção a formas culturais figuradas que enfatizam a ausência de mediações e a intensidade das sensações auditivas e visuais, proporcionando prazeres caóticos e dispersos para sujeitos descentrados" (Featherstone, 1995:140).

O que Clanclini denominou descoleção (Canclini, 1998:304) ¾ um elemento emergente da cultura supermoderna urbana ¾ está presente tanto nas composições discursivas e rituais dos neopentecostais, como no comportamento de sua clientela. O discurso neopentecostal rompe com regras e padrões teológicos, numa suposta livre interpretação da Bíblia. Os textos e versículos lidos e comentados, de maneira avulsa, é o exemplo mais contundente da descoleção, da crise do padrão ou do sistema; nesse sentido, parece ser correto perguntar se os grupos pentecostais não anteciparam, com a prática da livre interpretação e da santificação espiritual, o que veio ocorrer com a cultura de consumo do capitalismo tardio. As homilias dos pastores orientam-se pelo faro da sensação possível nos ouvintes, uma espécie de sensus cordis que vem da própria condição popular do pregador, como de uma sintonia instantânea com as reações que brotam da assembléia. O sentido do texto é dado em cada momento vivenciado pela assembléia; ele jorra da "santa emoção" e não de outro critério que inclua categorias racionais. Mas o mais interessante é que "cada usuário pode fazer sua própria coleção", sentir a mensagem do texto e reagir a ela como lhe convier: abrir a Bíblia é tirar uma mensagem, orar como quiser, chorar, sorrir, fazer gestos, gritar. Um ritual descolecionado, se olharmos para as regras rituais seculares das religiões desde os grupos primitivos. É a descoleção que possibilita, de modo muito particular e próprio, na terceira onda, a freqüência flutuante dos fiéis, sem formar uma comunidade de adesão. O fiel pode buscar o que lhe interessa, sem estabelecer maiores vínculos e exercer um permanente trânsito religioso por comunidades emocionais temporárias e de afeto imediato (Canclini, 1998:142).

Não por acaso, o neopentecostalismo ocupa, preferencialmente, trajetos e manchas metropolitanas onde se enfileiram os bens de consumo e suas ofertas sedutoras. É nessa mesma condição que podemos falar em desterritorialização religiosa, no sentido de se estabelecer pontos fixos sagrados ¾ puncta mundi e não axis mundi ¾ de prevalência das raízes familiares e das velhas tradições. A recriação dos territórios se dá na linha de novas regras de convivência e associação, transgredindo as fronteiras definidas pela geografia e pelas delimitações socioculturais. Os neopentecostais ¾ terceira onda ¾ ocupam os territórios metropolitanos pela telemídia, vencendo as fronteiras entre o público e o privado, o concreto e o virtual, a cultura de massa e a popular. É comum assistirmos a um pastor falando português sofrível, sendo veiculado pela televisão com todo o seu aparato sofisticado, até há bem pouco reservado a uma cultura de mínima erudição. Televisão tornou-se território religioso popular com seus rituais totalmente expostos. Curas e exorcismos já não estão reservados à intimidade da fé comunitária, mas são exibidos como qualquer outro fato ou produto de mídia, atraindo telespectadores e criando adesões. O mesmo se pode verificar com a utilização extensa da simbologia católica, até bem pouco impensável, por parte da Igreja Universal do Reino de Deus ¾ IURD. Aí os clássicos territórios evangélico e católico se cruzam, a ponto de ambos poderem se sentir em casa em um mesmo templo.

Presentes nas manchas e nos trajetos, os neopentecostais criam comunidades de afeto imediato, que não necessitam de vínculos duradouros, como no pentecostalismo clássico, e reproduzem a lógica metropolitana do não-lugar que mantém o anonimato e a massa.

O pentecostalismo, na medida em que se desdobra em suas ondas, vai se tornando cada vez mais identificado com a cultura metropolitana. A ruptura com os elementos religiosos arcaicos do catolicismo popular torna-se mais visível, fazendo com que muitas vezes prevaleçam, nas suas expressões mais imediatas, os elementos emergentes da metrópole supermoderna, muito embora a cultura metropolitana, em seus processos, elimine per se qualquer olhar homogêneo que venha compor linearidades evolutivas ou gêneros puros. Portanto, os elementos emergentes da cultura metropolitana são incorporados nas práticas pentecostais, não numa seqüência de um paradigma religioso que cede lugar a um outro novo, mas de rupturas dadas numa dialética múltipla entre elementos velhos e novos.

A HIERÓPOLIS PENTECOSTAL

A metrópole ¾ entendida como um processo de apropriação, racionalização e significação do espaço ¾ coloca no mesmo nível de compreensão a produção material e as teogonias. Os deuses e os homens comem sempre da mesma comida e ocupam o mesmo espaço. As teogonias são tanto instituintes como instituídas pela metrópole; são produtos dos grupos que fazem o grande espaço metropolitano e, uma vez constituídas em seus sistemas, passam a influenciar nas ações dos mesmos grupos dentro desse território e dessa temporalidade.

No entanto, os deuses não nascem por geração espontânea ou a partir de rupturas radicais no sistema de crenças, mas transitam pela passagem do rural ao urbano adaptando-se às suas contradições e aos seus processos e resguardando seu núcleo mais central. Eles gozam de uma autonomia relativa em relação aos movimentos de mudança histórica, renascendo constantemente no enfrentamento do novo que se vai configurando. O grande nascedouro da religião brasileira foi, sem dúvida, o mundo rural, desde o tempo da colonização portuguesa; de lá vieram as representações e práticas religiosas ¾ consolidadas num catolicismo de tipo popular ¾ que perpassam nossa cultura sincrônica e diacronicamente. Com essas referências constituídas o povo crente ¾ agentes, grupos religiosos ¾ interage dialeticamente com a cultura metropolitana por meio de processos de trocas, introjeção e resistência.

O pentecostalismo mostra-se como um formato teogônico próprio da metrópole, que é configuração de uma cultura em transformação que vai se estruturando com elementos arcaicos e emergentes: nasce de sua contradição entre dominantes e subalternos, vive de seus processos de mudanças espaciais e temporais e compõe-se de seus significados velhos e novos. O resultado é uma religião popular urbana configurada pelas afinidades entre quadros históricos distintos, de resíduos de um passado encantado capaz de sobreviver nos desencantos da metrópole como estratégia de domínio e significação do mundo caótico.

NOTAS

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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  • WECKMANN, L. La herencia medieval del Brasil México, Fondo de Cultura Económica, 1993.
  • WILLIAMS, R. Marxismo y literatura Barcelona, Penisola, 1980.
  • 1
    . Dados estatísticos demonstram um crescimento dos pentecostais a partir da segunda metade do século XX. Segundo Rolim, em 1955 eles eram 394.998; em 1960, 705.031; em 1965, 1.021.929; em 1970, somavam 1.418.933. Hoje, estima-se que o número de pentecostais no Brasil esteja entre 15 e 20 milhões (Rolim, 1985, cap. IV; Cesar e Shaull, 2000, 22-4).
  • 2
    . Paul Freston classifica o pentecostalismo brasileiro em três ondas distintas, não só pelo período histórico em que se situam, como também pelas características próprias que as constituem. A primeira onda vai de 1910 aos anos 50, com duas únicas igrejas: Congregação Cristã no Brasil e Assembléia de Deus. A segunda onda tem início a partir dos anos 50 e se firma nos anos 60, com uma multiplicação continuada de grupos. Os três principais grupos desse período são Quadrangular, Brasil para Cristo e Deus é Amor. A terceira onda surge no final da década de 70 e se firma nos anos 80. A grande representante é a Igreja Universal do Reino de Deus, vindo em seguida a Igreja Internacional da Graça (Freston, 1993 e 1994).
  • 3
    . Oliveira e Fernandes (1983) discutem essa temática.
  • 4
    . Sobre os resíduos medievais do Brasil atual vale conferir: Weckmann, 1993.
  • 5
    . Entendemos que essa consolidação religiosa do passado configurou o chamado "catolicismo popular" que vai prevalecer como religião unânime em nosso país. Cf. Pereira de Queiroz, 1973:72-99; Fernandes et alii, 1988: 59-84. Nesta mesma obra, ver o artigo de Brandão, 1988:27-58.
  • 6
    . Magnani (1998:115-6) estuda cultura popular metropolitana a partir dessas categorias. Define o
    pedaço como a esfera de sociabilidade imediata dentro do grande território anônimo, a
    mancha como "áreas contíguas" com especificidades de bens oferecidos, e o
    trajeto como os itinerários que ligam as manchas e os pedaços ou criam fluxos no interior das próprias manchas.
  • 7
    . As músicas pentecostais expressam igualmente essa centralidade do indivíduo com suas letras na primeira pessoa do singular. No livro de canto
    Louvores do Reino da IURD (1998:9-100) pode-se verificar as letras compostas em primeira pessoa do singular ocupando quase a totalidade dos cantos. Das 100 primeiras músicas obtém-se o seguinte resultado: primeira pessoa do plural (8), terceira pessoa do singular (9), segunda pessoa do singular com letras apelativas ao "tu" individualizado (10) e primeira pessoa do singular (73).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Nov 2002
    • Data do Fascículo
      Out 2000
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