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TEMPO E ESPAÇO NA METRÓPOLE: BREVES REFLEXÕES SOBRE ASSINCRONIAS URBANAS

Resumo

A metrópole só pode ser desvendada por aproximações sucessivas, iniciando-se por uma ligeira caracterização de suas principais coordenadas socioeconômicas, tais como a desconcentração industrial, os ritmos de crescimento populacional, níveis de renda das famílias, auto-segregação das elites, formas precárias de moradia para vastos contingentes de pobreza. Entre vários aspectos estão as assincronias urbanas, ou as diferenças de ritmos entre usuários da cidade, abrangendo desde a velocidade conectada à globalização, até a história lenta que pode transformar fracos em fortes, recuperando um tempo perdido na vida das cidades: o da fruição.

metrópole global; assincronias urbanas; desigualdades sociotemporais; velocidade


TEMPO E ESPAÇO NA METRÓPOLE

breves reflexões sobre assincronias urbanas

MAURA PARDINI BICUDO VERÁS

Socióloga, Professora do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUC-SP

Resumo

: A metrópole só pode ser desvendada por aproximações sucessivas, iniciando-se por uma ligeira caracterização de suas principais coordenadas socioeconômicas, tais como a desconcentração industrial, os ritmos de crescimento populacional, níveis de renda das famílias, auto-segregação das elites, formas precárias de moradia para vastos contingentes de pobreza. Entre vários aspectos estão as assincronias urbanas, ou as diferenças de ritmos entre usuários da cidade, abrangendo desde a velocidade conectada à globalização, até a história lenta que pode transformar fracos em fortes, recuperando um tempo perdido na vida das cidades: o da fruição.

Palavras-chave

: metrópole global; assincronias urbanas; desigualdades sociotemporais; velocidade.

Para o homem comum, o Mundo, o mundo concreto imediato, é a Cidade, sobretudo a Metrópole.

Milton Santos (1996)

S

empre se inicia o conhecimento de algo, mesmo enigmático e indecifrável na sua complexidade como a metrópole, com uma visão panorâmica dos aspectos considerados básicos, em aproximações sucessivas. Nas cidades capitalistas,

locus da

mercadoria, hoje globalizada, principalmente no novo milênio já iniciado, destacam-se questões recorrentes: a magnitude de sua população e seus ritmos de crescimento; o peso de produção industrial no conjunto da economia (o que já foi considerado a saída local, regional e nacional para o desenvolvimento); o papel histórico de suas burguesias e de seu proletariado; as configurações espaciais e relações com a hinterlândia, as dimensões da desigualdade sociopolítica e cultural. As metrópoles foram as configurações socioespaciais representativas do momento histórico da acumulação fordista, da industrialização e da construção do Estado do Bem-Estar Social, mas receberam avaliações pessimistas pelos graves problemas que apresentaram, especialmente nas décadas de 70 e 80. Nos anos 90, entretanto, obtiveram novas interpretações, sendo ressignificadas como espaços onde podem surgir novas idéias, como laboratórios de iniciativas, e novas sociabilidades, como ambientes cálidos que favorecem a democracia e defendem os cidadãos dos frios e impessoais mecanismos do mercado (Borja, 1990; Ianni, 1994).

No Brasil, podem ser esquematizados quatro momentos históricos no que se refere ao papel das metrópoles: quando as cidades brasileiras formavam quase um arquipélago, a ausência de comunicação entre as metrópoles dava a estas uma zona de influência restrita onde apenas comandavam uma fração do território; quando se tenta formar um mercado único nacional, com integração territorial apenas no Sul e Sudeste; um terceiro momento é representado pela constituição de um mercado nacional único; o momento atual, que "conhece um ajustamento à crise desse mercado, que é um mercado único, mas segmentado, único e diferenciado, um mercado hierarquizado e articulado pelas firmas hegemônicas, nacionais e estrangeiras, que comandam o território com apoio do Estado. Não é demais lembrar que mercado e espaço, mercado e território, são sinônimos. Um não se entende sem o outro" (Santos, 1996:154).

Atualmente, pois, pode-se falar da onipresença da metrópole, em todos os lugares e momentos. Através das metrópoles, todas as localizações tornam-se centrais, funcionalmente, porque são lugares centrais das metrópoles, e cada lugar está conectado à sociedade. Hoje há simultaneidade e instantaneidade.

Tendo em vista um singelo roteiro de desvendamento desse fascinante objeto de estudo, principia-se aqui com algumas dimensões anatômicas da realidade urbana da metrópole de São Paulo. Posteriormente busca-se aprofundar um dos aspectos cruciais de sua vida: o tempo metropolitano. O tempo que torna a simultaneidade possível não é mais físico, o do relógio, mas tempo social, que está em todos os lugares, o tempo metropolitano. "Os momentos que, no mesmo tempo do relógio, são vividos por cada lugar, sofrem defasagens e se submetem à hierarquia (em relação ao emissor e controlador dos fluxos diversos). Porque há defasagens, cada qual desses lugares é hierarquicamente subordinado. Porque as defasagens são diferentes para as diversas variáveis ou fatores, é que os lugares são diversos" (Santos, 1996:156). A metrópole instantânea é sincronicamente social, ela sofre verdadeira dissolução, um fenômeno novo, o do espaço dos fluxos estruturadores.

APROXIMANDO-NOS DO OBJETO

A aglomeração metropolitana de São Paulo (RMSP), cujo reconhecimento legal se deu em 1973 (Lei Complementar de 8 de junho de 1973), abrange 39 municípios nos 8.051 km², tendo sua sede na cidade de São Paulo. Os dados preliminares do Censo Demográfico de 2000 (IBGE) apontam cerca de 17 milhões para a população metropolitana e, para o Município de São Paulo, quase dez milhões de habitantes.

Embora nas últimas décadas as taxas de crescimento populacional anual tenham diminuído (entre 1970 e 1980 era de 4,46% a.a., passando na década seguinte para 1,88% a.a. e, entre 1991 e 1996, para 1,39% a.a.), ainda podem-se observar grandes disparidades socioeconômicas e espaciais.

O Município de São Paulo, a maior capital da região considerada a mais desenvolvida do país, também vem apresentando um decréscimo de sua taxa de crescimento populacional, que passou de 6,1% a.a. nos anos 50 e 60 a taxas de 1,2% a.a. na década de 80 e a 0,34% de 1991 a 1996 (IBGE). Em processo de desconcentração metropolitana, as cidades menores da periferia da região vêm revelando expressão populacional crescente, aumentando para cerca de 40% seu peso no conjunto da metrópole, enquanto o Município de São Paulo, que já representou 72% em 1970, hoje concentra cerca de 60% dos habitantes da RMSP. Fluxos maciços de migrantes pobres dirigem-se às periferias da metrópole, criando zonas densas com alojamentos precários (favelas e loteamentos clandestinos), e porções deterioradas e centrais abrigam formas de inquilinato social (cortiços, nas mais variadas modalidades).

Igualmente, as indústrias de caráter tradicional estão sendo deslocadas para essas cidades, por diversas razões bem conhecidas. Trata-se de uma nova configuração urbana, caracterizada pela ênfase e expansão das funções de controle, comando e administração de grandes empresas implantadas principalmente na sede metropolitana, em detrimento das funções de produção, que hoje declinam. O setor terciário ganha importância, particularmente os setores diretamente ligados ao capital e a sua gestão. São Paulo vem conhecendo transformações pelas quais o mundo todo também tem passado, alterações que obedecem não só aos determinantes do que se convencionou chamar de "globalização",1 1 . Numerosa bibliografia vem tratando desse tema e da inserção de São Paulo no paradigma das global cities. Ver, entre outros, Véras, 1997. mas igualmente aos fatores que se prendem às especificidades da sociedade brasileira. As escolhas da política econômica e do modelo de desenvolvimento que foram adotados no Brasil, acompanhando as tendências em vigor no capitalismo internacional, transformaram seu perfil de metrópole industrial do Terceiro Mundo no de metrópole de "serviços" e "informacional", característico das cidades ¾ pólo das economias de fluxo na rede mundializada contemporânea. O desemprego tem aumentado ao longo dos últimos anos; assiste-se a uma queda importante do emprego assalariado, e a "exclusão" social tem-se revelado em múltipla fenomenologia.2 2 . No Brasil não há uma sociedade salarial plena nos termos de Castel (1998) nem um Estado do Bem-Estar Social como a Europa apresentou e, dessa forma, fica difícil falar hoje de crise. Nesse sentido, o debatido conceito de exclusão social torna-se presente, resgatando a polêmica teórica desde os termos de marginalidade, passando pela crítica à razão dualista e recolocando a problemática da "apartação" e das rupturas (Véras, 1999). Segundo a Pesquisa Emprego e Desemprego na Grande São Paulo (PED) da Fundação Seade, a taxa de desemprego atingiu 12,1% em 1999, enquanto chegava a 7,6% em 1985. A taxa de desemprego total era de 19,3% em 1999 e, na cidade de São Paulo, era de 17,7%. Entre os ocupados na região metropolitana, em 1999, apenas 61,4% eram assalariados (enquanto representavam 72,1% em 1989). Em contrapartida, os autônomos passaram de 15,6% em 1989 para 21,0% em 1999 e estavam, em sua maioria, em empregos "não-declarados", economia informal ou "bicos". Mesmo entre os assalariados é preciso assinalar que cerca de 12% não são registrados, o que quer dizer que vêm engrossar as cifras da informalidade (PED-Seade-Dieese, 1999).

Com desigualdade explícita do solo urbano e com mecanismos de mercado, a distribuição de favelas e loteamentos precários da periferia em torno da parte mais rica e consolidada da superfície urbana é testemunho apreciável dos processos centrífugos da expulsão dos pobres. Um rápido olhar sobre o processo de urbanização da metrópole permite constatar que a questão da terra e dos espaços urbanos foi comandada pelo capital imobiliário, e o poder público acabou por se restringir em facilitar as condições necessárias à sua reprodução e expansão. Desse processo resulta um quadro que dificultou o acesso eqüitativo aos recursos do "ambiente construído". Tais políticas urbanas ¾ em especial as de habitação, transportes e serviços de infra-estrutura ¾ têm contribuído para acentuar os conhecidos processos de exclusão-segregação, como a distribuição territorial da pobreza.3 3 . Segundo a PED-Seade-Dieese, a renda mínima real familiar baixou de R$ 1.889,00 em 1989 (em valor real de 1999) para R$ 1.456,00 em 1999; igualmente a renda per capita caiu ao longo dos dez últimos anos, passando de R$ 596,00 para R$ 519,00. O tamanho médio da família era de 3,8 pessoas em 1989 e diminuiu para 3,4 pessoas em 1999. O salário mínimo até abril de 2001 era de R$ 151,00, o que correspondia a US$ 68, a preços dessa data.

Merece destaque o desenvolvimento econômico da Região Metropolitana de São Paulo a partir dos anos 90. Como visto, a atividade industrial, que foi o suporte principal da evolução econômica e urbana da região, começou a declinar entre os anos 70 e 85, e não só por causa da expansão do parque industrial para outras cidades do Estado de São Paulo. Esse processo de "desconcentração industrial", vigoroso naquela época, passa a diminuir no período após 85 e 90, quando ocorre um novo movimento de reconcentração na metrópole.

Essa alternância de atração e espraiamento das indústrias parece não significar "desindustrialização" como querem alguns autores. Ao contrário, trata-se do impacto da reestruturação produtiva associada a uma frágil atividade econômica dos anos 90. A indústria continua setor produtivo, dinâmico e complexo, em novas modalidades, empregando menor número de trabalhadores, mas mais qualificados, e gerando diversas atividades de apoio à produção industrial, como serviços técnicos, financeiros, de telecomunicações e transporte.

Entretanto, apesar desse recrudescimento, a reestruturação produtiva continua a trazer efeitos sobre a estrutura ocupacional da metrópole paulistana; se o emprego industrial diminuiu, aumentaram o comércio e os serviços: em 1989 a população empregada na indústria era de 33%; em 1999 a proporção caiu para 19% e essa queda foi mais acentuada no setor metal-mecânico, que passa de 14% a 7% nesse período. Os serviços representam cerca de 53% dos empregos em 1999, contra 41% em 1989. O aumento se concentra nos serviços especializados. Em 2000, para o Município de São Paulo, os serviços representavam cerca de 60% dos empregos, particularmente nas zonas sudoeste, sudeste e norte, e sempre referindo-se aos serviços mais especializados. Na capital, a indústria representa 18,2% dos empregos e o comércio soma 16,7% (dados do Seade/Dieese 2000).

Pode-se inferir que o setor de serviços terminou por amenizar a intensidade do desemprego que marcou a região metropolitana nos anos 90. De fato, enquanto 730 mil postos de trabalho industriais aí se perderam, cerca de 230 mil foram criados no comércio e mais de 200 mil no setor de serviços domésticos (Pamplona, 2000). É bom sublinhar, entretanto, que a maioria dos empregos no setor terciário está nos serviços menos complexos e qualificados, ligados ao consumo, à alimentação e aos serviços pessoais. Também o comércio ambulante significa parte destacada na absorção da mão-de-obra expulsa de setores mais modernos, configurando uma forma de precarização do trabalho.

Os efeitos do processo de reestruturação produtiva não são homogêneos, penalizando alguns setores, mas permitindo que outros, mais técnicos, embora minoritários, progridam. Setores informais abrigam vários tipos de ocupação (auto-emprego, na terminologia de Pamplona, 2000). Citando pesquisa do IBGE sobre o setor informal, o autor apontava que 75% das unidades produtivas da RMSP concentravam-se em quatro grupos de atividades: comércio (23%), serviços de diversão e lazer (22%), serviços técnicos e auxiliares (15%) e 15% na construção civil (Pamplona, 2000).

Entre 1994 e 1998, ampliou-se o número de famílias mais pobres por causa do aumento das taxas de desemprego e das menores rendas provindas do trabalho: o desemprego tem sido a grande causa da pobreza e da indigência, segundo os especialistas, ao lado da pouca escolaridade e da baixa qualidade dos postos de trabalho (Barros e Mendonça, 1997; Ramos, 1997, entre outros).

Nos anos 90, as taxas de desemprego marcaram o mercado metropolitano atingindo vivamente a força de trabalho. Daí decorre o aumento das taxas de desigualdades entre os grupos sociais e um perverso processo de concentração de renda. As taxas de desemprego atingem mais mulheres que homens, e o setor de serviços ¾ particularmente o de serviços domésticos ¾ vem absorvendo cada vez mais desempregados expulsos dos segmentos produtivos.

A tendência decrescente de renda atinge todas as posições ocupacionais, dos assalariados do setor privado, com ou sem carteira assinada, aos assalariados do setor público, aos autônomos, ao setor de serviços domésticos (diaristas ou mensalistas). É o já citado mercado informal, que cresce com oscilação de rendimentos.

As estratégias familiares para a sobrevivência também acompanharam tais mudanças, pois cresceu a participação das mulheres na sustentação do lar, bem como a dos filhos menores, e tem aumentado a freqüência de mulheres chefes de família.

Como conseqüências desse imenso mercado informal dos últimos anos estão a redução das receitas e o agravamento da crise do Estado, a diminuição de equipamentos urbanos, a precariedade de acesso a habitação, saúde, transportes, cultura e lazer, com degradação da qualidade de vida.

As bruscas oscilações conjunturais da produção têm efeito corrosivo sobre os salários, refletindo-se nos perfis de renda das famílias. Jannuzi (2000) mostra que, a partir de 1996, novo período de crise provocou recrudescimento do desemprego. Um conjunto de fatores passa a alterar a renda das famílias, muitas vezes acrescida de outras fontes, além do trabalho, como aposentadorias, aluguéis, etc. O citado estudo informa que, entre as classes de mais alto poder aquisitivo da RMSP, há um conjunto de características que podem explicar esse aumento da renda ¾ entre elas a diminuição do tamanho das famílias, pois decaíram as taxas de fecundidade e surgem cada vez mais pessoas sós ou casais sem filhos, tendência que se acentuou nos últimos anos. Em 1990, 5% das famílias mais ricas detinham 21% das rendas familiares e essa taxa se eleva para 25% em 1998. No final de 1998, os 25% entre os mais ricos dispunham de 63% de renda e, em 1990, os mais ricos dispunham de 55% da renda. Em contrapartida, os mais pobres perderam participação de 7% para 5,5% no mesmo ano.

O mercado de trabalho favorece principalmente aos mais escolarizados e qualificados, e esse é um dos principais pontos de explicação do crescimento perverso das taxas de empobrecimento e de indigência de numerosos segmentos da população.4 4 . Para definir indigência, Jannuzzi utiliza os mesmos critérios de Cepal, pelos níveis de preços da "cesta básica", adaptados aos valores e às quantidades utilizadas pela pesquisa de índices de custo de vida Dieese/Seade. Os valores dos gêneros de primeira necessidade funcionam como termômetro para avaliar a variação da situação de indigência e pobreza. Segundo tal critério, estariam na faixa de indigência famílias que não têm meios para adquirir cesta básica (valor de R$ 71,38 em 1999). Em 1998 estavam nessa situação famílias cuja renda per capita era inferior a R$ 62,26.

Januzzi aponta que em 1990 havia 6% de famílias consideradas indigentes e 33% em situação de vulnerabilidade. Em 1994, com as flutuações das rendas e o aumento do custo de vida, a proporção de famílias indigentes representava 11% das famílias da RMSP. Já em 1998, reduzem-se à metade as taxas da indigência (6%) e as famílias em situação de vulnerabilidade (para 13%). No entanto, apesar da diminuição do número de indigentes, pode-se visualizar que grande parcela dos habitantes da região metropolitana mora precária ou irregularmente: aumentou o número de favelados (só no Município de São Paulo são quase dois milhões de pessoas, cerca de 20% da população da cidade) para 16% na região metropolitana (apesar de as fontes oficiais, como o IBGE, subestimarem a realidade das favelas conceituando-as como aglomerados com mais de 50 domicílios), dos encortiçados (inquilinato social e precário), dos loteamentos clandestinos, sem acesso aos benefícios urbanos como água, esgoto, energia elétrica e demais equipamentos sociais.

Se, de um lado, assiste-se a um transbordamento da ocupação da pobreza da periferia da sede metropolitana para demais municípios da região metropolitana, de outro lado ocorre a auto-segregação das elites, assumindo a forma de condomínios fechados, alguns de alto luxo como Granja Viana e Alphaville. A desigualdade socioespacial presente na cidade de São Paulo reproduz-se por toda a região metropolitana.

No quadro crescente de exclusão e miséria sociais, as configurações espaciais desses processos são conhecidas: periferias desequipadas e crise de habitação popular (favelas, cortiços, sem domicílio).

Interesses das políticas urbanas voltados à realização de grandes obras públicas e à produção imobiliária têm sobressaído sobre as demandas de acesso mais eqüitativo aos recursos do "ambiente construído" da chamada "cidade global" (Véras, 1997).

Esse quadro de exclusão é confirmado pela segregação como distribuição espacial da pobreza, uma certa topografia urbana da desigualdade (Véras, 2000). A oferta oficial de habitações para os grupos de baixa renda apresenta-se apenas como um conjunto singelo que dá prioridade à aquisição segundo mecanismos seletivos e bancários pouco sensíveis às características da demanda. A crise do Sistema Financeiro da Habitação tornou mais aguda a inadequação entre esses traços das políticas de habitação popular e as necessidades sociais.

Não há uma orquestração de gestão para a região metropolitana, deixando às políticas municipais a administração da massa de pobreza que se estende pelos 8.051 km², e que demanda vários tipos de atenção e cuidados, como infra-estrutura, transporte, habitação, atendimento de saúde, educação, lazer e outros.

Como já visto, a metrópole de São Paulo apresentou decréscimo de valor adicionado nos últimos 20 anos quanto a comércio e indústria, mas aumentou sua participação do setor de serviços ¾ setor que se distribui por toda a mancha urbana.

A distribuição de empregos, contudo, é muito desigual na região, obedecendo a certa espacialização concêntrica, ou seja, as áreas centrais e mais consolidadas detêm alto nível de empregos, de renda e de infra-estrutura, traço que vai diminuindo na direção das áreas intermediárias e rareando nas periferias. Ao mesmo tempo em que o congestionamento habitacional é maior nas periferias, observa-se que o chamado mercado informal de trabalho (comércio ambulante ou sem carteira assinada) prolifera em toda a metrópole, sobretudo nas zonas e ruas de maior movimentação.

O próprio sistema viário implantado acaba por reforçar o padrão de ocupação que sempre foi radial, partindo do Centro Histórico e seguindo setores de expansão a sul, leste e oeste. "É especialmente marcante a associação entre expansão urbana e estradas importantes nos setores sul (BR-116 e Raposo Tavares) e sudeste (Anchieta e Imigrantes) que afetam diretamente as áreas de proteção aos reservatórios Guarapiranga e Billings" (São Paulo, 2000).

OS TEMPOS DA METRÓPOLE: RITMOS URBANOS

A cidade contemporânea se explicita na metrópole. Se seus espaços são heterogêneos (zonas rurais, de habitação da pobreza, da indústria tradicional, da indústria moderna, de serviços sofisticados, de serviços de baixa qualificação, condomínios fechados de alta renda, shopping centers, zona de negócios, hotéis e parques de convenções, enfrentamento dos iguais e dos diferentes), o tempo materializado nesses lugares é extremamente dinâmico, pois a co-presença ensina aos homens, territorializa e (des)territorializa e (re)territorializa, trata-se, assim, de tempo humanizado, não-natural.

Na cidade da mercadoria, "tempo é dinheiro" e os marcadores de tempo, como o relógio e cartão de freqüência para medir as jornadas de trabalho, surgem como grandes conquistas tecnológicas e acabam por dominar o espaço ¾ o ambiente construído ¾, pois o que importa é o dinheiro. Há uma concatenação entre tempo, espaço e dinheiro, e a metrópole não pode retardar a marcha da produtividade (Harvey, 1992).

O sistema viário precisa permitir fluxos rápidos (da força de trabalho, dos consumidores, das mercadorias), e os transportes coletivos também deveriam funcionar como verdadeira "máquina" (e essa foi uma das inspirações do urbanismo modernista). Assim, o espaço pôde dominar o tempo, e a aglomeração fordista fez com que a metrópole fosse encarada como algo a ser domado, disciplinado, ordenado.

A terra urbana também é submetida a essa voragem da cidade veloz, mas a propriedade fundiária foi capaz de dominar o tempo. Por exemplo, especuladores imobiliários conseguem reter glebas vazias por longos períodos, aguardando a valorização urbana. Nesse sentido, esse tempo foi transformado em dinheiro, viabilizado pela propriedade privada da terra, como reserva de valor.

O capitalismo fez a razão transformar-se em razão instrumental, pragmática, buscando eficiência e produtividade. Isso ocorreu quando transformou as cidades ¾ espaços qualitativos, onde o homem podia se reconhecer ¾ em espaço quantitativo e abstrato, tornando-as "valor de uso" em metrópole, isto é, "valor de troca", obedecendo aos mecanismos mesmos do processo de trabalho, que também se tornou trabalho abstrato-tempo materializado.

A temporalidade se faz presente nas sociedades que precisam sempre produzir mais e nas quais o trabalho de cada um, heterogêneo, qualitativo, transforma-se em quantidade de tempo. Essa temporalidade, pois, domina o sujeito: "a temporalidade perdeu seu caráter qualitativo, cambiante, fluido, transforma-se em um continuum rígido, bem delimitado, preenchido por coisas quantitativamente mensuráveis (que são as produções dos operários reificadas, objetivadas de maneira mecânica e destacadas da personalidade global do homem); o tempo se transforma em espaço" (Lukács apud Matos, 1982). Essas reflexões tomam o caráter abstrato da quantidade de tempo: no mundo espacializado do trabalho, o homem, indivíduo pessoal, afetivo, pouco importa ¾ só a engrenagem produtiva é relevante.

É essa intenção produtivista da economia de mercado que domina a metrópole. Simmel já dizia que a economia do dinheiro pretendia transformar o mundo em um problema aritmético, dispor todas as partes por meio de fórmulas matemáticas, "precisão que foi efetuada pela difusão universal dos relógios de bolso" (Simmel, 1969).

Retomando a escola de Frankfurt, Matos (1982) traz o cotejo entre a cidade de outrora e a metrópole. "A cidade tinha um passado, uma história descentralizada, uma soma de experiências próprias, de práticas cotidianas. O bairro tinha ele próprio seus microlugares, suas aventuras, sua identidade. A cidade sabia igualmente marcar o tempo por tiros, signos periódicos de pertença ao grupo. Festas religiosas, políticas privadas ou públicas se sucediam" (Barré apud Matos, 1982:47).

"A metrópole, ao contrário, se destitui de sua aura, da fruição do aqui e agora, de sua presença a si mesma. A metrópole é a negação da cidade (ou da vida rural)" (Matos, 1982:47). A metrópole estaria, assim, liquidando as possibilidades dos indivíduos autônomos, pois mergulharia na multidão desindividualizada.

"O capital é um poder tanático que destrói o espaço fugidio da cidade, convertendo-a em metrópole impessoal e sem memória. Por isso, os momentos revolucionários seriam desobediências à História. 'Rompe-se o tempo dos relógios' " (Romano apud Matos, 1982).

No mundo em que tecnologias tentam diminuir o espaço (telemática, telefonia, Internet), diferentes práticas sociais buscam melhores posições no mercado e aí se insere a luta por melhores localizações urbanas. Nesse afastamento do mundo natural, dos ritmos naturais, em que sol e lua já não comandam as rotinas, a cidade do lucro (profitópolis) e as cidades "do gelo" também se transformam em "Tiranópolis" (Véras, 1995; Virilio, 1993; Mumford, 1982).

O capitalismo trouxe aceleração dos ritmos econômicos, com o tempo da jornada de trabalho, o tempo de reprodução (lazer e viver), e os trabalhadores a aprenderam a lição de que tempo é dinheiro. Na virada para a pós-modernidade, além da jornada combinada de trabalho (na linha de montagem, no salário por peça), vem a robótica acelerar ritmos da produtividade. Na acumulação flexível, com novas formas organizacionais e tecnologias produtivas inovadoras, o poder global domina tempo e espaço. O mundo todo encolheu, pelo "telemarketing globalizado" (Harvey, 1992), trazendo (des)territorialização. Na acumulação flexível, a terceirização e o controle eletrônico aperfeiçoam a velocidade da produção e da comunicação acelerando o mercado financeiro, a produção de bens e de serviços e o consumo de massa, inaugurando uma sociedade do descarte (haja vista a volatilidade e efemeridade da moda). E nessa transitoriedade podem incluir-se imagens, símbolos e idéias, como é o caso do marketing político.

Dessa forma, como a comunicação comprimiu espaço (anulação do espaço por meio do tempo), o mundo tornou-se a aldeia global, em uma nova geografia, como é o caso das cidades globais (Ianni, 1994; Sassen, 1991; Véras, 1997), onde as palavras de ordem são as da competitividade (ou complementaridade), utilizando-se de estratégias empresariais, pois tudo se tornou um grande mercado.

A metrópole global do Terceiro Mundo contém, no entanto, muitos lugares e igualmente muitos não-lugares (Santos, 1990; Augé, 1994), pois reúne o local e o global.

Mas é preciso deter-se no significado do tempo, porquanto, apesar de toda a tecnologia e da mundialização, o tempo não é único. Embora todo o meio técnico, científico, informacional, do tempo hegemônico do Estado, do tempo do capital, os grupos, os indivíduos e as instituições não praticam o mesmo tempo (Santos, 1996). Pratica-se, pois, uma temporalidade com conflitos no cotidiano, no qual se exerce o tempo de cada lugar, não só geográfico, como social. As técnicas imprimem uma dada velocidade e estabelecem-se duas direções: horizontal (relações entre pessoas da mesma localidade, entre conterrâneos) e vertical, representada pela globalização dominante (Santos, 1996).

Se a velocidade é a força da civilização planetária, aqueles que não partilham desses impulsos ficam fora do tempo? O que ocorre com a imensa pobreza que habita a grande cidade? Como vive esse tempo?

A metrópole reúne muitas pessoas, diferentes estratos de renda e culturas, um grande laboratório de idéias, o lugar do enfrentamento, do conflito e também da comunhão e solidariedade. É ainda um conjunto de lugares ¾ e um conjunto de fluxos de passagem, no qual muitos migrantes e nativos vivem, sobrevivem, descobrem o mundo, em tempos nem sempre sincronizados.

Na cidade capitalista fraturada, dividida por diferentes classes sociais, segmenta-se o espaço e segmenta-se o tempo. Os processos de segregação vêm acompanhados de fragmentação e polarização: grande heterogeneidade entre os municípios (rurais, agrícolas, dormitórios, industriais). As periferias da sede metropolitana e dos municípios vizinhos são ocupadas por migrantes pobres. Áreas do Município de São Paulo (notadamente a porção sudoeste com concentração de altas rendas) são ocupadas por estratos de altas e médias rendas. Contudo, a oposição binária centro versus periferia não esgota a questão da desigualdade socioespacial, associando-a ao tema das desigualdades sociotemporais.

Assim, na cidade de elite, com os condomínios fechados onde classes dominantes se auto-segregam (enclaves fortificados) ou na cidade dos "muros" (Caldeira, 2000) predominam as viagens de automóvel (cada vez mais blindados) em vários eixos e com baixa capacidade; na ausência de transporte coletivo de qualidade, como o metrô, por exemplo, e como opção individual, os deslocamentos em automóveis particulares acabam por exigir um sistema viário adaptado ao carro, já que a malha ferroviária é insuficiente e desprestigiada, formando, de um lado, uma "viadutópolis" e, de outro, uma teia de aranha disforme e confusa (Santos, 1996). É digno de registro que já é grande a frota paulistana de helicópteros (a terceira do mundo, após Nova York e Tóquio). O tempo é, portanto, o do deslocamento rápido, seguro e protegido. O circuito cultural e comercial se dá em direção ao shopping, ambiente segregado, não só para fugir do mar de pobreza, como também da violência.

O espaço da rua, público, passa a ser visto como perigoso, congestionado, passível de riscos e violência: esvazia-se, é tolerado apenas como necessidade de circulação. Dessa forma, o semáforo e o congestionamento impedem fluxos rápidos. Um exemplo do ponto da cidade mundial de São Paulo, para onde se voltaram os interesses do capital imobiliário, é a Avenida Luís Carlos Berrini, a Nova Faria Lima. Os pedestres são quase inexistentes em áreas onde prédios com tecnologia inteligente abrigam sedes de bancos e empresas transnacionais. É o tempo dos executivos, elite dirigente pública e privada, o setor de ponta da economia globalizada. Vive-se aí o tempo dos fluxos internacionalizados, das Bolsas de Valores, dos negócios das empresas e suas filiais situados em outros pontos do planeta, em nova centralidade (Frugoli, 2000; Villaça, 1999).

Outros são os espaços e os tempos da cidade da pobreza, ou seja, da maioria da população residente nas favelas, nos cortiços, nos loteamentos periféricos, nas ruas (os sem domicílio fixo). E, se há separação espacial, os tempos se cruzarão inevitavelmente nas vias de circulação, nos poucos momentos das zonas públicas. Essa cidade da pobreza mais parece um grande acampamento, contingente, sem direitos às raízes.

Na metrópole dos serviços, a indústria absorve cada vez menos trabalhadores, e cada vez mais os mais especializados. Os serviços estão presentes em toda área urbanizada mais consolidada. Assim, os tempos de deslocamento pendular "habitação e trabalho" são muito variados. É o tempo lento: o do transporte coletivo, do congestionamento, dos riscos. A cidade transforma-se em muitos pontos de deslocamento ¾ de saída e de chegada e não apresenta espaços de fruição.

Embora o trabalho seja cada vez mais precário, a maioria no mercado informal, há a divisão: tempo do trabalho e tempo do viver. O tempo do trabalho é acrescido do tempo de transporte (apesar de que a maioria procura morar próximo ao local de trabalho, para poder ir a pé, economizando custos de transporte). Os trabalhadores, de fato, ao introjetarem o lema "tempo é dinheiro", devem submeter-se ao sistema implantado pelos chamados meios de consumo coletivo.

Aumenta dessa forma o fosso entre as cidades dos 30% mais ricos e aquelas dos 70% mais pobres. E esse fosso é representado também pelos diferentes tempos.

Mesmo a possibilidade de uma grande transformação nas configurações urbanas, como é o caso da concretização de uma cidade virtual (com base nos processos de informática, uma nova sociedade informacional), ainda não plenamente existente entre nós. Essa possibilidade alteraria o tempo metropolitano, pois poderia trazer o não-emprego, o não-deslocamento, num tempo sincronizado aos fluxos internacionalizados.

Já se faz presente o novo tempo social, não-natural (o tempo dos sinais de trânsito, do horário das repartições públicas, dos bancos, dos programas de TV) (Véras, 1995). É possível pensar, também, em tempos de globalização que os binômios desindustrialização/desemprego, ou que a polarização social/fragmentação e ainda pós-indústria/pós-modernidade trarão novas concepções de tempo metropolitano. Esse panorama, contudo, ainda não se desenha inteiramente entre nós.

Em tempos da teleconferência (como a de Tóquio e Paris, por exemplo) inaugura-se um "buraco" no espaço e também um "buraco no tempo", o tempo real da transmissão instantânea de acontecimentos históricos (Virilio, 1993), pois se trata da perplexidade diante da perturbação da percepção de que nossas sociedades estão afetadas pelo progresso das teletecnologias e do declínio da importância da ótica geométrica. Ondas eletrônicas trazem nova velocidade e nova presença que suplantam a física: a teleexistência, a telepresença.

Os setores dinâmicos da metrópole de São Paulo estão participando desses aspectos, mas a maioria se divide entre o tempo real, do congestionamento viário, do ônibus, metrô ou trens lotados, das rotinas urbanas, e vai mergulhar no "éter eletrônico" ao chegar em casa e assistir à televisão.

"A imperceptível parada do tempo na intersecção das linhas de fuga da perspectiva cede agora lugar a uma interrupção do mundo, ou seja, a uma imperceptível retenção de sua extensão e de sua diversidade regional (...) com o sedentário contemporâneo da grande metrópole, a contração imóvel não atinge somente a área de deslocamento e de atividade produtora, como ontem ocorria com a burguesia urbana: ela atinge em primeiro lugar o corpo deste homem válido superequipado com próteses interativas, cujo modelo passou a ser o inválido equipado para controlar seu meio ambiente sem se deslocar fisicamente" (Virilio, 1993:114/115).

Virilio preocupa-se com uma nova necessidade ¾ a de uma nova ecologia, que dê conta da natureza e também dessa artificialidade eletrônica comunicacional:

"Uma vez que a cidadania e civilidade dependem não somente, como é incansavelmente repetido, do sangue e do território, mas também e sobretudo da natureza da proximidade entre os grupos humanos, não seria conveniente propor um outro tipo de ecologia? Uma disciplina menos preocupada com a natureza do que com os efeitos do meio artificial da cidade sobre a degradação desta proximidade física entre os seres e as diferentes comunidades? Proximidade da vizinhança imediata dos bairros. Proximidade mecânica do elevador, do trem, ou dos carros e, finalmente, a recente proximidade eletromagnética das telecomunicações instantâneas. Rupturas de escala tanto em relação ao território e à unidade de vizinhança quanto em relação ao outro, ao familiar, ao amigo, ao vizinho imediato. A separação 'mediática' não dizendo mais respeito exclusivamente à questão da separação em grande escala entre o centro urbano e seu subúrbio ou sua periferia, mas igualmente à intercomunicação televisual, ao fax, às telecompras ..." (Virilio, 1993:115).

Há uma urbanização do mundo, pois, no contexto de um espaço-tempo transformado pelas tecnologias de ação a distância, surge a cidade-mundo, e esse tempo não é partilhado pelos diferentes grupos de pessoas. Assim como há uma geografia social, poderíamos falar também de uma cronologia social, ou, como denominamos, assincronias urbanas.

Discorrendo sobre a urbanização brasileira, Santos (1996:144) mostra que a creditização do território nacional e a dispersão de uma produção altamente produtiva não seriam possíveis sem a "informatização do espaço brasileiro (...) com a implantação de sistemas de cooperação, eventos simultâneos".

Hoje se verificam as condições de simultaneidade necessárias à sociedade informatizada. Entretanto, nem o tempo se apaga nem o espaço se dissolve: "o que ocorre é uma verdadeira desmultiplicação do tempo, devida a uma hierarquização do tempo social, graças a uma seletividade ainda maior no uso das novas condições de realização da vida social (...) a simultaneidade entre os lugares não é mais apenas a do tempo físico, tempo do relógio, mas do tempo social, dos momentos da vida social. Mas o tempo que está em todos os lugares é o tempo da metrópole, que transmite a todo o território o tempo do Estado e o tempo das multinacionais e das grandes empresas" (Santos, 1996:155).

Esse autor prossegue tratando do tema, enfatizando a importância do tempo simultâneo: "em cada outro ponto, nodal ou não, da rede urbana ou do espaço, temos tempos subalternos e diferenciados marcados por dominâncias específicas. Com isso, uma nova hierarquia se impõe entre lugares, uma hierarquia com nova qualidade, a partir de uma diferenciação muitas vezes maior do que ontem, entre os diversos pontos do território" (Santos, 1996:155).

No quadro da metrópole transacional que é São Paulo, cuja grande força deriva do poder de controle sobre fluxos econômicos e sobre o território, as atividades hegemônicas que sedia são capazes de concatenar, organizar, manipular por meio da informação todas as etapas do processo produtivo, superando a fase da metrópole industrial. A metrópole informacional se assentou sobre a metrópole industrial, mas transformou-a. Está-se diante de uma metrópole onipresente: "São Paulo hoje está presente em todos os pontos do território informatizado brasileiro, ao mesmo tempo e imediatamente, o que traz como conseqüência, entre outras coisas, uma espécie de segmentação vertical do mercado enquanto território e uma segmentação vertical do território enquanto mercado, na medida em que os diversos agentes sociais e econômicos não utilizam o território de forma igual" (Santos, 1996:157).

Como vimos, o tempo metropolitano, quer sincrônico, quer diacrônico, sucede-se em diferentes sociotemporalidades, pois simultâneo, no mundo informacional, contém assincronias, arritmias nos diferentes espaços locais, condicionando-se, assim, reciprocamente, tempo e espaço. O tempo vivido é o tempo do homem concreto ¾ das diferentes classes sociais, vivendo situações específicas no cotidiano.

A cidade é o lugar em que os homens se movem mais, e a co-presença lhes ensina a diferença. Quanto maior a cidade, maior o movimento e mais intensa a co-presença, e aí maior oportunidade de aprendizado (educação e reeducação).

"Na cidade, hoje, a 'naturalidade' do objeto técnico ¾ uma mecânica repetitiva, um sistema de gestos sem surpresa ¾, essa historização da metafísica, crava, no organismo urbano, áreas '' 'luminosas', constituídas ao sabor da modernidade e que se justapõem, superpõem e contrapõem ao resto da cidade onde vivem os pobres, nas zonas urbanas 'opacas': (...) são espaços da lentidão e não da vertigem" (Santos, 1996:83).

Santos (1996) instiga nossa reflexão ao opor-se ao ponto de vista dominante sobre o papel da velocidade como força mágica e que permitiu à Europa civilizar-se e expandir essa "cultura" para o resto do mundo. Por essa visão, o pobre, quase imóvel na grande cidade, seria o fraco, enquanto ricos e classes médias velozes seriam os fortes. Para esse autor, ocorre o contrário na grande cidade.

"A força é dos lentos (...). Quem na cidade tem mobilidade ¾ e pode percorrê-la e esquadrinhá-la ¾ acaba por ver pouco da Cidade e do Mundo: sua comunhão com as imagens, freqüentemente pré-fabricadas, é sua perdição. Seu conforto, que não desejam perder, vem exatamente do convívio com essas imagens. Os homens 'lentos', por seu termo, para quem essas imagens são 'miragens', não podem, por muito tempo, estar em fase com esse imaginário perverso e acabam descobrindo as fabulações (...) na descoberta do mundo, seu comércio com o prático-inerte [categoria Sartreana que significa totalização do passado que cria configurações resistentes na vida socioespacial] não é pacífico, não pode sê-lo, inseridos que estão num processo intelectual contraditório e criativo" (Santos, 1996:84-85).

Como imensa massa de migrantes, convivem com grande variedade de pessoas ¾ de sujeitos comuns e de suas interpretações próximas ao "real". O repertório cultural (prático-inerte) que cada um traz é diferente do outro e daquele do ambiente urbano local. Em outros termos, a temporalidade que acompanha o migrante se contrapõe à temporalidade que o lugar novo quer introjetar nesse sujeito. Instala-se, assim, um choque, um conflito nas orientações, o que obriga esse morador a buscar novas interpretações.

Desse ângulo, para os imigrantes e para os pobres, a luta pela vida material no espaço é um aliado para a ação, pois que os obriga a "pensar", enquanto "a classe média e os ricos são envolvidos pelas próprias teias que, para seu conforto, ajudaram a tecer: as teias de uma racionalidade invasora de todos os arcanos da vida, essas regulamentações, esses caminhos marcados que empobreceram e eliminam a orientação ao futuro. Por isso, os espaços luminosos da metrópole, espaços da racionalidade, é que são, de fato, os espaços opacos" (Santos, 1996:85).

O autor se pergunta, ainda, como seria possível entender os mecanismos que fundariam uma nova solidariedade, baseada nos tempos lentos da metrópole, a desafiar a perversidade difundida pelos tempos rápidos da competitividade.

Na mesma direção, foi pensado que a libertação viria de luta contra o tempo quantitativo e pragmático da produtividade. A revolução de julho de 1830, em Paris, trouxe um exemplo de que a consciência histórica poderia voltar a ter seus direitos. Na primeira noite de combate, em vários locais, independentemente, mas, nos mesmos momentos, os relógios públicos receberam tiros. Alguém então escreveu: "Quem acreditaria? Dir-se-ia que, irados contra as horas, novos Josués ao fim de cada via atiravam nos quadrantes para passar o dia" (W. Benjamim apud Matos, 1982).

Como bem observou Matos (1982), os "ludistas do tempo" buscavam desorientar o "cronômetro do frio cálculo", recuperar o tempo perdido, resgatar as possibilidades de viver na cidade, dando força à história lenta, cada vez mais difícil de ser vivida nas metrópoles do mundo, conectadas na velocidade.

NOTAS

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  • 1
    . Numerosa bibliografia vem tratando desse tema e da inserção de São Paulo no paradigma das
    global cities. Ver, entre outros, Véras, 1997.
  • 2
    . No Brasil não há uma sociedade salarial plena nos termos de Castel (1998) nem um Estado do Bem-Estar Social como a Europa apresentou e, dessa forma, fica difícil falar hoje de crise. Nesse sentido, o debatido conceito de exclusão social torna-se presente, resgatando a polêmica teórica desde os termos de marginalidade, passando pela crítica à razão dualista e recolocando a problemática da "apartação" e das rupturas (Véras, 1999).
    Segundo a Pesquisa Emprego e Desemprego na Grande São Paulo (PED) da Fundação Seade, a taxa de desemprego atingiu 12,1% em 1999, enquanto chegava a 7,6% em 1985. A taxa de desemprego total era de 19,3% em 1999 e, na cidade de São Paulo, era de 17,7%. Entre os ocupados na região metropolitana, em 1999, apenas 61,4% eram assalariados (enquanto representavam 72,1% em 1989). Em contrapartida, os autônomos passaram de 15,6% em 1989 para 21,0% em 1999 e estavam, em sua maioria, em empregos "não-declarados", economia informal ou "bicos". Mesmo entre os assalariados é preciso assinalar que cerca de 12% não são registrados, o que quer dizer que vêm engrossar as cifras da informalidade (PED-Seade-Dieese, 1999).
  • 3
    . Segundo a PED-Seade-Dieese, a renda mínima real familiar baixou de R$ 1.889,00 em 1989 (em valor real de 1999) para R$ 1.456,00 em 1999; igualmente a renda per capita caiu ao longo dos dez últimos anos, passando de R$ 596,00 para R$ 519,00. O tamanho médio da família era de 3,8 pessoas em 1989 e diminuiu para 3,4 pessoas em 1999. O salário mínimo até abril de 2001 era de R$ 151,00, o que correspondia a US$ 68, a preços dessa data.
  • 4
    . Para definir indigência, Jannuzzi utiliza os mesmos critérios de Cepal, pelos níveis de preços da "cesta básica", adaptados aos valores e às quantidades utilizadas pela pesquisa de índices de custo de vida Dieese/Seade. Os valores dos gêneros de primeira necessidade funcionam como termômetro para avaliar a variação da situação de indigência e pobreza. Segundo tal critério, estariam na faixa de indigência famílias que não têm meios para adquirir cesta básica (valor de R$ 71,38 em 1999). Em 1998 estavam nessa situação famílias cuja renda per capita era inferior a R$ 62,26.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      02 Maio 2002
    • Data do Fascículo
      Jan 2001
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