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Transição epidemiológica nutricional em crianças e adolescentes argentinos de áreas carentes

Nutritional epidemiological transition in poor Argentinean children and adolescents

EDITORIAL

Transição epidemiológica nutricional em crianças e adolescentes argentinos de áreas carentes

Nutritional epidemiological transition in poor Argentinean children and adolescents

Joel Alves Lamounier

Professor titular de Pediatria da Faculdade de Medicina da UFMG, Belo Horizonte, MG, Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Joel Alves Lamounier Faculdade de Medicina da UFMG Avenida Alfredo Balena, 190 CEP 30130-100 - Belo Horizonte/MG E-mail: jalamo@medicina.ufmg.br

No Brasil, a maior parte dos estudos sobre nutrição realizada no século passado concentrava-se nos aspectos da desnutrição. Porém, dados mais recentes mostram redução da desnutrição e aumento de sobrepeso e obesidade em crianças, situação de "transição epidemiológica nutricional" que se caracteriza por diminuição de doenças transmissíveis e aumento das doenças crônicas não transmissíveis(1). Nesse contexto, compartilham o mesmo cenário dois extremos da má nutrição: desnutrição pela carência e obesidade pelo excesso, o que se pode chamar de paradoxo nutricional(2). Portanto, a obesidade e o sobrepeso constituem, na atualidade, importantes problemas de Saúde Pública, pelas elevadas taxas de prevalência, não somente em adultos, mas principalmente em crianças e adolescentes brasileiros(3-5). O excesso de peso soma-se, em alguns casos, à dislipidemia e à hipertensão arterial como fatores de risco para o aparecimento de eventos cardiovasculares(6,7).

Fatores externos socioambientais têm sido considerados de maior relevância na incidência de obesidade do que os fatores genéticos. Dentre os principais fatores externos relacionados ao desenvolvimento da obesidade, destacam-se a exposição prolongada à escassez de alimentos - intra ou extrauterina - levando à desnutrição e tendência à obesidade posteriormente, a transição nutricional com a troca do padrão tradicional para o contemporâneo (preferência por alimentos industrializados) e o estilo de vida urbano, marcado pelo sedentarismo da população. Consequências importantes dessas mudanças são as doenças associadas ao excesso de peso(8). Aterosclerose e hipertensão arterial, doenças típicas de adultos, são processos iniciados na infância e relacionados à obesidade. Na atualidade, não há dúvida de que uma abordagem preventiva deve ser iniciada já na infância e adolescência. Além de ser uma intervenção benéfica, é na infância que são formados os hábitos alimentares e de estilo de vida saudável com redução do sedentarismo e estimulo à atividade física(8,9).

Na América Latina, a prevalência de desnutrição crônica tem tendência decrescente: passou de 25,6% em 1980 para 12,6% em 2000(10). No outro extremo das desordens nutricionais, encontra-se o excesso de peso, especificamente o sobrepeso e a obesidade, que constituem problemas de Saúde Pública classificados como doenças crônicas não transmissíveis. Sua frequência atinge de forma significativa a população argentina e, segundo um estudo realizado entre 1998 e 2001, o sobrepeso ocorre em 20,8% e a obesidade em 5,4%. Resultado semelhante é observado em outros países latino-americanos(11,12). O fenômeno da Transição Epidemiológica Nutricional tem sido constatado em diversos estudos realizados na América Latina, nas últimas décadas. Como acontece no Brasil, o mesmo se verifica na Argentina, onde a transição epidemiológica nutricional em alguns grupos populacionais é cada vez mais frequente. Assim, pode-se observar a coexistência de problemas nutricionais tanto pelo déficit como pelo excesso de peso(13,14).

Pais e Carrera, da Universidad Nacional del Litoral, em Santa Fé, Argentina, avaliaram o estado nutricional de crianças e adolescentes moradoras de áreas carentes para detectar alterações nutricionais e de crescimento e possíveis fatores de risco para eventos cardiovasculares na idade adulta(15). Os autores avaliaram 136 crianças e adolescentes (49% do sexo feminino), com idade média de 10,0±2,6 anos e variação de 5 a 15 anos. Do total de crianças, 85% passavam mais de três horas por dia em frente à televisão e 25% não realizavam atividades físicas. Do grupo analisado, 14,7% eram desnutridos agudos, sendo 7,5% na forma crônica. O sobrepeso estava presente em 11,7% e a obesidade em 2,9%. A comparação desses valores com os de prevalência nacional argentina de desnutrição crônica (12%) não mostrou diferença significativa. Entre os desnutridos agudos, observou-se uma taxa de 14%, muito superior aos dados nacionais (frequência máxima de 3%: p=0,002). Quanto aos dados clínicos, do total de crianças e adolescentes analisados, 26 (20%) apresentaram valores sugestivos de hipertensão. Desses, quatro eram obesos e cinco desnutridos. Quanto ao sexo, 17 eram do sexo masculino e 9 do sexo feminino (p=0,025). Comparou-se a frequência de crianças com sobrepeso e obesidade com hipertensão (4/20) à frequência de desnutridos com pressão arterial acima do percentil 95 (5/30), havendo similaridade (p=0,99). Os resultados quanto à pressão arterial permitem inferir uma prevalência de hipertensão de 20%, sendo 10% maior do que revelam os estudos realizados na Argentina. O perfil lipídico mostrou-se alterado em 49% da amostrar avaliada. Do grupo com alterações lipídicas, 22% tinham aumento de colesterol total, 12% LDL-C elevado e 15% valores de triglicérides alterados. A proporção de crianças e adolescentes com colesterol total, LDL-C e níveis de pressão arterial elevados mostrou que a dislipidemia aumentava 2,6 vezes a chance de risco de hipertensão arterial (Odds Ratio: 2,63; intervalo de confiança 95%: 1,07-6,46). Das crianças com hipertensão arterial, nove tinham também níveis de colesterol superior aos valores normais. A alteração do perfil lipídico aumentou a chance de hipertensão arterial. O risco de hipertensão foi 3,6 vezes maior para o sexo feminino e aumentou 2,5 vezes para cada unidade de aumento do LDL-C/HDL-C. Somados a esses achados clínicos e laboratoriais, os hábitos de vida contribuíram mais ainda para os fatores de risco.

No estudo Bogalusa, em crianças americanas com sobrepeso e obesidade, o colesterol total foi 2,4 a 7,1 vezes mais elevado, enquanto o LDL-C foi 12,6 vezes maior. O LDL colesterol e o IMC foram os fatores mais fortemente relacionados ao aumento de espessura da camada íntima arterial(16,17).

Em Belo Horizonte, um estudo com escolares investigou associação do sobrepeso e da obesidade com pressão arterial, lipídeos séricos e atividade física. Crianças e adolescentes com sobrepeso ou obesidade, assim como os sedentários, apresentaram níveis mais elevados de pressão arterial e perfil lipídico de risco para o desenvolvimento da aterosclerose e síndrome metabólica(18). A cada cinco escolares, 19,3% apresentaram quatro fatores de risco concomitantes: nível elevado de colesterol total (>200mg/dL), IMC > P85, pressão arterial sistólica > P90, pressão arterial diastólica > P90.

Um achado interessante foi a ausência de anemia na amostra estudada. Estudos anteriores na mesma região revelam elevada prevalência de anemia(19). Ações de uma Organização Não Governamental que presta assistência e distribui alimentos à população ajudam a explicar esse achado. A oferta de alimentos com adequado conteúdo de ferro pode ter contribuído para a menor prevalência de anemia. Nenhum dos participantes tinha níveis de hemoglobina sugestivos de anemia, porém, não se determinaram os valores de ferro sérico e outros parâmetros para avaliar o estado nutricional de ferro, sem dúvida uma das principias carências nutricionais e um problema de Saúde Pública ainda não controlado na América Latina e no Brasil(20).

Nutrição está se tornando o mais modificável determinante das doenças crônicas. O sobrepeso e a obesidade têm um impacto significante na saúde física e psicossocial, requerendo, portanto, estratégias de prevenção e controle. A dieta exerce forte efeito positivo ou negativo sobre a saúde e pode influir sobre riscos de morbidade em curto prazo, com impacto significativo sobre a qualidade de vida em longo prazo. A prevenção de doenças do adulto deve ser uma preocupação do pediatra já na infância. Do ponto de vista de Saúde Pública, em países em desenvolvimento, o combate à fome se justifica visto que ainda existem bolsões de pobreza com desnutrição. Entretanto, outra importante questão é a distribuição de renda, em geral concentrada em grande parte nas mãos de uma pequena parcela da população. Esses são fatores que devem ser considerados em análise mais profunda da questão nutricional e de suas implicações na saúde das populações brasileira e argentina. Assim como no Brasil, tanto a fome zero quanto a obesidade zero deveriam ser parte de uma mesma política, compreendendo um programa de educação nutricional e melhor distribuição de renda para que as famílias possuam maior conhecimento e tenham mais acesso aos alimentos de qualidade nutricional. Nesse contexto, o artigo aqui publicado contribui para o melhor conhecimento da situação nutricional em crianças e adolescentes em áreas carentes da Argentina.

Instituição: Departamento de Pediatria da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, MG, Brasil

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  • Endereço para correspondência:
    Joel Alves Lamounier
    Faculdade de Medicina da UFMG
    Avenida Alfredo Balena, 190
    CEP 30130-100 - Belo Horizonte/MG
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      02 Jul 2009
    • Data do Fascículo
      Jun 2009
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