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Perfil cognitivo, déficits motores e influência dos facilitadores para reabilitação de crianças com disfunções neurológicas

Resumos

OBJETIVO: Investigar se crianças e adolescentes saudáveis e com doenças neurológicas podem ser reunidas em grupos distintos e homogêneos, usando como critérios o desempenho cognitivo, o funcionamento motor e as percepções dos pais quanto aos facilitadores para a reabilitação. MÉTODOS: Participaram deste estudo 15 crianças saudáveis (C) e 43 pacientes (28 com paralisia cerebral e 15 com acidente vascular cerebral), entre cinco e 18 anos. Foi aplicado aos pais o instrumento denominado Avaliação dos Fatores Ambientais relacionados à Reabilitação Neurológica Infantil (AFARNI). O comprometimento cognitivo foi avaliado por meio do Mini-Exame do Estado Mental, adaptado para essa faixa etária, e o comprometimento motor foi investigado por avaliação clínica. Para comparar os resultados, foi realizada uma análise de conglomerados e ANOVA. RESULTADOS: A análise de conglomerados identificou quatro grupos de pacientes com características clínicas e sociodemográficas distintas, confirmados pela ANOVA (p<0,001). Houve dissociação entre os grupos com relação ao comprometimento cognitivo e motor. Os pais de crianças com maior comprometimento avaliaram de forma mais positiva os facilitadores para a reabilitação. CONCLUSÕES: A qualificação dos facilitadores para a reabilitação por meio da AFARNI e a avaliação cognitiva com auxílio do Mini-Exame do Estado Mental podem contribuir para identificar as necessidades de suporte para crianças com deficiências neurológicas que apresentam comprometimento cognitivo e motor.

acidente vascular cerebral; paralisia cerebral; Classificação Internacional de Funcionalidade; Incapacidade e Saúde; cognição; reabilitação


OBJECTIVE: To investigate whether healthy children and adolescents suffering from neurological diseases can be grouped into distinct and homogeneous groups using criteria such as cognitive performance, motor functioning and parents' perceptions about the rehabilitation facilitators. METHODS: Sample was comprised by 15 healthy children and 43 patients (28 with cerebral palsy and 15 with stroke (n=15), aged from five to 18 years old. The Environment Factors Assessment related to the Children Neurologic Rehabilitation (EFACN) was used to assess parents' perception about the rehabilitation facilitators. Cognitive impairment was assessed using the Mini Mental Status Examination (MMSE), adapted for this age, and the motor impairment was clinically evaluated. Cluster analysis and one way ANOVA were conducted to compare the results. RESULTS: Cluster analysis identified four groups with distinct clinical and socio-demographic patterns, confirmed by ANOVA (p<0.001). Dissociation between cognitive and motor functions was found. Parents of children with severe impairment evaluated more positively rehabilitation facilitators. CONCLUSIONS: The qualification of rehabilitation facilitators by EFACN and cognitive assessment by MMSE can help to identify the needs of children with neurological disabilities who present cognitive and motor impairment.

stroke; cerebral palsy; International Classification of Functioning, Disability and Health; cognition; rehabilitation


ARTIGO ORIGINAL

Perfil cognitivo, déficits motores e influência dos facilitadores para reabilitação de crianças com disfunções neurológicas

Peterson Marco O. AndradeI; Fernanda de Oliveira FerreiraII; Alina Gomide VasconcelosIII; Eduardo de Paula LimaIV; Vitor Geraldi HaaseV

Instituição: Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, MG, Brasil

IDoutorando pelo Programa de Pós-graduação em Neurociências da UFMG; Professor do Departamento de Fisioterapia da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), Diamantina, MG, Brasil

IIDoutora pelo Programa de Pós-graduação em Ciências da Saúde da Criança e do Adolescente da UFMG; Professora Adjunta do Departamento de Ciências Básicas da UFVJM, Diamantina, MG, Brasil

IIIDoutoranda em Neurociências pela UFMG, Belo Horizonte, MG, Brasil

IVDoutorando pelo Programa de Pós-graduação em Saúde Pública da UFMG; Oficial Psicólogo do Corpo de Bombeiros Militar de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil

VDoutor em Biologia Humana pela Universidade de Munique; Professor Adjunto do Departamento de Psicologia da UFMG, Belo Horizonte, MG, Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Peterson Marco O. Andrade Rua Paulino Guimarães, 160, apto 04 - Polivalente CEP 39100-000 - Diamantina/MG E-mail: petersonmarco@yahoo.com.br

RESUMO

OBJETIVO: Investigar se crianças e adolescentes saudáveis e com doenças neurológicas podem ser reunidas em grupos distintos e homogêneos, usando como critérios o desempenho cognitivo, o funcionamento motor e as percepções dos pais quanto aos facilitadores para a reabilitação.

MÉTODOS: Participaram deste estudo 15 crianças saudáveis (C) e 43 pacientes (28 com paralisia cerebral e 15 com acidente vascular cerebral), entre cinco e 18 anos. Foi aplicado aos pais o instrumento denominado Avaliação dos Fatores Ambientais relacionados à Reabilitação Neurológica Infantil (AFARNI). O comprometimento cognitivo foi avaliado por meio do Mini-Exame do Estado Mental, adaptado para essa faixa etária, e o comprometimento motor foi investigado por avaliação clínica. Para comparar os resultados, foi realizada uma análise de conglomerados e ANOVA.

RESULTADOS: A análise de conglomerados identificou quatro grupos de pacientes com características clínicas e sociodemográficas distintas, confirmados pela ANOVA (p<0,001). Houve dissociação entre os grupos com relação ao comprometimento cognitivo e motor. Os pais de crianças com maior comprometimento avaliaram de forma mais positiva os facilitadores para a reabilitação.

CONCLUSÕES: A qualificação dos facilitadores para a reabilitação por meio da AFARNI e a avaliação cognitiva com auxílio do Mini-Exame do Estado Mental podem contribuir para identificar as necessidades de suporte para crianças com deficiências neurológicas que apresentam comprometimento cognitivo e motor.

Palavras-chave: acidente vascular cerebral; paralisia cerebral; Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde; cognição; reabilitação.

Introdução

A chave do sucesso terapêutico e preventivo em reabilitação de condições crônicas é compreender a relação entre as deficiências nas estruturas e funções do corpo e os fatores psicossociais para a seleção dos problemas alvo que serão abordados pela equipe de saúde(1). Para isso, durante o planejamento da intervenção pela equipe de reabilitação, os profissionais devem registrar os fatores com potencial de melhora e os recursos ambientais necessários para a reabilitação. A ausência de fatores ambientais facilitadores, além de representar uma barreira para a funcionalidade da criança ou adolescente, pode ser interpretada como uma negligência do poder público, da família ou dos profissionais da saúde. Por outro lado, ações assistencialistas, paternalistas ou protetoras podem limitar o desenvolvimento da autonomia da criança, fazendo com que essas ações sejam consideradas como barreiras. Diante disso, a extensão na qual um determinado fator será considerado como barreira ou facilitador dependerá da real necessidade para cada caso(2). Por isso, a avaliação dos fatores ambientais envolve necessariamente a perspectiva do contexto vivido pela criança ou adolescente.

A Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF) da Organização Mundial de Saúde(3) considera que os fatores ambientais podem atuar como facilitadores ou barreiras na adaptação do indivíduo em diferentes condições de saúde. Os facilitadores para a reabilitação (FR) foram definidos como fatores ambientais relevantes para a promoção da funcionalidade e prevenção de incapacidades. Considere-se, como exemplo, um caso de acidente vascular cerebral (AVC) ocorrido na infância, em que, após o comprometimento da independência para a comunicação, mobilidade e cuidado pessoal, o paciente pode se inserir em uma situação ambiental facilitadora para recuperar as habilidades perdidas ou em um contexto que pode inibir a expressão de processos neuroplásticos(2). Diante disso, cabe à equipe de reabilitação identificar as capacidades e limitações do indivíduo em âmbito pessoal e ambiental, procurando intervir, na medida do possível, em seu ambiente.

A literatura a respeito da avaliação da funcionalidade em casos de AVC infantil e paralisia cerebral (PC) apresenta como foco a análise da etiologia das doenças(4-7) ou as deficiências e limitações relacionadas aos quadros neurológicos(8-13). Por isso, são necessários estudos para elaborar instrumentos de avaliação capazes de registrar as necessidades das crianças para uma intervenção ambiental integrada (medicamentos, fisioterapia, terapia ocupacional, psicologia, fonoaudiologia, abordagem familiar, programas educativos específicos, equipamentos de auxílio para a mobilidade etc.), que atue como facilitadora no desempenho funcional das mesmas. A literatura é escassa ao considerar o uso da CIF para avaliar os fatores ambientais como facilitadores para a reabilitação em casos de disfunções neurológicas. Diante disso, o presente estudo pretendeu identificar critérios clínicos (desempenho cognitivo e percepções dos pais quanto aos FR) que possam ajudar a classificar pacientes em grupos distintos e homogêneos. A identificação de tais grupos tem relevância para a reabilitação, uma vez que os diferentes grupos podem ter demandas distintas de atendimento.

Assim, o objetivo do presente estudo foi investigar se crianças e adolescentes saudáveis e com doenças neurológicas (PC e sequela de AVC) podem ser reunidas em grupos distintos e homogêneos, usando-se como critérios o desempenho cognitivo, o funcionamento motor e as percepções dos pais quanto aos FR.

Método

O estudo obteve a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e da Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (FHEMIG).

Os critérios de inclusão para participar do estudo foram: idade entre cinco e 19 anos e aceitar e assinar o termo de consentimento livre e esclarecido. Os critérios de inclusão para o grupo controle foram não apresentar problemas neurológicos e frequentar o sistema regular de ensino. Já para o grupo clínico, incluíram-se pacientes com diagnóstico de AVC ou PC estabelecido por um médico neurologista. Os diagnósticos foram confirmados por estudo dos prontuários médicos de todos os pacientes nas instituições em que foram identificados.

O cálculo do tamanho amostral foi realizado a partir dos resultados de dez crianças avaliadas em um estudo piloto (cinco controles e cinco clínicos), estimando-se o tamanho amostral necessário para alcançar poder estatístico de 90%. Como a magnitude de efeito(14) encontrada na comparação entre os grupos foi elevada (valores superiores a 1,4), verificou-se que a amostra necessária para atingir um poder estatístico de 90% seria de dez participantes por grupo(14).

Participaram deste estudo 58 crianças, cujas idades variaram entre cinco e 18 anos. A amostra foi composta por 15 estudantes de escolas públicas de Belo Horizonte (grupo controle) e 43 crianças com diagnóstico de doença neurológica (grupo clínico), incluindo 28 pacientes com PC e 15 crianças com sequelas de AVC. Os casos de PC foram identificados na Associação dos Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE). Já os casos de AVC foram identificados no serviço de Hematologia do Hospital Borges da Costa, Belo Horizonte, e no banco de dados do Centro Geral de Pediatria (CGP-FHEMIG). Foi realizada a busca de casos de AVC infantil identificados nos hospitais por meio da consulta de todos os prontuários entre os anos de 2001 e 2007.

A coleta de dados ocorreu de fevereiro de 2007 e março de 2008, e as informações a respeito das características sociodemográficas dos participantes e o grau de comprometimento motor apresentado estão resumidos na Tabela 1.

Os seguintes instrumentos foram aplicados:

• Questionário de avaliação da condição socioeconômica: utilizou-se o Critério de Classificação Econômica Brasil (CCEB), proposto pela Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa(15).

• Mini-Exame do Estado Mental (MEEM): Jain e Passi(16) adaptaram e validaram o MEEM para crianças com idade entre três e 14 anos, a partir de um sistema de escores de deficiências cognitivas. O instrumento avalia as funções mentais da linguagem, orientação espacial e temporal, atenção, memória e praxia construtiva(17), sendo o ponto de corte para déficit cognitivo um escore inferior a dois desvios padrão abaixo da média(16).

• Avaliação dos Fatores Ambientais relacionados à Reabilitação Neurológica Infantil (AFARNI): trata-se de instrumento desenvolvido por Andrade e Haase(18), com base no modelo da CIF, em que os pais avaliam fatores ambientais como facilitadores ou barreiras para o desenvolvimento e/ou reabilitação de seus filhos. Compõe-se de 26 itens, nos quais os pais qualificam os fatores como barreiras ou facilitadores, por meio de uma escala ordinal. Dessa forma, o fator ambiental é considerado como facilitador (leve, moderado, considerável, completo) ou barreira (leve, moderada, grave, completa). Há ainda a possibilidade de se avaliar o fator ambiental como neutro, ou seja, não ser percebido como facilitador ou como barreira à adaptação da criança ou adolescente para atividades da vida diária(3). Os escores altos indicam a percepção dos fatores como facilitadores. Para melhorar a compreensão por pais e crianças, algumas categorias de terceiro nível da CIF foram incluídas na AFARNI (medicamento, alimentação, serviços de saúde, serviços de educação e serviço prestado pelo setor público) e algumas categorias de terceiro nível foram elaboradas pelos pesquisadores no item de profissionais da saúde (e355), com o objetivo de definir de forma mais precisa o profissional (terapeuta ocupacional, psicólogo, fisioterapeuta, médico, fonoaudiológo e enfermeiro). No item de família imediata (e310), as subcategorias pai, mãe, responsável e irmãos foram discriminadas(18).

A coleta de dados a respeito da percepção dos pais sobre os FR foi realizada por meio de entrevista individual estruturada com os pais ou responsáveis pela criança, empregando-se a AFARNI(18). A avaliação do comprometimento motor foi clínica. O desempenho cognitivo foi analisado por meio da aplicação do MEEM nas crianças.

Para a análise dos dados, empregou-se o programa estatístico Statistical Package for the Social Sciences (SPSS), versão 15.0. Inicialmente, foi feita a análise descritiva para caracterizar o perfil sociodemográfico dos participantes da amostra e a ANOVA univariada para verificar se existiam diferenças entre os grupos delimitados a partir do diagnóstico de disfunção neurológica. Foi feita também uma análise preliminar da acurácia do MEEM para a amostra de crianças por meio da curva ROC. Posteriormente, os itens dos fatores ambientais da AFARNI foram agrupados em duas variáveis compostas pelas médias dos escores obtidos no instrumento, denominadas Fatores Ambientais Básicos (FAB) e Fatores Ambientais Específicos (FAE). A variável FAB foi composta pelo cálculo da média dos itens essenciais para o desenvolvimento e funcionalidade de todos os participantes, independentemente da condição clínica, tais como alimentação, pais, irmãos, família ampliada, amigos, produtos e tecnologias para brincar, serviços educacionais, professores, serviços de transporte e atitudes sociais. Já a variável FAE foi composta pelo cálculo da média dos itens relacionados aos cuidados específicos da saúde, tais como profissionais de saúde, educação especial, uso de órteses e próteses etc.

No intuito de agrupar os participantes em grupos homogêneos, foram realizadas análises exploratórias por meio da técnica de análise de conglomerados (método Ward)(19,20), utilizando-se como variáveis-critério os escores padronizados do grau de comprometimento motor, da percepção dos fatores ambientais e da MEEM. Os escores padronizados (escore Z) foram aplicados com o intuito de evitar vieses na análise de conglomerados, uma vez que as variáveis são expressas em escalas distintas. Para confirmar os resultados obtidos por meio da análise de conglomerados, foi aplicada a ANOVA univariada, com correções de Bonferroni para as comparações múltiplas, a fim de identificar as diferenças encontradas.

Resultados

A adaptação do MEEM para crianças mostrou-se adequada para avaliar o funcionamento cognitivo geral, uma vez que a área sob a curva ROC demonstrou acurácia de 94% para discriminar os déficits cognitivos de crianças com lesão cerebral (PC e AVC) e controles (área sob a curva=0,94; IC95% 0,87-0,99; p<0,001). Dessa forma, o MEEM mostrou-se acurado e sensível para detectar déficits cognitivos em crianças, de forma rápida e simples, apropriado para ser utilizado como instrumento de rotina em Pediatria.

A análise descritiva e a comparação entre pacientes e controles são apresentadas na Tabela 2. Subdividiram-se os indivíduos de acordo com o diagnóstico clínico para verificar se existiam diferenças significativas entre os três grupos com relação às variáveis estudadas. Foram encontradas diferenças entre os grupos nos escores médios do MEEM quanto ao grau de comprometimento motor e na percepção dos FAE (p<0,001). Entretanto, nos FAB não foram encontradas diferenças significativas entre os grupos. Ao realizar a análise da magnitude de efeito(14) dos resultados finais para o MEEM e FAE, foram obtidas magnitudes de efeito elevadas (valores de d(14) entre 1,59 e 2,42), o que revela que as diferenças cognitivas e da percepção dos facilitadores entre os grupos é elevada e clinicamente significativa, indicando, ainda, que o estudo apresenta poder estatístico superior a 96%(14).

Os coeficientes de correlação de Spearman obtidos entre os escores no MEEM, na avaliação do comprometimento motor e na percepção dos FAE foram moderados (em torno de 0,70). As correlações obtidas entre as variáveis e os FAB não foram significantes. Além disso, observou-se que não foram encontradas diferenças significativas entre os grupos nos FAB (p=0,88), uma vez que tais fatores são relevantes para a funcionalidade dos três grupos considerados no estudo. Diante disso, pelo fato de os FAB não informarem sobre características distintas no perfil dos três grupos, optou-se por não incluir essa variável na formação dos conglomerados.

A análise de conglomerados resultou em uma solução ideal com quatro grupos, que são demonstrados na Tabela 3. A partir desses dados, percebeu-se que os conglomerados diferiram de forma nítida nos escores médios obtidos no MEEM, na avaliação do comprometimento motor e nos FAE. Na Tabela 4, apresenta-se o perfil sociodemográfico e aspectos clínicos dos quatro conglomerados obtidos.

No primeiro conglomerado, agruparam-se os participantes com melhor desempenho no MEEM, baixo grau de comprometimento motor e menores resultados na avaliação dos FAE. Todas as crianças saudáveis da amostra foram alocadas nesse grupo. Apenas três crianças com problemas neurológicos (AVC) foram incluídas no Grupo 1. O Conglomerado 1 também se caracterizou pela média de idade mais jovem e distribuição homogênea entre meninos e meninas.

Os Conglomerados 2 e 3 foram compostos apenas por pacientes, incluindo crianças com PC e AVC em diferentes proporções. Os grupos assemelharam-se em relação à média de idade dos participantes e predominância do sexo feminino, mas diferenças importantes foram observadas. O segundo conglomerado foi formado por participantes com escores médios no MEEM e na avaliação dos FAE, indicando melhores resultados do que os encontrados no Grupo 3. Entretanto, o Grupo 2 apresentou maior comprometimento motor em comparação ao Grupo 3, indicando que o desempenho motor e cognitivo são dimensões dissociadas na amostra estudada.

No quarto conglomerado, foram agrupadas apenas as crianças com diagnóstico de PC. O grupo apresentou uma faixa etária média e a menor proporção de participantes do sexo feminino. O Grupo 4 agrupou crianças com maior comprometimento cognitivo e motor e os escores mais altos na avaliação dos FAE.

Os resultados obtidos por meio da análise de conglomerados foram investigados pela ANOVA univariada. Houve diferenças significantes entre os grupos, considerando-se os escores no MEEM (p<0,001), o grau de comprometimento motor (p<0,001) e a percepção dos FAE (p<0,001). Com o intuito de detalhar esse achado e identificar a natureza das diferenças, foram realizadas comparações múltiplas entre os diversos grupos e ajuste pelo método de Bonferroni. Os resultados indicaram a presença de diferenças significantes entre os quatro grupos nas três variáveis consideradas (MEMM, comprometimento motor e FAE; p<0,001), o que confirma a adequação dos resultados da análise de conglomerados. No entanto, observou-se a ausência de diferença entre os Grupos 3 e 4 com relação à avaliação dos FAE, apesar de os grupos diferirem estatisticamente nos aspectos cognitivos e motores, indicando que, a partir de determinado nível de comprometimento cognitivo e motor, os FAE passam a ser considerados facilitadores igualmente importantes para as pessoas com comprometimento tanto moderado como grave.

Discussão

Diante de um quadro clínico heterogêneo, com um conjunto de deficiências e limitações, os fatores ambientais precisam atuar como facilitadores para a melhora da funcionalidade das crianças com alguma disfunção neurológica(18). A melhor maneira de minimizar o desafio de classificar a funcionalidade de uma criança com problemas neurológicos é aplicar um sistema multiaxial de classificações que incorporem diferentes domínios(21). A CIF pode ser uma referência para avaliar o impacto funcional e psicossocial de diferentes situações clínicas; logo, instrumentos baseados nessa classificação precisam ser desenvolvidos, com o intuito de permitir seu uso na prática clínica(1,2,18). O presente estudo contribui para essa lacuna ao trazer evidências de acurácia de instrumentos adaptados para crianças brasileiras, que podem ser utilizados por profissionais de saúde de modo interdisciplinar, a saber, o MEEM adaptado para crianças e a AFARNI.

A adaptação do MEEM mostrou-se adequada para rastrear de forma simples e rápida o funcionamento cognitivo de crianças, sendo sensível para discriminar o funcionamento cognitivo de crianças com lesões cerebrais e controles. Considerando-se a relevância do rastreio cognitivo breve de crianças, é possível que esse instrumento seja utilizado como procedimento de rotina em atendimentos pediátricos. Já a AFARNI mostrou-se um instrumento sensível para identificar facilitadores e barreiras relacionados à reabilitação neurológica infantil.

É interessante notar a dissociação entre o funcionamento cognitivo e motor, observada mais detalhadamente na comparação entre os Conglomerados 2 e 3, indicando que o comprometimento motor não está associado ao cognitivo. Considerando-se que a classificação da PC e do AVC está vinculada ao grau de comprometimento motor, é importante enfatizar a necessidade de complementar a avaliação motora com a cognitiva. A avaliação abrangente evita vieses de diagnósticos estritamente vinculados aos aspectos motores, que negligenciam a capacidade cognitiva dos pacientes.

A avaliação cognitiva e motora do presente estudo revelou que as crianças com PC apresentaram pior desempenho comparativamente às crianças que sofreram AVC. Dentre os fatores ambientais que podem contribuir para o processo de reabilitação, um aspecto relevante é o nível socioeconômico. A análise dos resultados aponta que as crianças com PC do presente estudo apresentaram nível socioeconômico inferior ao Grupo Controle e às crianças que sofreram AVC. Dessa forma, é importante considerar que o status socioeconômico familiar pode ser uma barreira ou um facilitador para o processo de reabilitação, merecendo ser considerado no atendimento neuropediátrico.

Ressalta-se que a avaliação dos FAE como facilitadores foi mais elevada para os participantes do Conglomerado 3, que apresentaram maior comprometimento cognitivo e menor comprometimento motor em comparação com o Conglomerado 2. Analisando-se a distribuição dos participantes nos conglomerados, observa-se que, à medida que o comprometimento cognitivo da criança aumenta, a avaliação dos FAE como facilitadores pelos pais eleva-se. Pode-se inferir que os pais de crianças com déficits cognitivos percebem de forma mais significativa a necessidade de apoio de profissionais e serviços especializados. A qualificação dos FAE pode contribuir para identificar as necessidades de suporte em crianças com deficiências neurológicas e comprometimento cognitivo.

O foco da avaliação deve apresentar as distintas prioridades, conforme o contexto ambiental ou pessoal que a criança está vivenciando. Por isso, a padronização da avaliação da funcionalidade deve ser ampla o suficiente para se considerarem os diferentes fatores contextuais a que a criança está exposta, pois as exigências para a realização de atividades e participação ocorrerão de acordo com as etapas de desenvolvimento infantil.

A maioria dos estudos sobre a participação da criança ou adolescente com PC está relacionada a questões lineares vinculadas ao tratamento(22-25) ou à educação(26,27). O único estudo que procurou envolver as questões da família, escola e reabilitação, empregando a CIF para casos de PC, foi o descrito por Palisano(28). Entretanto, tal estudo(28) não apresentou uma proposta para avaliar as barreiras e facilitadores envolvidos em casa, na escola e na comunidade. Diante de um quadro clínico heterogêneo, com um conjunto de deficiências e limitações, os fatores ambientais precisam atuar como facilitadores para a melhora da funcionalidade das crianças com diagnóstico de disfunções neurológicas. Assim, a família, os profissionais de saúde, os amigos, os professores e a comunidade em geral podem contribuir para a inserção social da criança. Por outro lado, é necessário identificar as barreiras que essas crianças encontram em casa, na escola e na comunidade para desenvolverem um desempenho ótimo das tarefas de reabilitação orientadas pelos profissionais da saúde e atividades de recreação e lazer com a família e amigos.

As barreiras específicas para crianças com PC não têm sido sistematicamente avaliadas, pois a pesquisa concentra-se na avaliação das estruturas e funções do corpo, sendo pouco conhecidos os efeitos das intervenções nos níveis de atividade e participação das crianças com PC(29). Por exemplo, o condicionamento cardiorrespiratório e o fortalecimento muscular são frequentemente indicados para casos de PC. Entretanto, a maioria das crianças com deficiências não tem acesso a serviços para a prática de atividades físicas, o que constitui uma barreira para a melhora da função cardiorrespiratória(29).

Um sistema multiaxial de classificação deve ser formulado e precisa ser validado no futuro, por meio de um consenso sobre o atendimento neuropediátrico(21). O uso do MEEM e da AFARNI no atendimento pediátrico poderá contribuir para o avanço na avaliação da funcionalidade de crianças com diagnóstico de distúrbios neurológicos para além dos aspectos motores, atendendo à perspectiva biopsicossocial. A aplicação do modelo multidimensional de funcionalidade e incapacidade da CIF durante a prática clínica poderá auxiliar o processo de avaliação e intervenção em Neuropediatria.

Fonte financiadora: CNPq - Processo: No. 409624/06-3

Conflito de interesse: nada a declarar

Recebido em: 8/8/2010

Aprovado em: 17/1/2011

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  • Endereço para correspondência:
    Peterson Marco O. Andrade
    Rua Paulino Guimarães, 160, apto 04 - Polivalente
    CEP 39100-000 - Diamantina/MG
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      12 Jul 2012
    • Data do Fascículo
      Set 2011

    Histórico

    • Aceito
      17 Jan 2011
    • Recebido
      08 Ago 2010
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