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A formação do neonatologista e os paradigmas implicados na relação com os pais dos bebês na Unidade de Terapia Intensiva Neonatal

Resumos

Objetivo:

Analisar e interpretar as repercussões psicológicas suscitadas no médico neonatologista em formação devido à entrada e à permanência dos pais na Unidade de Terapia Intensiva Neonatal.

Métodos:

Estudo sustentado na teoria psicanalítica, mantendo-se uma interlocução metodológica com a pesquisa qualitativa em saúde. Vinte residentes de Neonatologia, de cinco instituições públicas do estado de São Paulo, participaram de uma entrevista semiestruturada individual. A partir de inúmeras leituras do material, objetivando-se os núcleos de sentido emergentes, significativos para o objeto de pesquisa, elegeram-se seis categorias para análise e interpretação: permanência dos pais na Unidade de Terapia Intensiva Neonatal e sua repercussão na atuação do neonatologista; comunicação do diagnóstico e o que os pais devem saber; impasses entre os médicos e os pais dos bebês na comunicação do diagnóstico; situações de identificação com os pais; comunicação da morte e participação na entrevista.

Resultados:

A interpretação das categorias propiciou a compreensão dos mecanismos psíquicos mobilizados nos médicos na relação com os pais dos bebês e expôs a angústia e o sofrimento suscitados nos residentes no atendimento assistencial e no processo de formação, para os quais estão desprovidos de ancoragens psíquicas.

Conclusões:

A partir do conteúdo que se explicitou na análise das entrevistas, verificou-se a necessidade de uma proposta de intervenção na formação desses profissionais que favoreça a elaboração das experiências vividas no cotidiano da Unidade, a fim de propiciar uma saída menos angustiante e defensiva para o médico, inclusive na relação com o paciente e com os pais.

educação médica; internato e residência; neonatologia; psicanálise


Objective:

To analyze and to interpret the psychological repercussions generated by the presence of parents in the Neonatal Intensive Care Unit for residents in Neonatology.

Methods:

Study based on the psychoanalytic theory, involving a methodological interface with qualitative surveys in Health Sciences. Twenty resident physicians in Neonatology, from five public institutions of São Paulo state, responded to a single semi-structured interview. Based on several readings of the material, achieving the core of emergent meanings that would be significant to the object of the survey, six categories were elected for analysis and interpretation: parents' staying at the Neonatal Intensive Care Unit and its effects on the neonatologists' professional practice; communication of the diagnosis and what parents should know; impasses between parents and doctors when the diagnosis is being communicated; doctor's identification with parents; communication of the child's death and their participation in the interview.

Results:

The interpretation of the categories provided an understanding of the psychic mechanisms mobilized in doctors in their relationships with the children's parents, showing that the residents experience anguish and suffering when they provide medical care and during their training process, and also that they lack psychological support to handle these feelings.

Conclusions:

There is a need of intervention in neonatologists training and education, which may favor the elaboration of daily experiences in the Unit, providing a less anguishing and defensive way out for young doctors, especially in their relationship with patients and parents.

education, medical; internship and residency; neonatology; psychoanalysis


Objetivo:

Analizar e interpretar las repercusiones psicológicas suscitadas en el médico neonatologista en formación debido a la entrada y a la permanencia de los padres en la Unidad de Terapia Intensiva Neonatal.

Métodos:

Estudio sustentado en la teoría psicoanalítica, manteniéndose una interlocución metodológica con la investigación cualitativa en salud. Veinte residentes en Neonatología, de cinco instituciones públicas de la provincia de São Paulo (Brasil), participaron de una entrevista semiestructurada individual. A partir de innúmeras lecturas del material, objetivando los núcleos de sentido emergentes, significativos para el objeto de investigación, se eligieron categorías para análisis e interpretación: permanencia de los padres en la Unidad de Terapia Intensiva Neonatal y su repercusión en la actuación del neonatologista; comunicación del diagnóstico y qué los padres deben saber; impases entre los médicos y los padres de los bebés en la comunicación del diagnóstico; situaciones de identificación con los padres; comunicación de la muerte y participación en la entrevista.

Resultados:

La interpretación de las categorías propició la comprensión de los mecanismos psíquicos movilizados en los médicos en la relación con los padres de los bebés y expuso la angustia y el sufrimiento suscitados en los residentes en la atención asistencial y en el proceso de formación, para los que están desprovistos de anclajes psíquicos.

Conclusiones:

A partir del contenido que se explicitó en el análisis de las entrevistas, se verificó la necesidad de una propuesta de intervención en la formación de esos profesionales que favorezca la elaboración de las experiencias vividas en el cotidiano de la Unidad, a fin de propiciar una salida menos angustiante y defensiva para el médico, incluso en la relación con el paciente y con los padres.

educación médica; internato y residencia; neonatología; psicoanálisis


Introdução

Muitas são as questões suscitadas pelos neonatologistas quanto à entrada e à permanência dos pais na Unidade de Terapia Intensiva Neonatal, que, inicialmente excluídos( 11. Klaus M, Kennell J. Pais/Bebê: a formação do apego. Porto Alegre: Artes Médicas; 1992. ), passaram do acesso restrito ao livre acesso( 22. Brasil - Presidência da República. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Brasília: Diário Oficial, 1990. ). É importante pesquisar as significações atribuídas por eles a essas vivências, para subsidiar propostas de intervenções na formação do residente.

A atuação dos neonatologistas tem diversas singularidades. Na prática assistencial, deparam-se com situações extremas ligadas à morte e ao desamparo, mobilizadoras de angústias que evocam vivências primitivas inerentes à condição do sujeito humano( 33. Nogueira-Martins LA. Residência médica: estresse e crescimento. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2005. ). Ficam expostos cotidianamente à dor psíquica dos pais, bem como às suas reações ambivalentes e paradoxais( 44. Druon C. Ajuda ao bebê e aos seus pais em terapia intensiva neonatal. In: Wanderley DB, editor. Agora eu era o rei: os entraves da prematuridade. Salvador: Ágalma; 1999. p. 35-54. ). Podem esperar reconhecimento e receber ódio e ressentimentos, ou mesmo uma total submissão. São objetos de projeções maciças, isto é, recebem uma intensa carga afetiva dos pais, que podem tanto esperar e demandar deles um poder ilimitado, como identificá-los com a própria impotência sentida.

Os residentes são treinados para os cuidados e intervenções necessários no atendimento ao bebê( 55. Sociedade Brasileira de Pediatria [homepage on the Internet]. Programa de residência médica - Área de atuação Neonatologia [cited 2010 May 01]. Available from: http://www.sbp.com.br/pdfs/Programa_de_Residencia_Medica_NeonatologiaOK.pdf
Available from: http://www.sbp.com.br/pd...
); contudo, são confrontados com questões intersubjetivas que têm implicações no seu exercício profissional. Nesse sentido, é fundamental que se possa compreender como são afetados por seu trabalho.

Este estudo teve por objetivo analisar e interpretar as repercussões psicológicas suscitadas no médico neonatologista em formação pela entrada e permanência dos pais na Unidade de Terapia Intensiva Neonatal.

Método

Estudo baseado na pesquisa qualitativa em saúde( 66. Demo P. Metodologia do conhecimento científico. São Paulo: Atlas; 2000. , 77. Minerbo M. Estratégias de investigação em psicanálise: desconstrução e reconstrução do conhecimento. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2000. ), sustentado no campo psicanalítico( 88. Mezan R. Que significa "pesquisa" em psicanálise? In: Silva M, editor. Investigação e psicanálise. Campinas: Papirus; 1993. p. 49-89. ). No período de dezembro de 2007 a janeiro de 2008, participaram 19 mulheres e um homem, totalizando 20 residentes de cinco instituições públicas localizadas no Estado de São Paulo. O serviço de Neonatologia dessas instituições tem tradição em realizar trabalhos colaborativos com a Disciplina de Pediatria Neonatal da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), o que justifica sua escolha para realizar as entrevistas. Optou-se por não se entrevistarem os residentes da Disciplina de Pediatria Neonatal da Escola Paulista de Medicina da Unifesp, para a não contaminação dos resultados apresentados, dado que a pesquisadora mantém contato direto com eles.

Os docentes chefes das unidades dos hospitais universitários foram contatados e as instituições foram convidadas a participar da pesquisa; para tanto, o projeto lhes foi encaminhado. Os residentes foram convidados pessoalmente pela pesquisadora, tendo sido contextualizado o histórico e o objetivo da pesquisa. Foi reforçado o fato de não haver obrigatoriedade de adesão. Contudo, todos manifestaram seu desejo em participar. As entrevistas foram agendadas em cada uma das instituições, embora tenham ocorrido algumas faltas devido às intercorrências na unidade.

Os residentes foram entrevistados individualmente, em lugar reservado, nas instituições de origem, tendo sido esclarecidos quanto ao conteúdo do termo de consentimento livre e esclarecido, à preservação do sigilo de suas identidades, ao uso do gravador, além de terem sido comunicados que o material seria trabalhado em conjunto e não apareceria na íntegra no trabalho.

A pesquisadora realizou uma entrevista semiestruturada, próximo ao final do primeiro ano da residência, a partir de um roteiro comum de tópicos norteadores( 99. Mannoni M. A primeira entrevista em psicanálise. Rio de Janeiro: Campus; 1993. , 1010. Triviños AN. Introdução à pesquisa em ciências sociais. São Paulo: Atlas; 1987. ): a permanência dos pais na Unidade de Terapia Intensiva Neonatal e suas repercussões na atuação do neonatologista; o contato cotidiano com os pais na Unidade de Terapia Intensiva Neonatal; a comunicação do diagnóstico aos pais/questões decorrentes dessa comunicação; o conhecimento acerca da história do bebê; situações de identificação com os pais; a comunicação da morte de um bebê; temas do roteiro e/ou outros abordados durante a residência e de que forma.

Ao início das entrevistas, a pesquisadora propôs que se mantivessem o mais livre possível, para falar o que lhes ocorresse da forma que desejassem. Priorizou-se a escuta da forma singular de articulação da fala do residente, propiciando a sua livre associação( 1111. Laplanche J, Pontalis JB. Vocabulário da psicanálise. São Paulo: Martins Fontes; 1983. ) diante dos temas. Dado que, a partir da proposta de um tema, outros podem emergir, mesmo sem sugestão do pesquisador, o roteiro não implicava uma ordem sequencial.

O material oferecido nas diversas entrevistas foi trabalhado em conjunto e, para tal, utilizou-se a análise de conteúdo de Bardin( 1212. Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 1979. ) como recurso instrumental. Trata-se, depois de repetidas leituras do material emergente, da redução do conteúdo das diversas entrevistas em unidades de sentido e da síntese dessas partes em categorias de análise.

O número de entrevistas realizadas baseou-se no critério de saturação(13) referendado pela pesquisa qualitativa, que consiste no reconhecimento do pesquisador em campo de que o objeto de pesquisa foi apreendido, a partir de um determinado número de entrevistas.

O projeto foi aprovado pelos Comitês de Ética em Pesquisa das instituições participantes e todos os residentes assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido para participação voluntária no estudo.

Resultados

Elegeram-se seis categorias de análise, que se apresentam com os respectivos fragmentos dos discursos em itálico, seguidos da análise e discussão. Observa-se que estas podem ou não coincidir com os temas do roteiro sugerido para nortear as entrevistas.

Neste artigo, apresentam-se alguns trechos das entrevistas, para que o leitor possa compreender como esse material foi trabalhado. Identificaram-se os entrevistados com uma inicial, escolhida aleatoriamente, para preservar o sigilo de suas identidades.

A seguir, apresentam-se as categorias de análise:

1) A permanência dos pais na Unidade de Terapia Intensiva Neonatal e suas repercussões na atuação do neonatologista. Nesta categoria de análise, acompanham-se os modos como os residentes significam a entrada e a permanência dos pais na unidade e de que maneira são afetados por isso.

[...] Tem os dois lados essa permanência do pai e da mãe dentro da UTI [...] eu acho que, pelo lado da criança, é bom [...] pra gente, é um pouco complicado essa convivência [...] porque, muitas vezes, eles não [...] têm assim uma noção de que a gente não pode estar disponível pra eles 24 horas; às vezes, você tá cuidando de um outro bebê e eles te chamam no meio do procedimento... eu acho que eles deveriam sim ficar com o bebê, mas ter aquele horário onde a gente vá dar informações e esse horário ser respeitado, né [...] eles saberem que o médico tem outras coisas pra fazer [...] que, muitas vezes, eles questionam [...] "Por que o médico não tá aqui?" [...] Eu fico brava [...] eu sei a angústia que eles tão passando, mas, infelizmente, eu não cuido só do filho deles, tenho um monte de criança pra cuidar [...] (P.) Por um lado é bom, que eles entendem mais o que tá acontecendo [...] Mas, por outro lado, tem muito pai que atrapalha muito. Por exemplo, tem uns que acham que você só cuida do filho dele [...] Eu me sinto mal, me sinto indignada, porque eles não veem nossa parte. Eles veem só a parte deles... eles querem ter, assim, a exclusividade. "Mas meu caso é diferente" [...] (O.) [...] Então, assim, se fosse meu filho, eu gostaria de estar presente do lado dele [...] Por outro lado, atrapalha bastante as rotinas, principalmente as mães muito inquisidoras, que perguntam muito, né [...] e isso, assim, é meio que inevitável, porque é uma situação de risco, né, é uma situação de gravidade, então, é compreensível que a mãe esteja desesperada [...] (J.)

Os médicos residentes reconhecem a importância da permanência dos pais na unidade, mas, por outro lado, essa permanência atrapalha, irrita, testa e é experimentada como uma demanda excessiva e intrusiva. Transitam pela identificação com eles, colocando-se em seu lugar e, ao mesmo tempo, vivenciam o ressentimento por não se sentirem reconhecidos em seus esforços.

As demandas remetidas aos médicos - especialmente aquelas que não podem ser satisfeitas - podem ser experimentadas pelo profissional como crítica e desconsideração. Os fragmentos dos discursos permitem deduzir que os pais projetam nos médicos uma potência ilimitada, demandando um saber e uma disponibilidade incondicional e absoluta, o que certamente é resultante da sua própria impotência diante do seu filho. Percebe-se que a dor e o sofrimento impedem, nesse momento traumático, que possam destinar atenção, seja para o médico, seja para outro bebê e seus pais. Emerge, no discurso dos entrevistados, a necessidade de horários organizados para conversar com os pais e de normas de atendimento, o que se pode entender como a expressão da demanda de um ordenador que possa pautar e dar contenção às relações, funcionando, assim, como uma mediação terciária. A permanência dos pais na Unidade foi também referida nas entrevistas como uma forma de testemunho, cumplicidade e legitimação do cuidado médico ao bebê, mesmo quando os resultados são diferentes do desejado.

2) A comunicação do diagnóstico: o que os pais devem saber? Diante da questão da comunicação do diagnóstico do bebê( 1414. Conselho Federal de Medicina [homepage on the Internet]. Código de ética médica. Brasília: CFM, 2010 [cited 2013 Jul 30]. Available from: http://www.cremers.org.br/pdf/codigodeetica/codigo_etica.pdf
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), os entrevistados revelaram fundamentalmente duas diferentes concepções acerca do que deve ser dito aos pais. Vejamos a primeira delas.

[...] Quando o bebê entra na UTI, eu já falo: "Olha, teu filho é prematuro, a chance dele ter infecção é muito alta, a chance dele ficar muito ruim é alta, é perigo ele ter sequelas, ele pode melhorar, mas, por ter ficado na UTI, ele pode ter problema no pulmão, no cérebro" (C.) Tudo! [...] que pode sangrar a cabeça, que pode sangrar o pulmão, que pode isso, que pode aquilo [...] Então, assim, acho que é sempre bom deixar preparado e consciente de tudo que pode acontecer [...] (A.) Eu acho que tem que saber de todos os riscos que o bebê tá correndo, porque, no caso de, de repente, ele vir a óbito, é uma forma assim, do pai já tá um pouco preparado e da gente também tá se resguardando nesse sentido [...] (S.)

O imperativo explicitado de "falar tudo", compreendido como anunciar o que está acontecendo e o que pode vir a acontecer pela condição do bebê, apresentou-se em diversas entrevistas como uma predição diagnóstica e, até mesmo, prognóstica. A análise do material disponibilizado indica que essa antecipação associa-se à descarga da angústia dos médicos, que podem, a qualquer momento, ser surpreendidos, podendo experimentar como fracasso e/ou incapacidade o que não podem controlar, evitar ou prever. Além disso, parecem supor que a confiança que os pais depositam neles sustenta-se em um conhecimento supostamente incondicional, assim como na crença de que, se os pais souberem de tudo o que pode vir a acontecer, isso poderá protegê-los do sofrimento ou, ao menos, amenizá-lo, caso o anunciado se confirme. No entanto, a antecipação de um prognóstico, que não é confirmada pela evolução do caso, não se dá sem consequências( 11. Klaus M, Kennell J. Pais/Bebê: a formação do apego. Porto Alegre: Artes Médicas; 1992. , 1515. Cabassu G. Palavras em torno do berço. In: Wanderley DB, editor. Palavras em torno do berço. Salvador: Ágalma; 1997. p. 21-32. ). As suspeitas que possam recair sobre o desenvolvimento do bebê, apesar da sua não confirmação, podem ter um efeito autorrealizável, implicando uma antecipação de fracasso( 1616. Jerusalinsky J. Quando o que se antecipa é o fracasso: prevenção secundária e estimulação precoce. In: Camarotti MC, editor. Atendimento ao bebê: uma abordagem interdisciplinar. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2001. p. 35-42. ).

De forma contrastante, há residentes que defendem a comunicação não exaustiva e não preditiva, de maneira a não sobrecarregar os pais com informações excessivas que não podem ser metabolizadas( 1717. Bleichmar S. Clínica psicanalítica e neogênese. São Paulo: Annablume; 2005. ), intentando preservar uma fresta, uma abertura, para proteger a capacidade imaginativa e o investimento dos pais no seu filho. Isso pode ser constatado no fragmento a seguir.

[...] Informar os pais a chance que o bebê tem, sem falar nada sobre o futuro, porque, na Neonatologia, é uma caixinha de surpresa [...]Eu acho assim: tudo o que nós falarmos nesse momento vai ser [...] assim, um selo [...] então, assim, se falarmos a mais, com certeza o bebê já vai estar com diagnóstico fechado para a mãe [...] (H.)

3) Impasses entre médicos e pais dos bebês na comunicação do diagnóstico: [...] Às vezes, a gente chega pras mães, fala da gravidade, do problema, que talvez a gente não consiga salvar, ou que talvez ele vá ficar com uma sequela importante. Em seguida, elas perguntam: "Mas quanto ele tá pesando?" [...] Na verdade, pra gente, é uma grande frustração você não poder atender ao que aquela mãe estava querendo, aquelas expectativas [...] (I.) [...] Ela perguntava até da babinha que tava na boca; a gente falava: "Meu Deus! Tanta coisa importante e ela pergunta da babinha da boca [...]" (J.)

Os entrevistados relataram que, frequentemente, após a comunicação de um diagnóstico ou de um prognóstico grave, a mãe pergunta quanto o bebê engordou. Outra questão recorrente é a dificuldade dos pais para compreender a comunicação diagnóstica( 1818. Battikha EC, Faria MC, Kopelman BI. The maternal representations about a baby who is born with serious organic diseases. Psic Teor e Pesq 2007; 23:17-24. ) e a necessidade de repetirem inúmeras vezes a mesma informação, como se fosse a primeira vez, o que pode provocar tanto incômodo como irritação ao médico. Diante do impasse entre o que desejam que os pais escutem e entendam e as perguntas que retornam e insistem, apesar de toda e qualquer explicação oferecida, os médicos residentes procuram compreender o que está suposto nessa dificuldade. Suas interpretações recaem no tipo de linguagem utilizada( 1919. Burlá C, Py L. Peculiaridades da comunicação ao fim da vida de pacientes idosos. Rev Bioet 2005;13:97-106. ) e no nível cultural e socioeconômico dos pais, oscilando entre esses fatores a negação defensiva e a manutenção da esperança e do investimento amoroso dos pais no seu bebê( 2020. Dommergues JP, Bader-Meunier B, Epelbaum C. A comunicação do diagnóstico na doença crônica da criança. In: Leitgel-Gille M, editor. Boi da cara preta. Salvador: Ágalma; 2003. p. 121-42. ). Para os pais, é angustiante escutar o diagnóstico. Parece que também é excessivo e angustiante para o médico deparar-se, a cada pergunta remetida e repetida a eles, com os limites do alcance da Medicina e da sua própria atuação, lembrando-se, repetidas vezes, do que não pode reparar e/ou evitar.

4) Situações de identificações com os pais: [...] Você tem filho, igualzinho, quer que ele cresça, corra, brinque, estude [...] né?! (C.) Eu quero uma cesárea com um corte enorme pro bebê sair, porque a gente vê tanto nenê asfíxico, não por corte errado, nada disso, mas por dificuldade de sair; há aqueles nenéns convulsionando, e nenê intubado, e nenê [...] Me angustia, entendeu? (M.) [...] E, geralmente, a gente sempre fala, são aqueles pré-natais assim com nove consultas, o bebezinho com 39 semanas, peso bom, bebê bonito, primeiro filho, que gera toda expectativa do mundo naquela criança, e a criança morre (H.)

A análise das entrevistas evidenciou que a entrada e a permanência dos pais na Unidade intensificaram as identificações do médico com os pais. Conquanto os lugares ocupados sejam marcados por uma diferença entre aquele que oferece assistência e os que precisam que seu filho seja objeto desse cuidado, há uma simetria que se revela invariavelmente. Os médicos se colocam no lugar dos pais quanto à própria experiência com a morte de alguém querido, pelo reconhecimento de sua própria fragilidade diante da falta de controle sobre a doença e a morte ou no desejo futuro por um filho, assim como pelo temor de ter um filho que nasça com problemas. A identificação angustiante com as mães dos bebês referidos como "bons", a termo, grandes, bonitos, mas que tiveram problemas na hora do parto, revelou-se recorrente. Ao se depararem com o nascimento de bebês desejados, de mães que fizeram cuidadosamente o pré-natal, as residentes sentem-se mais identificadas com a situação, na medida em que é assim que se imaginam diante de uma futura gravidez, planejada e bem cuidada, com um futuro filho desejado e a termo.

A morte desses bebês "bons" ou as sequelas decorrentes desses partos têm o efeito de choque traumático( 1717. Bleichmar S. Clínica psicanalítica e neogênese. São Paulo: Annablume; 2005. ), dado que aparecem quando não se esperava e, portanto, desorganizam as referências remetendo à fragilidade e ao imponderável a que todos estão igualmente submetidos. Essas identificações podem propiciar a empatia e o vínculo afetivo com os pais, mas serem igualmente ameaçadoras para o médico e, portanto, mobilizarem defesas.

5) A comunicação da morte:

Insucesso é quando o bebê morre né [...] (U.)

Acho que é a pior parte da profissão. A gente [...] porque não é

uma notícia que a gente tem como dar pela metade. (D.)

Não é por isso que a gente trabalha (I.)

Quando você pega aqueles pacientes que você não vê prognóstico

[...] me sinto meio incapacitada, meio impossibilitada, meio

"Será que não tem mais alguma coisa mesmo, que eu não tô

sabendo fazer?" (O.)

Não é fácil ser o portador da notícia daquilo que é irreparável, que não tem final feliz, revelando a queda do ideal da cura( 2121. Rocco RP. Relação estudante de medicina-paciente. In: Mello-Filho J, editor. Psicossomática hoje. Porto Alegre: Artes Médicas; 1992. p. 45-56. , 2222. Díaz FG. Breaking bad news in medicine: strategies that turn necessity into a virtue. Med Intensiva 2006;30:452-9. ). Quando é possível salvar, o médico pode vir a se sentir como vencedor e, nesse sentido, sua atuação confirmaria sua potência. Em contrapartida, ao confrontar-se com os limites e com o intransponível, poderá igualmente sentir-se perdedor, impotente, culpado. O médico pode depositar na Medicina e na sua atuação um imaginário de completude( 2323. Freud S. Sobre o narcisismo: uma introdução. In: Freud S, editor. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago; 1976. ), podendo experimentar os limites como um duro golpe na sua autoestima, desencadeador de angústias e de sofrimento( 2424. Zaidhaft S. Morte e formação médica. Rio de Janeiro: Francisco Alves; 1990. ). A morte é do outro, mas evoca a finitude de todos, bem como outros limites, impossibilidades e perdas. Essas experiências podem ser invasivas e excessivas para o médico, razão pela qual, muitas vezes, transmitir rapidamente um diagnóstico ruim ou a comunicação da morte seja um recurso defensivo para liberar a angústia. Nas entrevistas, é reconhecido um pedido para que se possa falar acerca dessa angústia, que, tantas vezes, é suportada em silêncio.

6) A participação na entrevista - desamparo e ideais:

Estou sentindo necessidade, assim, de falar [...] olhando para

sentimentos meus, que se eu não tivesse falando pra alguém talvez

eu não olhasse [...] Com vontade de fazer melhor... falar com

aquela mãe de um jeito que eu até não vou dar atenção pra ela

naquela hora, mas eu vou deixar ela com a segurança de que

alguém está se importando com o problema dela. (J.)

Ofereceu-se, neste trabalho, uma escuta aos médicos, que se mostraram receptivos à possibilidade de serem escutados por alguém de fora de suas relações habituais, sem críticas e com pouco direcionamento( 1818. Battikha EC, Faria MC, Kopelman BI. The maternal representations about a baby who is born with serious organic diseases. Psic Teor e Pesq 2007; 23:17-24. ). O interesse em escutá-los foi qualificado como reconhecimento e investimento neles.

Discussão

O médico residente - diante de tantas demandas dos pais dos bebês, dos docentes e aquelas geradas por suas próprias expectativas - necessita, em sua formação, de um investimento que possa transformar os excessos psíquicos em enunciados e em possíveis elaborações.

O estresse a que fica submetido no seu processo de aprendizagem e na prática assistencial, bem como na relação estabelecida com os pacientes, tem sido foco de interesse, com propostas de intervenções( 2525. Freudenberger HJ. The staff burn-out syndrome in alternative institutions. Psychother Theory Res Pract 1975;12:73-82.

26. Alexander D, Monk JS, Jonas AP. Occupational stress, personal strain, and coping among residents and faculty members. J Med Educ 1985;60:830-9.
- 2727. Butterfield PS. The stress of residency. A review of the literature. Arch Intern Med 1988;148:1428-35. ). De acordo com a interpretação do material das entrevistas, parte desse estresse tem íntima relação com as angústias excessivas suscitadas e que, uma vez não nomeadas, não podem produzir trabalho psíquico. A repetição e o tempo de experiência não são transformadores por si mesmos. O que pode ser transformador e oferecer novas possibilidades e ancoragens para essa mesma práxis é a sua reflexão.

As entrevistas tiveram um propósito acadêmico. No entanto, revelaram ter propiciado aos residentes um trabalho, mesmo que incipiente, de ligação psíquica. Conclui-se que este estudo confirmou o valor elaborativo e organizador de uma escuta oferecida aos residentes, mostrando-se como indicativo fundamental para que se possa pensar uma proposta de intervenção na formação desses profissionais. A especificidade dessa proposta tem como intenção trabalhar os conteúdos revelados na análise das entrevistas, de maneira que se possa atuar nesse tempo fundamental da formação do médico especialista, favorecendo a metabolização das experiências e possibilitando uma saída menos angustiante e defensiva para o médico, inclusive na relação com o paciente e seus pais.

Agradecimentos

Às instituições Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, Faculdade de Medicina de Botucatu da Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (Unesp), Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP), Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Hospital Municipal e Maternidade Escola Dr. Mário de Moraes Altenfelder Silva e Maternidade Escola de Vila Nova Cachoeirinha, na figura de seus docentes, que permitiram que este trabalho se concretizasse.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2014

Histórico

  • Recebido
    15 Abr 2013
  • Aceito
    10 Jul 2013
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