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REPRESENTAÇÕES DE PEDIATRAS ACERCA DAS ALTERNATIVAS DE ALIMENTOS LÁCTEOS DIANTE DO DESMAME INEVITÁVEL

RESUMO

Objetivo:

Analisar as representações de pediatras sobre as alternativas alimentares adotadas quando o desmame se torna inevitável.

Métodos:

Estudo transversal qualiquantitativo, analítico e com amostragem probabilística. Foram sorteados 57 pediatras, que participaram de uma entrevista com o uso de um roteiro semiestruturado para a análise temática. Foi utilizada a técnica de evocações livres, e os termos foram processados pelos softwares EVOC 2005. Estabeleceram-se as categorias temáticas no software NVivo 10, e sua matriz de coocorrência foi exportada e analisada pela hierarquia de similaridade simples no software CHIC.

Resultados:

Nas representações dos pediatras, o leite integral foi evocado como um alimento com alto risco alergênico (35,1%) e nutricionalmente inadequado, e não se recomenda seu uso quando o desmame ocorre abaixo de 1 ano de idade. A fórmula infantil, referida por 98,3% dos pediatras como melhor opção no momento do desmame, foi evocada por 38,1%, em função de sua adequação de nutrientes. Os pontos desfavoráveis para o emprego da fórmula foram: o preço, a possibilidade de alergia e o risco da falta de critério na utilização de um produto altamente industrializado.

Conclusões:

As representações dos pediatras sugerem que eles estão sensíveis à importância do aleitamento materno e, ao mesmo tempo, às dificuldades socioculturais inerentes a essa prática. De modo geral, os pediatras entrevistados orientam o uso de fórmulas lácteas, e não o leite de vaca integral, se o desmame ocorre antes do fim do primeiro ano de vida.

Palavras-chave:
Médico; Pediatria; Fórmulas infantis; Leite de vaca; Desmame

ABSTRACT

Objective:

To analyze pediatricians’ representations on the nutritional alternatives that are adopted when weaning becomes inevitable.

Methods:

This is a mixed cross-sectional analytical study with probabilistic sampling. Fifty-seven randomly selected pediatricians were interviewed with the use of a semi-structured script for thematic analysis. The technique of free evocations was used, and the terms were processed using software EVOC 2005. The thematic categories were established on software NVivo10, and their co-occurrence matrix was exported and analyzed in terms of their simple similarity hierarchy on software CHIC.

Results:

In the pediatricians’ representations, whole milk was cited as a foodstuff with high allergenic risk (35.1%) and nutritionally inappropriate, and they did not recommend its use if weaning occurred before 1 year of age. The infant formula, referred by 98.3% of the pediatricians as the best alternative at the moment of weaning, was cited by 38.1% of them owing to its nutritional adequacy. The points quoted as unfavorable to the use of the formula were the price, the possibility of causing allergy and the risk of the inadequate use of such a highly industrialized product.

Conclusions:

The pediatricians’ representations show that they are sensitive to the importance of breast-feeding and at the same time, to the sociocultural difficulties inherent in the practice. Generally speaking, the interviewed pediatricians recommend the use of milk formulas, and not of whole cow’s milk, if weaning occurs before the end of the first year of life.

Keywords:
Physicians; Pediatrics; Infant formula; Cow’s milk; Weaning

INTRODUÇÃO

Além das possibilidades da mortalidade durante a infância e a idade escolar,11. Raj M, Kumar RK. Obesity in children & adolescents. Indian J Med Res. 2010;132:598-607.,22. Monteiro CA, Mondini L, de Souza ALM, Popkin BM. The nutrition transition in Brazil. Eur J Cl Nut. 1995;49:105-13.,33. Popkin BM. Nutritional patterns and transitions. Popul Dev Rev. 1993;19:138-57.,44. Shoeps DO, Abreu LC, Valenti VE, Nascimento VG, Oliveira AG, Gallo PR, et al. Nutritional status of pre-school children from low income families. Nutr J. 2011;10:43.,55. Santos AL, Leão LS. Anthropometric profile of preschool children of a day-care center in Duque de Caxias, Rio de Janeiro, Brazil. Rev Paul Pediatr. 2008;26:218-24,66. Marie B, Lioret S, Gartner A, Delpeuch F. Transition nutritionnelle et maladies chroniques non transmissibles liées à l'alimentation dans les pays en développment. Cahiers Santé. 2002;12:45-55.,77. Power C, Kuh D. Life course development of unequal health. In: Siegrist J, Marmot M, editors. Social inequalities in health: new evidence and policy implications. New York: Oxford University Press; 2006. p. 29-53.,88. Dietz WH. Health consequences of obesity in youth: childhood predictors of adults diseases. Pediatrics. 1998;101(Suppl 2):518-25. os primeiros mil dias de vida têm sido considerados como cruciais na determinação de riscos para doenças crônicas não transmissíveis (DCNT). Nesse sentido, o crescimento e a nutrição, tanto no período intrauterino quanto no início da vida, têm se mostrado associados ao risco precoce de sobrepeso e obesidade.99. Silveira PP, Portella AK, Goldani MZ, Barbieri MA. Developmental origins of health and disease (DOHaD). J Pediatr (Rio J). 2007;83:494-504.,1010. Wijlaars LP, Johnson L, van Jaarsveld CH, Wardle J. Socioeconomic status and weight gain in early infancy. Int J Obes (Lond). 2011;35:963-70.

O aleitamento materno prolongado, fator de proteção para o desenvolvimento de excesso de peso na criança, não tem sido uma prática generalizada, principalmente em regiões urbanas.1111. Victora CG, Morris SS, Barros FC, Horta BL, Weiderpass E, Tomasi E. Breast-feeding and growth in Brazilian infants. Am J Clin Nutr. 1998;67:452-8. Razões relacionadas à vida urbana, às condições de trabalho da mãe, ao acesso aos serviços de saúde e à prematuridade são justificativas para o desmame precoce.

Nas últimas décadas, muitas fórmulas infantis foram desenvolvidas e adaptadas às necessidades da criança de baixa idade. Para tanto, modificações qualitativas e quantitativas de açúcares, gorduras e sobretudo de proteínas foram elaboradas, bem como alterações no aporte calórico e a inclusão de princípios ativos símiles aos existentes no leite materno. Apesar de incomparáveis ao leite materno, as fórmulas representam um avanço para a alimentação da criança, quando comparadas à utilização do leite de vaca integral.1212. Räihä NC, Fazzolari-Nesci A, Cajozzo C, Puccio G, Monestier A, Moro G, et al. Whey predominant, whey modified infant formula with protein/energy ratio of 1.8 g/100 kcal: adequate and safe for term infants from birth to four months. J Pediatr Gastroent Nutr. 2002;35:275-81.,1313. Koletzko B, Baker S, Cleghorn G, Neto UF, Gopalan S, Hernell O, et al. Global standard for the composition of infant formula: recommendations of an ESPGHAN coordinated international expert group. J Pediatr Gastroenterol Nutr. 2005;41:584-99.

A hipótese que baseia este estudo é a de que uma proporção elevada de pediatras tem utilizado, por variadas razões, o leite de vaca integral como escolha principal no desmame.1414. Marmot M, Friel S, Bell R, Houwelling TA, Taylor S, Commission on Social Determinants of Health. Closing the gap in a generation: health equity through action on the social determinants of health. Lancet. 2008;372:1661-9.,1515. Schooling CM, Yau C, Cowling BJ, Lam TH, Leung GM. Socio-economic disparities of childhood body mass index in a newly developed population: evidence from Hong Kong's Children of 1997" birth cohort. Arch Dis Child. 2010;95:437-43. O objetivo da presente investigação foi analisar as representações de pediatras sobre as escolhas alimentares adotadas no momento em que o desmame é inevitável e como fundamentam suas escolhas.

MÉTODO

Estudo transversal, qualiquantitativo (mixed study) e analítico. A composição da amostra foi probabilística e estratificada. Foram submetidos ao sorteio sistemático com reposição todos os pediatras regularmente inscritos no banco de dados da Sociedade de Pediatria de São Paulo, tendo como critério de inclusão para a participação na pesquisa o fato de o profissional atuar no município de São Paulo. No total, foram sorteados 209 pediatras. A amostra final foi composta de 57 profissionais. Não houve critérios de exclusão para a participação dos sorteados, salvo recusa do profissional ou impedimento para realização das entrevistas no período da coleta (férias, afastamento ou três tentativas de entrevista sem sucesso).

Para a constituição de um campo qualitativamente representativo de profissionais especialistas na área em que fosse possível capturar as variabilidades do conteúdo dos discursos por diferentes aspectos que inferissem na orientação da prática, foram levantados o tempo de formado, a área de subespecialidade e o local em que o profissional atua.

Participaram do estudo 57 pediatras, entrevistados individualmente entre novembro de 2013 e junho de 2014 por pesquisadores pós-graduandos. O instrumento para a produção dos dados foi um roteiro semiestruturado pré-testado. As entrevistas foram gravadas e transcritas. O roteiro abrangia questões norteadoras de três campos temáticos: as dificuldades de manter o aleitamento materno, os sentidos que fundamentam os manejos clínicos diante do desmame e a alimentação de crianças de baixa idade.

Desses pontos principais, o presente estudo enfatiza principalmente as práticas adotadas por ocasião do desmame. Além das entrevistas, foi utilizada a técnica de evocação livre de palavras com os termos indutores leite integral, alimentos para o bebê e fórmulas, que consiste em perguntar ao entrevistado as palavras que lhe vêm à mente acerca dos termos indutores apresentados. As evocações são organizadas pela ordem e frequência de aparecimento, estruturando um corpo de expressões-chave para a análise de representações de determinado grupo social.1616. Moscovici S. Representações sociais: investigações em psicologia social. 6th ed. Petrópolis: Vozes; 2009.,1717. Abric JC. Abordagem estrutural das representações sociais: desenvolvimentos recentes. In: Campos PH, Loureiro MC, editors. Representações sociais e práticas educativas. Goiânia: Ed. UCG; 2003. p. 37-57. Os termos evocados foram processados pelo software EVOC 2005 e analisados por sua frequência e pela sua posição na sequência evocada, estimando-se a ordem média de evocação (OME).

Definiu-se para a entrada das evocações no quadro de análise de quatro casas de Vergès o valor acumulado em torno de 50% do total das palavras evocadas (Quadro 1). As quatro casas salientam as zonas periféricas (primeira e segunda periferias), a zona de contraste e a de centralidade, tendo em vista a combinação das frequências e de cada termo evocado. A tendência central é expressa pela mediana das evocações admitidas no quadro, enquanto para o valor hierárquico (rang) da OME é calculada a média de suas médias ponderadas.1818. Vergés P, Scano S, Junique C. Programme EVOCATION 2005. Ensemble de programmes permettant l'analyse des evocations. EVOC 2005. Manual [Internet]. Version juin 2006 [cited 2016 Sept 16]. Available from: https://drive.google.com/folderview?id=0B4xfzCX-cfiBRTVuLTVRYmh0MzQ&usp=sharing
https://drive.google.com/folderview?id=0...
,1919. Wachelke J, Wolter R. Criteria related to the realization and reporting of prototypical analysis for social representations. Psic: Teor e Pesq. 2011;27:521-6.

Quadro 1:
Distribuição dos pediatras segundo a subespecialidade e o local de atuação.

Os termos evocados ocupam uma posição de centralidade na dinâmica discursiva por apresentarem frequência acima da mediana e abaixo da média da ordem em que os termos foram evocados (OME). Consideram-se, além da frequência, o tempo de latência entre o estímulo indutor e a evocação. Aceita-se que as quatro primeiras palavras evocadas e em maior frequência tendem a representar associações fortemente atreladas aos afetos e ao imaginário coletivo. A zona de contraste, embora apresente evocações com baixa frequência, traz termos que são evocados nas primeiras posições; assim sendo, é de grande importância para esse grupo reduzido de pediatras. As periferias referem-se a termos mais relacionados ao contexto imediato em que as práticas são realizadas.1818. Vergés P, Scano S, Junique C. Programme EVOCATION 2005. Ensemble de programmes permettant l'analyse des evocations. EVOC 2005. Manual [Internet]. Version juin 2006 [cited 2016 Sept 16]. Available from: https://drive.google.com/folderview?id=0B4xfzCX-cfiBRTVuLTVRYmh0MzQ&usp=sharing
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,1919. Wachelke J, Wolter R. Criteria related to the realization and reporting of prototypical analysis for social representations. Psic: Teor e Pesq. 2011;27:521-6.,2020. Sá CP. Representações sociais: teoria e pesquisa do núcleo central. Temas em Psicologia. 1996;4:19-33.

Quanto às temáticas das respostas colhidas, foi empregada a técnica de análise de conteúdo temático-categorial.2121. Oliveira DC. Theme/category-based content analysis: a proposal for systematization. Rev Enferm UERJ. 2008;16:569-76. As categorias temáticas foram processadas no software NVivo 10,2222. QRS International [homepage on the Internet]. Estados Unidos: NVivo 10 for Windows. Introdução. 2013 [cited 2015 Nov 03]. Available from: http://download.qsrinternational.com/Document/NVivo10/NVivo10-Getting-Started-Guide-Portuguese.pdf
http://download.qsrinternational.com/Doc...
visando identificar os significados presentes nos discursos dos profissionais e como as recorrências das temáticas se encontravam distribuídas entre os entrevistados. A matriz de coocorrência gerada foi analisada pela hierarquia de similaridade no software CHIC,2323. Gras R, Almouloud SA. A implicação estatística usada como ferramenta em um exemplo de análise de dados multidimensionais. Educ Mat Pesqui. 2002;4:75-88. para relacionar os diferentes grupos de unidades temáticas associadas.

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Saúde Pública de São Paulo da Universidade de São Paulo (USP), São Paulo (SP), Brasil, sob o número 441.038/2014.

RESULTADOS

Cerca de 80% dos 57 pediatras amostrados estavam na faixa etária entre 30 e 60 anos, sendo a maioria do sexo feminino (75%). Praticamente todos os profissionais possuíam residência em pediatria (98,2%). Quarenta e quatro deles tinham título de especialistas (77%), e mais da metade havia concluído a graduação fazia mais de 15 anos (68,4%). A maioria dos pediatras atuava também em subespecialidades, sendo as mais frequentes a neonatologia e as emergências. Como locais de exercício profissional, predominaram os ambulatórios públicos e os consultórios particulares (Quadro 1).

A caracterização das evocações livres, segundo a proposta de Vergès (Quadro 2), para o termo indutor alimentos para o bebê ressalta, no primeiro quadrante (da centralidade), que o leite materno é o termo mais significativo. Nos quadrantes que correspondem às zonas de maior frequência, destaca-se a adequação de nutrientes (tipo e/ou qualidade do alimento) como o termo que realça a importância da alimentação para o crescimento e o desenvolvimento saudável do bebê.

Quadro 2:
Distribuição de Vergès dos termos evocados com os estímulos indutores alimentos para o bebê, leite integral e fórmula, distribuídos pela mediana e pela ordem média de evocação (OME). São Paulo, 2014.

Já os termos obtidos nas quatro casas dos termos indutores do leite integral e da fórmula infantil salientam características prejudiciais quanto à inadequação de nutrientes nos alimentos para o bebê. O leite integral foi evocado como possível risco para a criança desenvolver alergia à proteína do leite de vaca e/ou como tendo inadequação de nutrientes e/ou inadequado senso lato. A fórmula infantil foi evocada como alimento com maior adequação de nutrientes e/ou referida como alimento bastante prático em seu manuseio e preparo. O alto custo e a alergia cruzada aparecem como os principais termos que enfatizam pontos críticos sobre o uso da fórmula (Quadros 3 e 4).

Quadro 3:
Distribuição de Vergès dos termos evocados com o estímulo indutor leite integral, distribuídos pela mediana e ordem média de evocação (OME). São Paulo, 2014.
Quadro 4:
Distribuição de Vergès dos termos evocados com o estímulo indutor fórmula, distribuídos pela mediana e ordem média de evocação (OME). São Paulo, 2014.

Ao explorar as periferias e zonas de contraste em função das características dos pediatras - a faixa etária, o tempo de formação, a subespecialidade e o local em que o pediatra atua -, não foi possível encontrar evocações polêmicas (conflitantes/polarizadas) ou emergentes (próprias de um subgrupo) que caracterizassem um subgrupo específico de profissionais que divergissem de um discurso bastante reificado pela maioria dos entrevistados. A fórmula é referida como um alimento que possui composição nutricional adequada, sendo o alimento que mais se assemelha ao leite materno, enquanto o leite integral é mencionado como um alimento nutricionalmente inadequado e seu uso está associado à desinformação e à condição financeira da família.

No que concerne às categorias temáticas obtidas na análise de conteúdo, salienta-se que a fórmula foi recomendada por 98,2% dos pediatras em caso de desmame, precoce ou não. Ela também foi vista como a substância que melhor atendia às necessidades nutricionais da criança por 33,3% dos pediatras. A renda familiar foi relatada por 21,01% dos pediatras como um fator que interferia na decisão quanto ao uso da fórmula infantil ou na escolha da família para manter a fórmula após os 6 meses de idade.

Na análise de similaridade das categorias temáticas, verificou-se que os relatos sobre a introdução do leite integral e de outros alimentos antes do primeiro ano de vida se associaram frequentemente à renda familiar. Já a fórmula apareceu como o alimento que mais se aproxima do leite materno, atendendo melhor às necessidades nutricionais da criança, característica que mais justifica a opção pelos leites modificados. O uso da fórmula também foi justificado por estudos científicos ou pela prescrição visando diminuir alergias, com frequência maior que as referências da experiência decorrente da clínica (Quadro 5).

Quadro 5:
Classificação hierárquica das associações de similaridade entre as categorias temáticas.

DISCUSSÃO

A maioria dos relatos evidencia sensibilidade quanto à importância do aleitamento materno. Diante da impossibilidade de sua manutenção, os pediatras em geral orientam o uso de fórmulas modificadas de leite de vaca, mesmo quando visa retomar a amamentação, situação em que o aleitamento misto aparece como alternativa quando se almeja prolongar a duração de aleitamento materno.

Quando a retirada completa do leite materno é fato consumado, é quase unânime a prescrição de fórmulas como forte aliado no convencimento para que a mãe não faça uso do leite de vaca integral:

Então, se você orientando, você escrevendo, avisando a mãe, olha até seis meses vai ficar com a fórmula de zero a seis meses, depois a gente vai mudar para de seis meses a um ano. Você orienta a mãe. Não importa a marca, mas que seja de zero a seis meses, de seis meses a um ano, porque se você não orientar e não prescrever a mãe vai lá e compra um leite de vaca.

Como também recomendadas pela Academia Americana de Pediatria,2424. Andres A, Casey PH, Cleves MA, Badger TM. Body fat and bone mineral content of infants fed breast milk, cow's milk formula, or soy formula during the first year of life. J Pediatr. 2013;163:49-54. as fórmulas modificadas do leite de vaca aparecem como uma opção para os pediatras diante do desmame e como alternativa associada a restrições nutricionais e alergênicos. O uso de fórmulas derivadas de soja aparece como última opção quando há alergias ao leite de vaca (mesmo reconhecendo uma eventual alergia cruzada), ou nos casos em que a família opta por uma alimentação vegetariana estrita.

Segundo os pediatras, a escolha da fórmula está relacionada ao valor nutricional, à composição mais próxima do leite materno, às características de digestão e de composição de nutrientes (proteínas, particularmente), de características necessárias para as diversas faixas etárias da criança, além de possíveis benefícios para o desenvolvimento, com ênfase nos aspectos neuromotores.

Mas eu escolho a fórmula, porque não tem outra opção, que eu saiba não tem outra opção. Não adianta diluir leite integral, como faziam antigamente, que não é a mesma coisa. Você não consegue a quantidade de [ácido docosahexaenoico] IDH e [ácido araquidônico] ARA, micronutrientes. Você não consegue introduzir como fazia antigamente, diluir leite integral, e colocavam óleo... Não dá mais para fazer isso.

A prescrição relacionada à prática clínica, relatada por um grupo menor de pediatras, foi trazida como algo aprendido na residência e mais enfatizada como experiência vivenciada pelos profissionais que atendiam havia mais tempo em consultório particular, entretanto a orientação apareceu mais vinculada à preconização baseada em resultados técnico-científicos do que pela própria experiência clínica do pediatra, independentemente do tempo de formação. Isso confere um discurso altamente consonante nesse grupo de pediatras. Apesar disso, não foi possível discriminar se esse conhecimento advém da disseminação entre pares ou de comunicações em eventos científicos, ou de pesquisas desenvolvidas pela própria indústria de alimentos. A aceitação e a segurança na prescrição de fórmulas infantis, amplamente ancoradas nos estudos e protocolos da saúde, fazem com que o produto do conhecimento incorporado resulte em representações, a exemplo da alusão possui nutrientes, que passam a exercer forte presença na conduta do profissional.1717. Abric JC. Abordagem estrutural das representações sociais: desenvolvimentos recentes. In: Campos PH, Loureiro MC, editors. Representações sociais e práticas educativas. Goiânia: Ed. UCG; 2003. p. 37-57.,2525. Collyer F. Max Weber, historiography, medical knowledge, and the formation of medicine. Eletronical Journal of Sociology [Internet]. 2008 [cited 2015 Nov 03]. Available from: http://www.sociology.org/content/2008/_collyer_weber.pdf
http://www.sociology.org/content/2008/_c...

Verificou-se um posicionamento crítico quanto ao uso inadequado de fórmulas - qualidade ou quantidade - para as necessidades do bebê: a falta de orientação à mãe ainda na maternidade no tocante ao aleitamento materno e a introdução precoce de suplementação, o risco de alergia e a ideia por parte da mãe e de profissionais da saúde de que a fórmula é um perfeito substituto do leite materno. Outras questões envolvidas na suplementação precoce estão ligadas à demanda pela praticidade em meio às necessidades familiares, à facilidade de acesso às fórmulas e, principalmente, à volta da mãe ao mercado de trabalho.

Assim como os antibióticos são prescritos e as receitas ficam presas, se esse tipo de alimento fosse mais controlado, ele teria menos facilidade dos erros assim, deles darem de qualquer jeito. A dificuldade da compra faria com que estimulasse o aleitamento materno.

No que diz respeito à facilidade de acesso às fórmulas, a pesquisa desenvolvida por Bunik et al.2626. Bunik M, Shobe P, O'Connor ME, Beaty B, Langendoerfer S, Crane L, et al. Are 2 weeks of daily breastfeeding support insufficient to overcome the influences of formula? Acad Pediatr. 2010;10:21-8. corrobora com o nosso resultado ao constatar que as mães tomam a decisão de suplementar a alimentação com fórmulas mesmo sem orientação médica, recomendando uma distribuição mais restritiva de fórmula em ambientes hospitalares:

A orientação de um profissional pelo que eu vejo hoje, você já não tem tanto profissional voltado a manter essa orientação voltada para aleitamento materno em prol das dificuldades.

Outros estudos indicaram melhores resultados no apoio à amamentação provenientes do suporte e da orientação adequada de médicos, de familiares, de amigos e do próprio ambiente de trabalho, assim como uma educação direcionada a toda a equipe de saúde, uma vez que as dificuldades maternas para amamentar podem passar pela dor física, pelo sofrimento emocional e por desconfortos subjacentes às expectativas do amamentar, mesmo entre mães experientes.2727. Lunardi VL, Bulhosa MS. A influência da iniciativa hospital amigo da criança na amamentação. Rev Bras Enferm. 2004;57:683-6.,2828. Powell R, Davis M, Anderson AK. A qualitative look into mother's breastfeeding experiences. J Neonatal Nursing. 2014;20:259-65.

Em nossa pesquisa, o custo elevado das fórmulas também aparece como limitante para a sua utilização, ainda que para a maioria dos pediatras os benefícios advindos do uso da fórmula superem essa questão, quando a fórmula é comparada ao leite integral:

A gente sabe a dificuldade financeira, mas, pondo na ponta do lápis o risco-benefício para a criança, eu sempre tento fazer fórmulas.

No entanto, se para os profissionais entrevistados está consolidada a ideia de que deve ser realizada a adoção de fórmulas infantis perante o desmame, a renda familiar aparece em alguns relatos como o elemento mais impeditivo para a indicação ou a manutenção de sua utilização.

Já a partir do segundo ano de vida, a indicação do leite integral ou de fórmulas mostra-se bastante diversificada. Embora haja predomínio da indicação de fórmulas de seguimento no segundo ano, não houve consenso sobre a relevância de empregar leite integral ou fórmulas, ainda que persista a preocupação com a sobrecarga de proteína, o excesso de sódio e o risco de obesidade decorrente do consumo de leite de vaca integral.2929. Sociedade Brasileira de Pediatria. Departamento de Nutrologia. Manual de orientação: alimentação do lactente, alimentação do pré-escolar, alimentação do escolar, alimentação do adolescente e alimentação na escola. 3rd ed. Rio de Janeiro: SBP; 2012.

Cabe ainda salientar que alguns pediatras ressaltam a necessidade de distribuir fórmulas na rede pública, e não leite integral, uma vez que já se estabeleceu que as fórmulas são o alimento mais adequado ante o desmame ou durante a amamentação mista. Isso caracteriza a iniquidade, uma vez que apenas parte da população, mais privilegiada, pode ter acesso a esse recurso, conforme estabelecido pela Convenção dos Diretos da Criança da Organização das Nações Unidas (ONU):3030. Lindström B. For the best interest of the child: UN Convention on the rights of the child. In: Lindström B, Spencer N, editors. Social paediatrics. New York: Oxford University Press Inc.; 1995. p. 36-44.

Você melhoraria muito a vida da população, seria introduzir as fórmulas na rede pública. É uma coisa que pelo custo dessas fórmulas apenas uma parte da população tem acesso.

Outro pequeno grupo, ainda que bastante favorável à prescrição de fórmulas, assumiu uma posição mais cautelosa quanto ao incentivo de sua distribuição e fiscalização por ser um produto altamente industrializado. Nesse sentido, um profissional entrevistado mostrou-se totalmente desfavorável ao uso da fórmula.

Cabe dizer que o estudo realizado, com desenho qualiquantitativo (misto) e amostragem randomizada. Embora possua uma amostragem que oferece limitações quanto à sua generalização, inova tanto pela maneira de oferecer diferentes métodos de análise que possibilitam confrontar os resultados descritos para confirmar, refutar, ou produzir novas hipóteses de pesquisa, como na divulgação científica das representações que orientam as decisões de pediatras, as quais impactarão no contexto familiar e no crescimento e desenvolvimento de um indivíduo cujas implicações se darão para além da infância.

Pode-se concluir que a orientação alimentar baseada no que é preconizado nos estudos e protocolos de assistência à criança é um discurso bastante coeso dos pediatras no que diz respeito à indicação nutricional das fórmulas. As representações dos pediatras sugerem que eles estão sensíveis à importância do aleitamento materno e, ao mesmo tempo, às atuais dificuldades socioculturais inerentes a essa prática. De modo geral, os pediatras entrevistados orientam o uso de fórmulas lácteas, e não o leite de vaca integral, quando o desmame ocorre antes do fim do primeiro ano de vida.

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  • Financiamento Esta pesquisa foi possível graças aos recursos fornecidos pelo Grupo de Trabalho sobre Alimentação da Criança do International Life Sciences Institute (ILSI) Brasil. O ILSI Brasil é uma associação sem fins lucrativos, ramo do ILSI, cujo principal objetivo é promover um fórum de atualização de conhecimentos técnico-científicos ligados às áreas de nutrição, segurança alimentar, toxicologia e meio ambiente. Mais informações em: http://www.ilsi.org.br.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2017

Histórico

  • Recebido
    12 Abr 2016
  • Aceito
    28 Ago 2016
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