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CAMPANHA E CARTEIRA DE RADIOPROTEÇÃO: ESTRATÉGIAS EDUCATIVAS QUE REDUZEM A EXPOSIÇÃO EXCESSIVA DE CRIANÇAS A EXAMES RADIOLÓGICOS

RESUMO

Objetivos:

Analisar resultados de iniciativa para racionalizar o uso de exames radiológicos, garantindo sua qualidade técnica, e implantar uma campanha de radioproteção que inclua a capacitação da equipe profissional e a Carteira de Radioproteção para crianças de até 12 anos como instrumento para que os pais e médicos controlem a exposição das crianças à radiação.

Métodos:

Em um sistema de saúde suplementar com cobertura de 140 mil pessoas, foi implantada a campanha de radioproteção com base nos protocolos Image Gently , garantindo a menor dose possível de exposição à radiação, com qualidade técnica, e implantando a Carteira de Radioproteção. Para aferir a eficácia dessas ações, comparou-se o número de exames radiológicos realizados no setor de urgência e emergência pediátrica no período de um ano anterior à campanha com o número de exames radiológicos realizados no período de um ano posterior à campanha.

Resultados:

As ações foram bem-aceitas por todos os grupos envolvidos. No ano seguinte à implantação das estratégias de radioproteção, observou-se redução de 22% no número de exames radiológicos realizados no setor pediátrico de urgência e emergência. Houve ainda diminuição de 29% da solicitação de dois ou mais exames para a mesma criança ou de exames com duas ou mais incidências.

Conclusões:

A campanha de radioproteção e a implantação da Carteira de Radioproteção para crianças até 12 anos revelaram-se estratégias factíveis e associaram-se à redução dos exames radiológicos solicitados e realizados no setor de urgência e emergência pediátrica.

Palavras-chave:
proteção radiológica; crianças; educação em saúde

ABSTRACT

Objectives:

To analyze the results of an initiative aimed at improving the reasonable use of radiological examinations, ensuring their technical quality, implementing a radioprotection campaign that includes training of the professional team, and introducing the radioprotection card for children under 12 years old as a tool for parents and doctors to control children’s exposure to radiation.

Methods:

The study was held in a health care insurance system covering 140,000 people. A radioprotection campaign was implemented according to Image Gently protocols, ensuring the lowest dose of radiation and the quality of examinations, and the radioprotection card was implemented. To assess the effectiveness of these actions, the number of radiological examinations performed at the pediatric emergency room in a period of one year preceding the campaign was compared with the number of radiological examinations performed one year after the campaign.

Results:

The campaign was well accepted by all professionals, families, and patients involved. In the year following the implementation of radioprotection strategies, there was a 22% reduction of radiological examinations performed at the pediatric emergency room. There was also a 29% reduction in the request of two or more radiological examinations for the same child or examinations with two or more incidences.

Conclusions:

The campaign and the radioprotection card for children under 12 years old proved to be feasible strategies and correlated with a reduction in radiological examinations requested and performed at the pediatric emergency room.

Keywords:
radioprotection; children; health education

INTRODUÇÃO

Nas últimas décadas, o avanço tecnológico e a facilidade na execução de exames radiológicos, particularmente a tomografia computadorizada (TC), têm propiciado o aumento progressivo da solicitação e execução desses exames.11. Brenner DJ, Hall EJ. Computed tomography-an increasing source of radiation exposure. N Engl J Med. 2007;357:2277-84. Embora os exames radiológicos possam auxiliar no diagnóstico e trazer conforto e segurança aos médicos assistentes e aos pais, o excesso deles tem causado preocupação no meio médico e científico por causa do efeito cumulativo da radiação ionizante. Nos Estados Unidos, estimou-se que o número de tomografias realizadas por ano era de três milhões na década de 1980, aumentando para 62 milhões em 2007.11. Brenner DJ, Hall EJ. Computed tomography-an increasing source of radiation exposure. N Engl J Med. 2007;357:2277-84. A TC representava cerca de 2 ou 3% de todos os exames radiológicos, passando a 20 a 30% em virtude do aumento do seu espectro de uso e da facilidade e disponibilidade dos equipamentos.22. Naik KS, Ness LM, Bowker AM, Robinson PJ. Is computed tomography of the body overused? An audit of 2068 attendances in a large acute hospital. Br J Radiol. 1996;69:126-31. No Reino Unido, a TC contribui com 50% da dose de radiação recebida em todos os exames radiológicos.33. Needham G. Making the best use of a department of clinical radiology--guidelines for doctors. Health Bull (Edinb). 1996;54:406-9.

As crianças e os adolescentes, por estarem com os tecidos ainda em desenvolvimento, têm mais sensibilidade e estão mais expostos ao risco dos efeitos da radiação ionizante, e, quanto mais jovens os pacientes, maior o risco.44. Mathews JD, Forsythe AV, Brady Z, Butler MW, Goergen SK, Byrnes GB, et al. Cancer risk in 680,000 people exposed to computed tomography scans in childhood or adolescence: data linkage study of 11 million Australians. BMJ. 2013;346:f2360. Vários estudos indicam aumento do risco das radiações ionizantes em crianças expostas à TC, quando comparadas àquelas não expostas. Um estudo americano estimou em 0,18% o aumento do risco de morte por câncer de uma criança de 1 ano após ser exposta à radiação de uma TC de abdome, ou em 0,07% após a exposição a uma TC de crânio, evidenciando risco não desprezível.55. Brenner D, Elliston C, Hall E, Berdon W. Estimated risks of radiation-induced fatal cancer from pediatric CT. AJR Am J Roentgenol. 2001;176:289-96. O mesmo estudo calcula que, no fim da década de 1990, nos Estados Unidos, foram realizadas 600 mil TCs de abdome ou de crânio por ano em crianças com menos de 15 anos. Os autores inferem que, grosso modo, 500 dessas crianças teriam morrido de câncer atribuído ao exame.55. Brenner D, Elliston C, Hall E, Berdon W. Estimated risks of radiation-induced fatal cancer from pediatric CT. AJR Am J Roentgenol. 2001;176:289-96. No Reino Unido, 180 mil crianças que fizeram tomografia de baixa dose foram acompanhadas de 1985 a 2002, e os resultados apontaram aumento da incidência de leucemia e tumor cerebral.66. Pearce MS, Salotti JA, Little MP, McHugh K, Lee C, Kim KP, et al. Radiation exposure from CT scans in childhood and subsequent risk of leukaemia and brain tumours: a retrospective cohort study. Lancet. 2012;380:499-505. Na Austrália, um estudo que acompanhou 11 milhões de crianças e adolescentes constatou que aqueles que tinham realizado TC apresentavam 24% mais risco de desenvolver câncer do que a população não exposta à radiação, e este risco era tanto maior quanto mais jovens as crianças tivessem sido expostas à radiação e proporcional ao número de exames realizados.44. Mathews JD, Forsythe AV, Brady Z, Butler MW, Goergen SK, Byrnes GB, et al. Cancer risk in 680,000 people exposed to computed tomography scans in childhood or adolescence: data linkage study of 11 million Australians. BMJ. 2013;346:f2360.

No hospital em que realizamos este estudo, o acompanhamento do número de requisições de exames radiológicos indica solicitação excessiva desses exames complementares. Acredita-se que o excesso se deva à insegurança dos pais e responsáveis ou da própria equipe de saúde. Embora, na maioria das vezes, exista uma razão específica para a solicitação dos exames radiológicos - e estes venham a auxiliar no diagnóstico -, o fato preocupa pelo risco a que as crianças estão sendo expostas, particularmente no setor de urgência e emergência pediátrica, uma área com grande número de atendimentos e solicitações de exames radiológicos.

Assim, o objetivo deste estudo foi avaliar a iniciativa de um hospital privado, com cobertura de um sistema de saúde suplementar, em discutir e implementar medidas para reduzir a exposição de crianças ao risco da radiação ionizante, estimulando a capacitação e a conscientização dos profissionais de saúde e dos familiares sobre os perigos da radiação excessiva. Nessa iniciativa, foi desencadeada uma campanha de radioproteção que envolveu a conscientização de funcionários e dos responsáveis pelas crianças; a adequação técnica dos equipamentos radiológicos aos critérios de radioproteção do Colégio Americano de Radiologia e da Sociedade Americana de Pediatria; e a implantação da Carteira da Radioproteção para crianças até 12 anos.77. Goske MJ, Applegate KE, Boylan J, Butler PF, Callahan MJ, Coley BD, et al. The Image Gently campaign: working together to change practice. AJR Am J Roentgenol. 2008;190:273-4.,88. Greess H, Lutze J, Nömayr A, Wolf H, Hothorn T, Kalender WA, et al. Dose reduction in subsecond multislice spiral CT examination of children by online tube current modulation. Eur Radiol. 2004;14:995-9.,99. McCollough C, Branham T, Herlihy V, Bhargavan M, Robbins L, Bush K, et al. Diagnostic reference levels from the ACR CT Accreditation Program. J Am Coll Radiol. 2011;8:795-803.

MÉTODO

Trata-se de um estudo prospectivo quantitativo, que avaliou os atendimentos e a proporção de exames radiológicos solicitados, e qualitativo, que analisou o impacto sobre o serviço de saúde e sobre a clientela atendida. O estudo foi realizado em um hospital próprio de um sistema de saúde suplementar, regido por uma cooperativa médica, no interior do estado de São Paulo, cuja cobertura é de aproximadamente 140 mil pessoas. Os atendimentos das urgências, emergências e os exames subsidiários de todo o sistema de saúde são centralizados no hospital próprio.

Os protocolos para a realização de todos os exames radiológicos foram revisados pelos radiologistas do setor, adotando-se, na execução desses exames, a menor miliamperagem (mA - no máximo 100-150 mA), de modo a manter a qualidade necessária para o laudo do exame.77. Goske MJ, Applegate KE, Boylan J, Butler PF, Callahan MJ, Coley BD, et al. The Image Gently campaign: working together to change practice. AJR Am J Roentgenol. 2008;190:273-4.,88. Greess H, Lutze J, Nömayr A, Wolf H, Hothorn T, Kalender WA, et al. Dose reduction in subsecond multislice spiral CT examination of children by online tube current modulation. Eur Radiol. 2004;14:995-9. Foi utilizada a menor quilovoltagem (KV) determinada pelo equipamento de tomografia multislice 64 canais Philips demonstrada no momento do exame para a TC, e foi limitada a extensão do campo de exposição à área necessária referida na solicitação médica. O exame só foi iniciado com a certeza de que o posicionamento do paciente estava correto e de que ele iria colaborar com sua realização, evitando a repetição. Foi feito monitoramento diário para garantir que as medidas de cuidados na execução dos exames possibilitassem a redução da dose de radiação.

Quanto aos profissionais de saúde, foram promovidas reuniões com a equipe administrativa e o corpo de enfermagem para que os funcionários entendessem os efeitos da radiação, garantindo que estivessem conscientizados de que os exames radiológicos só devem ser feitos quando necessário. Desde então, a equipe de atendimento - e não só o médico - passou a explicar aos familiares os riscos do efeito somatório dos exames radiológicos, particularmente da TC, pois, muitas vezes, os responsáveis pelas crianças as trazem para o atendimento com a ideia de que um exame radiológico é indispensável para diagnosticar ou excluir determinada alteração na criança, sem valorizar o atendimento e o exame clínico. Além disso, foi realizado um evento médico com a presença de um professor, especialista em radiologia pediátrica, que abordou os aspectos técnicos e os riscos da radiação ionizante nas radiografias e na TC. Foram distribuídos aos pediatras folhetos informativos sobre o efeito somatório da radiação ionizante; a estimativa da dose de radiação absorvida pela exposição aos exames mais solicitados; e a importância de realizá-los apenas quando preciso, engajando-os na campanha mundial Image Gently .1010. Image gently [homepage on the Internet]. Durham: The Alliance for Radiation Safety in Pediatric Imaging [cited 2016 May 23]. Available from: http://www.imagegently.org/
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Foi ainda divulgado no portal eletrônico do hospital, em cartazes afixados em locais de acesso público e aos profissionais de saúde da instituição a importância da campanha, da implantação da Carteira de Radioproteção e da indicação racional dos exames radiológicos. Foram confeccionadas 20 mil carteiras de Radioproteção, que, em sua estrutura, têm espaços apropriados para o registro do tipo de exame radiológico e sua data. Na contracapa, em linguagem apropriada para leigos, explicam-se a necessidade e os benefícios da iniciativa para evitar o risco de doenças graves, inclusive câncer. A entrega da Carteira de Radioproteção foi sempre acompanhada de explicação por funcionário capacitado nos setores de atendimento pediátrico de urgência e emergência, laboratórios de coleta de exames, setor de imagem do hospital e nos consultórios pediátricos.

Para avaliar o impacto da conscientização por meio da campanha e da Carteira de Radioproteção, foram quantificados os atendimentos pediátricos de urgência e emergência desse sistema suplementar de saúde, que são feitos em um único local e cujos exames complementares associados são obrigatoriamente realizados no hospital e registrados na ficha de atendimento informatizada. Assim, por meio dos registros no sistema, foi possível documentar o número de exames radiológicos (raio X e TC) associados a todos os atendimentos pediátricos realizados no setor. Como o lançamento da campanha de radioproteção ocorreu no fim de agosto de 2013, considerou-se o período anterior, de setembro de 2012 a agosto de 2013, como o período pré-campanha para o levantamento desses dados, e o período de um ano depois - setembro de 2013 a agosto de 2014 - como o período pós-intervenção ou pós-campanha.

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Ciências Médicas e da Saúde da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Todos os procedimentos do estudo foram realizados de acordo com os preceitos éticos cabíveis. A revisão dos protocolos dos exames foi feita por consenso pelos médicos radiologistas do setor, e a campanha seguiu as recomendações das diretrizes do Colégio Americano de Radiologia e da Sociedade Americana de Pediatria.1010. Image gently [homepage on the Internet]. Durham: The Alliance for Radiation Safety in Pediatric Imaging [cited 2016 May 23]. Available from: http://www.imagegently.org/
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Os dados são apresentados de forma descritiva, e utilizou-se o teste de comparação entre duas proporções para comparar as porcentagens de atendimento com a realização de exames radiológicos nas condições pré- e pós-campanha de radioproteção. Para avaliar a proporção de atendimentos associados à realização de dois ou mais exames radiológicos para a mesma criança, ou de duas ou mais incidências no mesmo pedido de exame, comparando-se os dois períodos do estudo (pré e pós-campanha), selecionou-se uma amostra aleatória de 1.051 exames solicitados de setembro de 2012 a agosto de 2013 (pré-campanha) e de 920 exames pedidos de setembro de 2013 a agosto de 2014 (pós-campanha). Para isso, foram selecionados todos os atendimentos identificados com números pares feitos na urgência e emergência pediátrica nas segundas semanas de janeiro e de junho de cada ano (pré-campanha e pós-campanha). Os meses de janeiro e junho foram escolhidos por serem, respectivamente, aqueles com menor e maior número de atendimentos mensais no setor. As amostras foram selecionadas nos mesmos períodos do ano anterior e posterior à campanha de radioproteção. O tamanho mínimo dessas amostras foi estimado em 640 atendimentos com solicitações de exames em cada período, para que se pudesse encontrar diferença mínima de 5% entre duas proporções, levando-se em conta o erro α de 5% e o erro β de 20%.

RESULTADOS

No lançamento e no mês seguinte à campanha foram distribuídas aproximadamente 17 mil carteiras de Radioproteção, sempre acompanhadas dos esclarecimentos necessários e da orientação de que deveria ser usada como a carteira de vacinação, ou seja, apresentada toda vez que se procurasse atendimento médico. A iniciativa teve importante repercussão na mídia local, o que contribuiu para a sua divulgação.

Os pediatras, que a princípio hesitaram em distribuir a Carteira de Radioproteção, pois temiam que pudesse trazer preocupação excessiva aos pais, surpreenderam-se com a boa receptividade da campanha, referindo que a carteira passara a ser um instrumento muito útil para conscientizar os pais, ganhando a sua confiança e colaboração no sentido de evitar a exposição dos filhos a exames desnecessários que podem pôr em risco a sua saúde. A médica coordenadora da área de urgência e emergência pediátrica expressou assim a sua concordância:

Muitos pais já chegam na consulta solicitando e pressionando o médico a pedir exames radiológicos, sem noção do risco exposto às crianças. O preparo de informações na recepção pré-consulta e no consultório médico auxilia os pediatras a terem ferramentas científicas para a conscientização dos familiares. Consideramos o projeto de grande importância na segurança da atuação médica, com melhoria na capacitação e na prevenção de futuras doenças em crianças.

A diretoria do sistema de saúde também mostrou entusiasmo com a iniciativa e com os resultados da campanha de radioproteção. O diretor superintendente do hospital declarou:

Considero que este projeto supera o principal desafio de qualquer pesquisa científica: cruzar os muros da academia e invadir a realidade das pessoas e da comunidade, transformando hábitos através da proposição de soluções factíveis [...]. O projeto de proteção radiológica na infância, que, além de procurar realizar os exames com a menor dose de radiação possível, também tem como objetivo conscientizar as pessoas dos riscos dos métodos de diagnósticos que utilizam o raio X para a obtenção das imagens, mudando a maneira como a equipe assistencial e os clientes se utilizam desses métodos.

A racionalização da realização dos exames radiológicos foi evidenciada ao se comparar o número de exames feitos no setor de urgência e emergência pediátrica do hospital um ano antes da campanha com o número de exames de um ano depois da campanha. A Figura 1A apresenta a distribuição bimensal do número de atendimentos e do número de exames radiológicos realizados entre setembro de 2012 e agosto de 2013, período pré-campanha. Neste ano aconteceram 51.233 atendimentos e 24.103 exames radiológicos, ou seja, 47% dos atendimentos geravam exames radiológicos. No ano seguinte, após a campanha de radioproteção (Figura 1B), houve 52.628 atendimentos, número ligeiramente maior que o do ano anterior, e o número de exames radiológicos do período caiu para 19.335, correspondendo a 36,7% dos atendimentos. Portanto, considerando-se o número de atendimentos em cada período, houve redução de 22% na execução de exames radiológicos após a campanha e a distribuição das carteiras de Radioproteção. Essa redução foi consistente por todo o período de acompanhamento de um ano. A diferença entre as proporções de exames radiológicos realizados em cada período é estatisticamente significante (p<0,001).

Figura 1:
Número de atendimentos e de exames radiológicos realizados no setor de urgência e emergência pediátrica de um sistema de saúde suplementar do interior de São Paulo: (A) antes da Campanha de Radioproteção para crianças até 12 anos; (B) depois da Campanha de Radioproteção para crianças até 12 anos.

A Figura 2 exibe a distribuição percentual dos atendimentos no setor de urgência e emergência pediátrico com exames radiológicos antes e depois da campanha e da implantação da Carteira de Radioproteção. Como se observa, independentemente do período analisado, foi registrada a redução do número de exames radiológicos após a Campanha de Radioproteção, e a diferença manteve-se por todo o período observado.

Figura 2:
Porcentagem de atendimentos que geraram exames radiológicos realizados no setor de urgência e emergência pediátrica de um sistema de saúde suplementar do interior de São Paulo antes e depois da Campanha de Radioproteção para crianças até 12 anos.

A Tabela 1 mostra os tipos de exames radiológicos mais realizados em crianças no setor de urgência e emergência. Como se nota, há ampla supremacia de exames para avaliar o aparelho respiratório. As radiografias de tórax e dos seios da face são as mais solicitadas e, muitas vezes, ambas são indicadas para a mesma criança. Entre as tomografias, as TCs de crânio e de abdome são as mais solicitadas (Tabela 1).

Tabela 1:
Exames radiológicos mais frequentemente solicitados no setor de urgência e emergência pediátrica de acordo com o período avaliado.

A Tabela 2 traz a distribuição de duas amostras dos exames radiológicos solicitados no setor de urgência e emergência pediátrica em períodos semelhantes antes e depois da Campanha de Radioproteção. Ao analisarem-se as solicitações de dois ou mais exames para a mesma criança, ou do exame de uma única região com duas ou mais incidências, observa-se que a proporção de solicitação de exames em duplicidade ou com duas ou mais incidências foi significantemente menor no período de um ano pós-campanha (p<0,001). Assim, além da redução na proporção de atendimentos em que se solicitava a realização de exames radiológicos, houve também diminuição dos exames com duas ou mais incidências ou de exames de mais de uma região.

Tabela 2:
Distribuição do número de incidências dos exames radiológicos solicitados em amostras selecionadas aleatoriamente em períodos semelhantes antes e depois da campanha de radioproteção (agosto de 2013).

DISCUSSÃO

O modelo do estudo estimulou os profissionais de saúde a modificarem seu ambiente de trabalho com a criação de ferramentas capazes de promover a conscientização desses profissionais e dos familiares sobre os efeitos da radiação ionizante em crianças, estabelecendo um verdadeiro projeto preventivo e de promoção da saúde. Ainda como consequência do projeto, foi desenvolvida e distribuída a Carteira de Radioproteção a crianças até 12 anos, possibilitando aos pediatras e aos demais médicos analisarem eventuais exames anteriores e decidirem pela indicação ou não de novos exames radiológicos, reduzindo a exposição à radiação. Do ponto de vista qualitativo, a melhora da informação e do conhecimento de funcionários, médicos e usuários - e particularmente dos pais - traduz um aspecto importante da educação em saúde, cujo corolário é a promoção da saúde, responsabilidade inerente aos profissionais da área. O cuidado integral à saúde na infância e adolescência reserva papel central aos pais, mas também às instituições de saúde e sua equipe multiprofissional.1111. Rocha SM, Lima RA, Scochi CG. Assistência integral à saúde da criança no Brasil: implicações para o ensino e a prática da enfermagem pediátrica. Saúde Soc. 1997;6:25-52.

A redução sistemática e sustentada (em 22%) dos exames radiológicos associados a atendimentos pediátricos no setor de urgência e emergência também permite quantificar os resultados da campanha e da implantação da Carteira de Radioproteção. Paralelamente, observou-se a redução da solicitação de exames em duplicidade para a mesma criança e de exames com duas ou mais incidências. O estudo identificou a alta proporção de atendimentos pediátricos associados a exames radiológicos no setor de urgência e emergência, a maioria relacionada a afecções do trato respiratório, em cuja conduta terapêutica a avaliação clínica deve ter maior peso. Além disso, nesse cenário de atendimento, é comum solicitarem-se exames de mais de uma região anatômica ou exames com duas ou mais incidências. Um estudo brasileiro avaliou, em quatro hospitais de grande porte, os cuidados com a proteção radiológica em crianças submetidas à radiografia dos seios da face, observando que a proteção era incipiente e que frequentemente eram solicitadas duas incidências de modo desnecessário.1212. Lacerda MA, Khoury HJ, Silva TA, Lacerda CM, Carmo AF, Pereira MT. Radioproteção, dose e risco em exames radiográficos nos seios da face de crianças, em hospitais de Belo Horizonte, MG. Radiol Bras. 2007;40:409-13.

Adaptado à realidade brasileira e regional, o projeto foi inspirado na iniciativa Image Gently , conduzida pelo Colégio Americano de Radiologia e pela Sociedade Americana de Pediatria, recebendo depois a adesão de muitas entidades médicas e de saúde dos Estados Unidos.1010. Image gently [homepage on the Internet]. Durham: The Alliance for Radiation Safety in Pediatric Imaging [cited 2016 May 23]. Available from: http://www.imagegently.org/
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O setor de qualidade do hospital também se envolveu no projeto de proteção radiológica e, em recente auditoria externa, recebeu elogios pela iniciativa, que os auditores acreditam ser pioneira no Brasil. Desconhecemos projetos semelhantes no Brasil, porém a comunicação desses resultados em congressos nacionais e internacionais e a divulgação em outros sistemas de saúde suplementar vêm despertando grande interesse da comunidade, e projetos semelhantes estão sendo gestados.1313. Bernardo MO, Almeida FA. Reducing radiation dose (RD) in children who underwent computed tomography (CT) does not bring harm to the diagnosis, motivates continuing education and promotes radioprotection campaign. Proceedings of the European Congress of Radiology; 2014, Viena.

Pode-se considerar que exista consenso na literatura sobre os riscos da exposição à radiação ionizante e o desenvolvimento de tumores sólidos ou da linhagem hematopoiética em crianças e adolescentes,11. Brenner DJ, Hall EJ. Computed tomography-an increasing source of radiation exposure. N Engl J Med. 2007;357:2277-84.,33. Needham G. Making the best use of a department of clinical radiology--guidelines for doctors. Health Bull (Edinb). 1996;54:406-9.,44. Mathews JD, Forsythe AV, Brady Z, Butler MW, Goergen SK, Byrnes GB, et al. Cancer risk in 680,000 people exposed to computed tomography scans in childhood or adolescence: data linkage study of 11 million Australians. BMJ. 2013;346:f2360.,55. Brenner D, Elliston C, Hall E, Berdon W. Estimated risks of radiation-induced fatal cancer from pediatric CT. AJR Am J Roentgenol. 2001;176:289-96.,66. Pearce MS, Salotti JA, Little MP, McHugh K, Lee C, Kim KP, et al. Radiation exposure from CT scans in childhood and subsequent risk of leukaemia and brain tumours: a retrospective cohort study. Lancet. 2012;380:499-505. entretanto alguns autores na França têm chamado a atenção para a possibilidade de o desenho desses estudos determinar a causalidade reversa. Ou seja, as crianças selecionadas nos estudos seriam expostas aos exames radiológicos por já apresentarem alguma anormalidade e, portanto, estariam mais predispostas a desenvolver doenças oncológicas.1414. Journy N, Rehel JL, Pointe HD, Lee C, Brisse H, Chateil J-F, et al. Are the studies on cancer risk from CT scans biased by indication? Elements of answer from a large-scale cohort study in France. Br J Cancer. 2015;112:185-93. Para resolver essa questão, está em andamento um estudo em que tal aspecto é “excluído”, pois a pesquisa é desenvolvida com crianças e adolescentes submetidos a procedimentos radiológicos por apresentarem problemas cardiológicos e que, depois dos procedimentos, são acompanhados para avaliar o risco de desenvolverem câncer.1515. Baysson H, Réhel JL, Boudjemline Y, Petit J, Girodon B, Aubert B, et al. Risk of cancer associated with cardiac catheterization procedures during childhood: a cohort study in France. BMC Public Health. 2013;13:266. Até que esse aspecto metodológico seja esclarecido, deve-se continuar educando os profissionais de saúde, os pais e as próprias crianças, garantindo-lhes a opção pela promoção da saúde, também por intermédio da proteção radiológica.

Vale considerar como uma limitação do estudo o fato de não terem sido entrevistados os pais ou responsáveis para conhecer sua percepção sobre a campanha e a Carteira de Radioproteção. Além disso, também não foi avaliado o risco de subdiagnosticar algumas doenças por conta da redução do número de exames radiológicos. Apesar dessas limitações, este estudo apresenta a experiência inédita no Brasil de uma proposta de proteção radiológica para crianças e adolescentes por meio de Campanha de Radioproteção, enfatizando a conscientização dos profissionais de saúde e dos familiares sobre os possíveis malefícios da radiação ionizante cumulativa e oferecendo um instrumento motivador para o controle da exposição à radiação, a Carteira de Radioproteção. O monitoramento da exposição à radiação em crianças em um setor controlado desse sistema de saúde evidenciou a redução consistente da realização de exames radiológicos associados ao atendimento de urgência e emergência pediátrica. O entusiasmo com que o projeto foi acolhido nessa instituição e o comprometimento observado em sua condução proporcionaram o seu sucesso e devem garantir a sua permanência.

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  • Financiamento: O estudo não recebeu financiamento.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2017

Histórico

  • Recebido
    15 Jul 2016
  • Aceito
    11 Out 2016
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