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DEGRADAÇÃO DO VÍNCULO PARENTAL E VIOLÊNCIA CONTRA A CRIANÇA: O USO DO GENOGRAMA FAMILIAR NA PRÁTICA CLÍNICA PEDIÁTRICA

RESUMO

Objetivo:

Demonstrar a importância da utilização do genograma familiar na consulta pediátrica como ferramenta de análise da presença de degradação do vínculo parental e da violência contra a criança.

Métodos:

Estudo qualitativo, conduzido em 2011. A população compreendeu 63 crianças, com idades entre 2 e 6 anos, matriculadas em creche. Para a construção do genograma, a coleta dos dados se deu em quatro momentos: avaliação pediátrica na creche; entrevista dos cuidadores; entrevista dos professores; e entrevista da coordenadora da creche. Foram utilizados os dados sobre as famílias para a construção dos genogramas, com auxilio do programa GenoPro®-2016. Na avaliação da qualidade de vínculo, foram incluídos na representação do genograma: violência contra a criança, dependência química, negligência, transtorno mental, tipo de relação entre os membros da família.

Resultados:

As crianças e respectivas famílias avaliadas deram origem a 55 genogramas. Em 38 deles, observaram-se arranjos familiares funcionais e com vínculos afetivos próximos ou muito próximos. Em 17 dos casos, evidenciaram-se situações que envolviam violência física, emocional ou sexual contra as crianças. Dentre esses, quatro representavam casos mais extremos, com esgarçamento do vinculo parental e arranjos familiares disfuncionais. Nessas famílias predominava a dependência química de múltiplos membros, transtorno mental grave, agressões física e verbal persistentes e abuso sexual.

Conclusões:

A utilização do genograma auxilia na identificação precoce da degradação do vínculo parental e da violência praticada contra a criança e, quando incorporada à prática pediátrica rotineira, pode contribuir para a promoção de uma assistência integral à saúde da criança, independentemente da presença de vulnerabilidades social.

Palavras-chave:
vulnerabilidade em saúde; criança; família; genograma; pesquisa qualitativa

ABSTRACT

Objective:

To demonstrate the importance of using the family genogram in pediatric consultation, as an analysis tool to evaluate the degradation of parental bonding and also violence against children.

Methods:

A qualitative study was conducted in 2011 wherein 63 children, aged between 2 and 6 years, enrolled in a slum nursery, was studied. In order to construct the genogram, data were collected in four stages: pediatric evaluation at nursery; interview with caregivers; interview with teachers; and interview with the nursery coordinator. The data about the families were used to construct the genograms with the aid of GenoPro®-2016 software. In order to evaluate the quality of bonding, the following items were included in the genograms: violence against children, drug addiction, neglect, mental disorder, type of relationship among family members.

Results:

The evaluated children and their families generated 55 genograms. In 38 of them, functional family arrangements, and close or very close emotional ties were observed. In 17 cases, situations involving physical, emotional, or sexual violence against children were perceived. Among these, four represented extreme cases, with fraying parental bonding, and dysfunctional family arrangements. In these families, chemical addiction was prevalent among multiple members, as well as severe mental disorder, persistent physical and verbal abuse, and sexual abuse.

Conclusions:

The use of the genogram helps to identify at an early stage the degradation of parental bonding and violence against children, and when it is incorporated into the pediatric practice routine, it may contribute to the promotion of the comprehensive health care of the child, regardless of the presence of social vulnerability.

Keywords:
health vulnerability; children; family; genogram; qualitative research

INTRODUÇÃO

Na sociedade moderna, entende-se por arranjo familiar uma das variadas configurações que a família pode assumir, tais como família multigeracional, família extensa e família reconstruída.11. Gabardo RM, Junges JR, Selli L. Arranjos familiares e implicações à saúde na visão dos profissionais do Programa Saúde da Família. Rev Saúde Pública. 2009;43:91-7. Os motivos que viabilizam a forma de viver da família dependem de como se estabelecem as relações de poder, as quais determinam os papéis familiares, sua organização e seu desempenho.22. Berthould CM. Conversando sobre o método. In: Cerveny CM, Berthoud CM, editors. Família e ciclo vital: nossa realidade em pesquisa. São Paulo: Casa do Psicólogo; 1997. p.137-47. Segundo Kalostian e Ferrari, em 1994, a família é o espaço indispensável para a garantia da sobrevivência e da proteção integral dos filhos e demais membros.33. Kaloustian SM, Ferrari M. Introdução. In: Kaloustian SM, editor. Família brasileira, a base de tudo. São Paulo: Cortez Editora; 1994. p. 11-5. Por outro lado, em uma família na qual a miséria, a fome e a violência estão presentes, a casa representa um local de privação, instabilidade e adelgaçamento dos laços afetivos e de solidariedade, caracterizando uma situação de vulnerabilidade social.44. Gomes MA, Pereira ML. Família em situação de vulnerabilidade social: uma questão de políticas públicas. Ciênc Saúde Coletiva. 2005;10:357-63.

A família pode tanto ser protetora contra o desenvolvimento de transtorno mental, como pode se transformar em um fator desencadeador. Em famílias nas quais a mãe é usuária de álcool, observa-se um ambiente com baixa coesão e organização e grande incidência de violência doméstica.55. Nicastri S, Ramos SP. Drug abuse is a preventable behavior drug addiction is a treatable disease. J Bras Depend Quím. 2001;2:25-9. As crianças que convivem com mães alcoolistas estão expostas a negligência, abusos e problemas de comportamento.66. Tracy EM, Martin TC. Children's roles in the social networks of women in substance abuse treatment. J Subst Abuse Treat. 2007;32:81-8.

Sierra e Mesquita, em estudo com crianças e adolescentes, concluem que a violência intradomiciliar, perpetrada pelos pais, bem como a privação e a negligência, representam uma alta probabilidade de danos físico e psicológico e consequente atraso no desenvolvimento pleno da criança.77. Sierra VM, Mesquita WA. Vulnerabilidades e fatores de risco na vida de crianças e adolescentes. São Paulo em Perspectiva. 2006;20:148-55. Em outra pesquisa, conduzida por Brito e colaboradores, observou-se que os comportamentos agressivos e a vitimização presentes entre adolescentes estavam associados à violência física doméstica.88. Brito AM, Zanetta DM, Mendonça RC, Barison SZ, Andrade VA. Violência doméstica contra crianças e adolescentes: estudo de um programa de intervenção. Ciênc Saúde Coletiva. 2005;10:143-9. Nesse contexto, a atenção especializada à criança sem desvelar a complexidade da dinâmica familiar é como amenizar o sintoma sem tratar a causa. A busca por um atendimento integral à criança indica uma nova visão da atenção à saúde e um imenso desafio à prática clínica.99. Kennedy V. Genograms. MAI Review. 2010;3:1-12.

Entre as práticas inovadoras que possibilitam uma visão mais ampliada do universo da criança, destaca-se o genograma familiar.1010. McGoldrick M, Gerson R, Petry S. Genograms: assessment and intervention. 3rd ed. New York: WW Norton Co Inc; 2008. O genograma é um instrumento de representação simbólico-visual, com informações qualitativas sobre a dimensão da dinâmica e do funcionamento familiar, o qual demonstra e organiza os aspectos genéticos, médicos, sociais, comportamentais, relacionais e culturais que pertencem à estrutura familiar. Eventos importantes, tais como mortes, separações, acidentes, transtornos mentais, violência, dependência química e de álcool e abuso sexual, também são evidenciados nessa representação gráfica para o planejamento do cuidado integral à saúde da família.1111. Fuller BE, Chermack ST, Cruise KA, Kirsch E, Fitzgerald HE, Zucker RA. Predictors of aggression across three generations among sons of alcoholics: relationships involving grandparental and parental alcoholism, child aggression, marital aggression and parenting practices. J Stud Alcohol. 2003;64:472-83.,1212. Wendt NC, Crepaldi MA. A utilização do Genograma como instrumento de coleta de dados na pesquisa qualitativa. Psicol Reflex Crit. 2008;21:302-10. A familiarização do pediatra com esse instrumento amplia a resolutividade do atendimento prestado à criança, podendo também ajudar a família a perceber-se de novas maneiras e a promover meios para tornar-se parceira em seu próprio plano terapêutico.1313. Abatemarco DJ, Kairys SW, Gubernick RS, Hurley T. Using Genograms to understand pediatric pratices' readiness for change to prevent abuse and neglect. J Child Health Care. 2012;16:153-65.

Assim, este trabalho teve como objetivo descrever a utilização do genograma familiar na consulta pediátrica como ferramenta de análise da presença de degradação do vínculo parental e da violência contra a criança.

MÉTODO

A pesquisa consistiu em estudo qualitativo conduzido em uma creche filantrópica do município de Guarulhos, São Paulo, gerida por ordem religiosa, situada à margem da Rodovia Fernão Dias. A população desta investigação compreendeu 63 crianças, com idades entre 2 e 6 anos, matriculadas na creche no ano de 2011, correspondendo a 55 genogramas familiares.

Para a construção do genograma, a coleta dos dados sobre as crianças se deu em quatro momentos: avaliação pediátrica na creche com análise do prontuário escolar; entrevista com o responsável pela criança; entrevista com os professores; e entrevista com a coordenadora da creche. Primeiramente, a mãe ou cuidador da criança foi entrevistado por meio de questionário estruturado. Na sequência, entrevistou-se a professora responsável pela criança na creche, para obter informações adicionais, tais como: envolvimento dos pais no acompanhamento da criança na creche; cuidados com a saúde; e sinais de violência ou abuso sexual. Por último, entrevistou-se a religiosa responsável pela creche, a qual exercia grande influência junto à comunidade e possuía grande conhecimento sobre as famílias. Nessa entrevista, foi possível coletar informações relativas ao uso de álcool e outras drogas pelos membros da família, à qualidade e tipo de vínculo familiar, e à história de abusos físico e sexual.

O questionário estruturado, aplicado durante a entrevista das mães ou cuidadores, abrangeu os seguintes dados: condições gerais da criança; identificação e história obstétrica da mãe; forma de viver e morar da família; história médica da criança; estrutura da família; escolaridade do chefe da família; empregabilidade; tipo de domicílio; renda familiar mensal; cadastramento no programa social Bolsa Família; situação conjugal; número de habitantes no domicílio; condições de saneamento básico; e presença de rede elétrica. Os dados sobre as famílias foram utilizados para a construção dos genogramas familiares, utilizando-se o programa GenoPro®-2016 (GenoPro, Waterloo, Ontário, Canadá), no qual os símbolos representam os indivíduos e as linhas traduzem relações que unem os indivíduos entre si.1010. McGoldrick M, Gerson R, Petry S. Genograms: assessment and intervention. 3rd ed. New York: WW Norton Co Inc; 2008.,1111. Fuller BE, Chermack ST, Cruise KA, Kirsch E, Fitzgerald HE, Zucker RA. Predictors of aggression across three generations among sons of alcoholics: relationships involving grandparental and parental alcoholism, child aggression, marital aggression and parenting practices. J Stud Alcohol. 2003;64:472-83. Para avaliar a qualidade de vínculo, foi incluída na representação do genograma a violência contra a criança, a presença de álcool e/ou drogadição, negligência e transtorno mental, assim como a representação do tipo de relação entre as pessoas que compunham a família.1212. Wendt NC, Crepaldi MA. A utilização do Genograma como instrumento de coleta de dados na pesquisa qualitativa. Psicol Reflex Crit. 2008;21:302-10. Na análise dos genogramas familiares, considerou-se a gradação da qualidade do vínculo parental indo de “muito próximo” a “ódio”. Em relação à violência contra a criança, o espectro de análise foi de negligência a abuso sexual.

O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa (CAAE nº 0051.1.186.000-11) e o Termo de Consentimento da Pesquisa foi assinado pelos responsáveis pela criança após concordarem em participar do estudo.

RESULTADOS

As crianças e respectivas famílias avaliadas deram origem a 55 genogramas, sendo que em 38 deles, observaram-se arranjos familiares funcionais e com vínculos afetivos próximos ou muito próximos. A maior parte das famílias, apesar da vulnerabilidade social, apresentava arranjo nuclear e dinâmica funcional protetora para a criança. Ao se considerar a gradação no espectro da violência, nessas famílias destacou-se a forma mais branda. O vínculo parental era forte e as agressões físicas ou verbais eram reprodução de modelos vivenciados de educação paterna. Outra violência que se apresentou nesses grupamentos, em frequência menor, foi a negligência. O vínculo parental apresentou-se enfraquecido por transtornos mentais paternos, relação monoparental, dependência química ou múltiplos parceiros maternos.

Em 17 dos casos analisados, evidenciaram-se situações que envolviam violência física, emocional ou sexual contra as crianças. Os casos mais extremos de violência, com esgarçamento do vínculo parental, ocorreram em famílias com arranjos disfuncionais. Nessas famílias predominava a dependência química de múltiplos membros, transtorno mental grave, agressões física e verbal persistentes e abuso sexual. A criança por vezes assumia o papel do adulto, sendo responsável pelo cuidado de familiares. Nos resultados são apresentados os genogramas familiares de crianças vítimas de violência extrema. A criança em estudo é representada pela letra inicial do seu primeiro nome, nas Figuras 1 e 2.

Figura 1:
Genogramas das famílias de M e F.

Figura 2:
Genogramas das famílias de S e R.

Na Figura 1(genograma M), pode-se notar que, apesar da família de M ter um arranjo nuclear (pai, mãe e filhos), apresenta uma dinâmica disfuncional associada à baixa qualidade do vínculo parental. O vínculo paterno encontra-se no extremo negativo, apresentando abuso físico e sexual na relação com as filhas e violento-fusionado com a parceira. Nesse arranjo familiar, o vínculo materno está comprometido pela presença de alcoolismo, depressão, sobrecarga no cuidado de filho com deficiência mental e agressão física por parte do parceiro. Em relação à violência contra as crianças, o pai é o perpetrador de ambas as formas observadas nessa família.

O genograma F (Figura 1) ilustra um arranjo familiar constituído por pai, mãe, dois filhos, tia paterna e seis primos (filhos de diferentes parceiros). A dinâmica disfuncional pode ser notada pela baixa qualidade dos vínculos estabelecidos entre a tia paterna e seus filhos. O vínculo materno é deteriorado pela dependência química (alcoolismo), relação afetiva conflituosa e facilitação de abuso sexual consanguíneo tio-sobrinhas. Nesse arranjo familiar, a única figura masculina (o pai/tio materno) estabelece um vínculo de abuso, sendo o perpetrador da violência sexual contra as crianças (sobrinhas).

A Figura 2 (genograma S) ilustra um arranjo familiar extenso, formado por três gerações convivendo no mesmo domicílio: pai, mãe e filhos, avó (chefe da família) e irmã paterna, marido e filho. O vínculo parental é caracterizado por agressões física e emocional persistentes praticadas pelos pais. No vínculo materno, a degradação é acentuada pela deficiência mental da mãe e relação de abuso físico com os filhos mais novos. O pai, dependente químico, estabelece um vínculo pobre com os filhos mais novos e com o mais velho o faz na forma de abuso emocional. Observa-se a repetição de comportamento de dependência química em linha direta de parentesco, passando da irmã paterna para o sobrinho adolescente. Em relação à violência contra as crianças, nesse arranjo familiar, os perpetradores eram os pais.

O genograma R (Figura 2) apresenta arranjo familiar nuclear (pai, mãe e filhos), entretanto a qualidade do vínculo parental situa-se no extremo da degradação. Há presença do abuso de múltiplas drogas por ambos os pais. O vínculo paterno com a criança é distante e a relação emocional é de abuso físico. A mãe estabelece um vínculo caracterizado por uma fusão intensa e violenta. Nesse arranjo familiar, a criança, por depender exclusivamente da mãe, é submetida a um amplo espectro de violência (negligência, agressões física e emocional).

DISCUSSÃO

As famílias assistidas pela creche, vivendo em condição de elevada vulnerabilidade social, representam uma comunidade heterogênea tanto no que concerne aos arranjos familiares quanto na qualidade de vínculo parental. O médico pediatra ao dirigir seu olhar sobre a criança, orientado por uma prática que o limita ao modelo biomédico, não é capaz de vislumbrar a complexidade de interações existentes no ambiente familiar, que contribuem para moldar a saúde da criança. A falha em não reconhecer a dinâmica familiar pode resultar em intervenções limitadas e equivocadas em determinar as reais necessidades do paciente e sua família, desfavorecendo o atendimento integral.

Dessa forma, a utilização do genograma familiar irá possibilitar a análise do contexto psicossocial da criança, de sua família e sua doença, favorecendo a identificação de estressores no contexto familiar. Sua aplicabilidade vai desde a consulta ambulatorial de rotina pediátrica, contribuindo na construção do raciocínio e julgamento clínico, até situações de atendimento emergencial, nas quais o modelo tradicional não provê respostas satisfatórias às situações clínicas da criança. As condições nas quais o modelo biomédico evidencia mais as suas limitações envolvem contextos familiares complexos, com problemas comportamentais infantis, transtorno mental, dependência química e violência intradomiciliar.1313. Abatemarco DJ, Kairys SW, Gubernick RS, Hurley T. Using Genograms to understand pediatric pratices' readiness for change to prevent abuse and neglect. J Child Health Care. 2012;16:153-65.,1414. Muniz JR, Eisenstein E. Genograma: informações sobre família na (in)formação médica. Rev Bras Educ Med. 2009;33:72-9.

As crianças abrangidas pelo estudo não relatavam queixas clínicas; entretanto, ao analisar seus genogramas, as vulnerabilidades às diversas formas de violência ficaram evidentes. Todas as famílias avaliadas apresentavam alto grau de vulnerabilidade social, com diversidade de arranjos familiares e um amplo espectro de qualidade de vínculo parental chegando ao extremo de degradação. Nessas famílias, o vínculo é enfraquecido por transtornos mentais maternos, relação monoparental com pai ausente, dependência química ou pela presença de múltiplos parceiros maternos. Pôde-se observar que a violência definida como uso intencional da força física ou do poder, de modo real ou em forma de ameaça, autoinfringida, interpessoal ou coletiva, que resulte ou tenha alta probabilidade de resultar em lesão, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação e óbito era a realidade dessas famílias, com variação na gradação da intensidade e tipo praticado.1515. Krug EG, Dahlberg LL, Mercy A, Zwi AB, Lozano R. Abuso infantil e negligência por pais e outros cuidadores. In: Organização Mundial da Saúde (OMS). Relatório mundial sobre saúde e violência. Genebra: OMS; 2002. p. 57-81. A violência entre pais ensina às crianças lições de poder e as transforma em agressoras no futuro. Crianças de lares violentos são mais agressivas com seus semelhantes, mais parecidas com os adultos agressores e vítimas deles mesmos. Há elevada correlação entre abuso dessas crianças e lares violentos.1616. Zuckerman B, Augustiyn M, Groves BM, Parker S. Silent victims revisited: the special case of domestic violence. Pediatrics. 1995;96:511-3. Todos os genogramas apresentados no artigo evidenciaram formas variadas de violência que iam da agressão verbal, física, negligência ao abuso sexual. Em alguns arranjos familiares, foi observado mais de um tipo de violência praticada contra uma mesma criança. Nessa amostra, todos os núcleos familiares apresentavam violência e a presença de alguma forma grave de abuso praticada contra a criança. A violência física contra as crianças está presente nas Famílias de M, de S e de R. O abuso sexual contra as crianças é observado nas Famílias de M e de F.

Nos arranjos familiares mais disfuncionais, a criança sofre ameaça constante à sua saúde física e psíquica. Portanto, se a criança e sua família não receberem intervenção de redes de apoio e proteção com suporte adequados, poderão evoluir em um ciclo longo de desajustes, perpetuando a violência.1717. Dalal K, Lawoko S, Jansson B. The relationship between intimate partner violence and maternal practices to correct child behavior: a study on women in Egypt. J Inj Violence Res. 2010;2:25-33. A utilização do genograma como ferramenta capaz de identificar a presença da degradação do vínculo parental e da violência contra a criança mostrou-se eficiente no diagnóstico da necessidade de um cuidado integral e multiprofissional dessas famílias. A partir desse diagnóstico é possível elaborar um projeto terapêutico familiar, abrangendo problemas sensíveis, tais como a dependência química e a sexualidade. Com essa forma de intervenção pode-se interromper a repetição do comportamento transgeracional,1818. Guimarães AB. Mulheres dependentes de álcool: levantamento transgeracional do genograma familiar [master´s thesis]. São Paulo (SP): USP; 2009. como se observa no genograma S, em que a dependência química da mãe é reproduzida em seu filho adolescente.

A convivência da criança com pais alcoolistas tem sido associada ao desenvolvimento de transtornos mentais e de comportamento, tais como: depressão, ansiedade, distúrbios de afetividade, baixo desempenho escolar e insegurança emocional.1919. Kearns-Bodkin JN, Leonard KE. Relationship functioning among adult children of alcoholics. J Stud Alcohol Drugs. 2008;69:941-50.,2020. Costa LF, Pereira LG. A perspectiva transgeracional na drogadição. Rev de Psicologia. 2003;21:80-8.,2121. Haggerty RJ, Sherrod LR, Gamezy N, Rutter M. Stress, risk and resilience in children and adolescents: process, mechanisms and interventions. Cambridge: Cambridge University Press; 1996. Outros estudos também apontam para associação entre a violência familiar combinada com o abuso de álcool ou outras drogas, por um ou ambos os pais, com o desenvolvimento de distimia, distúrbio de conduta, depressão maior, dependência química e síndrome do estresse pós-traumático.2222. Sapienza G, Pedromônico MR. Risco, proteção e resiliência no desenvolvimento da criança e do adolescente. Psicol estud. 2005;10:209-16.,2323. Kaplan SJ, Pelcovitz D, Salzinger S, Weiner M, Mandel FS, Lesser ML, et al. Adolescent physical abuse: risk for adolescent psychiatric disorders. Am J Psychiatry. 1998;155:954-9.,2424. McFarlane JM, Groff JY, O'Brien JA, Watson K. Behaviors of children who are exposed and not exposed to intimate partner violence: an analysis of 330 black, white, and Hispanic children. Pediatrics. 2003;112:202-7.

Nas quatro famílias avaliadas por meio do genograma, foi observada a presença de violência familiar associada ao abuso de álcool ou drogas por um ou ambos os pais, tendo as crianças dessas famílias esses pais como seu único vínculo afetivo. Portanto todas as crianças pertencentes a essas famílias estarão sujeitas a desenvolver algum tipo de transtorno mental ou de comportamento ao longo da sua vida. Segundo relato da creche, pelo menos uma criança de cada família analisada apresentava dificuldades no desempenho escolar, na socialização com outras crianças e no estabelecimento de vínculo afetivo com os professores.

Os resultados deste estudo demonstram a importância da utilização do genograma familiar na consulta pediátrica, em casos extremos, como ferramenta de análise da presença de degradação do vínculo parental e violência contra a criança; entretanto esse recurso possibilita também avaliar a exposição da criança aos mais diversos tipos de estressores em casos menos extremos. O genograma permite ao pediatra avaliar a estrutura e a funcionalidade familiar, bem como o papel que a criança assume dentro dela. A sua construção é dinâmica e deve ser completada a cada consulta, seguindo as transformações nos ciclos de vida da família. Em face disso, a qualidade dos vínculos parentais fica evidenciada e a violência contra a criança pode ser percebida ainda em sua gênese, mesmo na gradação mais leve.

Apesar de assemelhar-se a uma árvore genealógica, sua complexidade e abrangência é bem maior. Sua configuração é mais um mapa relacional dos membros da familia, cuja simbologia foi padronizada no início da década de 1980, pelo Grupo Norte-Americano de Pesquisa em Atenção Primária (North American Care Research Group). Os símbolos caracterizando o indivíduo do gênero masculino é um quadrado e o feminino um círculo. As relações afetivas são desenhadas como linhas de acordo com a intensidade e tipo de vínculo. A apresentação gráfica em uma única página, no prontuário médico, permite à equipe de saúde envolvida no cuidado da criança inteirar-se de forma rápida e integral dos dados disponíveis. Essas informações muitas vezes envolvem situações delicadas das relações familiares de difícil acesso, mas relevantes na compreensão do processo de adoecer agudo ou crônico e na construção adequada de projetos terapêuticos.

Sua incorporação aos diferentes cenários da prática clínica pediátrica rotineira pode, de fato, contribuir para a promoção de uma assistência integral à saúde da criança e ampliar a resolutividade do atendimento prestado; auxiliar a família a encontrar novas maneiras de se ver e promover meios para resgatar a autonomia e o protagonismo no seu próprio plano terapêutico, independentemente da presença de vulnerabilidades social.

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  • Financiamento O estudo não recebeu financiamento.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Maio 2017
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2017

Histórico

  • Recebido
    31 Maio 2016
  • Aceito
    17 Out 2016
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