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SÍNDROME POSTERIOR DO TRONCO CEREBRAL E O USO DE VENTILAÇÃO ASSISTIDA AJUSTADA NEURALMENTE (NAVA) EM LACTENTE

RESUMO

Objetivo:

Relatar um caso raro de síndrome posterior do tronco cerebral em um lactente após um episódio hipóxico-isquêmico devido a sepse grave, e o uso da ventilação assistida ajustada neuralmente no auxílio diagnóstico e no desmame da ventilação mecânica.

Descrição do caso:

Lactente masculino de 2 meses de idade, previamente hígido, apresentou sepse grave que evoluiu para síndrome posterior do tronco encefálico, entidade que pode ocorrer após lesão hipóxico-isquêmica em neonatos e lactentes e que apresenta imagens de ressonância magnética muito particulares. Devido à lesão neurológica, permaneceu em ventilação mecânica. Optou-se por iniciar ventilação assistida ajustada neuralmente para verificar a patência da condução do nervo frênico ao diafragma e auxiliar no desmame da ventilação mecânica.

Comentários:

A síndrome posterior do tronco cerebral é uma entidade rara que deve ser considerada em lactentes após evento hipóxico-isquêmico.

Palavras-chave:
Encefalite; Terapia intensiva; Suporte ventilatório interativo

ABSTRACT

Objective:

To report a rare case of dorsal brainstem syndrome in an infant after hypoxic-ischemic episode due to severe sepsis and the use of neurally adjusted ventilatory assist (NAVA) to aid in diagnosis and in the removal of mechanical ventilation.

Case description:

A 2-month-old male infant, previously healthy, presented with severe sepsis that evolved to dorsal brainstem syndrome, which usually occurs after hypoxic-ischemic injury in neonates and infants, and is related to very specific magnetic resonance images. Due to neurological lesions, thei nfant remained in mechanical ventilation. A NAVA module was installed to keep track of phrenic nerve conduction to the diaphragm, having successfully showed neural conduction and helped removing mechanical ventilation.

Comments:

Dorsal brainstem syndrome is a rare condition that should be considered after hypoxic-ischemic episode in infants.

Keywords:
Encephalitis; Critical care; Neurally adjusted ventilatory assist

INTRODUÇÃO

A síndrome posterior do tronco cerebral (SPTC) é uma condição rara que afeta crianças com encefalopatia hipóxico-isquê­mica. Pode ocorrer após sepse grave, e a Ressonância Magnética (RM) é o método preferido para avaliar esse tipo de lesão em recém-nascidos e lactentes.11. Quattrocchi CC, Longo D, Delfino LN, Cilio MR, Piersigilli F, Capua MD, et al. Dorsal Brain Stem Syndrome: MR Imaging Location of Brain Stem Tegmental Lesions in Neonates with Oral Motor Dysfunction. AJNR Am J Neuroradiol. 2010;31:1438-42. Relatamos o caso de uma criança que apresentou miocardiopatia e desenvolveu SPTC após choque séptico relacionado a meningite. A criança tornou-se dependente da ventilação mecânica (VM). A Ventilação Assistida Ajustada Neuralmente (NAVA) foi utilizada com sucesso para diagnosticar a condução neural através do nervo frênico, e também auxiliou no desmame da VM.22. Schmidt M, Kindler F, Cecchini J, Poitou T, Morawiec E, Persichini R, et al. Neurally adjusted ventilatory assist and proportional assist ventilation both improve patient-ventilator interaction. Crit Care. 2015;19:56.,33. Narchi H, Chedid F. Neurally adjusted ventilator assist in very low birth weight infants: Current status. World J Methodol. 2015;5:62-7.

DESCRIÇÃO DE CASO

Lactente do sexo masculino, com dois meses de idade, com peso de 6,9 kg, foi internado na UTI pediátrica com dificuldade respiratória, taquicardia, hipotonia, extremidades frias e febre. Cerca de três dias antes, a criança apresentou febre (37,8ºC a 38,5ºC), vômitos, apatia, e eventualmente progrediu para dificuldade respiratória e parada cardíaca. Não foram disponibilizados fatos relevantes sobre seu histórico de saúde anterior.

No momento da internação, o lactente estava hipotônico, com retrações subdiafragmáticas e intercostais moderadas. A pele estava pálida e fria. A frequência respiratória era de 80 incursões/minuto e a frequência cardíaca era de 180 bpm. Foi interpretado como colapso circulatório, e a criança foi submetida a intubação orotraqueal. As enfermeiras tentaram um acesso venoso periférico, mas a desidratação dificultou o procedimento. Um acesso intra-­ósseo foi realizado. Um total de 40 mL/kg de soro fisiológico foi administrado em 20 minutos. Em seguida, foi inserido cateter venoso periferico e outros 40 mL/kg de soro fisiológico foram administrados ao paciente em 60 minutos. A perfusão estava regular, e a pressão arterial média (PAM) estava baixa (30 mmHg). Iniciou-se milrinona (0,5 mcg/­kg/min) e norepinefrina (0,2 mcg/kg/min), e a perfusão melhorou 30 minutos depois. A PAM aumentou para 50 mmHg. Foram administrados ceftriaxona 100 ­mg/­kg/dia e aciclovir (45 mg/kg/dia) na primeira hora de internação, de acordo com o protocolo institucional de sepse. Foi realizada punção lombar para coleta de líquido cefalorraquidiano (LCR) para investigar a hipótese de infecção do sistema nervoso central.

O hemograma mostrou 21.780 leucócitos (58% neutrófilos, 4% bandas e 54% segmentados), hemoglobina a 12,6 g/dL, hematócrito a 34,9% e plaquetas a 482.000/­mm3. O nível de proteína c-reativa (CPR) era de 2,48 mg/dL (normal <0,6 ­mg/­dL). A concentração de procalcitonina era de 7,6 ­ng/­mL (normal <0,5 ­ng/­mL). O nível de lactato foi de 50 mg/dL (normal <11,3 ­mg/­dL). A troponina I era 1,67 ­ng/­mL (normal <0,16 ng/mL). O nível de Creatina Quinase (CK) era de 926 U/L (normal: 38-174 U/L) e a Creatina Quinase MB (CK-MB) era de 24,1 ng/mL (normal <5 ng/mL). A análise do líquido cefalorraquidiano (LCR) mostrou contagem de leucócitos de 174/mm3 (60% de células polimorfonucleares), proteína a 100 mg/dL, glicose a 92 ­mg/­dL e lactato a 33 ­mg/­dL. O diagnóstico de meningoencefalite viral foi considerado, mas as culturas de LCR para bactérias, fungos, vírus da herpes e enterovírus foram negativas. O aciclovir foi então suspenso. Um ecocardiograma com doppler mostrou disfunção ventricular esquerda moderada (fração de ejeção: 45%) e hipertensão pulmonar leve (35 mmHg) enquanto sob a administração de milrinona (0,5 mcg/kg/min).

Sete dias após a internação, houve melhora na hemodinâmica e no estado infeccioso. No entanto, não houve sinal de melhora neurológica. O paciente não apresentava controle respiratório ou reflexo de tosse, e a escala de Ramsay era de 6 mesmo após a remoção da sedação.

A RM mostrou: “Hipotenso em T1-D1, imagens hiperintensas em T2/Flair em sequência de difusão no bulbo raquidiano posterior e na ponte, com acometimento do VI par craniano” (Figura 1). A lesão hiperintensa foi observada na sequência de difusão, afetando o corpo caloso. Essas alterações foram compatíveis com a síndrome posterior do tronco cerebral (SPTC), uma condição que ocorre após lesão hipóxico-isquêmica em neonatos e lactentes. O padrão de lesão cerebral relaciona-se ao mecanismo patogenético e fornece informações sobre consequências e prognóstico.

Figura 1:
RM: T1 Sagital, T2 Sagital e T2 Axial mostrando lesões hipointensas (T1) e hiperintensas (T2) bem definidas na porção posterior da ponte e do bulbo.

Duas semanas após a internação, iniciou-se a remoção das drogas vasoativas, a função cardiovascular melhorou e o LCR estava normal. Na terceira semana, foi iniciado o desmame do paciente da VM. No entanto, o procedimento não foi bem sucedido, e o pCO2 aumentou em todas as tentativas de desmame da VM. Por isso, o paciente permaneceu dependente de VM sem melhora no controle respiratório, apesar da melhoria em seu estado neurológico e de ter começado a mover os membros, fazer contato visual e reagir a estímulos dolorosos. Neste momento, a traqueostomia e a gastrostomia foram realizadas.

Devido à dificuldade no desmame da VM e da dúvida da equipe médica sobre a integridade da condução neural do paciente, decidiu-se pelo uso da Ventilação Assistida Ajustada Neuralmente (NAVA). Após o posicionamento adequado do eletrodo, o sinal Edi foi detectado (8 mV) e a condução neural confirmada (Figura 2). Em seguida, foi proposto um programa de desmame da VM utilizando a NAVA: o paciente permaneceria quatro horas por dia em NAVA, mudando para suporte de pressão por mais quatro horas, e ventilação obrigatória intermitente sincronizada (VOIS) durante a noite. O paciente recebeu alta três meses após a internação, e atualmente está em tratamento em casa, recebendo nebulização durante o dia e Pressão Positiva nas Vias Aéreas (BiPAP) durante a noite.

Figura 2:
Ventilação SERVO-i com display NAVA mostrando sinal Edi (setas).

DISCUSSÃO

O SPTC é uma entidade rara, mas deve ser considerada sempre que um neonato ou lactente desenvolve uma lesão hipóxico-isquêmica. Localizada na área divisória de fluxo entre as ramificações paramedianas e circunscritas da artéria basilar, o tegmento do tronco encefálico é vulnerável a danos isquêmicos.44. Sarnat HB. Watershed infarcts in the fetal and neonatal brainstem. An aetiology of central hypoventilation, dysphagia, Moibius syndrome and micrognathia. Eur J Paediatr Neurol. 2004;8:71-87. De acordo com Sugama et al., “lesões nesta área podem ser vistas como mudanças na intensidade do sinal na RM em alguns casos”,55. Sugama S, Ariga M, Hoashi E, Eto Y. Brainstem cranial-nerve lesions in an infant with hypoxic cerebral injury. Pediatr Neurol. 2003;29:256-9.,66. Saito Y, Kawashima Y, Kondo A, Chikumaru Y, Matsui A, Nagata I, et al. Dysphagia-gastroesophageal reflux complex: complications due to dysfunction of solitary tract nucleusmediated vago-vagal reflex. Neuropediatrics. 2006;37:115-20. mas, em outros casos, podem não ser visíveis em exames de neuroimagem.77. Natsume J, Watanabe K, Kuno K, Hayakawa F, Hashizume Y. Clinical, neurophysiologic, and neuropathological features of an infant with brain damage of total asphyxia type (Myers). Pediatr Neurol. 1995;13:61-4.,88. Roig M, Gratacòs M, Vazquez E, Toro M, Foguet A, Ferrer I, et al. Brainstem dysgenesis: report of five patients with congenital hypotonia, multiple cranial nerve involvement, and ocular motor apraxia. Dev Med Child Neurol. 2003;45:489-93. Elas podem estar presentes com ou sem lesões supratentoriais que geralmente acometem o tálamo, os gânglios basais e a substância branca periventricular. O exame de RM é útil tanto para o diagnóstico como para o prognóstico, dependendo da extensão da lesão. O tratamento rápido e adequado do choque é essencial para prevenir a expansão das lesões, promovendo um melhor resultado para esses pacientes. No caso relatado, apesar da assistência clínica precisa e da pronta execução do protocolo de sepse, o lactente desenvolveu SPTC.

A NAVA é um modo de ventilação mecânica que poderia ajudar a determinar a condução neural em pacientes com SPTC. É um método seguro de ventilação. A maioria dos estudos não demonstrou eventos adversos significativos em crianças tratadas com NAVA, além de não indicar diferenças na hemorragia intraventricular ou na frequência pneumotorácica quando comparadas à ventilação convencional.33. Narchi H, Chedid F. Neurally adjusted ventilator assist in very low birth weight infants: Current status. World J Methodol. 2015;5:62-7. Além disso, no desencadeamento neural, o gatilho elétrico que vem do cérebro através do nervo vagal estimula o diafragma comcomitantemente com o ventilador, melhorando a sincronia paciente-ventilador, permitindo a variabilidade respiratória e reduzindo a necessidade de sedação.

Conclui-se que a síndrome posterior do tronco cerebral é uma condição rara em lactentes. No entanto, deve ser considerada em todos os pacientes jovens com lesões hipóxicas-isquêmicas. Até onde se sabe, esta foi a primeira vez que a NAVA foi utilizada para verificar a condução neural em um lactente com este tipo de lesão neurológicas. A disseminação do conceito da síndrome posterior do tronco cerebral contribuiria para o reconhecimento de pacientes em condições semelhantes e alertaria neurologistas e pediatras a respeito de melhores abordagens terapêuticas.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Quattrocchi CC, Longo D, Delfino LN, Cilio MR, Piersigilli F, Capua MD, et al. Dorsal Brain Stem Syndrome: MR Imaging Location of Brain Stem Tegmental Lesions in Neonates with Oral Motor Dysfunction. AJNR Am J Neuroradiol. 2010;31:1438-42.
  • 2
    Schmidt M, Kindler F, Cecchini J, Poitou T, Morawiec E, Persichini R, et al. Neurally adjusted ventilatory assist and proportional assist ventilation both improve patient-ventilator interaction. Crit Care. 2015;19:56.
  • 3
    Narchi H, Chedid F. Neurally adjusted ventilator assist in very low birth weight infants: Current status. World J Methodol. 2015;5:62-7.
  • 4
    Sarnat HB. Watershed infarcts in the fetal and neonatal brainstem. An aetiology of central hypoventilation, dysphagia, Moibius syndrome and micrognathia. Eur J Paediatr Neurol. 2004;8:71-87.
  • 5
    Sugama S, Ariga M, Hoashi E, Eto Y. Brainstem cranial-nerve lesions in an infant with hypoxic cerebral injury. Pediatr Neurol. 2003;29:256-9.
  • 6
    Saito Y, Kawashima Y, Kondo A, Chikumaru Y, Matsui A, Nagata I, et al. Dysphagia-gastroesophageal reflux complex: complications due to dysfunction of solitary tract nucleusmediated vago-vagal reflex. Neuropediatrics. 2006;37:115-20.
  • 7
    Natsume J, Watanabe K, Kuno K, Hayakawa F, Hashizume Y. Clinical, neurophysiologic, and neuropathological features of an infant with brain damage of total asphyxia type (Myers). Pediatr Neurol. 1995;13:61-4.
  • 8
    Roig M, Gratacòs M, Vazquez E, Toro M, Foguet A, Ferrer I, et al. Brainstem dysgenesis: report of five patients with congenital hypotonia, multiple cranial nerve involvement, and ocular motor apraxia. Dev Med Child Neurol. 2003;45:489-93.
  • Financiamento: O estudo não recebeu financiamento.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Set 2017
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2018

Histórico

  • Recebido
    24 Out 2016
  • Aceito
    26 Mar 2017
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