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SÉRIE DE CASOS DE PACIENTES EM TRATAMENTO COM LARONIDASE QUINZENAL: RELATO DA EXPERIÊNCIA DE UM CENTRO

RESUMO

Objetivo:

Descrever a manutenção dos níveis de glicosaminoglicano (GAG) excretados na urina e da estabilização clínica em pacientes com mucopolissacaridose do tipo I (MPS I) com o uso da laronidase num regime de dose alternativo de 1,2 mg/kg a cada duas semanas.

Método:

Alguns pacientes do nosso serviço participaram de um estudo de otimização de dose da laronidase para o tratamento da MPS I no qual foram comparados quatro esquemas terapêuticos: 0,58 mg/kg/semana, 1,2 mg/kg a cada duas semanas, 1,2 mg/kg/semana e 1,8 mg/kg a cada duas semanas. Após o término do estudo, todos os pacientes passaram a receber a terapia de reposição enzimática (TRE) na dose padrão de bula, que é de 0,58 mg/kg/semana, e nesse regime alguns pais se queixaram da dificuldade em comparecer ao centro todas as semanas, além da dificuldade de se obter acesso para punção venosa. Com base nessas queixas, oito pacientes passaram a receber a TRE no regime alternativo de 1,2 mg/kg a cada duas semanas. Foi feito o estudo retrospectivo de dados de prontuário de pacientes com MPS I que fizeram TRE com laronidase nas doses 0,58 mg/kg/semana e 1,2 mg/kg a cada duas semanas.

Resultados:

Os pacientes mantiveram-se clinicamente estáveis, não apresentaram aumento dos níveis de GAG urinários nem eventos adversos durante o regime alternativo de dose.

Conclusões:

A mudança para o esquema de 1,2 mg/kg de laronidase a cada duas semanas foi segura e não acarretou piora clínica nos pacientes que já estavam em TRE na dose padrão.

Palavras-chave:
Terapia de reposição de enzimas; Erros inatos do metabolismo; Glicosaminoglicanos; Mucopolissacaridose I

ABSTRACT

Objective:

To report the stabilization of urinary glycosaminoglicans (GAG) excretion and clinical improvements in patients with mucopolysaccharidosis type I (MPS I) under an alternative dose regimen of laronidase of 1.2 mg/kg every other week.

Methods:

We participated in a dose-optimization trial for laronidase in MPS-I patients using four alternative regimens: 0.58 mg/kg every week, 1.2 mg/kg every two weeks, 1.2 mg/kg every week and 1.8 mg/kg every other week (EOW). After the trial ended, the patients resumed the recommended dose and regimen of 0.58 mg/kg every week. Under this regimen, some patients presented difficulties in venous access and were unable to commute weekly to the treatment center. Therefore, we used an alternative regimen that consisted of 1.2 mg/kg EOW in eight patients. A retrospective study of medical records of MPS-I patients who underwent both enzyme replacement therapy (ERT) regimens, of 0.58 mg/kg every week and 1.2 mg/kg EOW, was done.

Results:

Patients remained clinically stable under the alternative regimen, did not present elevation of urinary GAG nor any adverse event.

Conclusions: The switch of dose regimen to 1.2 mg/kg EOW of laronidase was safe, and did not cause any clinical worsening in patients who had been previously under standard dose ERT.

Keywords:
Enzyme replacement therapy; Metabolism, inborn errors; Glycosaminoglycans; Mucopolysaccharidosis I

INTRODUÇÃO

A mucopolissacaridose do tipo I (MPS I) é uma doença genética do grupo das doenças de depósito lisossômico, que tem herança autossômica recessiva, causada por mutações no gene IDUA, que diminuem a atividade da enzima α-L-iduronidase.11. Neufeld EF, Muenzer J. The mucopolysaccharidoses. In: Scriver CR, Beaudet AL, Sly WS, Valle D, editors. The metabolic & molecular bases of inherited disease. 3rd. New York: McGraw-Hill; 2001. p.3421-52. Essa deficiência enzimática leva ao acúmulo de glicosaminoglicanos (GAGs) - principalmente o heparan sulfato e o dermatan sulfato -, que resulta em graus variáveis de danos a células, tecidos e órgãos.11. Neufeld EF, Muenzer J. The mucopolysaccharidoses. In: Scriver CR, Beaudet AL, Sly WS, Valle D, editors. The metabolic & molecular bases of inherited disease. 3rd. New York: McGraw-Hill; 2001. p.3421-52. A MPS I tem incidência estimada em um caso a cada 100 mil nascidos vivos11. Neufeld EF, Muenzer J. The mucopolysaccharidoses. In: Scriver CR, Beaudet AL, Sly WS, Valle D, editors. The metabolic & molecular bases of inherited disease. 3rd. New York: McGraw-Hill; 2001. p.3421-52.,22. Meikle PJ, Hopwood JJ, Clague AE, Carey WF. Prevalence of lysosomal storage disorders. JAMA. 1999;281:249-54.,33. Moore D, Connock MJ, Wraith E, Lavery C. The prevalence of and survival in Mucopolysaccharidosis I: Hurler, Hurler-Scheie and Scheie syndromes in the UK. Orphanet J Rare Dis. 2008;3:24. e ampla variabilidade clínica, sendo classificada de acordo com sua apresentação fenotípica em forma grave, também denominada de Síndrome de Hurler (MPS IH) (OMIM: 607014), e formas atenuadas ou Síndrome de Hurler-Scheie (MPS IH-S) (OMIM: 607015), bem como de Síndrome de Scheie (MPS IS) (OMIM: 607016). As três formas não são distinguíveis bioquimicamente e têm o início dos sintomas na faixa etária pediátrica. A MPS I é uma doença multissistêmica, e os pacientes podem apontar comprometimento neurológico, musculoesquelético, oftalmológico, cardíaco, de vias aéreas superiores altas e baixas, além de infecções de repetição. Portanto, o acompanhamento deve ser feito por equipe multidisciplinar.44. Martins AM, Dualibi AP, Norato D, Takata ET, Santos ES, Valadares ER, et al. Guidelines for the management of mucopolysaccharidosis type I. J Pediatr. 2009;155 Suppl 4:S32-46.

As opções terapêuticas específicas para a MPS I incluem a terapia de reposição enzimática (TRE) com a laronidase (a-L-iduronidase recombinante humana, Aldurazyme®, BioMarin/Genzyme LCC) para pacientes com a forma atenuada,55. Al-Sannaa NA, Bay L, Barbouth DS, Benhayoun Y, Goizet C, Guelbert N, et al. Early treatment with laronidase improves clinical outcomes in patients with attenuated MPS I: a retrospective case series analysis of nine sibships. Orphanet J Rare Dis. 2015;10:131-9.,66. Muenzer J. Early initiation of enzyme replacement therapy for the mucopolysaccharidoses. Mol Genet Metab. 2014;111:63-72.,77. Tolar J, Orchard PJ. alpha-L-iduronidase therapy for mucopolysaccharidosis type I. Biologics. 2008;2:743-51.,88. Clarke LA, Wraith JE, Beck M, Kolodny EH, Pastores GM, Muenzer J, et al. Long-term efficacy and safety of laronidase in the treatment of mucopolysaccharidosis I. Pediatrics. 2009;123:229-40. e transplante de células-tronco hematopoiéticas (HSCT) associado ou não à TRE nos pacientes com forma grave.99. Aldenhoven M, Jones SA, Bonney D, Borrill RE, Coussons M, Mercer J, et al. Hematopoietic cell transplantation for mucopolysaccharidosis patients is safe and effective: results after implementation of international guidelines. Biol Blood Marrow Transplant. 2015;21:1106-9.,1010. Aldenhoven M, Wynn RF, Orchard PJ, O'Meara A, Veys P, Fischer A, et al. Long-term outcome of Hurler syndrome patients after hematopoietic cell transplantation: an international multicenter study. Blood. 2015;125:2164-72.,1111. Grewal SS, Wynn R, Abdenur JE, Burton BK, Gharib M, Haase C, et al. Safety and efficacy of enzyme replacement therapy in combination with hematopoietic stem cell transplantation in Hurler syndrome. Genet Med. 2005;7:143-6.,1212. Yasuda E, Mackenzie WG, Ruhnke KD, Shimada T, Mason RW, Zustin J, et al. Long-term follow-up of post hematopoietic stem cell transplantation for Hurler syndrome: clinical, biochemical, and pathological improvements. Mol Genet Metab Rep. 2015;2:65-76.,1313. Eisengart JB, Rudser KD, Tolar J, Orchard PJ, Kivisto T, Ziegler RS, et al. Enzyme replacement is associated with better cognitive outcomes after transplant in Hurler syndrome. J Pediatr. 2013;162:375-80. O regime padrão de tratamento com a laronidase é na dose de 0,58 mg/kg (100 U/kg) por via endovenosa semanalmente,1414. Kakkis ED, Muenzer J, Tiller GE, Waber L, Belmont J, Passage M, et al. Enzyme-replacement therapy in mucopolysaccharidosis I. N Engl J Med. 2001;344:182-8.,1515. Wraith JE, Clarke LA, Beck M, Kolodny EH, Pastores GM, Muenzer J, et al. Enzyme replacement therapy for mucopolysaccharidosis I: a randomized, double blinded, placebo controlled, multinational study of recombinant human alpha-L-iduronidase (laronidase). J Pediatr. 2004;144:581-8. aprovado pela agência regulatória americana (Food and Drug Administration - FDA) e europeia (Agência Europeia de Medicamentos - EMA) em 2003 e pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) em 2005.1616. Brasil. Ministério da Saúde. Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA [homepage on the Internet]. Bulário eletrônico Brasil [cited 2017 Oct 14]. Available from: http://www.anvisa.gov.br/datavisa/fila_bula/index.asp
http://www.anvisa.gov.br/datavisa/fila_b...
A concentração de GAGs na urina quantificada pelo método de espectrofotometria baseado no azul de metileno1717. Wraith JE, Beck M, Lane R, van der Ploeg A, Shapiro E, Xue Y, et al. Enzyme replacement therapy in patients who have mucopolysaccharidosis I and are younger than 5 years: results of a multinational study of recombinant human alpha-L-iduronidase (laronidase). Pediatrics. 2007;120:e37-46. foi usada como biomarcador nos estudos de eficácia da TRE,1414. Kakkis ED, Muenzer J, Tiller GE, Waber L, Belmont J, Passage M, et al. Enzyme-replacement therapy in mucopolysaccharidosis I. N Engl J Med. 2001;344:182-8.,1515. Wraith JE, Clarke LA, Beck M, Kolodny EH, Pastores GM, Muenzer J, et al. Enzyme replacement therapy for mucopolysaccharidosis I: a randomized, double blinded, placebo controlled, multinational study of recombinant human alpha-L-iduronidase (laronidase). J Pediatr. 2004;144:581-8. bem como no estudo de extensão de fase IV e no estudo de segurança e tolerabilidade em pacientes menores de cinco anos.1717. Wraith JE, Beck M, Lane R, van der Ploeg A, Shapiro E, Xue Y, et al. Enzyme replacement therapy in patients who have mucopolysaccharidosis I and are younger than 5 years: results of a multinational study of recombinant human alpha-L-iduronidase (laronidase). Pediatrics. 2007;120:e37-46.

Nosso serviço foi um dos participantes de um estudo de otimização de dose da laronidase,1818. Giugliani R, Rojas VM, Martins AM, Valadares ER, Clarke JT, Góes JE, et al. A dose-optimization trial of laronidase (Aldurazyme) in patients with mucopolysaccharidosis I. Mol Genet Metab. 2009;96:13-9. no qual um dos braços era com infusões quinzenais, e, após o término das 26 semanas da pesquisa, todos os participantes foram orientados a fazer a TRE no regime padrão com dose de 0,58 mg/kg semanal. Nesse esquema de dose, alguns pacientes apresentaram dificuldade de obter acesso venoso e alguns pais se queixaram da dificuldade de comparecer semanalmente ao serviço para o tratamento. Com base na experiência prévia positiva dos pacientes que participaram do braço do estudo com infusões quinzenais, somado às queixas dos pais de terem de fazer a TRE semanal, utilizou-se um regime quinzenal de tratamento, na dose de 1,2 mg/kg a cada duas semanas, comparando a concentração dos GAGs na urina no regime padrão e regime quinzenal.

O objetivo deste estudo foi demonstrar o efeito do regime quinzenal da TRE na resposta clínica do paciente e na excreção urinária de GAGs.

MÉTODO

Estudo retrospectivo com coleta de dados em prontuários sobre os GAGs urinários, adesão ao tratamento e informações clínicas. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da instituição, a Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), com o número 0802/07.

Todos os pacientes com MPS I que estavam em TRE havia mais de um ano sem apresentar reação adversa ao medicamento e que tiveram boa adesão ao regime semanal foram elegíveis para começar a receber o regime quinzenal de dose, e, dos oito pacientes que o iniciaram, sete tinham participado do estudo de otimização da dose. A laronidase na dose de 1,2 mg/kg foi reconstituída em 250 mL de NaCl 0.9% q.s.p. e administrada em bomba de infusão na velocidade orientada na bula do fabricante em um período de 4 horas a cada duas semanas.

Foram coletados os dados sobre presença dos sinais cardinais da MPS I, como opacidade de córnea, macrocrania, hepatoesplenomegalia e limitação articular no regime padrão mais próximo à mudança para o regime quinzenal e após um ano de permanência nesse regime. Coletaram-se as informações de GAG urinário dos pacientes de cinco infusões consecutivas no regime padrão anteriores à mudança de dose e mais cinco infusões consecutivas após o início do regime quinzenal. Foram coletados dados do prontuário sobre relatos de eventos adversos no período de 12 meses anteriores e posteriores à mudança do regime de dose, e, como rotina do serviço, os responsáveis têm a orientação de ligar para informar a ocorrência de algum novo evento adverso, não devendo apenas informar os pacientes na consulta presencial. A adesão ao tratamento foi avaliada pelo porcentual de faltas às infusões nos 12 meses anteriores e posteriores à mudança para o regime quinzenal.

Na análise molecular, os pacientes 1, 2, 3 e 8 foram rastreados para as três mutações mais comuns - W402X, Q70X e P533R - por reação em cadeia da polimerase (PCR) e digestão por enzimas de restrição.1919. Pereira VG, Martins AM, Micheletti C, D'Almeida V. Mutational and oxidative stress analysis in patients with mucopolysaccharidosis type I undergoing enzyme replacement therapy. Clin Chim Acta. 2008;387:75-9. O sequenciamento do ácido desoxirribonucleico (DNA) da paciente 7 foi feito por meio do kit QIAquick Gel Extraction (QIAGEN, Hilder, Alemanha), de acordo com as instruções do fabricante, e sequenciado pelo kit BigDye Terminator v3.1 Cycle Sequencing (Invitrogen, Carlsbad, CA, Estados Unidos) e pelo sequenciador ABI Prism 3130xl Genetic Analyzer (Applied Biosystems, Foster City, CA, Estados Unidos).

Para análise de GAG urinário, os pacientes em TRE foram orientados a trazer a primeira amostra de urina da manhã do dia em que compareceriam para a infusão. A excreção do GAG na urina foi determinada usando a técnica descrita por Jong et al.,2020. de Jong JG, Wevers RA, Laarakkers C, Poorthuis BJ. Dimethylmethylene blue-based spectrophotometry of glycosaminoglycans in untreated urine: a rapid screening procedure for mucopolysaccharidoses. Clin Chem. 1989;35:1472-7. que se baseia na reação colorimétrica do azul de metilmetileno, com limite superior da normalidade estabelecido para cada faixa etária listada a seguir:

  • <1 ano (<35,8 mgGAG/mmol creatinina).

  • 1-2 anos (<16,2 mgGAG/mmol creatinina).

  • 2-4 anos (<14,2 mgGAG/mmol creatinina).

  • 4-6 anos (<9,2 mgGAG/mmol creatinina).

  • 6-10 anos (<9,1 mgGAG/mmol creatinina).

  • 10-15 anos (<6,7 mgGAG/mmol creatinina).

  • 15-20 anos (<4,9 mgGAG/mmol creatinina).

  • 20-50 anos (<3,2 mgGAG/mmol creatinina).

A creatinina urinária foi dosada usando o kit da Biotécnica (Varginha, MG, Brasil).

Para a análise estatística, utilizou-se o software Prism 5.0, da GraphPad (San Diego, CA, Estados Unidos). O teste de Mann-Whitney bicaudal foi usado para avaliar se a diferença do GAG urinário sob os dois regimes de dose era significante. Considerou-se estatisticamente significante p<0,05.

RESULTADOS

Foram incluídos oito pacientes (três do sexo masculino e cinco do feminino), com mediana de idade de 11,4 anos (6-22 anos) e que já estavam em TRE no regime padrão havia 2,1±0,3 anos antes de mudarem para o regime quinzenal. Os dados demográficos desses pacientes estão apresentados na Tabela 1.

Tabela 1
Informações demográficas dos pacientes com mucopolissacaridose do tipo I.

Todos os pacientes mostraram na análise do GAG urinário manutenção dos valores no regime quinzenal, em comparação ao regime padrão. A paciente 2 mudou de faixa etária utilizada para a referência da normalidade durante o período do estudo, mas a análise do GAG urinário também mostrou manutenção dos valores no regime quinzenal, em relação ao regime padrão (Figura 1 e Tabela 2).

Figura 1
Níveis de glicosaminoglicano (GAG) urinário em pacientes com mucopolissacaridose do tipo I nos diferentes regimes de dose de laronidase: regime padrão, com 0,58 mg/kg/semana; regime quinzenal, com 1,2 mg/kg a cada duas semanas.

Tabela 2
Concentração dos níveis de glicosaminoglicano urinário dos pacientes no regime padrão de laronidase de 0,58 mg/kg/semana e no regime quinzenal alternativo de laronidase de 1,2 mg/kg a cada duas semanas (regime quinzenal).

Todos os pacientes apresentavam as manifestações clínicas típicas da MPS I, como macrocefalia, opacidade de córnea e limitação articular, que se mantiveram estáveis depois da mudança para o regime quinzenal, e a adesão ao tratamento foi melhor nesse regime (Tabela 3). Não houve nenhum evento adverso no que se refere à infusão no regime quinzenal.

Tabela 3
Manifestações clínicas e adesão ao tratamento no regime padrão de laronidase de 0,58 mg/kg/semana (regime padrão) e no regime alternativo de laronidase de 1,2 mg/kg a cada duas semanas (regime quinzenal).

DISCUSSÃO

A TRE semanal melhora muitos sintomas da MPS I, como a hepatoesplenomegalia, a capacidade vital forçada e a deambulação medida pelo teste de caminhada de 6 minutos.88. Clarke LA, Wraith JE, Beck M, Kolodny EH, Pastores GM, Muenzer J, et al. Long-term efficacy and safety of laronidase in the treatment of mucopolysaccharidosis I. Pediatrics. 2009;123:229-40.,1515. Wraith JE, Clarke LA, Beck M, Kolodny EH, Pastores GM, Muenzer J, et al. Enzyme replacement therapy for mucopolysaccharidosis I: a randomized, double blinded, placebo controlled, multinational study of recombinant human alpha-L-iduronidase (laronidase). J Pediatr. 2004;144:581-8. Um estudo retrospectivo com 35 pacientes em TRE semanal entre um e dez anos (média de 6,1 anos) mostrou que houve estabilização da doença valvar aórtica e mitral em 65% dos pacientes, da opacidade da córnea em 78% e da acuidade visual em 33%; além disso, em 42% dos pacientes houve melhora da acuidade visual.2121. Laraway S, Mercer J, Jameson E, Ashworth J, Hensman P, Jones SA. Outcomes of Long-Term Treatment with Laronidase in Patients with Mucopolysaccharidosis Type I. J Pediatr. 2016;178:219-26.

Nosso grupo já descreveu o impacto negativo que a TRE tem na rotina da família, a maioria dos responsáveis queixando-se do tempo dispendido entre o trajeto de casa e o centro de infusão, bem como do tempo que dura a infusão.2222. Vertemati T, Micheletti C, Canossa S, Okubo R, Martins A. Impact of ERT on familiar life. Abstracts of the Annual Symposium of the Society for the Study of Inborn Errors of Metabolism. J Inherit Metab Dis. 2008;31:101. Em outro estudo, pacientes com Doença de Gaucher que também têm de fazer TRE manifestaram seu desejo de diminuir a frequência das infusões.2323. Kishnani PS, DiRocco M, Kaplan P, Mehta A, Pastores GM, Smith SE, et al. A randomized trial comparing the eficacy and safety of imiglucerase (Cerezyme) infusions every 4 weeks versus every 2 weeks in the maintenance therapy of adult patients with Gaucher disease type 1. Mol Genet Metab. 2009;96:164-70. Portanto, na tentativa de minimizar o inconveniente causado pelas infusões na rotina da família, nós mudamos o regime de dose da TRE para os pacientes com MPS I.

Não há correlação direta entre a manifestação clínica ou resposta ao tratamento e os níveis de GAG urinário, mas eles foram utilizados nos ensaios clínicos de fases I, II e III como biomarcadores,1414. Kakkis ED, Muenzer J, Tiller GE, Waber L, Belmont J, Passage M, et al. Enzyme-replacement therapy in mucopolysaccharidosis I. N Engl J Med. 2001;344:182-8.,1515. Wraith JE, Clarke LA, Beck M, Kolodny EH, Pastores GM, Muenzer J, et al. Enzyme replacement therapy for mucopolysaccharidosis I: a randomized, double blinded, placebo controlled, multinational study of recombinant human alpha-L-iduronidase (laronidase). J Pediatr. 2004;144:581-8.,1717. Wraith JE, Beck M, Lane R, van der Ploeg A, Shapiro E, Xue Y, et al. Enzyme replacement therapy in patients who have mucopolysaccharidosis I and are younger than 5 years: results of a multinational study of recombinant human alpha-L-iduronidase (laronidase). Pediatrics. 2007;120:e37-46. e demonstrou-se que interrupções na TRE levam ao rápido aumento de seus níveis, voltando a valores de pré-tratamento.2424. Anbu AT, Mercer J, Wraith JE. Effect of discontinuing of laronidase in a patient with mucopolysaccharidosis type I. J Inherit Metab Dis. 2006;29:230-1.,2525. Wegrzyn G, Tylki-Szymanska A, Liberek A, Piotrowska E, Jakóbkiewicz-Banecka J, Marucha J, et al. Rapid deterioration of a patient with mucopolysaccharidosis type I during interruption of enzyme replacement therapy. Am J Med Genet A. 2007;143A:1925-7. Durante o regime quinzenal, não houve aumento dos níveis de GAG urinário, nem comprometimento da melhora dos parâmetros clínicos reversíveis que os pacientes já tinham adquirido durante o regime semanal. Os responsáveis pelos pacientes relataram sua satisfação em comparecer menos vezes ao centro.

Um estudo multinacional retrospectivo com 20 pacientes com MPS I que comparou as manifestações clínicas dos pacientes antes da TRE e durante o tratamento com laronidase nos regimes padrão e quinzenal2626. Horovitz DD, Acosta AX, Giugliani R, Hlavatá A, Hlavatá K, Tchan MC, et al. Alternative laronidase dose regimen for patients with mucopolysaccharidosis I: a multinational, retrospective, chart review case series. Orphanet J Rare Dis. 2016;11:51. mostrou que a maioria dos pacientes apresentava hepatoesplenomegalia, hérnia umbilical e/ou inguinal, alterações cardíacas e musculoesqueléticas ao início da TRE e se manteve estável ou melhorou após o início do tratamento no regime padrão. Eles não pioraram com a mudança para o regime quinzenal. Os resultados da análise de GAG urinário foram mostrados em múltiplos do limite superior da normalidade. Antes do início da TRE, 19/20 pacientes tinham dados de GAG urinário disponíveis, todos acima do limite superior da normalidade, com mediana de 8,5 vezes acima do limite superior da normalidade (variando entre 1,7 e 148 vezes). Após o tratamento no regime padrão, 13/20 pacientes apresentavam os valores de GAG urinário conforme a faixa normal para a idade. Entre os 7/20 que ainda mantinham GAG urinário elevados, a mediana foi de 2,1 vezes o limite superior da normalidade (variando entre 1,1 e 2,9 vezes). Durante o regime quinzenal, 15/20 pacientes apresentaram os níveis de GAG urinário de acordo com a faixa da normalidade. Entre os 5/20 que mantinham os níveis de GAG urinário elevados, a mediana foi de 1,8 vez o limite superior da normalidade (variando entre 1,2 e 3,8 vezes).2626. Horovitz DD, Acosta AX, Giugliani R, Hlavatá A, Hlavatá K, Tchan MC, et al. Alternative laronidase dose regimen for patients with mucopolysaccharidosis I: a multinational, retrospective, chart review case series. Orphanet J Rare Dis. 2016;11:51.

A presente pesquisa, assim como outras com doenças raras, apresentou a limitação do pequeno número de participantes. Outra limitação foi a mesma de todos os outros estudos retrospectivos de dados de prontuário: a falta de controle do pesquisador sobre a coleta de dados originais, que ocasiona, com frequência, a falta de algumas informações. Nossa intenção não foi descrever o regime de tratamento mais eficaz, e sim avaliar se o regime quinzenal não foi inferior ao regime semanal, usando o único biomarcador disponível na época, o GAG urinário, pois até então não havia nenhum estudo que mostrasse o efeito clínico de um intervalo maior entre as infusões, mesmo que a dose padrão fosse dobrada.

Em conclusão, o regime quinzenal de laronidase 1,2 mg/kg a cada duas semanas não teve efeito negativo nos níveis de GAG urinário e manteve os parâmetros clínicos estáveis de pacientes que estavam fazendo TRE no regime semanal havia mais de um ano. Além disso, em casos de infecção aguda que contraindicam a infusão de laronidase na fase inicial da infecção, o paciente acabava perdendo algumas infusões, porque não tínhamos espaço na mesma semana para repor aquela dose. No regime quinzenal, existe ganho adicional, pois é possível reagendar a infusão para a semana seguinte, o que não é possível no regime padrão, viabilizando adesão ao tratamento de 100%.

AGRADECIMENTOS

Aos pacientes e suas famílias; à enfermeira Tatiana Mourão, as infusões do medicamento; aos médicos Cecilia Micheletti, Flávia Balbo Piazzon, Jordão Correa Neto e Tânia Vertemati, a assistência aos pacientes; a Patricia Santos Braghiroli, Renata O. Aquino, Carolina M. Vicente, Daiana A. Silva, Vivien J. Coulson-Thomas, aanálise dos glicosaminoglicanos na urina; ao Dr. Emil Kakkis e Lisa Unterhill, a revisão crítica do manuscrito; e ao Dr. José Agusto Carazedo Taddei, a assistência na análise estatística.

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Financiamento

  • O estudo não recebeu financiamento.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Maio 2019
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2019

Histórico

  • Recebido
    29 Abr 2018
  • Aceito
    30 Nov 2018
  • Publicado
    07 Maio 2019
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