ENSINO NA RESIDÊNCIA MÉDICA EM TEMPOS DE COVID-19

O conteúdo do Programa de Residência Médica em Neonatologia do Instituto da Criança do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo sofreu profunda transformação de cenário ante a atual pandemia pelo SARS-CoV-2.

Antes da pandemia, o referido conteúdo era ministrado em dois encontros mensais, um para residentes de 1º ano (20 médicos residentes) e um para os de 2º ano (20 médicos residentes), perfazendo dez encontros anuais.

A dinâmica dessas reuniões contemplava a apresentação e a discussão de um caso clínico do Centro Neonatal, do Centro de Terapia Intensiva 2 ou do Hospital Universitário por um médico residente e a abordagem teórica sobre o caso, com definições, prevalência, fisiopatologia, tratamento e prevenção, por outro médico residente.

Os principais temas abordados pelos três centros neonatais eram:

• Centro Neonatal: o recém-nascido pré-termo extremo, persistência do canal arterial, malformações graves, insuficiência cardíaca, sepse precoce e encefalopatia hipóxico-isquêmica;

• Centro de Terapia Intensiva Neonatal 2: hipertensão pulmonar persistente, hérnia diafragmática congênita, sepse tardia, infecções pulmonares, gastrosquise, distúrbios hidroeletrolíticos e nutrição no recém-nascido gravemente doente;

• Hospital Universitário: hemorragias intracranianas, insuficiência renal, síndrome de aspiração meconial e enterocolite necrosante.

A condução desses encontros era feita pelos dois médicos preceptores e por dois a três médicos da equipe de neonatologia, sendo estes últimos responsáveis por reforçar as principais considerações relevantes sobre o tema em questão.

A presença dos médicos residentes nesses encontros situava-se entre 60 e 70%. A justificativa para essa presença não ser maior era: folga pós-plantão, emergência médica em alguns dos setores e férias.

Com a instalação da pandemia de coronavírus (COVID-19), essas reuniões foram suspensas na metade do mês de maio deste ano, para segurança de todos, assim como outras atividades próprias dos residentes. Durante um mês, os residentes tiveram pouquíssima ou nenhuma atividade teórica.

Ante tal situação de apatia, em reuniões a distância, começaram a surgir propostas alternativas, entre elas, o ensino remoto.

Ensino remoto é uma opção quando o ensino presencial não é possível, como na pandemia pela COVID-19. Ele é uma adaptação do ensino a distância, porém sem ferramentas rígidas, ou seja, sem sistematizações do conteúdo didático, da forma da apresentação e sem formação prévia dos tutores. Apesar de ser uma adaptação temporária ante uma situação de crise, é possível implantá-lo de maneira rápida, efetiva e, assim, satisfazer as aspirações dos nossos residentes. A adoção do ensino remoto também implica revisão dos objetivos educacionais, dimensionando o tempo, pois se sabe que o tempo para assimilar o conteúdo em ambiente virtual é maior do que em presencial.¹

Por iniciativa dos dois médicos preceptores da neonatologia e de dois médicos também da equipe da neonatologia, realizou-se, na segunda quinzena de abril de 2020, uma primeira reunião virtual pela plataforma Google Meet, com todos os residentes de 1º e 2º anos, abordando um tema sugerido por um dos preceptores.

Apesar de a referida plataforma ser intuitiva e facilmente utilizável, foi repassado aos médicos da equipe e aos residentes que não tinham familiaridade com a referida plataforma o link de um tutorial do Google Meet elaborado pelo Centro de Desenvolvimento de Educação Médica da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.^1,2 Os principais tópicos abordados são instruções de como entrar na plataforma, participar da reunião, convidar pessoas e iniciar (ensino síncrono) e gravar (ensino assíncrono) a apresentação no Google Drive, para ser disponibilizada posteriormente. O tutorial lembra também que, ao iniciar a apresentação, o apresentador só vê a sua tela e não quem está assistindo. Além disso, orienta também como encerrar a apresentação e iniciar o chat, ao vivo, com os participantes da reunião.

Devemos estar muito atentos ao chat, pois educar depende de interação baseada em diálogo e, no ambiente virtual, este é mais difícil pela falta de contato visual. Assim, no ensino remoto, o chat é um importante canal de diálogo para aprimorar o aprendizado.

O tutorial também salienta como obter um bom vídeo: escolher um lugar sem ruídos e com iluminação adequada, ressaltando que luz natural é a ideal (na impossibilidade, a fonte deve estar posicionada ao lado da câmera); fundos claros necessitam de mais contraste e, escuros, de mais luminosidade; estar atento à velocidade de fala; sempre manter contato visual com a câmera e, por fim, ser autêntico.

A adesão ao projeto piloto foi excelente, indo além das nossas expectativas. Acreditamos que essa adesão ocorreu pelo momento peculiar que estávamos atravessando, ante uma doença desconhecida, grave, levando os residentes a um estado de depressão e apatia.

Ante esses fatos, criou-se, então, um programa de conteúdo teórico, em forma de lives, pela mesma plataforma, dividido em várias atividades, a saber: discussão de casos clínicos, com apresentação de conteúdo teórico (semelhante ao que já fazíamos antes da pandemia), discussão de artigos com ênfase na metodologia e aulas expositivas. Essas atividades são de responsabilidade de médicos residentes selecionados e de médicos da equipe da neonatologia que aderiram voluntariamente ao programa, em conjunto com os preceptores. Ressalta-se que as aulas expositivas são ministradas pela equipe e, caso sejam ministradas por um residente, alguém da equipe é responsável pela validação do conteúdo.

Entre os temas abordados em forma de ensino remoto, destacam-se os relacionados à nutrição perinatal, a saber: “maturação da função digestória, desenvolvimento gastrintestinal e digestão e absorção de macronutrientes”, “neuronutrientes”, “metabolismo da vitamina D, cálcio e fósforo no período neonatal”, “componentes bioativos do leite humano”, “aditivos homólogos e heterólogos do leite humano”, “avanços tecnológicos nas fórmulas infantis”, “bases da nutrição enteral no recém-nascido pré-termo”, “uso de prebióticos em prematuros”, “dificuldades no diagnóstico da doença do refluxo gastresofágico no período neonatal”, “terapia nutricional no recém-nascido com cardiopatia congênita”, “indicações e benefícios das fórmulas hipercalóricas”, “abordagem do quilotórax”, “manejo nutricional nas malformações gastrintestinais”, “enterocolite necrosante e nutrição”, “nutrição e displasia broncopulmonar”, “desafios nutricionais na disfunção aerodigestiva” e “follow-up nutricional do recém-nascido de muito baixo peso”. Ressalta-se que nenhum desses temas era abordado nos encontros presenciais com os residentes de neonatologia do Instituto da Criança do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.

A aprendizagem online pode ser uma maneira conveniente para se manter uma educação adequada em tempos de distanciamento social, mas exige mais esforços dos instrutores. Aprende-se pela experiência que o ensino online leva mais tempo de preparação, talvez mais do que se imagine.

Com um ensino online, alcançam-se mais indivíduos do que os tradicionais métodos presenciais. A pandemia de COVID-19 é tempo para inovar, e somos capazes de descobrir novas maneiras de ensinar online. O melhor de tudo: embora possa ser muito trabalhoso, quase tudo o que é feito é reutilizável, resultando em uma infraestrutura muito boa para ser replicada.²

As lives do programa teórico dos residentes de neonatologia são estruturadas conforme as orientações da Harvard Business Publishing, publicadas em 2017,³ para preparar, ensinar e manter a atenção online, a saber: conhecer o sistema de gestão de aprendizagem online escolhido antes de iniciar sua apresentação; fazer o sistema de gestão de aprendizagem parecer profissional e convidativo; lembrar que as ferramentas eletrônicas deixam traços e usar isso a seu favor; preparar o conteúdo com antecedência e revisá-lo; enfatizar a importância de perguntas e questionamentos sobre o tema em questão e parabenizar o engajamento dos alunos e sua participação.

É interessante notar que, antes da pandemia, os residentes tinham um encontro mensal e, após a implementação do programa de lives, essas atividades passaram a ter uma frequência de duas a três vezes por semana, ou seja, em um mês, temos o mesmo número de encontros que tínhamos em um ano antes da pandemia.

Também é interessante relatar que a frequência dos residentes a esses encontros aumentou de maneira expressiva, pois eles podem acessar remotamente, até mesmo do aparelho celular. Além disso, a plataforma Google Meet permite a gravação da atividade, para poder ser assistida posteriormente, aumentando a presença dos residentes às aulas, às discussões de casos etc. É lógico que assistir à gravação implica perdas, pois o residente não poderá tirar suas dúvidas ao vivo pelo chat do Google Meet.

Assim, os nossos residentes ante a pandemia de COVID-19 não tiveram perda do conteúdo teórico do Programa de Residência Médica em Neonatologia para sua formação, e sim um ganho substancial.

Outro fato interessante é que, ante a reputação que o programa de lives alcançou, outros médicos da equipe se voluntariaram para realizar atividades com os residentes. Ressalta-se também a solicitação de assistir às lives por ex-residentes do nosso programa que souberam das atividades didáticas por meio de vários grupos.

Concluindo, enfatizamos que o ensino remoto é um programa muito barato, pois o uso da plataforma é gratuito, factível a distância, podendo ser realizado por todas as especialidades médicas, bastando ter disposição e disponibilidade para implementá-lo. Além disso, acreditamos que, após a pandemia de COVID-19, esse aprendizado será também utilizado em um modelo híbrido, com encontros presenciais e online. Pretendemos realizar um questionário com todos os residentes para avaliarmos essa ferramenta de ensino. Com base no resultado do questionário, poderemos adotar esse modelo para o ensino teórico para os residentes.

REFERENCES

• ¹
  Centro de Desenvolvimento de Educação Médica (CEDEM) - FMUSP [homepage on the Internet]. Do it yourself: transmissão ao vivo e vídeo-aula no Google Meet [cited 2020 Aug. 21]. Available from: Available from: https://www.prg.usp.br/wp-content/uploads/TUTORIAL-GOOGLE-MEET.pdf
  » https://www.prg.usp.br/wp-content/uploads/TUTORIAL-GOOGLE-MEET.pdf
• ²
  Centro de Desenvolvimento de Educação Médica (CEDEM) - FMUSP. Como aprimorar o ensino remoto [homepage on the Internet]. Junho, 2020 [cited 2020 Aug. 20]. Available from: Available from: https://www.fm.usp.br/cedem/apoio-ao-ensino-remotp/dicas-para-o-ensino-a-distancia
  » https://www.fm.usp.br/cedem/apoio-ao-ensino-remotp/dicas-para-o-ensino-a-distancia
• ³
  Schiano B, Andersen E [homepage on the Internet]. Teaching with cases online. Harv Bus Rev. 2017;25:1-31 [cited 2020 Aug. 20]. Available from: Available from: https://s3.amazonaws.com/he-product-images/docs/Article_Teaching_With_Cases_Online.pdf
  » https://s3.amazonaws.com/he-product-images/docs/Article_Teaching_With_Cases_Online.pdf

Financiamento

• O estudo não recebeu financiamento.

Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  27 Nov 2020
• Data do Fascículo
  2020

Histórico

• Recebido
  25 Ago 2020