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INTOXICAÇÕES EXÓGENAS ACIDENTAIS EM CRIANÇAS E ADOLESCENTES ATENDIDOS EM UM SERVIÇO DE TOXICOLOGIA DE REFERÊNCIA DE UM HOSPITAL DE EMERGÊNCIA BRASILEIRO

RESUMO

Objetivo:

Descrever o perfil dos atendimentos de crianças e adolescentes vítimas de intoxicações exógenas acidentais e os fatores associados às internações hospitalares.

Métodos:

Foi realizado um estudo transversal com base na revisão dos registros de todas as intoxicações acidentais de indivíduos com até 19 anos de idade, atendidos no setor de toxicologia de um hospital público de referência em 2013, excluídos os acidentes com animais peçonhentos e insetos. A intencionalidade da intoxicação foi baseada nos relatos. Foram calculadas percentagens e frequências para as variáveis qualitativas, e medidas de tendência central e de dispersão das variáveis quantitativas contínuas. Foi realizada análise múltipla, utilizando regressão logística binária para identificar as variáveis associadas à internação hospitalar das vítimas atendidas.

Resultados:

Em 2013, foram identificados 353 atendimentos em crianças e adolescentes. A faixa etária mais prevalente foi a de zero a quatro anos (72,5%), e predominaram indivíduos do sexo masculino (55%). A maioria dos atendimentos foi de pacientes residentes na região metropolitana (83%). Noventa por cento das intoxicações ocorreram nos domicílios; 82,7% se deram pela via oral, especialmente por medicamentos (36,5%) e produtos de limpeza (29,4% de todas as intoxicações). Resultaram em internações 12,2% dos casos, ocorrendo um único óbito. As variáveis associadas à internação foram: residir fora do município sede (razão de chances [OR]=5,20; intervalo de confiança de 95% [IC95%] 2,37-11,44) e o envolvimento de mais do que uma substância na intoxicação (OR=4,29; IC95% 1,33-13,82).

Conclusões:

O ambiente doméstico é o principal local em que ocorrem as intoxicações em crianças e adolescentes, especialmente por ingestão de medicamentos e produtos de limpeza e abaixo de quatro anos de idade. Esses achados justificam a priorização de ações preventivas direcionadas para esse perfil de acidentes.

Palavras-chave:
Intoxicação; Criança; Adolescente; Acidente; Fatores de risco

ABSTRACT

Objective:

To describe the profile of children and adolescents admitted for exogenous unintentional poisoning in the emergency room and analyze factors associated with subsequent in-hospital admissions.

Methods:

This is a cross-sectional study based on hospital records of all subjects up to 19 years-old admitted in 2013 at a specialized toxicology service on a major public emergency hospital due to unintentional intoxication (as reported). Accidents with poisonous animals and insects were excluded. Percentages and frequencies were calculated for the qualitative variables, and measures of central tendency and dispersion for the continuous quantitative variables. Multivariate analysis was performed using binary logistic regression to identify variables associated with subsequent in-hospital admissions.

Results:

In 2013, 353 cases were reported. Poisonings were more frequent in children 0-4 years-old (72.5%) and in boys (55%). The vast majority was of dwellers of the Metropolitan Region of Belo Horizonte (83%), and 90% of the accidental poisonings occurred at home. 82.7% of the poisonings occurred by oral ingestion, especially of medicinal (36.5%) and cleaning products (29.4% of all poisonings). Only 12.2% of the cases resulted in hospitalization, and only one resulted in death. Residing outside Belo Horizonte (OR=5.20 [95%CI 2.37-11.44]) and poisoning by two or more products (OR=4.29 [95%CI 1.33-13.82]) were considered risk factors for hospitalization.

Conclusions:

Accidental poisonings occurred most frequently by ingestion of household medications and cleaning products, especially among children under 4 years-old. Preventive strategies should be primarily directed for this prevalent profile.

Keywords:
Poisoning; Children; Adolescents; Accident; Risk factors

INTRODUÇÃO

As intoxicações acidentais são um problema de saúde global para crianças e adolescentes, com um número aproximado de 45 mil mortes anuais e uma incidência de 1,8 em 100 mil habitantes.11. World Health Organization. World Report on Child Injury Prevention. Geneva: WHO; 2008. Entre as idades de 15 e 19 anos, representavam a décima terceira causa de mortes no mundo em 2014.11. World Health Organization. World Report on Child Injury Prevention. Geneva: WHO; 2008. Além disso, resultam em um número substancial de admissões hospitalares.22. Wynn PM, Zou K, Young B, Majsak-Newman G, Hawkins A, Kay B, et al. Prevention of childhood poisoning in the home: overview of systematic reviews and a systematic review of primary studies. Int J Inj Contr Saf Promot. 2016;23:3-28. https://doi.org/10.1080/17457300.2015.1032978
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Em 2013, metade das 28.419 intoxicações registradas no Sistema Nacional de Informações Tóxico-Farmacológicas da Fiocruz (Sinitox33. Brasil. Ministério da Saúde. Fundação Oswaldo Cruz - Fiocruz. Sistema Nacional de Informações Tóxico-Farmacológicas. Casos Registrados de Intoxicação Humana por Agente Tóxico e Faixa Etária - Brasil; 2007 [cited 2016 Jul 7]. Available from: Available from: https://sinitox.icict.fiocruz.br/dados-nacionais
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) ocorreu em menores de 20 anos de idade, sendo 29% em crianças de um a quatro anos - a faixa etária onde foi mais incidente. A morte resultante da intoxicação acidental em crianças e adolescentes não é tão frequente quanto nas intoxicações intencionais. Em 2012, dos 392 óbitos registrados, apenas 40 foram acidentais (não intencionais), sendo apenas 12 na faixa dos zero aos 19 anos. Em uma unidade de pronto atendimento não especializada no interior de Minas Gerais, as intoxicações em menores de 20 anos representaram 27,7% dos casos.44. Almeida TC, Couto CC, Chequer FM. Perfil das intoxicações agudas ocorridas em uma cidade do Centro-Oeste de Minas Gerais. Rev Eletronica Farm. 2016;13:151-64. https://doi.org/10.5216/ref.v13i3.39923
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Crianças, em especial na fase pré-escolar, permanecem durante proporção significativa de seu tempo em casa, onde a exposição ao risco se associa ao acesso a substâncias venenosas e medicamentos.55. Ramos CL, Targa MB, Stein AT. Caseload of poisoning among children treated by the Rio Grande do Sul State Toxicology Information Center (CIT/RS), Brazil. Cad Saude Publica. 2005;21:1134-41. https://doi.org//S0102-311X2005000400015
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O desconhecimento dos cuidadores sobre a toxicidade dos agentes, a desatenção aos riscos e a falta de supervisão contribuem para a ocorrência de intoxicações acidentais na infância.66. Schmertmann M, Williamson A, Black D, Wilson L. Risk factors for unintentional poisoning in children aged 1-3 years in NSW Australia: a case-control study. BMC Pediatr. 2013;13:88. https://doi.org/10.1186/1471-2431-13-88
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,77. Soori H. Developmental risk factors for unintentional childhood poisoning. Saudi Med J. 2001;22:227-30.,88. Ramos CL , Barros HM, Stein AT , Costa JS. Risk factors contributing to childhood poisoning. J Pediatr (Rio J). 2010;86:435-40. https://doi.org/10.2223/JPED.2033
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Além disso, o armazenamento inadequado dos produtos domissanitários e dos medicamentos aumenta a exposição das crianças aos riscos no lar.66. Schmertmann M, Williamson A, Black D, Wilson L. Risk factors for unintentional poisoning in children aged 1-3 years in NSW Australia: a case-control study. BMC Pediatr. 2013;13:88. https://doi.org/10.1186/1471-2431-13-88
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,77. Soori H. Developmental risk factors for unintentional childhood poisoning. Saudi Med J. 2001;22:227-30.,88. Ramos CL , Barros HM, Stein AT , Costa JS. Risk factors contributing to childhood poisoning. J Pediatr (Rio J). 2010;86:435-40. https://doi.org/10.2223/JPED.2033
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As relações entre fatores determinantes e desfechos, no caso das intoxicações acidentais na infância e adolescência, se modificam de acordo com o local estudado. Por exemplo, o tipo de agente tóxico e a facilidade de acesso a serviços de saúde estão intimamente relacionados à localidade de residência.11. World Health Organization. World Report on Child Injury Prevention. Geneva: WHO; 2008. Por isso é necessário examinar a epidemiologia das intoxicações acidentais nos diferentes cenários e regiões, aumentando assim a especificidade das estratégias preventivas decorrentes.

Estudos brasileiros recentes que descrevam especificamente a epidemiologia das intoxicações agudas acidentais em crianças e adolescentes são escassos. Dois estudos, no Rio de Janeiro99. Werneck GL, Hasselmann MH. Profile of hospital admissions due to acute poisoning among children under 6 years of age in the metropolitan region of Rio de Janeiro, Brazil. Rev Assoc Med Bras(1992) . 2009;55:302-07. e no Rio Grande do Sul,55. Ramos CL, Targa MB, Stein AT. Caseload of poisoning among children treated by the Rio Grande do Sul State Toxicology Information Center (CIT/RS), Brazil. Cad Saude Publica. 2005;21:1134-41. https://doi.org//S0102-311X2005000400015
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relataram o perfil das intoxicações em crianças abaixo de 6 anos, ambos com dados há mais de 15 anos. Outros dois estudos conduzidos no Brasil abordaram acidentes por intoxicações, sendo que o primeiro deles, conduzido em Maringá, Paraná,1010. Tavares EO, Buriola AA, Santos JA, Ballani TS, Oliveira ML. Factors associated with poisoning in children. Esc Anna Nery. 2013;17:31-7. http://dx.doi.org/10.1590/S1414-81452013000100005
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,1111. Domingos SM, Borghesan NB, Merino MF, Higarashi IH. Poison-related hospitalizations of children aged 0-14 at a teaching hospital in Southern Brazil, 2006-2011. Epidemiol Serv Saude. 2016;25:343-50. http://dx.doi.org/10.5123/s1679-49742016000200013
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abordou o perfil das intoxicações acidentais em indivíduos até 14 anos; e outro, em Cuiabá, Mato Grosso, incluiu crianças e jovens adultos.1212. Brito JG, Martins CB. Accidental intoxication of the infant-juvenile population in households: profiles of emergency care. Rev Esc Enferm USP. 2015;49:373-79. http://dx.doi.org/10.1590/S0080-623420150000300003
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Em todos os estudos nacionais há um predomínio de ocorrências no próprio domicílio, em indivíduos do sexo masculino, abaixo de quatro anos, envolvendo especialmente medicamentos e produtos domissanitários.

O objetivo do estudo foi investigar o perfil das crianças e adolescentes vítimas de intoxicações exógenas acidentais atendidas em uma unidade de referência para intoxicações em Minas Gerais, bem como os fatores associados à internação hospitalar.

MÉTODO

Este é um estudo transversal que incluiu todos os atendimentos a indivíduos de zero a 19 anos realizados pelo Serviço de Toxicologia do Hospital João XXIII (Belo Horizonte, Minas Gerais), um hospital público estadual, no período de janeiro a dezembro de 2013, com o diagnóstico de intoxicação exógena acidental. Esse serviço é uma referência estadual pública para intoxicações. Indivíduos com intoxicações exógenas intencionais e os acidentes por animais peçonhentos e não peçonhentos foram excluídos do estudo. A intencionalidade da intoxicação foi baseada nos relatos dos pacientes ou familiares, conforme registrada pelo profissional. A fonte de dados consistiu nas fichas de atendimento do Serviço de Toxicologia. Essas fichas são produzidas a cada atendimento realizado pelo serviço, preenchidas rotineiramente pela equipe médica, ao longo da permanência dos pacientes no hospital. Em casos específicos em que as informações das fichas de atendimento geravam ambiguidade ou insuficiência, especialmente em relação ao tempo de permanência, os prontuários eletrônicos dos pacientes foram acessados para verificação.

As seguintes variáveis foram utilizadas: idade (em anos); sexo; data do acidente; data do atendimento; local de residência (urbana ou rural); município de residência da vítima; via de exposição (oral, cutânea, respiratória, outra); princípio(s) ativo(s) da substância; nome(s) comercial(is) do(s) produto(s); internação (definida como permanência hospitalar maior ou igual a 24 horas - sim/não); data da alta; tempo de permanência; evolução final do caso (alta, óbito, outra).

Nas análises descritivas dos atendimentos realizados, foram calculadas percentagens e frequências para as variáveis qualitativas, e medidas de tendência central e de dispersão das variáveis quantitativas contínuas. Para a comparação de médias e percentagens, foram utilizados os testes t de Student e do qui-quadrado de Pearson (ou teste exato de Fisher), com nível de significância de 5%. Para identificar as variáveis associadas à internação hospitalar das vítimas atendidas, foi realizada análise múltipla, utilizando regressão logística binária, incluindo no modelo as variáveis que atingiram um valor de p<0,20 na análise univariada utilizando a estratégia backward. Para essas análises, a variável resposta foi internação hospitalar (dicotômica) e as variáveis explicativas testadas foram sexo (masculino ou feminino), faixa etária (até três anos; maior que três anos), município de residência (Belo Horizonte ou outros), local de exposição (domicílio ou outros), número de substâncias (uma; duas ou mais), tipo de substância (medicamentos ou outros) e via de exposição (oral ou outros).

Os dados foram colhidos sem que houvesse armazenamento de informações que permitissem a identificação individual de quaisquer participantes. O projeto de pesquisa foi aprovado pelos Comitês de Ética em Pesquisa da Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (FHEMIG), Parecer nº 491.927, e da Universidade Federal de Minas gerais (UFMG), Parecer nº 53476915.5.0000.5149.

RESULTADOS

No ano de 2013, o Serviço de Toxicologia realizou 5.013 atendimentos totais, sendo 1.174 na faixa etária até 19 anos. Foram identificados 353 casos de intoxicação exógena acidental em crianças e adolescentes, sendo excluídos os acidentes com animais peçonhentos e insetos (n=620; 52,7%), os eventos identificados como tentativas de autoextermínio (n=33; 2,8%) e outros diagnósticos (n=168; 14,3%).

Na Tabela 1 são apresentadas as características desses atendimentos. A maioria dos atendimentos foi de residentes em Belo Horizonte (70%), sendo os restantes, moradores de outros municípios da região metropolitana e de outras regiões do estado. Ainda quanto à localidade de residência das vítimas, foi encontrada uma elevada proporção de ocorrências em áreas urbanas, com 94,9% dos casos. A maioria das intoxicações aconteceu no domicílio da vítima (90,1%).

Tabela 1
Características dos atendimentos para intoxicações acidentais, de zero a 19 anos, no Serviço de Toxicologia do Hospital João XXIII, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil, em 2013 (n=353).

Houve um ligeiro predomínio de vítimas do sexo masculino (54,9%). A idade mais prevalente entre as vítimas de intoxicações exógenas acidentais é um ano, com 26,1% dos casos; e a idade com menor representatividade foi a de menores de um ano, com 4,5% dos casos. Os atendimentos a crianças de zero a quatro anos representaram 72,6% dos casos.

Analisando a distribuição da idade segundo o sexo, houve predomínio de indivíduos do sexo masculino na idade até 2 anos e equilíbrio entre os sexos na faixa etária de três a 12 anos. Entretanto, entre adolescentes houve um nítido predomínio do sexo feminino (60,9%), na faixa etária de 13 a 19 anos.

Quanto às vias de exposição, a mais frequente foi a via oral (82,7%) e a menos frequente foi a via cutânea (5,1%). Na maioria (80,5%) das intoxicações, apenas um produto foi identificado como causador. A intoxicação por mais do que dois produtos simultaneamente foi uma ocorrência incomum (2,8%).

Entre as substâncias que mais frequentemente estão envolvidas nas intoxicações exógenas de crianças e adolescentes, os medicamentos foram os mais importantes, seguidos de produtos químicos/limpeza e pesticidas (Tabela 2). Entre os pesticidas estão incluídos também raticidas e carrapaticidas; e em “outros” estão incluídos: alimentos, bebidas alcoólicas, água-viva, cal, cimento, nicotina e tetraidrocanabinol.

Tabela 2
Distribuição das intoxicações exógenas acidentais na população de zero a 19 anos, segundo a categoria do produto e a idade da vítima, atendida no Hospital João XXIII de Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil, 2013 (n=353).

Quanto à classificação dos medicamentos, foram identificados como agentes mais frequentes os ansiolíticos (predominantemente benzodiazepínicos), seguidos dos analgésicos (8,5%) - entre os quais se destaca o paracetamol (5,1%) - e dos antiepilépticos. Na categoria “outros” foram agrupados os seguintes medicamentos: antiasmáticos, hipoglicemiantes, anticoncepcionais, antieméticos, antiespásticos, antiparasitários, antissépticos de vias urinárias, antiulcerosos, broncodilatadores, cardiotônicos, descongestionantes nasais, mercúrio inorgânico, pomadas, restauradores de função erétil, suplementos hormonais, finasterida e vacinas.

Na categoria de produtos químicos/limpeza, houve maior porcentagem de intoxicações acidentais por hipoclorito de sódio (cloro e água sanitária) e hidróxido de sódio (soda cáustica). No grupo dos hidrocarbonatos, encontram-se aguarrás e querosene, que possuem esse componente em sua composição.

Na Tabela 3 é possível ver a distribuição dos principais produtos envolvidos em intoxicações acidentais, de acordo com a faixa etária das vítimas. Os medicamentos foram o grupo com maior proporção em todas as idades, exceto nas crianças com um ano, nas quais os produtos químicos foram mais prevalentes. Nessa faixa etária também foram importantes os pesticidas e produtos de limpeza.

Tabela 3
Categorias e classes de produtos causadores das intoxicações exógenas acidentais na população de zero a 19 anos, atendida no Hospital João XXIII de Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil, 2013 (n=353).

Quarenta e três pacientes (12%) necessitaram ser internados (permanência hospitalar maior do que 24 horas). O tempo de internação variou de um a cinco dias, com média de 1,6 e mediana de 1,0 dia.

Na análise univariada, a residência em outros municípios, a quantidade de produtos igual ou maior do que dois e a via oral de exposição estiveram associadas à internação hospitalar (Tabela 4). No modelo múltiplo final, as vítimas residentes em outros municípios - razão de chances (OR) 5,20 e intervalo de confiança de 95% (IC95%) 2,37-11,44 - e aquelas com intoxicação causada por duas ou mais substâncias (OR=4,29; IC95% 1,33-13,82) apresentaram maior chance de internação (não foi possível incluir no modelo a variável via de exposição, visto que todas as internações ocorreram em vítimas cuja exposição se deu por via oral).

Tabela 4
Análise univariada dos fatores associados com a internação nos casos de intoxicações acidentais atendidos no Hospital João XXIII, Belo Horizonte, Minas Gerais, 2013 (n=353).

Do total de vítimas com intoxicação exógena acidental atendidas, foi identificado apenas um óbito, o de uma criança de cinco anos, decorrente de ingestão de propranolol, um anti-hipertensivo. Ocorreram três (0,9%) evasões (saídas do paciente do ambiente assistencial hospitalar sem que a assistência tenha sido concluída e sem consentimento médico) e uma única vítima foi transferida para outro hospital.

DISCUSSÃO

Os resultados do presente estudo mostram um predomínio dos atendimentos por intoxicações acidentais em crianças do sexo masculino, com idades entre zero e quatro anos, com um pico nas crianças de um a dois anos. Isso corrobora os resultados de diversos estudos realizados em diferentes países e cenários 88. Ramos CL , Barros HM, Stein AT , Costa JS. Risk factors contributing to childhood poisoning. J Pediatr (Rio J). 2010;86:435-40. https://doi.org/10.2223/JPED.2033
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,99. Werneck GL, Hasselmann MH. Profile of hospital admissions due to acute poisoning among children under 6 years of age in the metropolitan region of Rio de Janeiro, Brazil. Rev Assoc Med Bras(1992) . 2009;55:302-07.,1010. Tavares EO, Buriola AA, Santos JA, Ballani TS, Oliveira ML. Factors associated with poisoning in children. Esc Anna Nery. 2013;17:31-7. http://dx.doi.org/10.1590/S1414-81452013000100005
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,1111. Domingos SM, Borghesan NB, Merino MF, Higarashi IH. Poison-related hospitalizations of children aged 0-14 at a teaching hospital in Southern Brazil, 2006-2011. Epidemiol Serv Saude. 2016;25:343-50. http://dx.doi.org/10.5123/s1679-49742016000200013
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,1212. Brito JG, Martins CB. Accidental intoxication of the infant-juvenile population in households: profiles of emergency care. Rev Esc Enferm USP. 2015;49:373-79. http://dx.doi.org/10.1590/S0080-623420150000300003
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,1313. Manouchehrifar M, Derakhshandeh N, Shojaee M, Sabzghabaei A, Farnaghi F. An epidemiologic study of pediatric poisoning; a six-month cross-sectional study. Emerg (Tehran). 2016;4:21-4.,1414. Kohli U, Kuttiat VS, Lodha R, Kabra SK. Profile of childhood poisoning at a tertiary care centre in North India. Indian J Pediatr. 2008;75:791-4. https://doi.org/10.1007/s12098-008-0105-7
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Soori77. Soori H. Developmental risk factors for unintentional childhood poisoning. Saudi Med J. 2001;22:227-30. e Manouchehrifar et al.1313. Manouchehrifar M, Derakhshandeh N, Shojaee M, Sabzghabaei A, Farnaghi F. An epidemiologic study of pediatric poisoning; a six-month cross-sectional study. Emerg (Tehran). 2016;4:21-4. mostraram uma maior ocorrência de casos em meninos e na idade de zero a quatro anos, em estudos realizados no Irã. Em outro estudo, realizado na Índia, entre os anos de 2004 e 2006, a média de idade de maior ocorrência das intoxicações exógenas acidentais foi em crianças entre dois e três anos.1414. Kohli U, Kuttiat VS, Lodha R, Kabra SK. Profile of childhood poisoning at a tertiary care centre in North India. Indian J Pediatr. 2008;75:791-4. https://doi.org/10.1007/s12098-008-0105-7
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No Brasil, em estudo conduzido no Hospital Universitário de Maringá, no Paraná,1010. Tavares EO, Buriola AA, Santos JA, Ballani TS, Oliveira ML. Factors associated with poisoning in children. Esc Anna Nery. 2013;17:31-7. http://dx.doi.org/10.1590/S1414-81452013000100005
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a ocorrência foi maior entre crianças do sexo masculino (52,2%) e na faixa etária entre zero e quatro anos (81,0%). Também no Brasil, em Cuiabá, observou-se que a maioria dos intoxicados eram do sexo masculino (60%) e tinham idades entre um e quatro anos (71%).1212. Brito JG, Martins CB. Accidental intoxication of the infant-juvenile population in households: profiles of emergency care. Rev Esc Enferm USP. 2015;49:373-79. http://dx.doi.org/10.1590/S0080-623420150000300003
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Esses dados apontam para a necessidade de uma estrita vigilância e medidas protetoras direcionadas às crianças mais novas, pois estão sob maior risco de acidentes, visto sua característica de explorar o ambiente em que vivem, parte indissociável de seu desenvolvimento cognitivo e motor. Nos primeiros anos de vida, a exploração dos objetos é calcada pela oralidade, o que favorece a ingestão de produtos tóxicos.55. Ramos CL, Targa MB, Stein AT. Caseload of poisoning among children treated by the Rio Grande do Sul State Toxicology Information Center (CIT/RS), Brazil. Cad Saude Publica. 2005;21:1134-41. https://doi.org//S0102-311X2005000400015
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,1515. Fook SM, Azevedo EF, Costa MM, Feitosa IL, Bragagnoli G, Mariz SR. Avaliação das intoxicações por domissanitários em uma cidade do Nordeste do Brasil. Cad Saude Publica. 2013;29:1041-5. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-311X2013000500021
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Essa combinação de necessidades de exploração, primazia da oralidade e ajuizamento insuficiente dos riscos caracteriza os primeiros anos de vida humana e pode explicar o predomínio das intoxicações acidentais nessa faixa etária.

É interessante notar a inversão do sexo predominante à medida que a idade avançou, ou seja, na faixa etária acima dos 12 anos, o sexo feminino predominou neste estudo. Como as intoxicações intencionais nos adolescentes são mais frequentes no sexo feminino,1616. Alves VM, Silva MAS, Magalhães APN, Andrade TG, Faro ACM, Nardi AE. Suicide attempts in a emergency hospital. Arq Neuro-Psiquiatr. 2014;72:123-8. http://dx.doi.org/10.1590/0004-282X20130212
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estes achados levantam a suspeita de que alguns casos tenham sido indevidamente classificados como acidentais nessa faixa etária. Corrobora essa suspeita o fato de os benzodiazepínicos estarem envolvidos de forma desproporcional nessa faixa etária (5% dos casos até os 12 anos e 13% dos casos a partir dessa idade).

Em relação ao local de ocorrência das intoxicações acidentais, a maioria (90%) dos acidentes ocorreu dentro dos domicílios, dados que corroboram achados de outros estudos nacionais e internacionais. Soori77. Soori H. Developmental risk factors for unintentional childhood poisoning. Saudi Med J. 2001;22:227-30. identificou que 89% das intoxicações com crianças ocorreram dentro de casa, especialmente em crianças mais novas. Em 75% dos casos, os produtos tóxicos estavam acessíveis às vítimas. O estudo realizado em Maringá1010. Tavares EO, Buriola AA, Santos JA, Ballani TS, Oliveira ML. Factors associated with poisoning in children. Esc Anna Nery. 2013;17:31-7. http://dx.doi.org/10.1590/S1414-81452013000100005
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também identificou o domicílio da vítima como o principal local de ocorrência da intoxicação (87% dos casos), ainda que a criança esteja sob a proteção e na presença de um adulto. Entre os fatores desencadeantes, a facilidade de acesso a medicamentos e a exposição oral foram predominantes.1010. Tavares EO, Buriola AA, Santos JA, Ballani TS, Oliveira ML. Factors associated with poisoning in children. Esc Anna Nery. 2013;17:31-7. http://dx.doi.org/10.1590/S1414-81452013000100005
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No presente estudo, a informação sobre a localização no interior da residência onde se deu o acidente não estava disponível. Entretanto, em outros relatos,55. Ramos CL, Targa MB, Stein AT. Caseload of poisoning among children treated by the Rio Grande do Sul State Toxicology Information Center (CIT/RS), Brazil. Cad Saude Publica. 2005;21:1134-41. https://doi.org//S0102-311X2005000400015
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,1717. Azkunaga B, Mintegi S, Salmón N, Acedo Y, Del Arco L, et al. Poisoning in children under age 7 in Spain. Areas of improvement in the prevention and treatment. An Pediatr (Barc). 2013;78:355-60. https://doi.org/10.1016/j.anpedi.2012.09.016
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a sala de estar, o quarto e a cozinha foram os locais onde houve a maioria dos casos de intoxicações em crianças.

Em nosso estudo, a via de exposição mais frequente foi a oral, que alcançou um percentual de 82,7% dos casos, resultado amplamente corroborado pela literatura.1010. Tavares EO, Buriola AA, Santos JA, Ballani TS, Oliveira ML. Factors associated with poisoning in children. Esc Anna Nery. 2013;17:31-7. http://dx.doi.org/10.1590/S1414-81452013000100005
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,1414. Kohli U, Kuttiat VS, Lodha R, Kabra SK. Profile of childhood poisoning at a tertiary care centre in North India. Indian J Pediatr. 2008;75:791-4. https://doi.org/10.1007/s12098-008-0105-7
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,1818. Z’gambo J, Siulapwa Y, Michelo C. Pattern of acute poisoning at two urban referral hospitals in Lusaka, Zambia. BMC Emerg Med. 2016;16:2. https://doi.org/10.1186/s12873-016-0068-3
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,1919. Ahmed A, AlJamal AN, Mohamed Ibrahim MI, Salameh K, AlYafei K, Zaineh SA, et al. Poisoning emergency visits among children: a 3-year retrospective study in Qatar. BMC Pediatr. 2015;15:104. https://doi.org/10.1186/s12887-015-0423-7
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,2020. Azkunaga B , Mintegi S , Del Arco L , Bizakarra I. Changes in the epidemiology of poisonings attended in Spanish pediatric emergency departments between 2001 and 2010: increase in ethanol intoxication. Emergencias. 2012;24:376-79.

Nossos dados mostraram que os medicamentos foram responsáveis por 36,5% dos acidentes e os demais produtos não medicinais (produtos químicos, pesticidas, produtos de limpeza, plantas tóxicas e cosméticos) representaram 46,5% dos casos. A predominância de medicamentos77. Soori H. Developmental risk factors for unintentional childhood poisoning. Saudi Med J. 2001;22:227-30.,1010. Tavares EO, Buriola AA, Santos JA, Ballani TS, Oliveira ML. Factors associated with poisoning in children. Esc Anna Nery. 2013;17:31-7. http://dx.doi.org/10.1590/S1414-81452013000100005
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,1212. Brito JG, Martins CB. Accidental intoxication of the infant-juvenile population in households: profiles of emergency care. Rev Esc Enferm USP. 2015;49:373-79. http://dx.doi.org/10.1590/S0080-623420150000300003
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,1313. Manouchehrifar M, Derakhshandeh N, Shojaee M, Sabzghabaei A, Farnaghi F. An epidemiologic study of pediatric poisoning; a six-month cross-sectional study. Emerg (Tehran). 2016;4:21-4.,1919. Ahmed A, AlJamal AN, Mohamed Ibrahim MI, Salameh K, AlYafei K, Zaineh SA, et al. Poisoning emergency visits among children: a 3-year retrospective study in Qatar. BMC Pediatr. 2015;15:104. https://doi.org/10.1186/s12887-015-0423-7
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,2020. Azkunaga B , Mintegi S , Del Arco L , Bizakarra I. Changes in the epidemiology of poisonings attended in Spanish pediatric emergency departments between 2001 and 2010: increase in ethanol intoxication. Emergencias. 2012;24:376-79.,2121. Schmertmann M , Williamson A , Black D . Leading causes of injury hospitalization in children aged 0-4 years in New South Wales by injury submechanism: a brief profile by age and sex. J Paediatr Child Health. 2012;48:978-84. https://doi.org/10.1111/j.1440-1754.2012.02590.x
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e produtos domissanitários1212. Brito JG, Martins CB. Accidental intoxication of the infant-juvenile population in households: profiles of emergency care. Rev Esc Enferm USP. 2015;49:373-79. http://dx.doi.org/10.1590/S0080-623420150000300003
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,1818. Z’gambo J, Siulapwa Y, Michelo C. Pattern of acute poisoning at two urban referral hospitals in Lusaka, Zambia. BMC Emerg Med. 2016;16:2. https://doi.org/10.1186/s12873-016-0068-3
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,2222. Kouéta F, Dao L, Yé D, Fayama Z, Sawadogo A. Acute accidental poisoning in children: aspects of their epidemiology, etiology, and outcome at the Charles de Gaulle Pediatric Hospital in Ouagadougou (Burkina Faso). Santé (Montrouge, France). 2009;19:55-9. https://doi.org/10.1684/san.2009.0157
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é virtualmente uma constante nos estudos sobre intoxicações em crianças.

No presente estudo, os ansiolíticos benzodiazepínicos foram o principal grupo de medicamentos envolvido nas intoxicações. O estudo de Anderson et al.,2323. Anderson M, Hawkins L, Eddleston M, Thompson JP, Vale JA, Thomas SH. Severe and fatal pharmaceutical poisoning in young children in the UK. Arch Dis Child. 2016;101:653-6. https://doi.org/10.1136/archdischild-2015-309921
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realizado no Reino Unido, reforça que os benzodiazepínicos são um grupo de medicamentos frequentemente causadores de acidentes, atingindo 19% dos casos, naquele estudo. No estudo de Azkunaga et al. (Espanha),2020. Azkunaga B , Mintegi S , Del Arco L , Bizakarra I. Changes in the epidemiology of poisonings attended in Spanish pediatric emergency departments between 2001 and 2010: increase in ethanol intoxication. Emergencias. 2012;24:376-79. o paracetamol ocupa o primeiro lugar (12,9%), seguido do grupo dos benzodiazepínicos (10,3%). Os benzodiazepínicos estão entre os medicamentos mais utilizados no Brasil, entre todas as classes farmacêuticas,2424. Guimarães ACO. Uso e abuso de benzodiazepínicos: revisão bibliográfica para profissionais de saúde da atenção básica [monografia]. Belo Horizonte (MG): UFMG; 2013. tornando-os facilmente disponíveis no ambiente doméstico. Além disso, deve ser considerada a possibilidade de que, em alguns casos, seu uso tenha sido intencional, mas essa informação ter sido omitida no relato feito no momento do atendimento.

Observam-se diferenças quanto à categoria de substância envolvida e a idade da criança. Até os dois anos, no presente estudo, os produtos químicos/de limpeza predominaram, enquanto em maiores de dois anos passaram a predominar as intoxicações por medicamentos. No estudo de Brito e Martins,1212. Brito JG, Martins CB. Accidental intoxication of the infant-juvenile population in households: profiles of emergency care. Rev Esc Enferm USP. 2015;49:373-79. http://dx.doi.org/10.1590/S0080-623420150000300003
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entre os menores de um ano houve maior número de intoxicações por pesticidas (66,6%); de um a quatro anos, os principais agentes foram os produtos de limpeza; e entre cinco e nove anos foram os produtos farmacológicos (66,6%). A facilidade de acesso aos diferentes tipos de substâncias pelas crianças pode ser responsável pelos diferentes padrões etários encontrados.55. Ramos CL, Targa MB, Stein AT. Caseload of poisoning among children treated by the Rio Grande do Sul State Toxicology Information Center (CIT/RS), Brazil. Cad Saude Publica. 2005;21:1134-41. https://doi.org//S0102-311X2005000400015
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,2121. Schmertmann M , Williamson A , Black D . Leading causes of injury hospitalization in children aged 0-4 years in New South Wales by injury submechanism: a brief profile by age and sex. J Paediatr Child Health. 2012;48:978-84. https://doi.org/10.1111/j.1440-1754.2012.02590.x
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As substâncias químicas envolvidas também podem variar de acordo com a disponibilidade. Em regiões rurais, os pesticidas são frequentemente envolvidos.1818. Z’gambo J, Siulapwa Y, Michelo C. Pattern of acute poisoning at two urban referral hospitals in Lusaka, Zambia. BMC Emerg Med. 2016;16:2. https://doi.org/10.1186/s12873-016-0068-3
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,2525. Lira SV, Silva JG, Abreu RN, Moreira DP, Vieira LJ, Frota FA. Intoxicações por pesticidas em crianças, adolescentes e jovens no município de Fortaleza (CE). Cienc Cuid Saude. 2009;8:48-55. https://doi.org/10.4025/cienccuidsaude.v8i1.7772
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Em locais onde os combustíveis hidrocarbonetos são necessários para a produção de energia e calor nos domicílios, pela relativa escassez de suprimento de energia elétrica, esse grupo passa a ser um dos mais frequentes.2222. Kouéta F, Dao L, Yé D, Fayama Z, Sawadogo A. Acute accidental poisoning in children: aspects of their epidemiology, etiology, and outcome at the Charles de Gaulle Pediatric Hospital in Ouagadougou (Burkina Faso). Santé (Montrouge, France). 2009;19:55-9. https://doi.org/10.1684/san.2009.0157
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Ou seja, a disponibilidade do produto no domicílio e a facilidade de acesso são, obviamente, potenciais fatores de risco.

É digna de destaque a ocorrência das intoxicações causadas por produtos químicos destinados a atividades domésticas (detergentes, sabão em pó, água sanitária, desentupidores), que estão presentes na maioria dos lares, na forma de líquidos coloridos atraentes para crianças e com armazenamento muitas vezes inadequado. Além disso, esses produtos muitas vezes são comercializados em garrafas tipo “PET” e vendidas sem rótulo de identificação do produto que informe sua procedência e forneça instruções para utilização segura.2626. Souza RO, Seixas Filho JT, Miranda MG, Carvalho Neto FM. O impacto dos produtos domissanitários na saúde da população do Complexo do Alemão - Rio de Janeiro. Quim Nov. 2015;37:93-7. http://dx.doi.org/10.5935/0104-8899.20150025
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Muitos dos acidentes cáusticos ocorreram devido à manipulação doméstica dos produtos. Houve alguns casos, relatados no presente estudo, em que o cuidador informou que possuía em sua residência, no momento do acidente, mistura feita por variados produtos, tendo como principal elemento a soda cáustica para a preparação de sabão caseiro. Essa prática se mostra arriscada, principalmente em casas com crianças pequenas e que não contam com supervisão constante de um adulto.

No caso dos pesticidas, entre os quais os carbamatos (“chumbinho”), um dos principais problemas é o comércio ilegal com o propósito de uso domissanitário, como raticida, desviando-se do uso agrícola autorizado no país.2727. Corrêa CL, Zambrone FA, Cazarin KC. Chumbinho poisoning: challenge to clinical diagnosis and treatment. Rev Bras Toxicol. 2004;17:71-8.

A efetividade da supervisão por adultos é prejudicada pela rapidez com que uma criança é capaz de se envolver no acidente. Kouéta et al.2222. Kouéta F, Dao L, Yé D, Fayama Z, Sawadogo A. Acute accidental poisoning in children: aspects of their epidemiology, etiology, and outcome at the Charles de Gaulle Pediatric Hospital in Ouagadougou (Burkina Faso). Santé (Montrouge, France). 2009;19:55-9. https://doi.org/10.1684/san.2009.0157
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e Tavares et al.1010. Tavares EO, Buriola AA, Santos JA, Ballani TS, Oliveira ML. Factors associated with poisoning in children. Esc Anna Nery. 2013;17:31-7. http://dx.doi.org/10.1590/S1414-81452013000100005
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não observaram uma maior ocorrência de intoxicações associadas à falta de supervisão. Ramos et al.55. Ramos CL, Targa MB, Stein AT. Caseload of poisoning among children treated by the Rio Grande do Sul State Toxicology Information Center (CIT/RS), Brazil. Cad Saude Publica. 2005;21:1134-41. https://doi.org//S0102-311X2005000400015
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, em um estudo de caso controle, verificaram que a fração de risco atribuível à desatenção dos cuidadores foi de 13%, enquanto o armazenamento de produtos perigosos a baixa altura, 19%. Esses achados sugerem que o armazenamento adequado fora do alcance das crianças pode ser uma estratégia mais efetiva: tornar a casa segura.

Em nosso estudo, observou-se apenas um óbito, resultando em letalidade de 0,2%, que pode ser considerada muito baixa. Na Colômbia, em 2009, foram identificados 187 óbitos por intoxicações, correspondendo a uma taxa de mortalidade de 0,6 casos para cada 100 mil habitantes e a uma taxa de letalidade de 9,5 por 100 mil pacientes intoxicados.2828. Álvarez AA, Carrillo AA. General measures in the emergency department for pediatric patients poisoned. Univ Med (Bogotá). 2012;53;154-65. No estudo de Kouéta et al.,2222. Kouéta F, Dao L, Yé D, Fayama Z, Sawadogo A. Acute accidental poisoning in children: aspects of their epidemiology, etiology, and outcome at the Charles de Gaulle Pediatric Hospital in Ouagadougou (Burkina Faso). Santé (Montrouge, France). 2009;19:55-9. https://doi.org/10.1684/san.2009.0157
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a evolução foi fatal em 3% dos casos, sendo que 75% dos óbitos ocorreram devido a envenenamento de crianças de um a quatro anos. Nas crianças, a letalidade por intoxicações medicamentosas é mais prevalente até os quatro anos de idade, e de natureza não intencional.2929. Mota DM, Melo JR, Freitas DR, Machado M. Profile of mortality by intoxication with medication in Brazil, 1996-2005: portrait of a decade. Cien Saude Colet. 2012;17:61-70. http://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232012000100009
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É possível que a baixa letalidade observada no presente estudo esteja ligada ao fato do tratamento ser realizado em unidade de referência muito bem equipada e com equipes profissionais que possuem grande experiência no atendimento a vítimas de intoxicações. Além disso, na maioria dos casos, os acidentes envolveram apenas uma substância, especialmente medicamentos e produtos de limpeza de baixo risco. Como o intervalo entre o acidente e o atendimento não foi sistematicamente registrado, não foi possível avaliar seu impacto na letalidade e na permanência hospitalar.

Os dados do presente estudo mostram que as intoxicações acidentais em crianças e adolescentes atendidas na emergência resultaram em internação em 15% dos casos, a grande maioria por até dois dias. No estudo de Brito e Martins1212. Brito JG, Martins CB. Accidental intoxication of the infant-juvenile population in households: profiles of emergency care. Rev Esc Enferm USP. 2015;49:373-79. http://dx.doi.org/10.1590/S0080-623420150000300003
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foram internados 24,4% dos casos.

A substituição de produtos domésticos com maior potencial intoxicante por similares com perfil mais benigno, bem como a disponibilidade imediata de assistência e informações especializadas são estratégias recomendadas pela Organização Mundial da Saúde e pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância para a prevenção das intoxicações infantis e redução das lesões associadas.11. World Health Organization. World Report on Child Injury Prevention. Geneva: WHO; 2008.

Entre as limitações do nosso trabalho está o fato de se tratar de um estudo com uso de fonte secundária de informação, baseado em registros de atendimento, não sendo possível o controle sobre a qualidade das anotações realizadas nos prontuários. O estudo foi baseado em atendimentos hospitalares, o que limita que as inferências sobre seus resultados sejam estendidas à comunidade. Por outro lado, cabe citar o fato de o estudo ter sido feito em hospital de referência em acidentes e violências, o que favorece a representatividade dos achados em ambientes clínicos, ou seja, permite a comparabilidade com outros serviços semelhantes.

Em conclusão, houve maior ocorrência de intoxicações exógenas acidentais em crianças entre um e dois anos de idade, do sexo masculino e residentes em Belo Horizonte. Os principais agentes causadores de intoxicações exógenas foram os medicamentos, seguidos de produtos de limpeza e químicos. Residir fora da cidade onde fica o centro de atendimento e ingestão de múltiplas substâncias foram fatores de risco para internação entre os que procuraram a emergência por esse motivo. O padrão dos produtos e substâncias envolvidas, o perfil etário e a predominância de intoxicações por ingestão no ambiente doméstico indicam que oportunidades de prevenção podem estar sendo perdidas

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Financiamento

  • O estudo não recebeu financiamento

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Nov 2019
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    03 Abr 2018
  • Aceito
    30 Ago 2018
  • Publicado
    08 Nov 2019
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