UTILIDADE DIAGNÓSTICA DA REAÇÃO DO SÍTIO DE VACINAÇÃO BACILLUS CALMETTE-GUÉRIN NA DOENÇA DE KAWASAKI

RESUMO

Objetivo:

Descrever o caso de um lactente - com diagnóstico de Doença de Kawasaki incompleta - que desenvolveu reativação da cicatriz da vacina BCG.

Descrição do caso:

Um paciente de 6 meses de idade foi admitido no hospital com febre, associada à hiperemia ocular, linfadenomegalia cervical e fissuras labiais, permanecendo hospitalizado por 12 dias. Apresentava, no exame físico, reação inflamatória no local da cicatriz da vacina BCG, tendo sido feito o diagnóstico de Kawasaki incompleto. O paciente foi tratado com imunoglobulina venosa, mas apresentou recorrência da doença, com posterior surgimento de coronariopatia.

Comentários:

A reativação da BCG é um achado importante na doença de Kawasaki em países onde a vacina é aplicada de forma rotineira e pode ser um marcador útil para o diagnóstico precoce da doença de Kawasaki, principalmente em sua forma incompleta.

Palavras-chave:
Vacinas; Síndrome de linfonodos mucocutâneos; Vacina BCG

ABSTRACT

Objective:

To describe the case of an infant - diagnosed with incomplete Kawasaki disease - who developed BCG scar reactivation.

Case description:

A 6-month-old patient was admitted to hospital with fever associated with ocular hyperemia, cervical lymphadenopathy, and hyperemic lips, and remained hospitalized for 12 days. The physical examination revealed an inflammatory reaction at the site of the BCG scar, leading to the diagnosis of incomplete Kawasaki disease. The patient was treated with venous immunoglobulin, but presented recurrence of Kawasaki disease, with subsequent onset of coronary artery disease.

Comments:

BCG scar reactivation is an important finding in countries where the vaccine is routinely given and may be a useful marker for early diagnosis of Kawasaki disease, especially in its incomplete form.

Keywords:
Vaccines; Kawasaki disease; Bacillus Calmette Guerin vaccine

INTRODUÇÃO

A doença de Kawasaki (DK) é uma vasculite sistêmica aguda autolimitada de etiologia desconhecida que afeta predominantemente crianças com idade <5 anos.^1,2 Foi descrita pela primeira vez no Japão por Tomisaku Kawasaki, em 1967, e foi relatada em todo o mundo, com as taxas mais altas encontradas em países asiáticos.² Sua incidência varia de 265/100.000 crianças com idade <5 anos no Japão a 19/100.000 nos Estados Unidos.¹ No Brasil, assim como em outros países da América Latina, a incidência da doença ainda não foi relatada.

Clinicamente, a DK é caracterizada por febre com duração ≥5 dias, associada a pelo menos 4 dos seguintes sinais: erupção polimórfica leve, conjuntivite bilateral, eritema e rachaduras nos lábios ou cavidade oral, edema e descamação da pele dos dedos e linfadenopatia cervical.¹ A vasculite observada em pacientes com DK pode causar inflamação das artérias coronárias, assim como necrose e fibrose da parede arterial.¹ A principal complicação do comprometimento cardíaco é o desenvolvimento de aneurismas, fístulas, dilatações e infarto do miocárdio, que ocorrem como resultado da DK em 15 a 25% das crianças não tratadas.1 As manifestações cardiovasculares podem ser proeminentes durante a fase aguda e são uma importante causa de morbimortalidade a longo prazo.^1,2 Apesar de sua natureza autolimitada, a DK exige um diagnóstico precoce e tratamento imediato para prevenir complicações cardiovasculares.¹

Na ausência de testes diagnósticos específicos, a detecção de DK se baseia na avaliação de suas manifestações clínicas e na exclusão de outras doenças febris.² A DK incompleta deve ser considerada entre os diagnósticos diferenciais em qualquer lactente ou criança com febre inexplicável prolongada, < 4 dos principais achados clínicos mencionados e resultados laboratoriais e/ou ecocardiográficos consistentes com DK.^1,2,3 Pacientes com DK incompleta podem sofrer atrasos significativos no diagnóstico.³

Um grande obstáculo ao diagnóstico de DK é a falta de padrões de excelência para identificar a doença.^4,5 Infelizmente, a definição atual de DK, baseada nos critérios de diagnóstico, sobrepõe-se à de outras doenças. Um importante sinal clínico não incluído nos critérios diagnósticos é a ocorrência de eritema e endurecimento na cicatriz da Bacillus Calmette-Guérin (BCG), que a literatura japonesa destacou como um sinal específico e precoce de DK.^4,6 Inflamação aguda no local de inoculação da BCG é uma das poucas características da DK em bebês nos países onde a vacinação contra a tuberculose é amplamente utilizada.^3,4

A primeira descrição da reação cicatricial de BCG após DK ocorreu em 1982.² Uma revisão da literatura realizada por Rezai et al., em 2014, mostrou que um total de 15 estudos relataram reativação da cicatriz BCG em pacientes com DK, e 9 deles foram relatos de casos.⁶ Em Países do leste asiático, como Japão, Coreia e Taiwan, quase 50% dos pacientes com DK apresentam inflamação no local da BCG.⁴ Assim como na América Latina, alguns casos de reativação da cicatriz BCG foram relatados na Costa Rica e no México, onde a reação cicatricial à BCG estava presente em 15 e 24% dos pacientes, respectivamente. Apenas 18% deles apresentavam doença incompleta.²

O envolvimento do local de vacinação da BCG pode facilitar o diagnóstico imediato e a prevenção de aneurismas coronarianos, que são os efeitos colaterais mais graves da doença, especialmente em pacientes que não atendem aos critérios clássicos de pelo menos quatro dos cinco achados, como observado na DK incompleta.^4,5 Não há descrições da reativação da cicatriz BCG em crianças brasileiras diagnosticadas com DK. Este estudo teve como objetivo descrever o caso de uma criança no Brasil - com diagnóstico de DK incompleta - que teve reativação da cicatriz BCG, além de demonstrar como o eritema cicatricial BCG foi um critério diagnóstico útil para a doença.

RELATO DE CASO

Um menino de 6 meses de idade com histórico de febre por 12 dias foi internado em nosso hospital pediátrico de 150 leitos no sudeste do Brasil para investigação da condição persistente. Exames laboratoriais realizados no 11º dia de febre mostraram que o lactente apresentava anemia, leucocitose, trombocitose e proteína C reativa (PCR) elevada (Tabela 1). Na admissão, observamos irritabilidade, lábios marcadamente hiperêmicos, hiperemia conjuntival bilateral, linfonodos cervicais anteriores aumentados bilateralmente, sem edema das mãos e dos pés e sem erupção cutânea. A mãe da criança relatou que, no quarto dia de febre, havia observado hiperemia, edema e endurecimento na cicatriz da BCG, seguida de descamação. No momento da admissão, a lesão do bebê media 3 cm de diâmetro e não apresentava dores na palpação (Figura 1). Com base na apresentação clínica e laboratorial, suspeitou-se de DK incompleta e a administração de imunoglobulina intravenosa (IGIV) (2 g/kg) e ácido acetilsalicílico (80 mg/kg) foi iniciada no 13º dia da doença. Dois dias depois, o paciente apresentou resolução dos sintomas: remissão da febre, resolução da hiperemia ocular e eritema labial e linfadenopatia reduzida. A descamação lamelar dos dedos das mãos e dos pés ocorreu no 18º dia da doença. A reativação da cicatriz da BCG persistiu. Um ecocardiograma realizado no 18º dia da doença revelou aneurismas de pequenas artérias coronárias, medindo 4 e 3,5 mm no lado direito e esquerdo, respectivamente. A dose de ácido acetilsalicílico foi reduzida para 5 mg/kg após 3 dias de tratamento e a paciente recebeu alta no 19º dia da doença, após 12 dias de internação.

Tabela 1
Exames laboratoriais de acordo com o dia da febre.

	11o dia de febre	47o dia de febre
Hemoglobina	7,8 g/dL	9,4 g/dL
Contagem de leucócitos	17.590 células/mm3	21.300 células/mm3
Neutrófilos segmentados	46,5%	57%
Linfócitos	37,9%	33%
Bandas	-	4%
Basófilos	0,8%
Monócitos	9,8%	1%
Eosinófilos	2%	5%
Contagem de plaquetas	998.000 células/mm3	949.000 células/mm3
PCR		239,9 mg/L
AST(TGO)	25 u/L	22 u/L
ALT(TGP)	18 u/L	27 u/L

• PCR: proteína C reativa; AST (TGO): aspartato aminotransferase; ALT (TGP): alanina aminotransferase.

Figura 1.
Reativação da cicatriz BCG na admissão.

O bebê foi readmitido no pronto-socorro no 47º dia da doença, com febre persistente por oito dias, mostrando recorrência de hiperemia conjuntival, eritema labial, pés edematosos e descamação da ponta dos dedos. A cicatriz da BCG ainda apresentava sinais de inflamação leve, mas com melhora significativa desde a hospitalização anterior. Exames laboratoriais realizados no mesmo dia detectaram persistência de anemia, leucocitose, trombocitose, além de proteína C reativa (PCR) elevada (Tabela 1). Um ecocardiograma realizado um dia depois apresentou aneurismas das artérias coronárias direita e esquerda, medindo 3,2 e 4 mm, respectivamente. A IGIV foi novamente prescrita no dia 49^o da doença, e a dose de ácido acetilsalicílico foi aumentada para 80 mg/kg. O paciente apresentou boa resposta ao tratamento 48 horas após a infusão de IGIV e recebeu alta no 55º dia da doença, com melhora de todos os sintomas e resolução de eritema e endurecimento na cicatriz BCG.

DISCUSSÃO

O diagnóstico de DK continua sendo um desafio clínico. A falta de um teste diagnóstico significa que sua detecção depende de uma avaliação da presença de critérios específicos de doença, que, infelizmente, não a identificam em todas as crianças. Eritema e endurecimento em um local anterior de inoculação da BCG foram descritos em crianças com DK que nasceram em países onde essa vacina é amplamente administrada e é um marcador útil para o seu diagnóstico precoce.⁶ Embora sua etiologia permaneça incerta, alguns estudos sugerem que as alterações eritematosas associadas a essa reação fazem parte de uma ativação generalizada do sistema imunológico. Uma reação cruzada entre um possível agente infeccioso envolvido na doença e antígenos BCG micobacterianos pode ocorrer, contribuindo para o processo inflamatório.² Uma hipótese sugere que essa reatividade cruzada ocorra entre epítopos específicos da proteína micobacteriana 65kD e sua proteína humana homóloga.^2,3

A reativação da cicatriz BCG em pacientes com DK é significativamente mais comum do que naqueles com outras doenças febris.⁴ O eritema, a ulceração e a crosta são geralmente encontrados no local da vacinação, como pode ser visto neste caso.⁵ Alguns relatos demonstraram que a febre desaparece e o eritema na cicatriz BCG também desaparece alguns dias após o tratamento com imunoglobulina.⁶ A resolução da inflamação no local da BCG não pôde ser observada no paciente estudado após o primeiro tratamento com IGIV e foi descrita apenas no 55º dia de doença, após a segunda dose de IGIV.

A proporção de pacientes do sexo masculino com eritema na cicatriz da BCG é maior que a do sexo feminino com a mesma doença. Além disso, parece ser mais frequente em pacientes mais jovens, especialmente aqueles com menos de 6 meses de idade.^2,6 Alguns estudos revelaram que mais de 70% dos pacientes com reação cicatricial BCG têm entre 3 e 20 meses,⁶ especialmente entre seis a 12 meses.⁴ Há sugestões de que, após a vacinação com BCG, a prevalência de reação diminua com o tempo. Nosso relatório identificou um achado semelhante em relação à idade do paciente apresentado.

Uehara et al. também investigaram a relação entre o dia da hospitalização e o início da inflamação no local de aplicação da BCG. Os pesquisadores descobriram que esse sinal aparece no estágio inicial da doença: entre um e quatro dias após o início da febre.⁴ Nosso paciente apresentou eritema na cicatriz BCG no 4º dia da doença, corroborando o que foi relatado anteriormente.

Apesar de sua utilidade diagnóstica, a reativação da cicatriz BCG não é um componente essencial dos critérios clássicos de diagnóstico de DK, particularmente entre pacientes que não atendem aos critérios para DK completa. Alguns estudos demonstraram que a inflamação do local BCG é mais prevalente em pacientes com DK do que linfadenopatia cervical e erupção cutânea, demonstrando, portanto, que pode ser um critério útil na detecção de casos incompletos da doença, como no paciente aqui descrito.^4,6 A prevalência de linfadenopatia cervical é menor em pacientes jovens com DK do que em pacientes mais velhos. Portanto, uma reação cicatricial à BCG em pacientes jovens com DK seria um sinal mais útil do que a linfadenopatia cervical no diagnóstico da doença nessa faixa etária.²

Embora os resultados dos testes laboratoriais não sejam específicos, eles fornecem evidências de suporte para o diagnóstico de DK. Os resultados dos exames laboratoriais durante a fase aguda normalmente revelam contagens normais ou elevadas de glóbulos brancos e PCR elevado. A anemia ocorre com frequência e desaparece com o fim da inflamação. A trombocitose é uma característica da DK; entretanto, geralmente não aparece até a 2ª semana da doença.¹ Essas alterações demonstram um processo inflamatório agudo e intensa ativação imune da cascata de citocinas.¹ Pacientes com DK com reativação da cicatriz BCG tendem a mostrar leucocitose e trombocitose acentuadas associadas a aumento de marcadores de inflamação, como visto neste caso.⁴

A recorrência de DK é incomum e observada em apenas aproximadamente 3% dos pacientes. É mais comum em crianças com idade <3 anos no primeiro episódio e pode ocorrer dentro de oito anos após o primeiro episódio. O paciente estudado apresentou recidiva precoce dos sintomas, que se manifestou cerca de 40 dias após o início da febre e 30 dias após o tratamento com IGIV. A recorrência é mais amplamente documentada na literatura japonesa, mas seus fatores de risco permanecem incertos.¹ Até agora, a reativação da cicatriz BCG não foi descrita em casos de recorrência de DK.

As diretrizes japonesas classificam os aneurismas das artérias coronárias com base no diâmetro luminal interno absoluto ou relativo: pequenos aneurismas são definidos como dilatações localizadas com diâmetro luminal interno <4 mm, aneurismas médios presentes > 4 e <8 mm e aneurismas grandes ou gigantes têm >8 mm.^1,2 O objetivo da terapia é reduzir a inflamação e os danos arteriais e prevenir a trombose. Em nosso paciente, o tratamento tardio após o 10º dia da doença foi associado à leve dilatação da artéria coronária. Uma revisão da literatura⁶ mostrou que 10,3% dos pacientes com reativação da cicatriz BCG apresentavam anormalidades nas artérias coronárias. Alguns autores sugerem que não há associação entre a reativação da cicatriz BCG e lesões nas artérias coronárias. Eles declaram que esses achados não são úteis para prever a presença de aneurismas coronarianos.^2,4,6

A tuberculose permanece endêmica em todo o Brasil, onde um programa permanente de vacinação universal para BCG foi adotado para bebês. Nos países onde a vacinação com BCG é recomendada, sua reação no local da cicatriz deve ser considerada um marcador útil para o diagnóstico precoce da DK, a fim de evitar complicações cardiovasculares.

REFERENCES

• ¹
  McCrindle BW, Rowley AH, Newburger JW, Burns JC, Bolger AF, Gewitz M, et al. Diagnosis, treatment, and long-term management of Kawasaki Disease. Circulation. 2017;135:e927-99. https://doi.org/10.1161/CIR.0000000000000484
  » https://doi.org/https://doi.org/10.1161/CIR.0000000000000484
• ²
  Garrido-García LM, Castillo-Moguel A, Vázquez-Rivera M, Cravioto P, Fernando G. Reaction of the BCG scar in the acute phase of Kawasaki disease in Mexican children. Pediatr Infect Dis J. 2017;36:e237-41. https://doi.org/10.1097/INF.0000000000001633
  » https://doi.org/https://doi.org/10.1097/INF.0000000000001633
• ³
  Seo JH, Yu JJ, Ko HK, Choi HS, Kim YH, Ko JK. Diagnosis of Incomplete Kawasaki Disease in infants based on an inflammation at the Bacille Calmette-Guérin Inoculation Site. Korean Circ J. 2012;42:823-9. https://doi.org/10.4070/kcj.2012.42.12.823
  » https://doi.org/https://doi.org/10.4070/kcj.2012.42.12.823
• ⁴
  Uehara R, Igarashi H, Yashiro M, Nakamura Y, Yanagawa H. Kawasaki disease patients with redness or crust formation at the Bacille Calmette-Guérin inoculation site. Pediatr Infect Dis J. 2010;29:430-3. https://doi.org/10.1097/INF.0b013e3181cacede
  » https://doi.org/https://doi.org/10.1097/INF.0b013e3181cacede
• ⁵
  Uda K, Hataya H. Ulceration at Bacillus Calmette-Guérin inoculation site in a patient with Kawasaki disease. J Pediatr. 2015;167:1167-7.e1. https://doi.org/10.1016/j.jpeds.2015.08.018
  » https://doi.org/https://doi.org/10.1016/j.jpeds.2015.08.018
• ⁶
  Rezai MS, Shahmohammadi S. Erythema at BCG inoculation site in Kawasaki disease patients. Mater Sociomed. 2014;26:256-60. https://doi.org/10.5455/msm.2014.26.256-260
  » https://doi.org/https://doi.org/10.5455/msm.2014.26.256-260

Financiamento

• O estudo não recebeu financiamento

Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  28 Ago 2020
• Data do Fascículo
  2021

Histórico

• Recebido
  04 Out 2019
• Aceito
  29 Dez 2019
• Publicado
  25 Ago 2020