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MUCOPOLISSACARIDOSE TIPO III B MAL DIAGNOSTICADA COMO TRANSTORNO DE ESPECTRO AUTISTA: RELATO DE CASO E REVISÃO DE LITERATURA

RESUMO

Objetivo:

Relatar o caso raro de um paciente pediátrico com mucopolissacaridose III B, com ênfase na descrição de manifestações clínicas.

Descrição do caso:

Paciente masculino de 14 anos que, a partir dos 3 anos e 6 meses de idade, apresentou regressão do desenvolvimento neuropsicomotor, com perda da fala e quedas frequentes, evoluindo com alterações comportamentais, agitação e agressividade. Diagnosticado como autista, não obteve resposta ao tratamento estabelecido, sendo posteriormente submetido à investigação metabólica, que evidenciou o diagnóstico de mucopolissacaridose III B.

Comentários:

A identificação de um distúrbio metabólico exige conectar vários sinais e sintomas, além de eliminar outras causas aparentes. A mucopolissacaridose III B é um desafio diagnóstico, particularmente nos estágios iniciais e na ausência de história familiar da doença.

Palavras-chave:
Mucopolissacaridose III; Síndrome de Sanfilippo; Doenças raras; Erros inatos do metabolismo; Transtorno do espectro autista

ABSTRACT

Objective:

To report a rare case of mucopolysaccharidosis IIIB in a pediatric patient, with emphasis on the description of the clinical manifestations and the early diagnosis.

Case description:

A 14-year-old male patient, who presented regression of neuropsychomotor development since his three years and six months old, with speech loss and frequent falls, evolving with behavioral changes, with agitation and aggressiveness. Although being diagnosed with autism, there was no response to the established treatment; he was subsequently submitted to metabolic investigation, which lead to the diagnosis of Mucopolysaccharidosis IIIB.

Comments:

Identifying a metabolic disorder requires connecting multiple signs and symptoms, as well as eliminating other apparent causes. MPS IIIB is a diagnostic challenge, particularly in the early stages and in the absence of a family history of the disease.

Keywords:
Mucopolysaccharidosis III; Sanfilippo syndrome; Rare diseases; Metabolism, inborn errors; Autism spectrum disorder

INTRODUÇÃO

As mucopolissacaridoses são um grupo de distúrbios de armazenamento lisossomal raro causados pela deficiência congênita de enzimas que catalisam a degradação de glicosaminoglicanos. O acúmulo lisossômico de moléculas de glicosaminoglicanos resulta em disfunção de células, tecidos e órgãos, ocorrendo envolvimento de múltiplos sistemas, com organomegalia, disostose múltipla e fácies anormal.11. Shapiro E, King K, Ahmed A, Rudser K, Rumsey R, Yund B, et al. The neurobehavioral phenotype in mucopolysaccharidosis type IIIB: an exploratory study. Mol Genet Metab Rep. 2016;6:41-7. https://doi.org/10.1016/j.ymgmr.2016.01.003
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A mucopolissacaridose tipo III (MPS III), ou síndrome de Sanfilippo, consiste numa doença em que ocorre depósito lisossomal de sulfato de heparano e é causada por disfunções de um dos genes que codifica as enzimas lisossômicas envolvidas na degradação desse sulfato.22. Andrade F, Aldámiz‐Echevarría L, Llarena M, Couce ML. Sanfilippo syndrome: overall review. Pediatr Int. 2015;57:331-8. https://doi.org/10.1111/ped.12636
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A sua prevalência é em torno de 1:200 mil nascimentos; está entre as mucopolissacaridoses mais frequentes.33. Héron B, Mikaeloff Y, Froissart R, Caridade G, Maire I, Caillaud C, et al. Incidence and natural history of mucopolysaccharidosis type III in France and comparison with United Kingdom and Greece. Am J Med Genet Part A. 2010;155A:58-68. https://doi.org/10.1002/ajmg.a.33779
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Apresenta quatro subtipos (A-D), classificados de acordo com a deficiência enzimática. Por sua vez, a MPS III B ocorre pela deficiência da enzima alfa-N-acetilglucosaminidase.44. Lavery C, Hendriksz C, Jones SA. Mortality in patients with Sanfilippo syndrome. Orphanet J Rare Dis. 2017;12:168. https://doi.org/10.1186/s13023-017-0717-y
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O diagnóstico é bioquímico, embora possa haver eliminação de sulfato de heparano na urina. O diagnóstico definitivo pode ser realizado por comprovação da baixa atividade da enzima alfa-N-acetilglucosaminidase ou por detecção de mutação patogênica em homozigose ou heterozigose composta dos genes envolvidos na MPS III.44. Lavery C, Hendriksz C, Jones SA. Mortality in patients with Sanfilippo syndrome. Orphanet J Rare Dis. 2017;12:168. https://doi.org/10.1186/s13023-017-0717-y
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Trata-se de uma doença progressiva com três fases, que se iniciam após um período de desenvolvimento aparentemente normal.44. Lavery C, Hendriksz C, Jones SA. Mortality in patients with Sanfilippo syndrome. Orphanet J Rare Dis. 2017;12:168. https://doi.org/10.1186/s13023-017-0717-y
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Na primeira fase, a criança apresenta leve atraso no desenvolvimento acompanhado por manifestações somáticas (recorrência de doenças de ouvido, nariz e garganta ou gastrintestinais). A próxima fase caracteriza-se por dificuldade comportamental, hiperatividade e distúrbios do sono, e, por fim, na última fase, a criança sofre perda de processos intelectuais e funções motoras.44. Lavery C, Hendriksz C, Jones SA. Mortality in patients with Sanfilippo syndrome. Orphanet J Rare Dis. 2017;12:168. https://doi.org/10.1186/s13023-017-0717-y
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Ao contrário das outras mucopolissacaridoses, que apresentam extenso envolvimento somático, nos pacientes com MPS III B tipicamente sobressaem os sinais e sintomas neurocognitivos.55. Wijburg FA, Węgrzyn G, Burton BK, Tylki‐Szymańska A. Mucopolysaccharidosis type III (Sanfilippo syndrome) and misdiagnosis of idiopathic developmental delay, attention deficit/hyperactivity disorder or autism spectrum disorder. Acta Paediatr. 2013;102:462-70. https://doi.org/10.1111/apa.12169
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O quadro caracteriza-se predominantemente pela presença de deficiência mental grave, degeneração neurológica, disostose múltipla e problemas físicos leves. Por ser uma patologia rara e pouco conhecida, o diagnóstico é comumente tardio, o que compromete a eficácia das medidas.66. Aureliano WA. Trajetórias terapêuticas familiares: doenças raras hereditárias como sofrimento de longa duração. Ciênc Saúde Coletiva. 2018;23:369-80. https://doi.org/10.1590/1413-81232018232.21832017
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Com relação ao transtorno de espectro autista (TEA), ele manifesta-se como um distúrbio do desenvolvimento neurológico, tem início precoce e caracteriza-se por déficits comportamentais complexos, incluindo distúrbio da linguagem, interações sociais prejudicadas e comportamento ou interesses restritivos, repetitivos e estereotipados.77. Lau AA, Tamang SJ, Hemsley KM. MPS-IIIA mice acquire autistic behaviours with age. J Inherit Metab Dis. 2018;41:669-77. https://doi.org/10.1007/s10545-018-0160-9
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,88. Çöp E, Yurtbasi P, Öner Ö, Münir K. Genetic testing in children with autism spectrum disorders. Anadolu Psikiyatri Derg. 2015;16:426-32. https://doi.org/10.5455/apd.1414607917
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A prevalência é de 6:1 mil e é mais comum em homens do que em mulheres.88. Çöp E, Yurtbasi P, Öner Ö, Münir K. Genetic testing in children with autism spectrum disorders. Anadolu Psikiyatri Derg. 2015;16:426-32. https://doi.org/10.5455/apd.1414607917
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A etiologia do TEA não é clara e mais de 100 genes e 44 loci genômicos estão envolvidos na sua patogênese.77. Lau AA, Tamang SJ, Hemsley KM. MPS-IIIA mice acquire autistic behaviours with age. J Inherit Metab Dis. 2018;41:669-77. https://doi.org/10.1007/s10545-018-0160-9
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Fatores genéticos desempenham importante papel no desenvolvimento desse agravo, visto que a taxa de herdabilidade do distúrbio é de aproximadamente 80%.99. Takahashi N, Harada T, Nishimura T, Okumura A, Choi D, Iwabuchi T, et al. Association of genetic risks with autism spectrum disorder and early neurodevelopmental delays among children without intellectual disability. JAMA Netw Open. 2020;3:e1921644. https://doi.org/10.1001/jamanetworkopen.2019.21644
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A Academia Americana de Pediatria orienta investigação direcionada em caso de suspeita de doença genética específica e, nas outras situações, recomendam-se análise de microarray cromossômico, pesquisa de X frágil em famílias com padrão de herança ligada a sexo e considerar o sequenciamento do gene MECP2 em meninas. Nos casos em que a investigação for inconclusiva, pode ser realizado o sequenciamento completo do exoma.1010. Hyman SL, Levy SE, Myers SM; AAP Council on Children with Disabilities, Section on Developmental and Behavioral Pediatrics. Identification, evaluation, and management of children with autism spectrum disorder. Pediatrics. 2020;145:e20193447. https://doi.org/10.1542/peds.2019-3447
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O relato deste caso objetiva ilustrar a importância do diagnóstico etiológico de um paciente com diagnóstico de TEA e alertar para a suspeição da MPS III.

RELATO DE CASO

Paciente masculino de 14 anos, encaminhado a serviço de hospital de referência em Curitiba, Paraná, Brasil, para investigação. Nasceu com 38 semanas, peso de 3.500 g, estatura de 52 cm, perímetro cefálico não informado. Mãe negava consanguinidade. Criança sustentou a cabeça aos 4 meses, sentou sem apoio aos 6 meses, engatinhou os 9, andou com 1 ano e 4 meses e falou aos 2 anos. Até então o paciente apresentava desenvolvimento adequado para a idade.

O sinal mais precoce de alteração do desenvolvimento foi a regressão da fala, iniciada após os 2 anos de idade. A fala foi completamente perdida aos 3 anos e 6 meses. Nesse período ocorriam quedas frequentes, e a piora do equilíbrio era progressiva. A perda de equilíbrio tornou-se mais constante, dificultando muito a locomoção.

Posteriormente, o paciente apresentou agitação psicomotora, hiperatividade, insônia e perda do controle esfincteriano urinário e anal. Evoluiu com piora progressiva do comportamento, com crises de agitação psicomotora cada vez mais graves e frequentes, acompanhadas de obstinação, períodos de agressividade, inquietação e diminuição rápida da capacidade atencional. Demonstrava estereotipias, tais como recortar papel e bater em latas repetidas vezes. Aos 7 anos apresentava coprofagia e espalhava fezes no próprio corpo. Foi diagnosticado com TEA aos 6 anos e, aos 8, começou acompanhamento com escola especial. Fez uso de risperidona, amitriptilina, clonazepam, fluoxetina e periciazinha, porém sem resposta adequada. Já na escola especial, frequentou terapia ocupacional e fonoaudiologia, ambas infrutíferas.

No início do quadro, apesar das quedas, era capaz de deambular com auxílio de muletas, mas aos 12 anos e 11 meses sofreu perda completa da função. Também ocorreu regressão da capacidade de deglutição, até finalmente depender de sonda nasogástrica para nutrição. Aos 13 anos realizou a inserção de gastrostomia para alimentação. Na evolução do quadro, os comportamentos de hiperatividade e agressividade diminuíram, com transição gradual e progressiva para sonolência desde os 9 anos, e a sonolência intensa ocorreu em época próxima de 12 anos de idade.

Na história mórbida pregressa há relatos de infecções do trato respiratório de repetição, no entanto não se tem história de desmaios ou crises convulsivas, tampouco história familiar de doenças genéticas, neurológicas, psiquiátricas ou cardiovasculares.

Ao exame físico, apresentava peso de 25 kg (escore Z: -3,81), estatura de 125 cm (escore Z: -4,05), índice de massa corporal de 16 (escore Z: -1,26) e perímetro cefálico de 53 cm (escore Z: -1,33); fácies grosseira, nariz em sela, lábios grossos, sinofris, pescoço curto, macroglossia, fronte proeminente, cabelos ressecados e ralos; e reflexos osteotendinosos 3+/4+, mãos em garra, espasticidade em membros inferiores e rigidez articular. Exame oftalmológico conforme a normalidade, movimentação ocular extrínseca aparentemente preservada, reflexo vermelho positivo bilateral, fundoscopia/mapeamento de retina sem anormalidades.

A ressonância magnética de crânio mostrava dilatação discreta dos ventrículos laterais e do terceiro ventrículo, com espessamento difuso da díploe e diminuição volumétrica dos hemisférios cerebrais. A ressonância magnética da coluna total mostrou inversão da curvatura cervical fisiológica, alteração morfoestrutural difusa dos corpos vertebrais e acunhamento de seus platôs, promovendo o aspecto radiológico de vértebra em bala. Desidratação discal difusa, associada à discreta redução dos espaços intervertebrais e a pequenas herniações discais intrassomáticas (nódulos de Schmorl) de aspecto crônico nos platôs contíguos.

O ecocardiograma identificou miocardiopatia hipertrófica, com hipertrofia importante de ventrículo esquerdo e disfunção diastólica moderada, dupla lesão aórtica leve e insuficiência aórtica moderada. Eletrocardiograma mostrou sobrecarga ventricular esquerda. Ecografia de abdome revelou fígado com contornos, ecogenicidade e ecotextura normais, mas dimensões aumentadas.

O paciente apresentava aumento de excreção de glicosaminoglicanos urinários, com eliminação de sulfato de heparano. Os exames laboratoriais mostraram glicosaminoglicanos=127 µg/mg creatinina (valor de referência 44-106). O diagnóstico foi confirmado pela comprovação de deficiência da enzima alfa-N-acetilglucosaminidase. Exames laboratoriais evidenciaram:

  • Dosagem de N-acetil-glucosaminidase: não detectado (valor de referência=10-34).

  • Acetil-CoA glucosamina-N-acetiltransferase: 11 nmol/17 h/mg proteína (valor de referência=14-81).

DISCUSSÃO

A MPS III apresenta os primeiros sintomas geralmente entre 1 e 3 anos de idade, na chamada primeira fase, com a desaceleração ou estabilização do desenvolvimento cognitivo.33. Héron B, Mikaeloff Y, Froissart R, Caridade G, Maire I, Caillaud C, et al. Incidence and natural history of mucopolysaccharidosis type III in France and comparison with United Kingdom and Greece. Am J Med Genet Part A. 2010;155A:58-68. https://doi.org/10.1002/ajmg.a.33779
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Também podem ocorrer manifestações somáticas relacionadas ao trato respiratório superior e ao trato gastrintestinal.44. Lavery C, Hendriksz C, Jones SA. Mortality in patients with Sanfilippo syndrome. Orphanet J Rare Dis. 2017;12:168. https://doi.org/10.1186/s13023-017-0717-y
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A fala é a mais visivelmente afetada das funções. Em um grande estudo francês com 107 pacientes, o atraso de fala ao diagnóstico foi observado em 92% dos pacientes com MPS III B. O desenvolvimento motor em geral progride normalmente durante esse estágio.33. Héron B, Mikaeloff Y, Froissart R, Caridade G, Maire I, Caillaud C, et al. Incidence and natural history of mucopolysaccharidosis type III in France and comparison with United Kingdom and Greece. Am J Med Genet Part A. 2010;155A:58-68. https://doi.org/10.1002/ajmg.a.33779
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No presente caso, o paciente teve como manifestação mais precoce alterações na fala, que culminou na sua perda total aos 3 anos e 6 meses, idade compatível com a encontrada na literatura. Também é possível observar histórico de infecções respiratórias, as quais podem ser manifestações somáticas iniciais da doença.

Entre 3 e 4 anos, começa a segunda fase da doença, caracterizada por progressiva deterioração cognitiva e pelo surgimento de dificuldades comportamentais e distúrbios do sono. Hiperatividade, impulsividade, obstinação, comportamentos ansiosos e comportamentos autistas pioram com o tempo e podem se tornar extremos, a ponto de os pais relatarem necessidade de supervisão constante. A impulsividade pode ser tal que os pacientes agem sem demonstrar consideração pela sua própria segurança.

A criança do caso relatado, na segunda fase, apresentou comportamentos semelhantes aos descritos na literatura. Outro fator coincidente deste caso com os relatos da literatura foi a alteração no padrão do sono, visto que mais de 90% dessas crianças têm distúrbios do sono, o que pode ser debilitante para a família. Os pacientes permanecem ativos durante a noite toda: andam, cantam, gritam ou falam e adormecem por apenas algumas horas.55. Wijburg FA, Węgrzyn G, Burton BK, Tylki‐Szymańska A. Mucopolysaccharidosis type III (Sanfilippo syndrome) and misdiagnosis of idiopathic developmental delay, attention deficit/hyperactivity disorder or autism spectrum disorder. Acta Paediatr. 2013;102:462-70. https://doi.org/10.1111/apa.12169
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Nessa fase, tais crianças podem ser facilmente diagnosticadas erroneamente com TEA ou transtorno do desenvolvimento, pois é quando ocorre o comprometimento da reciprocidade social e da comunicação, contudo essas crianças não apresentam interesse restrito nem comportamento repetitivo.1111. Barone R, Pellico A, Pittalà A, Gasperini S. Neurobehavioral phenotypes of neuronopathic mucopolysaccharidoses. Ital J Pediatr. 2018;44 (Suppl 2):121. https://doi.org/10.1186/s13052-018-0561-2
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Com o diagnóstico incorreto, elas podem sofrer abordagens desnecessárias ou prejudiciais, como aconteceu no presente relato. A criança em questão recebeu o diagnóstico de TEA e iniciou o tratamento para esse transtorno, com acompanhamento em escola especial, uso de medicações indicadas e terapia ocupacional, além de fonoaudiologia, sem sucesso. Nesses casos, é característico que o paciente não responda ou responda mal aos medicamentos padrão e às intervenções baseadas em comportamento.55. Wijburg FA, Węgrzyn G, Burton BK, Tylki‐Szymańska A. Mucopolysaccharidosis type III (Sanfilippo syndrome) and misdiagnosis of idiopathic developmental delay, attention deficit/hyperactivity disorder or autism spectrum disorder. Acta Paediatr. 2013;102:462-70. https://doi.org/10.1111/apa.12169
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O diagnóstico correto e precoce da MPS III permite a intervenção igualmente precoce, que inclui aconselhamento genético para a família, maior elegibilidade para tratamentos efetivos e, potencialmente, melhor qualidade de vida, pois, com o correto diagnóstico, é possível oferecer o suporte comportamental personalizado, incluindo intervenções que apoiem habilidades de comunicação e sociais.1212. Wolfenden C, Wittkowski A, Hare DJ. Symptoms of Autism Spectrum Disorder (ASD) in individuals with mucopolysaccharide disease type III (Sanfilippo Syndrome): a systematic review. J Autism Dev Disord. 2017;47:3620-33. https://doi.org/10.1007/s10803-017-3262-6
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Por fim, a terceira fase começa geralmente na adolescência, com marcada demência grave e declínio da função motora. Nessa fase os sintomas somáticos sobressaem e os problemas comportamentais diminuem lentamente à medida que os pacientes perdem a independência funcional. Os pacientes eventualmente regridem, ficando totalmente acamados, em estado vegetativo, e surgem dificuldades de deglutição e espasticidade. Eles em geral morrem no fim do segundo ou no início da terceira década de vida.55. Wijburg FA, Węgrzyn G, Burton BK, Tylki‐Szymańska A. Mucopolysaccharidosis type III (Sanfilippo syndrome) and misdiagnosis of idiopathic developmental delay, attention deficit/hyperactivity disorder or autism spectrum disorder. Acta Paediatr. 2013;102:462-70. https://doi.org/10.1111/apa.12169
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Nessa fase, o paciente descrito diminuiu a hiperatividade e a agressividade, passando para um estado de sonolência e apatia, tal qual o descrito na literatura.

Com relação aos achados de exames, no caso relatado, observaram-se alterações características de MPS III B, tais como: alterações ortopédicas (Figura 1), alterações faciais (Figura 2), infecções respiratórias de repetição, alterações cardíacas e hepatomegalia. Na literatura há relatos de que tais manifestações ortopédicas (escoliose, cifose, lordose lombar, displasia e dor no quadril, síndrome do túnel do carpo e dedos em gatilho) são uma característica da MPS III B, embora sejam tardias e não tão frequentes. Outros sinais comuns da MPS III B incluem os dismorfismos faciais leves, infecções frequentes do ouvido ou das vias respiratórias, valvopatia, hérnia e hepatomegalia,55. Wijburg FA, Węgrzyn G, Burton BK, Tylki‐Szymańska A. Mucopolysaccharidosis type III (Sanfilippo syndrome) and misdiagnosis of idiopathic developmental delay, attention deficit/hyperactivity disorder or autism spectrum disorder. Acta Paediatr. 2013;102:462-70. https://doi.org/10.1111/apa.12169
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achados encontrados no paciente em questão.

Figura 1
Características fenotípicas da síndrome: quirodáctilos em gatilho.

Figura 2
Características fenotípicas da síndrome: protrusão lingual e lábios grossos.

O diagnóstico bioquímico das mucopolissacaridoses começa com a quantificação da excreção de glicosaminoglicanos na urina, a qual deve ser associada ao quadro clínico manifestado pelo paciente.1313. Valstar MJ, Ruijter GJ, Diggelen OP, Poorthuis BJ, Wijburg FA. Sanfilippo syndrome: a mini-review. J Inherit Metab Dis . 2008;31:240-52. https://doi.org/10.1007/s10545-008-0838-5
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Em exames laboratoriais prévios ao encaminhamento, observou-se o acúmulo de sulfato de heparano na urina, sugerindo o quadro como mucopolissacaridose.

Não há dúvidas de que a MPS III B é um desafio diagnóstico, particularmente nos estágios iniciais e na ausência de história familiar da doença, sobretudo em nosso meio, em que as informações sobre erros inatos do metabolismo ainda são restritas. A identificação de uma doença metabólica exige conectar vários sinais e sintomas e eliminar outras causas aparentes. As manifestações somáticas são heterogêneas e podem ser muito mais sutis do que as observadas nos outros distúrbios da mucopolissacaridoses. Ainda, alguns pacientes apresentam atraso de desenvolvimento global, o que pode levar à confusão diagnóstica.

Na prática diária, pode ser um desafio diagnóstico para o pediatra clínico distinguir as dificuldades comportamentais do TEA da MPS III B, particularmente nas fases iniciais. É importante a revisão dos marcos do desenvolvimento infantil, bem como a solicitação de exames complementares diante de um caso que suscita dúvidas. A perda progressiva dos marcos do neurodesenvolvimento infantil pode ser um sinal de alerta para que diagnósticos diferenciais sejam pesquisados. Quando há dúvida diagnóstica, deve-se considerar a possibilidade de erro inato do metabolismo. Essa atitude permite o diagnóstico precoce com os intuitos de otimizar o tratamento e evitar a exposição a medicamentos e terapias inapropriadas.

REFERENCES

Financiamento

  • O estudo não recebeu financiamento.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Out 2020
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    10 Dez 2019
  • Aceito
    25 Mar 2020
  • Publicado
    16 Out 2020
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